Arquivo da categoria: TEXTOS DE HOJE, DE ONTEM E DE ANTEONTEM

Esses posts incluem textos mais antigos que se julgou oportuno divulgar.

A FORÇA DE LULA É A FORMA ATUAL DA NOSSA DEBILIDADE

Carlos Novaes, 02 de julho de 2022

Ao que indicam os números das pesquisas, a maioria de nós está determinada a votar em Lula. Não se pode comemorar o que há de feliz nessa precária solução para o presente sem entender que ela encomenda uma infelicidade futura, conjunto nutrido por um passado malsão: a força de Lula serve de medida para a nossa falta de imaginação, falta essa que muito recentemente levou a maioria da sociedade brasileira a votar em alguém tão inadequado quanto Bolsonaro.

Imaginar requer coragem. Coragem requer aceitar o risco de deixar de contar com o que nos deixa sentir seguros. O perfil e a contundência das manifestações de junho de 2013 deixaram inseguros todos aqueles que ocupavam posições nas instituições públicas brasileiras – quem via como necessário estar no cargo que ocupava foi levado a achar, não sem razão, que a bronca era contra si. A covardia se generalizou e houve um brutal recuo de imaginação criadora: todas as nossas vanguardas políticas passaram a defender o Estado, no qual de um modo ou outro estavam instaladas, e, por isso mesmo, iniciou-se uma luta intramuros entre facções estatais, umas buscando empurrar para as outras a culpa pela ira da maioria da sociedade.

Essa conflagração das facções explicitou de maneira particularmente contundente as dificuldades de coordenação de um sistema político disfuncional quando se pensa nas complexidades envolvidas nos sofrimentos vividos pela maioria da sociedade brasileira. O sistema não tem respostas a dar e, pior, acentua problemas para os quais não tem solução. Por isso mesmo, entrou em crise de legitimação, o que se traduziu no sentimento antissistema da maioria da sociedade brasileira, que repudia esse Estado de Direito Autoritário-EDA em que as facções estão muito bem instaladas, revezando-se no mando conforme logram fazer maioria a cada eleição presidencial, que define não um vencedor, mas aquele a quem caberá o privilégio de comandar o exercício faccioso dos poderes institucionais, que não deixa de contemplar ninguém que tenha conseguido contornar as dificuldades para chegar a alguma das instituições do EDAé por isso que a urna eletrônica é, mesmo, confiável: ela serve de padrão de medida, de solo firme, para o jogo faccioso deles, e solda esse facciosismo à boa fé de uma sociedade incauta, que recebe contra seus próprios interesses o resultado do voto que deveras deu; é infernal!

Como já vimos, ao se insurgir contra o que consegue enxergar de malsão nesse estado de coisas, a maioria da sociedade acabou por escolher a única alternativa antissistema disponível, e Bolsonaro foi eleito. Passados quase quatro anos, tendo ficado claro o monumental erro cometido, essa mesma sociedade não conseguiu forjar uma alternativa e se vê tangida pela própria inércia a votar contra Bolsonaro premiando facções cujas práticas políticas conduziram o país na direção dessa besta. O PT e o que restou de eleitoralmente atraente do PSDB se juntaram para macaquear uma geringonça cuja oportunidade eles mesmos jogaram fora faz quase trinta anos, tudo em nome de uma restauração indesejável, uma vez que o que eles propõem é menos do mesmo — basta ler as indicações do que será o programa de governo proposto pela chapa: depois de vários mandatos de presidente e governador, Lula e Alckmin, a 100 dias da eleição, convidam a sociedade pra “conversar” em cima das mesmas propostas vagas de sempre… Tudo se passa como se eles não tivessem tido tempo de detalhar uma proposta de combate à desigualdade, uma reforma tributária ou o que quer que seja. E ainda usam uma suposta ameaça à democracia para desviar as consciências daquilo que realmente importa.

Tanto o eleitor desavisado, como aquele que se faz de desavisado por falta de brio para tirar consequências da própria falta de entusiasmo, um como outro votará em Lula como quem compra uma passagem de trem, mas, no fundo, sabe que está a embarcar num carrossel: haverá alguma ordem, menos sobressaltos e alguma alegria  (afinal, um parque de diversões é melhor do que o circo de horrores de Bolsonaro), mas não iremos a lugar algum e, por isso mesmo, a cada volta nos depararemos com os sempre mesmos velhos problemas.

CONTRADIÇÕES PODEM LEVAR À DESORIENTAÇÃO

Carlos Novaes, 04 de junho de 2022

A conjuntura política vem se desenrolando sem desafio à inteligência. Tudo se passa dentro de parâmetros previstos, até o comportamento da mídia convencional, que insiste no alarido de que Bolsonaro pode tentar dar um golpe (mais um!), quando sabemos que qualquer nova tentativa vai acabar exatamente como acabaram todas as outras: em desmoralização. Na verdade, olhados bem de perto e do modo certo, os blefes atuais de Bolsonaro contra o STF e as urnas eletrônicas já se tornaram aspectos folclóricos da paisagem. A cada declaração, Bolsonaro reforça sua condição de Faustão da política: aquele que tem audiência porque ocupa o cenário das atenções inerciais, mas a quem quase todo mundo quer deixar para trás – fora do cenário ele será reduzido ao seu verdadeiro tamanho.

As facções adversárias insistem em levar essa pantomima ditatorialesca a sério para poderem legitimar sua defesa do Estado de Direito AutoritárioEDA, para se pavonearem defensores de um suposto Estado democrático de direito sob ameaça imaginária de reversão ditatorial. Já vimos detalhadamente aqui como os danos provocados por Bolsonaro saem não do que ele diz contra a democracia, mas do que ele faz com os poderes do suposto Estado democrático de direito que herdou da polarização fajuta entre PT e PSDB.

Há poucos dias, Lula entendeu de aplicar um glacê rançoso sobre o bolo mofado de sua aliança com Alckmin —  quão mais lá de trás você acompanhe este blog, leitor, mais haverá de entender a gargalhada amarga que dei ao assistir ao vídeo com a cena patética de um Lula patético proferindo esse juízo patético:

…como esse país era feliz quando a polarização era do PT contra o PSDB. […] A gente era civilizado, a gente ganhava e perdia. […] A transição que fizemos com Fernando Henrique foi a mais civilizada que esse país conheceu.

Toda essa “civilização” celebrada por Lula era o reverso da medalha daquela polarização nefasta de que ele tem saudade – eles eram cordiais porque a polarização era fajuta, pois não pode haver polarização entre iguais! O fato de o PSDB estar em vias de extinção enquanto o PT se revigora e absorve o mais conservador dos grandes hierarcas tucanos é prova adicional de que a divisão entre eles era um despropósito, só explicável pelas ambições facciosas por poder e dinheiro. Desde pelo menos o plano Real deixara de fazer sentido a “polarização” PSDBxPT.

Como já vimos, foi aquela fajutice que nos trouxe a Bolsonaro: para encenarem a sua “civilização”, tanto PSDB quanto PT mantiveram muito bem nutridos os “incivilizados” dispositivos paisanos legados pela ditadura [p-MDB, PFL (ex-ARENA), e partidecos satélites saídos desses dois]. Em suma: as duas forças políticas que representavam o que a sociedade produzira de melhor em sua luta pela democracia degradaram-se arregimentando uma contra a outra o que havia de pior na ditadura que a mesma sociedade havia derrotado. Ao invés de se unirem para a trabalheira de levar o país em direção a um Estado de Direito Democrático, PSDB e PT preferiram lançar mão dos picaretas e autoritários que podiam comprar para comodamente se adequarem como “adversários” nas dobras do Estado de Direito Autoritário saído da transição truncada.

