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HOMILIA SEGUIDA DE ORAÇÃO

Numa deferência ao Zeitgeist

 

Carlos Novaes, 31 de outubro de 2018

Homilia: o despreparo

Estava escrito, mas para ler teria sido necessário um preparo que ainda não temos. Teríamos de ter ido à fonte de nossos males para podermos avaliar a extensão da nossa desdita, estranha clareira de escombros, enjambrada por escolas deficientes ou pouco exigentes, quando não as duas coisas, ambas devotadas à “progressão” sem diligência. Nelas, gerações e gerações se sucedem longe do amanho da palavra, avessas ao esforço de percorrer seus acidentes semânticos e sintáticos. Nelas, gerações e gerações têm transmitido uma à outra a preguiça que ensina a desconfiar dos números, opondo à frieza deles o calor dos corpos emotivos de quem “sabe” que amanhã tudo se resolverá, pois o tempo é o senhor da razão… dos clichês.

Está escrito, mas para ler é necessário transpor coletivamente o pergaminho de cérebros organizados em cicatrizes, apegados a memórias velhas e infensos a memórias novas. É necessário que a comunicação torne-se mais rica, deixe de ser feita de cicatriz para cicatriz, pois mesmo via whatsapp uma cicatriz só comunica à outra a memória da sua dor, num intercâmbio que não supre o que a produção de uma memória nova requer. Pergaminhos mais afetados pela desorientação da carência produzem ressentimento social; pergaminhos mais afetados pela desorientação da desordem produzem ressentimento contra a diferença. Quando toda essa desorientação ressentida saída do despreparo é partilhada, o resultado não passa de uma desorientação nova desafiada por urgências antigas, situação que só pode resultar nesse improdutivo antagonismo entre ressentimentos, nunca em caminhos abertos à transformação.

Estará escrito, se insistirmos naquelas mesmas velhas ideias sobre tudo, se insistirmos em sempre ir ou pela esquerda ou pela direita, distraídos de que seguir assim é andar em círculos, e cada vez mais fechados… Tampouco vai resolver se voltarmos à luta com as mesmas fantasias surradas, cujo drapear manjado obedece a coreografias anacrônicas, que orientam os sempre mesmos personagens decaídos: Roberspierres de hospício delirando no Youtube, Napoleões de quermesse chefiando milícias, Lênins de picadeiro animando auditórios ou Bolívares da Casa Verde brandindo bacamartes. Oremos.

Oração ao neurônio entorpecido

Ó Tu, que repousas desincomodado em dobra cômoda desse cérebro afeiçoado ao hábito, acende-Te ao nosso rogo nesse momento em que Teu mais tenaz concorrente é invocado pela nossa mais alta e mais despreparada autoridade, que humildemente lhe pediu, via redes sociais, claro, uma “benção do preparo”.

Lá do fundo de sua bolsa de misérias, burrices e rancores, essa nossa nova autoridade máxima mais uma vez despreza a Ti e invoca o senhor seu, pedindo-lhe o preparo que não cuidou de obter pelo cultivo metódico dos talentos que repousam na Tua plasticidade. Por certo crê que a produtividade do Vale do Silício advém de uma predileção do seu senhor por aqueles cérebros — já podemos imaginar a rotina diária desse devotado senhor: cada despreparado que chega na porta do Vale recebe sua “benção do preparo” e passa a operar prodígios, que se traduzem em smartphones da hora, jogos cibernéticos, aplicativos digitais e toda sorte de milagres eletrônicos de última geração.

Por aqui, tristes trópicos, a “benção do preparo” teima na reprodução infindável do já batido, benze conhecimentos desumanos em favor de manjadíssimos arranjos pela prosperidade nacional, que já começam mal com essa contraproducente fusão de ministérios, pois como Tu bem podes antecipar, essa história de juntar o ministério do Malafaia com o ministério do Edir Macedo vai acabar mal…

Por tudo isso, rogo a Ti que abandones Teu repouso e saias à luta, promovendo encontros novos e ligando alternativas para que usinem-se novas memórias.

Podem ficar à vontade…