De tanto manterem vivos no EDA, que comandaram, aspectos fundamentais da ditadura, PT e PSDB acabaram por ter de encarar o ressurgimento dela em forma de assombração. Agora, se recusam a encarar a traição que fizeram à maioria da sociedade que almeja um Estado de Direito Democrático e tentam nos embrulhar na defesa ao EDA que não combateram e, pior, ao qual se afeiçoaram e trouxeram até essa crise de legitimação. Para isso, o governador do período mais truculento da PM de SP, o ex-chefe do Paulo Preto no rodoanel (“todo enrolado com a Justiça”), está a nos ser reapresentado como prócer civilizatório. E o que não falta é quem nomeie essa mixórdia de “projeto da esquerda pela democracia”.

O resultado é a polarização fajuta entre, de um lado, a anacrônica candidatura Lula-Alckmin e, de outro, Bolsonaro, tendo como vice um milico de pijama. Os primeiros só têm a oferecer menos do mesmo, mas insistem em vender como esperança a volta a um passado edulcorado que qualquer pessoa séria e minimamente informada só pode conceber como indesejável (até porque foi precisamente essa política profissional facciosa que engendrou Bolsonaro). Os segundos insistem em oferecer mais do mesmo, precisamente o que a maioria já recusou, como reiteram de sobra pesquisas recentes, que mostram não apenas a preferência pela democracia, mas a crescente abertura de espírito da maioria da sociedade brasileira, tudo em linha com a luta por um Estado de Direito Democrático (conjunto que mostra toda a impropriedade de apontar uma “onda conservadora duradoura”, comparando Brasil com Hungria e outras bobagens saídas da absorção acrítica de literatura sobre a morte das democracias — e como se vendem!).

Essa polarização é fajuta não porque essas chapas sejam praticamente a mesma coisa (como eram PSDB e PT), mas porque elas se opõem uma à outra no que não existe: uma fantasiosa ameaça às franquias democráticas. A chapa Lula-Alckmin rebaixa objetivos, escamoteia problemas e desvia o ímpeto pela mudança que sopra no Brasil deste o fim da ditadura paisano-militar. Em outras palavras: se Bolsonaro fosse uma ameaça real à democracia, se o Estado brasileiro atual fosse um Estado de Direito Democrático, faria todo sentido uma frente democrática contra ele. Mas Bolsonaro, seus milicos e o Centrão estão tão aboletados no EDA quanto estarão Lula, Alckmin, a autointitulada esquerda e o mesmo Centrão! (quem viver, verá!).

De modo que a maioria da sociedade que prefere a democracia e repele o sistema se deixou polarizar entre candidatos flagrantemente incompatíveis com a meta de um Estado de Direito Democrático: Lula se diz democrata, mas defende com unhas e dentes o sistema corrupto e violento de que se fez chefe; Bolsonaro se diz antissistema e, apoiado em facções do sistema, ataca a democracia sistematicamente. Nenhum dos dois faz a reunião necessária: preferência pela democracia com impulso do sentimento antissistema. Ainda que muito diferentes um do outro, nenhum dos dois representa alternativa para o país. Evidentemente, na falta de alternativa melhor, o menos ruim é uma presidência de Lula – mas isso mostra a miséria política a que fomos arrastados.

O CONGRESSO COMO PROBLEMA

Faz anos que este blog explicou que nosso problema central está na continuidade do Congresso da reeleição infinita, sempre contraposta à mudança vinda da presidência da República, por mais pálida que ela tenha se mostrado. Agora virou moda falar da importância do Congresso (finalmente!), mas tudo se passa como se o problema fosse dar maioria ao presidente eleito – a tal governabilidade. Avacalhando a bandeira da renovação congressual, todos os candidatos à presidência da República pedem um Congresso com maioria para si, como se as facções fossem abrir mão das condutas facciosas que a relação Legislativo-Executivo determina no EDA, como se uma maioria supostamente pró-Lula fosse agir muito diferente dessa maioria supostamente pró-Bolsonaro, como se fossem abrir mão das emendas parlamentares ou de alguma versão das chamadas emendas de relator, ou dos esquemas de nomeação nas estatais, ou dos negócios em obras tocadas para fazer negócios (lembre-se, leitor: foi o PT que inventou o fundo partidário e o fundo eleitoral, que hoje irrigam com nosso dinheiro o jogo oligárquico da política profissional brasileira; foi o PT que fez o mensalão, levando para o Congresso práticas da política municipal mais incivilizada; o PT manteve a prática de lotear a Petrobrás em troca de apoio (ruim) no Congresso; foi o PT que tirou do papel e construiu Belo Monte, aquele sumidouro de água, dinheiro e vida voltado à produção de energia elétrica incerta, como comentei, in loco (lá em Altamira-PA), ao final de cada um dos episódios dessa série de vídeos aqui).

ESPERNEIO DE IMPOTENTE

Carlos Novaes, 22 de abril de 2022

Com acréscimo em 23/04, em Fica o Registro

De blefe em blefe, Bolsonaro cavou com os próprios pés o abismo que tenta transpor pagando para ver, mas à beira do qual, com o decreto em favor de Silveira, acabou por atar mais uma pedra ao próprio pescoço. Afinal, desde que analisamos, por antecipação, o fracasso do 7 de setembro, o jogo de forças em que Bolsonaro já estava acuado se alterou de modo favorável a ele? Evidentemente, não. Nesse período, além de não ter agregado força nova às suas fileiras, ele tornou-se ainda mais dependente do que consegue comprar do Centrão, esse conjunto faccioso ao qual não interessa um ditador — pelo contrário, os maiorais do Centrão pretendem manter Bolsonaro marionete sua.

O alarido na mídia sobre “agravamento da crise”, “preparação para o golpe” etc servirá apenas como coreografia para mais um esperneio do besta impotente (mas que faz estragos — como o sujeito que brocha e, então, espanca a parceira). Na verdade, estamos a assistir o desenrolar da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário-EDA, que se agrava porque a presidência da República está ocupada por um desqualificado cuja vitória eleitoral foi possível em razão da crise mesma e cujo pendor delirante é suprimir do Estado o “de Direito” para entronizar-se como ditador.

A única possibilidade de Bolsonaro se sair vitorioso seria o STF entender como constitucionalmente adequados todos os efeitos do decreto que perdoa Silveira. Até onde vai minha compreensão do que se passa, isso é impossível. Mesmo que a constitucionalidade do decreto fosse incontroversa, as facções estatais adversárias de Bolsonaro não desperdiçariam essa oportunidade de fazê-lo beijar a lona. Mas o decreto é claramente inconstitucional por dois vícios de origem: (i) foi exarado para perdoar réu que sequer havia esgotado suas possibilidades de recurso e (ii) tem por beneficiário pessoa determinada, aliada política do presidente e condenada por crimes contra o próprio STF, o que fere a dimensão formal da ordem entre os três poderes.

Mas, se, a despeito do que foi dito acima, o STF recuar para aceitar uma solução de compromisso, Bolsonaro poderá ficar a meio caminho, escapando da lona, mas engolindo a derrota. Nesse caso, o STF aceitaria o perdão para a pena de prisão, mas manteria tanto a inelegibilidade do condenado quanto a sujeição dele às penas em caso de reincidência. Quer dizer, Silveira ficaria livre da prisão e da multa, mas não poderia ser candidato nem voltar a fazer declarações como as que o levaram à condenação. Essa solução serviria aos propósitos mais gerais da condenação havida, pois se tratava de fazer Silveira de exemplo contra os arroubos autoritários de outros. Afinal, seria especialmente ridículo se Bolsonaro viesse a tornar rotina decretos para perdoar apaniguados.

De modo que, mais uma vez, Bolsonaro terá de entubar sob gritaria uma derrota que deveria ter aceito em silêncio. A cegueira dele para a realidade que impõe esse desdobramento inescapável fica particularmente bem ilustrada com o fato de que ele não levou em conta o voto de André Mendonça, indicado por ele ao STF por ser “terrivelmente evangélico”. Bolsonaro levou adiante o decreto mesmo depois de Mendonça ter votado pela condenação de Silveira com base na sua autointitulada condição de “cristão”. Quer dizer, Silveira foi condenado também pelos princípios terrivelmente evangélicos de Mendonça, o que enfraqueceu de antemão o decreto que Bolsonaro premeditara, mas nem isso dissuadiu o besta.

Fica o Registro:

Em nota, o Clube Militar, essa ágora de democratas, repudiou a decisão do STF contra Silveira dizendo-a eivada do “intuito de cercear o sagrado direito universal da Liberdade de Expressão, fundamento pétreo de uma Democracia”… declaração que só pode arrancar gargalhada de quem conhece um pouquinho do papelão histórico desses milicos de pijama — querem revestir o fascista Silveira da aura democrática do ex-deputado Márcio Moreira Alves, cujo discurso na Câmara contra a ditadura, em 1968, foi vivido como inaceitável por eles, que levaram a ditadura a extremos de repressão, tortura e matança. Como sempre, àquela tragédia seguiu-se a farsa de agora: Moreira Alves por Silveira, Jango por Bolsonaro.

A VIDA CONTINUA

Abril de 2022

Nesse intervalo em que nada publiquei neste Blog perdi minha mãe, Mathilde, que faria 93 anos em maio próximo. Por cerca de dez anos ela sofreu consequências do desenvolvimento progressivo do mal de Alzheimer que, como se sabe, no início afeta a memória cognitiva e, com o tempo, gera confusão crescente e chega a comprometer a memória motora, quando a pessoa apresenta dificuldades para lembrar como andar, engolir etc. Embora tenha apresentado graus desses sintomas típicos, e ainda que sob alguma confusão, minha mãe andou, comeu e foi capaz de nos reconhecer até um dia antes da morte. Isso foi possível porque ao longo de todo o desenvolvimento da doença ela morou com um dos 8 filhos que teve, meu irmão Marcos Novaes. Marcos e a esposa, Renata Karl, dispensaram a ela, por dez anos, zeloso acompanhamento cotidiano, pelo qual expresso aqui todo o meu reconhecimento. Graças ao desvelo deles, guardo uma lembrança querida e muito significativa da relação que tive com minha mãe: em algum momento mais para o fim de 2019, altura em que a doença já avançara bastante, fiz uma visita a ela na casa de Renata e Marcos. No papo que se seguiu ao almoço, juntou-se a nós um velho e querido amigo. Embora preferisse ficar em silêncio, minha mãe gostava dessas conversas e nós não deixávamos de integrá-la, embora eu tivesse alguma dúvida sobre o quanto ela acompanhava do ziguezague vivaz. Com a presença do amigo, o papo enveredou para o tema das novas tecnologias e falamos sobre o quanto coisas como celulares, máquinas e ferramentas (aos quais chamo de memória reificada) dominam hoje a nossa vida, não só trazendo aprendizados e exigindo aprendizados, mas também, com certa magia, dispensando aprendizados, nos levando a fazer o que a própria memória reificada exige, sem que saibamos bem como ou porquê. A certa altura, por entre um sorriso que era típico dela, dona Mailde (como carinhosamente a chamávamos) nos deu mais uma demonstração da sua persistência e, para minha alegria, afastou qualquer dúvida acerca do seu engajamento na conversa saindo-se com essa: “para quem quer trabalhar, até as ferramentas ensinam, não é?”

ALCKMIN E DELLAGNOL: ASPECTOS DA MESMA FARSA

Carlos Novaes, 24 de março de 2022

Em 12 de setembro de 2016, a ministra Carmen Lúcia tomou posse na presidência do STF; dois dias depois (14), o então procurador da República, Deltan Dellagnol, armou seu circo “evangélico” com o PowerPoint contra Lula, escancarando o facciosismo da Lava Jato em Curitiba. Naquela altura, este blog se ocupava em apresentar um entendimento do que se passava com base na ideia de que vivíamos (como vivemos) sob um Estado de Direito Autoritário-EDA, e tentava assuntar perspectivas para a então futura eleição presidencial de 2018 — havia o receio de que em 2018 se elegesse um candidato que nos levasse à consolidação do autoritarismo… e este blog via numa candidatura Alckmin, pelo PSB, essa ameaça. Foi por isso que, em 16 de setembro de 2016 escrevi um artigo em que tratava, a quente, esse conjunto de questões daqueles dias. Peço ao leitor que, antes de prosseguir, leia (ou releia) o tal artigo: CONSOLIDAÇÃO DO AUTORITARISMO.

De modo que, quase seis anos depois, esse reencontro contemporâneo de Alckmin e Dellagnol nada tem de casual, uma vez que o looping das facções está a dar mais uma das suas voltas espiraladas: Alckmin entrou no PSB para afastar do EDA as incertezas trazidas por Bolsonaro; e Dellagnol foi punido porque seu facciosismo revelou-se incomodamente afinado com o de Bolsonaro: usar o combate à corrupção para suprimir o “de Direito” do Estado de Direito Autoritário. A manobra com Alckmin e a punição de Dellagnol são eventos de uma tentativa de restauração.

Em outras palavras, Alckmin no PSB, com a meta de ser vice na chapa de Lula, e Dellagnol condenado, a indenizar o mesmo Lula, são eventos distintos de uma mesma grande operação facciosa: devolver o EDA à situação anterior àquela que resultou da eleição presidencial de 2018. Evidentemente, não vejo essa concatenação como resultado de qualquer conspiração totalizante. Trata-se de fazer aqui um exercício propriamente intelectual para entender o sentido geral do que se passa, para muito além do que poderiam ser as micro conspirações cotidianas que sempre tomam parte na tessitura do real.

Alckmin não foi bem sucedido em sua empreitada facciosa e ultraconservadora em 2018 e, agora, justamente por sempre ter sido um conservador, é resgatado para figurar num projeto de restauração conservadora do EDA em crise de legitimação citando Mario Covas, como se sempre tivesse sido um progressista… Farsa dentro da farsa.

Dellagnol foi bem sucedido em sua empreitada facciosa e ultraconservadora em 2018 (prendeu Lula/elegeu Bolsonaro) e, agora, justamente por figurar do lado derrotado nessa laçada da luta de facções do EDA em crise de legitimação, se vê condenado e a reclamar de injustiça por parte de um “sistema” cujo facciosismo ele próprio fomentou… Farsa dentro da farsa.

O que acaba de ser dito parece complexo? Parece implausível? Deixará de sê-lo se o leitor se der ao trabalho de ler os seguintes artigos anteriores:

  1. Consolidação do Autoritarismo (inclusive minha resposta aos Comentários);
  2. Ensinamentos do racha na base bolsonarista;
  3. Bolsonaro deve ser derrotado, não derrubado, mas…;
  4. Crise de legitimação e eleição presidencial;
  5. Voto impresso e crise de legitimação.

PUTIN E BOLSONARO

Carlos Novaes, 18 de março de 2022

Putin governa a Rússia com mão de ferro; Putin controla toda a mídia impressa, radiofônica e audiovisual da Rússia, não havendo nenhuma voz dissonante, não admitindo nenhuma crítica pública ao modo como ele e as facções que o apoiam conduzem o país; Putin mantém sob estrito controle as redes sociais, tendo desenvolvido suas próprias redes, todas ocupadas em distribuir fake news que lhe são favoráveis; Putin prega a destruição pura e simples dos adversários e, dispondo do poder necessário, atua nesse sentido; Putin defende valores conservadores, especialmente contra gays; Putin favorece os amigos na rentável exploração mineral e lenhosa da remota Sibéria, da qual se beneficia pessoalmente e segundo opressão histórica contra povos locais; Putin apoia seu poder em facções estatais burocráticas oriundas da ditadura anterior, tendo somado a elas militares das FFAA da Rússia, aos quais compensa com verbas propriamente bélicas e privilégios pessoais.

Convido o leitor ao seguinte exercício: releia o parágrafo acima substituindo os vocábulos Putin, Rússia e Sibéria por, respectivamente, Bolsonaro, Brasil e Amazônia. Quer dizer, Putin é o Bolsonaro que realizou as próprias fantasias!! Ou, em outras palavras, Putin representa para a Rússia o que não queremos que Bolsonaro se torne no Brasil.

Não obstante, parcela considerável da nossa autointitulada esquerda “frentista”, que bate no peito a se proclamar oposição a Bolsonaro, está (tal como Bolsonaro) a apoiar Putin na guerra fascista contra a Ucrânia!! Uma mixórdia mental dessas só se explica pela ação isolada ou combinada de três motivações: negócios; cegueira ideológica provocada pela mistura de antiamericanismo tolo e saudades da extinta URSS; ou mera burrice, mesmo.

20/03 – O apoio de Bolsonaro a Putin na Ucrânia deve ser visto justamente da perspectiva de suas fantasias de virar o Putin do Brasil. Como já explorei aqui, em sua errância, Bolsonaro emaranha três objetivos: tornar-se um ditador; vencer a reeleição; salvar a si e aos seus da cadeia. Mesmo em cálculos fantasistas, o primeiro objetivo depende, agora, do segundo, e aqui entra o apoio a Putin: Bolsonaro quer atenção especial por parte do russo na oferta de tecnologia para semear fake news e tumultos no curso da disputa eleitoral. Outra coisa: Bolsonaro não tem condições de se tornar o Putin do Brasil por duas razões: (i) diferentemente da Rússia, a maioria da sociedade brasileira prefere a democracia e (ii) em profundo contraste com a ordem estatal russa, um ditador não interessa às facções estatais do Brasil que têm no Estado de Direito AutoritárioEDA (com suas franquias democrático-eleitorais) os meios para o exercício faccioso dos poderes institucionais que tantos ganhos lhes permitem.

22/03 – O texto do governo Bolsonaro para comemorar a independência do Brasil é uma interpretação tola daquele fato histórico no intuito de não menos tolamente rebaixá-lo a serviço do papel de “homem providencial” que Bolsonaro pretende nos impingir no Brasil atual:

“Um jovem príncipe, do alto de seu cavalo, ergueu sua espada. Refletindo nela a luz do sol, ao som das águas do Ipiranga, ecoou a voz em forte grito. Pela força de sua coragem, derrotou os que nos aprisionavam. Com a ousadia de sua afronta, fez soberana a nossa nação”.

O ridículo do voluntarismo golpista não cessa: ao falar em “afronta” do tal príncipe, essa gente imagina revestir de legitimidade histórica até os maus modos do chefe…

GUERRA NA UCRÂNIA

Putin começa a se queixar de que o governo da Ucrânia põe dificuldades para que se alcance um cessar-fogo… Ele anseia por uma saída (parece o Nicolau-I na malfadada guerra da Criméia*, ainda que Putin esteja em situação melhor, pois os adversários mais fortes não iniciaram ações bélicas, como fizeram contra Nicolau). A situação se revela cada vez mais difícil para o déspota russo, que foi surpreendido pelos desdobramentos inesperados (o que é próprio de guerras, aliás).

A essa altura, entendo que o melhor caminho para a Ucrânia seria fazer os seguintes movimentos:

  1. Aceitar a imposição de não entrar na OTAN, o pretexto de Putin para fazer essa guerra de expansão. Seria uma humilhação aceitável, uma vez que o país está sofrendo guerra de um inimigo ao qual não pode vencer no âmbito militar. Ademais, a OTAN é um organismo que, para a Ucrânia, já não tem importância: no cenário atual, a OTAN não vai ajudar militarmente o país; num cenário futuro, dada justamente a experiência atual, os países da OTAN terão aprendido os custos de sua omissão e não deixarão outra vez a Ucrânia no desamparo diante da Rússia.
  2. Aceitar a perda da Criméia ocupada desde 2014 por Putin. Além de a Ucrânia não ter força para retomar essa pequena parte de seu imenso território, essa parcela da Criméia esteve sob domínio russo intermitente por séculos, tendo sido travadas ali batalhas épicas, que fazem parte até do folclore e do cancioneiro popular russos — tanto que a população local, toda ela praticamente russa, gosta de ser parte da Rússia.
  3. Não abrir mão de entrar na União Europeia.
  4. Exigir a retirada total das tropas russas e não arredar pé da sua soberania intacta e integral sobre os territórios rebeldes a leste, com a Ucrânia podendo decidir soberanamente sobre o destino que dará aos rebeldes.
  5. Com apoio no bloqueio internacional, exigir reparações de guerra da Rússia, que poderiam vir, inclusive, de acertos sobre o preço do pedágio para o gás russo que passa pela Ucrânia para chegar à Europa do Mercado Comum.

Um acordo de paz nesses termos permitiria a continuidade da vida independente da Ucrânia, daria alguma ração para que Putin, com suas redes despóticas de mentiras, possa cantar vitória internamente; e ofereceria aos demais países as razões necessárias ao levantamento dos embargos contra a Rússia, que não interessam nem a eles nem a Putin.

22/03 – Para ter uma excelente visão geral do que se passa entre Rússia e Ucrânia, leia este texto: Guerra na Ucrânia: como Vladimir Putin redesenhou o mundo – mas não do jeito que queria…

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* – O escritor russo Ivan Turguêniev deu tratamento literário aos eventos e desdobramentos da Guerra da Criméia nos três contos cronológicos que incluiu tardiamente em seu clássico Notas de um caçador. No primeiro deles, O fim de Tchertopkhánov, ele trata metaforicamente da Guerra da Criméia; no segundo, Relíquia viva, ele faz o mesmo com as circunstâncias do fim da servidão na Rússia; e no terceiro, Pancadas! , ele antecipa, antevendo mais de 40 anos, os desdobramentos que levarão à aliança operário-camponesa contra o tsarismo. A análise que realizei para fazer aflorar o até então inédito sentido oculto de cada uma dessas três obras pode ser lida entre as páginas 180 e 228 do meu livro LITERATURA CONTRA IMOBILISMO NA RÚSSIA DO SÉCULO XIX, que pode ser encontrado em formato .pdf aqui.

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Tenho recebido muitas reclamações de pessoas que ao tentarem entrar neste blog são expostas a uma notificação que sugere que meu blog é inseguro e, ainda por cima, propõe como alternativa o endereço de um site de política dos EUA!!? Essa interferência indevida desvia interessados no meu trabalho e ainda não sei como fazer para impedi-la. Por enquanto, só me resta torcer para que as pessoas cliquem no botão “ignorar” que aparece na tela. Agradeço qualquer ajuda técnica com dicas de como resolver esse problema.

GUERRA MUNDIAL COMO ÁLIBI PARA SACRIFICAR A UCRÂNIA

Carlos Novaes, 04 de março de 2022

A guerra na Ucrânia pode levar a uma nova guerra mundial? Evidentemente, ninguém sério pode pretender dar resposta cabal a essa pergunta. O que se pode fazer é usá-la como provocação para interpretar a situação. Proponho três passos: 1. rememorar os fatos do período imediatamente anterior à invasão da Ucrânia; 2. analisar as reações à guerra de Putin dentro e fora da Ucrânia; 3. observar os movimentos de Putin e dos outros diante dessas reações.

1.

Antes de invadir a Ucrânia, Putin submeteu o país e a OTAN a uma guerra de nervos, na qual os lances principais foram o deslocamento massivo de tropas e equipamentos para a fronteira do país vizinho e a apresentação de sua exigência descabida de que a OTAN e a Ucrânia deveriam dar garantias formais de que jamais se uniriam (essa exigência é descabida porque nenhum país pode pretender impor ao vizinho rol e modelo de laços de amizade — do contrário, até o criminoso embargo dos EUA contra Cuba passaria a ser aceitável).

Diante desses fatos e, provavelmente, detendo outras informações, os EUA passaram a advertir a opinião pública mundial de que Putin planejava invadir a Ucrânia. Putin negava a invasão, insistia em dizer que se tratavam de exercícios militares e até o governo da Ucrânia declarava que os avisos dos EUA configuravam alarmismo. Embora sem repetirem o comportamento dos EUA, outros governos europeus demonstravam receios de uma invasão e trataram com Putin sobre ela, sempre sob negativas do russo.

Pois bem: Putin estendeu essa situação por meses porque vinha sondando o terreno. Estava medindo o tamanho da reação que viria se ele levasse a invasão a cabo. No curso das tensões que cresciam do lado adversário, ele, paradoxalmente, foi recebendo elementos que o tranquilizavam, afinal, todos os países importantes, a começar pelos EUA, deixaram claro que não enviariam tropas, nem fariam ações de defesa militar em favor da Ucrânia. Ademais, ele deve ter interpretado a insistência do presidente ucraniano por calma como evidência de que ele nem tinha disposição de luta, nem contava com apoio interno para tal.

Depois de sondar longamente o terreno das tergiversações dos maiorais da OTAN, seus constantes sinais de que, afinal, nada de muito forte fariam em favor da Ucrânia, além de observar a usual falta de unidade que transparecia na movimentação dos países adversários, e de ter obtido algum tipo de sinal verde da China, Putin acabou por entender que a invasão que tinha em mente não lhe traria revés maior do que aquele que já enfrentara em 2014, quando arrebatou a Criméia e estimulou guerrilha separatista ao leste da mesma Ucrânia.

Dessa perspectiva, Putin invadiu a Ucrânia porque EUA e aliados, sem o querer, mas sob tremendo erro de avaliação acerca de suas próprias declarações e atitudes, acabaram por dar parâmetros que levaram os estrategistas russos à conclusão de que os ganhos de uma invasão militar superariam as perdas, até porque poderiam lidar com reações diferentes entre os países adversários.

2.

Feita a invasão, Putin descobriu que iniciara uma guerra: EUA e aliados responderam com uma unidade e ferocidade de propósitos que contrastam muito com o que haviam feito no curso dos meses em que Putin foi tomando coragem. Mais uma vez, nada se aprende da história, verdade que se repõe a cada vez que a história se repete! Mesmo sabendo que havia risco de Putin fazer besteira, os adversários não se uniram de modo a mostrar força dissuasória efetiva. Preferiam manter suas políticas de relações exteriores próprias, e só depois da guerra iniciada passaram realmente a girar numa conexão que se tivesse aparecido antes teria levado Putin em outra direção.

No espaço nacional ucraniano a reação também não é a que Putin esperava, basta ver que além de não ter antecipado a ira popular ucraniana que sobreveio contra si, ele alimentava o cálculo explícito em uma deserção militar pró Rússia nas FFAA da Ucrânia, em ambos os casos deixando-se cegar pelo seu próprio nacionalismo eslavófilo e, como de praxe, desprezando o nacionalismo eslavo alheio — os russos não querem aceitar que são odiados pelos eslavos a quem sempre dominaram e/ou maltrataram.

Em suma, tal como Nicolau-I na guerra da Criméia*, toda essa reação contrária não antecipada está a mostrar a Putin que ele iniciou uma guerra que não lhe convinha… Mas agora é tarde para recuar, e a situação, que em guerras é sempre incerta, está especialmente confusa: afinal, o que Putin vai fazer com a Ucrânia, mesmo que a tome inteira para si?

3.

A primeira reação de Putin à magnitude inesperada do revés foi voltar a se conduzir como nos meses pré-invasão: de um lado negou os efeitos sentidos (tal como negava a invasão pretendida) e, de outro, fez ameaças de ainda mais belicismo, agora nuclear (tal como mostrava os dentes ao fazer suas exigências descabidas na fase pré-invasão). Essa primeira reação só piorou as coisas, pois à encarniçada resistência ucraniana ele viu se somar movimentos como os de Finlândia e Suécia, que adotaram atitude inédita contra ele. Como a reação ucraniana passou a exigir ímpeto bélico, guerra aberta; e como a reação externa se mostrou extremamente danosa e surpreendentemente unitária, Putin passou a se ver numa situação especialmente difícil: ter de fazer cruenta uma guerra que imaginara aceitável para seus principais adversários, pois esperara que eles se limitariam ao esperneio impotente de praxe.

Putin, então, refreou o ímpeto bélico em solo ucraniano para, tal como na fase pré-invasão, ganhar tempo, sondar melhor o ânimo adversário dos aliados da Ucrânia e sentir melhor o tamanho da resistência interna. Ao mesmo tempo, faz pequenos blefes com retórica nuclear, enquanto acena com a normalidade nos compromissos de fornecimento de energia.

Enquanto isso, os maiorais da OTAN continuam a dar o mesmo sinal de sempre: trouxeram exclusivamente para si a conduta responsável de evitar uma nova guerra na Europa (como se a Rússia nada tivesse a perder com uma guerra ali), fazendo dessa possibilidade de conflito a antessala de uma nova guerra mundial, tudo como álibi para mais uma vez oferecer a Putin negativas explícitas de maior ajuda militar à Ucrânia; com o que, uma vez mais, dão-lhe tempo para refazer cálculos na segurança de quem não vai ter de enfrentar mais dificuldades bélicas vindas dos “aliados” da Ucrânia. Essa estratégia só irá funcionar no longo prazo (para que?!, perguntaria a Ucrânia) e, mesmo assim, se todos os países se mantiverem firmes no bloqueio à Rússia pelos próximos anos — será?

Infelizmente, o presidente da Ucrânia tem razão: a OTAN deu a Putin licença para matar.

* O escritor russo Ivan Turguêniev deu tratamento literário a esses eventos em dois dos três contos cronológicos que incluiu tardiamente em seu clássico Notas de um caçador. Em um deles, intitulado O fim de Tchertopkhánov, ele trata metaforicamente da Guerra da Criméia e no outro, Relíquia viva, ele faz o mesmo com as circunstâncias do fim da servidão na Rússia. A análise que realizei para fazer aflorar o até então inédito sentido oculto de cada uma dessas obras pode ser lida entre as páginas 180 e 213 do meu livro LITERATURA CONTRA IMOBILISMO NA RÚSSIA DO SÉCULO XIX, que pode ser encontrado em formato .pdf aqui.

A GUERRA DE PUTIN CONTRA A UCRÂNIA

Carlos Novaes, 02 de março de 2022

Ao ser levado a responder mensagem de WhatsApp enviada por um amigo sobre a guerra de Putin contra a Ucrânia acabei por me ocupar do assunto por escrito e, então, não vi porque deixar de compartilhar aqui as linhas gerais do que vim pensando sobre esses eventos internacionais.

Desde o início da crise estive certo de que Putin não invadiria a Ucrânia. Considerei que o deslocamento massivo de tropas e equipamentos era parte de uma encenação, ainda que muito onerosa, pela qual Putin pretendia arrancar concessões da Ucrânia. Por isso mesmo, entendi a movimentação de Biden como astuta pois, apoiado na materialidade de 150 mil soldados e blindados, ele podia dar como certa uma invasão que não viria e criar para si uma posição confortável diante da opinião pública mundial: se, de fato, como parecia mais provável, Putin não invadisse, sempre se poderia pensar que a pressão dos EUA levara o russo a desistir; se, por outro lado, houvesse a invasão, os EUA estariam cobertos de razão em seu alarido. De modo que acompanhei a cena com essa dupla impressão: Putin blefava e Biden tornava o blefe extremamente custoso para o blefador, tirando proveito das apreensões dos ucranianos.

Putin me parecia blefar por três razões principais:

  1. Nunca esteve, nem estava no horizonte a entrada da Ucrânia na OTAN, até porque, em 2014, Putin anexara a Criméia e fomentara a disputa territorial no leste do país, criando um intransponível impedimento preliminar formal ao exame da admissão da Ucrânia na aliança ocidental, pois seu regulamento proíbe a aceitação de países que estejam em disputa territorial;
  2. Uma invasão tornaria claro o objetivo de expansão territorial, o que levaria a Rússia a sofrer sansões desfavoravelmente desproporcionais aos ganhos que uma guerra de invasão, em plena Europa, traria (quais seriam – serão – os ganhos de Putin, se a ameaça da entrada da Ucrânia na OTAN nunca foi real e se não há nada nem parecido a maus-tratos (que dirá genocídio) à população russófona naquele país?)
  3. Putin não poderia deixar de saber que a população ucraniana resistiria duramente à invasão, precisamente porque depois de séculos de vida nacional intensa, ainda que incerta e sofrida, ela finalmente havia conquistado a delimitação clara de seu território nacional.

A razão 1 acima me levou a receber como impertinentes todas as matérias, análises e opiniões que buscavam dar alguma razão a Putin com base na chamada expansão hostil da OTAN. Estava (e está) claro que esse era (e é) o pretexto de Putin, não sua motivação real. Não menos impertinente me pareceu, e parece, tudo o que foi invocando acerca das recentes guerras provocadas pelos EUA, como se os crimes de um justificassem os crimes do outro. Não foi sem pesar que vi em apoio a Putin pessoas que outrora se haviam colocado acertadamente contra os EUA no Iraque. Houve até quem, ao gosto do freguês, louvasse atributos pessoais do mandatário russo, sugerindo que seu longo discurso teria sido feito de improviso e louvando seu suposto conteúdo informativo (na verdade, uma leitura interessadamente deturpada da história do conturbado território da hoje Ucrânia).

A razão 2 acima (a das sanções) me levava a conjeturar sobre o fato de que Putin não poderia deixar de antecipar a reação europeia e dos EUA, ainda que eu jamais tenha considerado que ela pudesse ser tão abrangente e profunda como está se desenhando. Acho que Putin também deve estar surpreso, pois não creio que ele tenha antecipado um cenário em que, por exemplo, a Alemanha abrisse mão do gasoduto recém construído e, como disse Mathias Alencastro, promovesse em dois dias a revisão de uma política externa de décadas.

Minhas conjeturas sobre a razão 3 jamais levaram em conta o fato de que as fantasias nacionalistas e imperiais de Putin pudessem tê-lo cegado para o apego nacional dos ucranianos à sua integridade territorial e autodeterminação. Ao que parece, o discurso “com enorme massa de dados” em que Putin desdenhou da Ucrânia e, ao mesmo tempo, reivindicou como milenarmente russo seu território, convenceu não apenas próceres da autointitulada esquerda brasileira, mas ao próprio Putin — o cinismo engoliu o cínico.

Está cada vez mais claro que a invasão pouco tem que ver com a OTAN, sendo antes uma ação ditada pelo sonho irrealizável de restaurar fantasia milenar de grandeza territorial de quem viveu como perda traumática o fim da URSS.

Mutatis mutandis, toda essa irracional cadeia criminosa de eventos me fez lembrar da Guerra da Criméia, desencadeada pelo tsar Nicolau-I no início da segunda metade do século XIX. Naquela altura, o autocrata deu motivação religiosa falsa (proteger cristãos ortodoxos e seus templos no Império Otomano – hoje Turquia) para justificar uma guerra de expansão que lhe parecia fácil, quase sem custos. Nicolau-I imaginou que a Europa não faria caso: contou com a neutralidade da Áustria, desconsiderou o engajamento de França e Inglaterra e, ainda por cima, imaginou que receberia a adesão da população das áreas invadidas. Deu tudo ao contrário: a Áustria reagiu fortemente contra a agressão russa, França e Inglaterra declaram guerra à Rússia ao lado dos otomanos e a população a quem Nicolau-I dizia proteger não demonstrou qualquer simpatia pelo invasor. Resultado: depois de derrotada, a Rússia teve de assinar um tratado de paz tão humilhante que enfraqueceu o domínio interno dos Romanov, numa sucessão de eventos que levou ao fim da servidão* e, em seus desdobramentos, à Revolução de 1917, que eliminou os Romanov.

* O escritor russo Ivan Turguêniev deu tratamento literário a esses eventos em dois dos três contos cronológicos que incluiu tardiamente em seu clássico Notas de um caçador. Em um deles, intitulado O fim de Tchertopkhánov, ele trata metaforicamente da Guerra da Criméia e no outro, Relíquia viva, ele faz o mesmo com as circunstâncias do fim da servidão na Rússia. A análise que realizei para fazer aflorar o até então inédito sentido oculto de cada uma dessas obras pode ser lida entre as páginas 180 e 213 do meu livro LITERATURA CONTRA IMOBILISMO NA RÚSSIA DO SÉCULO XIX, que pode ser encontrado em formato .pdf aqui.

Fica o Registro:

Tenho recebido muitas reclamações de pessoas que ao tentarem entrar neste blog são expostas a uma notificação que sugere que meu blog é inseguro e, ainda por cima, propõe como alternativa o endereço de um site de política dos EUA!!? Essa interferência indevida desvia os interessados no meu trabalho e ainda não sei como fazer para impedi-la. Por enquanto, só me resta torcer para que as pessoas cliquem no botão “ignorar” que aparece na tela.

EM SUA CEGUEIRA, LULA VAI RESGATANDO BOLSONARO…

Carlos Novaes, 07 de fevereiro de 2022

Venha a se dar ou não, a hipótese de Alckmin como vice de Lula já fez mais por Bolsonaro do que por Lula. Se a chapa se confirmar, poderá tornar possível o que hoje parece inviável: uma ida de Bolsonaro ao segundo turno com chances de vitória. Esmiuçemos o que acaba de ser dito.

Toda a movimentação eleitoreira de Lula mostra que ninguém se torna um expert em política facciosa sem perder o que quer que possa ter tido de semelhante a um político transformador, afinal, para transformar é preciso ter clareza sobre como deixar o status quo para trás, e agir nessa direção, enquanto que para se movimentar no jogo das facções com a maestria quase imprescindível com que Lula o faz é preciso estar no coração do apego ao status quo. Hoje, Lula não é sequer um agente de mudança, como já o foi em passado muito remoto, que dirá um líder transformador, que jamais o foi. Apenas diante de Bolsonaro Lula pode ser tido como portador de uma mudança, quando, na verdade, atua em prol de uma restauração; e mesmo contraposto a um Bolsonaro, Lula algum poderia ser tomado por um transformador, como o fazem incautos, espertos e espertalhões da autointitulada esquerda.

Imersa no jogo das facções, a imaginação política de Lula não vai além dele. A “solução” Alckmin pareceu a Lula uma jogada de mestre porque ele a ajuizou desde essa imersão. De fato, ao puxar Alckmin para a condição de vice, Lula obtém dois ganhos facciosos de primeira linha, enquanto facciosos: primeiro, um ganho de pequena duração, mas que ajuda e lhe pareceu relevante; segundo, e muito mais importante, um ganho de longa duração, que poderá ser decisivo para a sobrevivência do lulopetismo enquanto facção central do jogo político brasileiro. O primeiro ganho vem do reforço que a presença de Alckmin dá ao jogo eleitoreiro miúdo com as facções, ajudando a cimentá-las na crença de que Lula é peça imprescindível à continuidade do jogo tal como todos conhecem. Esse ganho é de curta duração porque dura apenas o período eleitoral; depois, se vitorioso, a força do cargo dará a Lula todos os meios para se mostrar, realmente, imprescindível, tornado Alckmin supérfluo, ainda que merecedor das mesuras que Lula é capaz de dirigir mesmo àqueles a quem desconsidera.

O ganho faccioso de longa duração está em que, ao puxar Alckmin para fazer figuração na chapa presidencial, Lula o tira da disputa pelo governo de São Paulo. Favorito para voltar ao cargo, Alckmin, se vitorioso, manteria a força do maior Estado da federação alimentando o jogo de facções de forma hostil à facção lulopetista; logo, removê-lo abre uma avenida para a vitória do PT, o que daria impulso inédito à força facciosa do lulopetismo, que alimentaria sua máquina de poder com os recursos orçamentário-burocráticos que o governo de São Paulo maneja. Como o candidato a governador pelo PT é o preferido dentre os preferidos de Lula, estaria aberto o caminho para que Haddad fosse até mesmo o sucessor de Lula depois de quatro ou oito anos de mandato de ambos. Parece um nó de marinheiro. Só que não.

Já exploramos aqui e aqui como Lula vem há tempos concentrado em costurar alianças com as outras facções estatais diretamente voltadas para o jogo eleitoral de 2022, tratando sua suposta inocência pessoal como um atestado de inocência ampla, geral e irrestrita, até para crimes conexos de membros de antigas facções parceiras. Ao se concentrar na mesmice das facções estatais em busca de uma restauração, Lula acentua sua dissintonia com a maioria da sociedade brasileira, que vem mudando e vai continuar a mudar na direção da busca, nem sempre lúcida, de soluções para suas duas urgências, a urgência por ordem e a urgência social. Com Alckmin de vice, Lula fica ainda mais exposto como candidato incapaz de dar resposta à urgência por ordem, afinal, além de há tempos nada poder dizer contra a corrupção e as maracutaias conexas da política profissional, agora terá de ficar calado diante da desordem policial, que vem deixando às milícias e às quadrilhas do narcotráfico a manutenção de alguma “ordem” nas periferias urbanas do país. Voltado para o Estado, Lula se mantém eleitoreiramente alheio ao que quer que aconteça na sociedade, da matança no Jacarezinho, aqui ao lado, à mineração assassina em remotas terras indígenas; afinal, vai dizer o que, se está empenhado em ter como vice alguém cujos governos foram período das maiores matanças promovidas por policiais em SP? Se políticos de facções/partidos a quem ele se alia estão implicados na mineração e na luta fundiária que esmagam em desespero as populações indígenas?

Um projeto transformador teria em Bolsonaro um adversário duro, mas a luta se daria cavando fundo na realidade brasileira. Em seu conservadorismo, Lula tem em Bolsonaro um espantalho cômodo, desde que para um intervalo curto e de enfrentamento superficial — só que daqui até a eleição vai transcorrer uma eternidade, leitor. As intrincadas e manjadas costuras a que Lula se dedica, como a ruidosa querela atual com o PSB dá exemplo, estão sendo amplamente noticiadas, e o que se escancara são esquemas de acomodação, não a construção de vetores de mudança. A chapa Lula-Alckmin é a cara do sistema, isto é, do que a maioria da sociedade quer derrotar, entenda-se o que se entender por “sistema”. A palavra “sistema” se tornou um carimbo e, como todo carimbo, é fácil de manejar.

Há quem diga que a disputa Lula-Bolsonaro se revelará uma disputa em torno da menor rejeição. Se for assim, na falta de uma alternativa real, Bolsonaro pode vencer, pois a maior rejeição é ao sistema e, em sua imbecilidade, Bolsonaro tem passado a falsa impressão de leão acorrentado, que estaria contido em sua potência pelas exigências do sistema contra o qual supostamente se debateria em conexões forçadas; ao passo que Lula, inebriado, mais e mais se exibe (e pavoneia!) cabeça e alma do mesmo sistema, com o qual aparece à vontade, dono do pedaço. Ainda que a incompetência e a desumanidade façam de Bolsonaro candidato fortíssimo a uma derrota, a chapa Lula-Alckmin pode ajudar a que, até a eleição, os danos gerados pela incompetência venham a ser considerados, por parcela do eleitorado, como preço já pago, e os sofrimentos saídos da desumanidade deste imbecil poderão vir a ser atenuados e até esquecidos, especialmente se a pandemia tiver ficado para trás. Para nossa desgraça, Moro é o único dentre os candidatos já lançados que pode tirar proveito do sentimento antissistema, em sua versão reacionária, o que faz do ex-juiz o provável beneficiário da erosão a que Bolsonaro não deixa de estar sujeito em razão da fragilidade de sua dianteira nessa via da disputa. Ao contrário do que muitos pensam, o que não falta é incerteza.

Fica o Registro:

– Se Alckmin se der conta da fria em que está a se meter e recuar de ser vice de Lula para concorrer ao governo de São Paulo, terá dificuldades em razão da sinalização equivocada que fez e do tempo perdido. Entretanto, poderá tentar compensar isso com uma ida para o PSB, oferecendo uma saída para a soberba de Siqueira e, ao mesmo tempo, robustecendo a versão de que a gula de Lula e seu PT fazem deles parceiros não confiáveis… Na luta entre facções, todo cinismo é possível.

– Por tudo o que se disse acima, é uma ingenuidade acreditar que Lula e o PT estejam mesmo dispostos a negociar a candidatura de Haddad ao governo de SP. Muito pelo contrário, se há algo de certo além da candidatura de Lula à presidência é a candidatura de Haddad a governador. Para o lulopetismo, chegar ao governo em SP é um projeto que só não é maior do que o de reconduzir Lula à presidência, mesmo que essa dobradinha prejudique o desempenho do partido nas eleições para o Congresso; até porque, como sabemos, nem Lula nem o PT chegam a ter a composição congressual como uma preocupação central, estando sempre dispostos a apostar no jogo faccioso que já discutimos detalhadamente em mais de um post deste blog.

UM LEGO DE NATAL PARA MONTAR NO ANO NOVO

Carlos Novaes, 25 de dezembro de 2021

Incautos consideram o jogo-de-montar Lego como um desafio inteligente, havendo até quem o recomende para o desenvolvimento cognitivo e criativo da criança, quando é justo o contrário, pois quem se entretém com montagens de Lego o faz porque o jogo traz resolvido de antemão o principal desafio: encontrar conexões que permitam unir peças de massa e/ou formato diferentes. O segredo do sucesso do Lego-de-montar está não em estimular o cérebro propondo-lhe desafios, mas no conforto de premiá-lo por qualquer esforço que faça, pois aquele que seria o principal desafio de qualquer montagem vem resolvido de fábrica: toda peça já está equipada com os sempre iguais pinos e cavidades para encaixe — a conexão não varia com a forma da peça.

Sequestrada pelas facções, a política brasileira sob Estado de Direito AutoritárioEDA se tornou um Lego político: por mais intrincadas que por vezes ainda se mostrem as suas montagens, as conexões são invariantes: os pinos e cavidades do dinheiro, dos favores, dos privilégios, das arbitrariedades, enfim, o exercício faccioso dos poderes institucionais, sempre permitem o encaixe das peças, por mais diferentes que elas pareçam em forma e/ou tamanho. A diferença fundamental entre o jogo de montar e o jogo das facções está em que no Lego-de-montar as peças não se deformam depois da conexão e mantém suas diferenças; ao passo que no Lego-das-facções as conexões acabam por tornar indiscerníveis as peças que se conectaram — o que faz o nosso jogo político ainda mais impropriamente reificado do que o jogo de montar, pois sua vicária plasticidade está a serviço da mesmice.

O segredo do insucesso de Bolsonaro está em que, depois de ter pretendido (e ainda sonhar…) substituir o Lego político pela estupidez de uma inviável volta à ditadura, acabou por se render às facções para fazer um governo tão desumano e pernicioso que o tornou peça descartável do jogo. E o segredo da revitalização política de Lula está em que, depois de prematuramente descartado por facções rivais, ele acabou por se mostrar peça imprescindível ao jogo, revelando-se um mestre do Lego-das-facções, premiando o cérebro dos incautos e acomodados com o conforto de que irá promover os sempre mesmos encaixes em prol do bem comum, quando é justo o contrário: se vencer, Lula dará sobrevida ao EDA, em novo adiamento para o início da construção de um Estado de Direito Democrático.

ESTARÍAMOS CONDENADOS A TORCER PELOS CONSERVADORES CONTRA OS REACIONÁRIOS?

Carlos Novaes, 19 de dezembro de 2021

Nas linhas a seguir tentarei analisar a conjuntura política, tendo como parâmetro organizador a ideia propriamente política de que a sociedade brasileira está submetida a um Estado de Direito Autoritário-EDA em crise de legitimação, situação institucional precária que se deve, em última instância, à realidade econômico-social da desigualdade, cujas intensidade e longevidade obrigam a maioria de nós a viver sob variações infelizes de duas urgências: uma urgência social e uma urgência por ordem. Como este blog não faz jornalismo, mas teoria política viva (e, por isso mesmo, a quente), a leitura dos artigos assinalados nos hiperlinks dará ao leitor elementos para melhor compreender a concatenação entre as afirmações que acabo de fazer e o que foi dito há tempos, o que também ajudaria na compreensão do que se dirá a seguir.

Velhas de décadas, as duas urgências mencionadas já afligiam o eleitorado nas eleições de 2018, mas nenhum partido ou candidato à presidência apresentou uma proposta que as articulasse — naquela altura, discuti detalhadamente os motivos que impediam Bolsonaro e Haddad de oferecerem essa articulação. Como não poderia deixar de ser, depois de três anos de governo Bolsonaro e da mesma dinâmica congressual das facções, as duas urgências se agravaram: de um lado, a urgência social foi incrementada com as consequências da pandemia, com o desmantelamento de programas sociais, com reformas que suprimiram direitos e com uma política econômica que levou, dentre outros desmazelos e sofrimentos, ao desarranjo de cadeias produtivas complexas como a do petróleo, e ao aumento da fome.

De outro lado, a urgência por ordem contra a corrupção incessante, contra os abusos e privilégios de políticos e hierarcas insaciáveis, ou contra os desmandos de uma PMilícia sob comando faccioso, aparece incrementada pelo aumento da boçalidade armamentista e pela expansão da atividade criminosa, seja nos confins das florestas, nos enclaves rurais ou nos centros urbanos. Na floresta campeia a violência contra os índios e o meio ambiente por parte de mineradores e pecuaristas; nos enclaves rurais, o abuso contra posseiros e trabalhadores cresce na velocidade em que se legaliza o porte de armas; nos centros urbanos, os chamados criminosos comuns, na busca de alguma “legitimidade”, já vão além da “caridade” e se voltaram até para o ordenamento dos costumes, estabelecendo nas comunidades regras que, reunindo o comezinho ao bárbaro, explicitam o arbítrio reinante pelo que têm em comum com a ação da polícia que alega combatê-los — quer dizer: nas eleições de 2022 haverá uma necessidade ainda maior de concatenar nossas duas urgências.

Uma das evidências de que os políticos profissionais não oferecerão uma alternativa está no fato de que eles se ocupam tão somente da própria sobrevivência, isto é, estão sempre e antes de tudo voltados a continuar como políticos profissionais, reunindo poder para fazer dinheiro. Já detalhei aqui os problemas que decorrem da possibilidade de reeleição infinita para o Legislativo (representação). Discuti também o aspecto mundial dessa deformação da representação, que está na raiz da chamada “crise da democracia liberal“. Limitar a crise da democracia da “representação profissional” ao que há de liberal nela é muito cômodo e oportuno para a autointitulada esquerda, que se aproveita da crítica necessária ao liberalismo para esconder suas próprias mazelas e propagar a ilusão de que teria uma proposta alternativa, baseada na ideia enganosa de democracia direta, pela qual nada faz e cujas limitações já discuti aqui. É olhar e ver: desde seus primórdios, o que os profissionais do PT, do PSB ou do PSOL fazem é lutar para continuarem com seus mandatos, numa resistência intramuros à renovação que alimenta o facciosismo contra a mudança em geral — nada mais parecido com um político profissional do que outro político profissional.

Como o profissionalismo político fez do Congresso uma casamata contra a mudança, e como o eleitor médio não presta atenção ao conjunto, as eleições para o Executivo (gestão) passaram a concentrar toda esperança de mudança, sempre com o mesmo resultado: ou o presidente da República compra o Congresso, ou é anulado e até deposto por ele. A rendição de Bolsonaro ao Centrão é o exemplo mais recente, sendo a quebra pelo Congresso do veto presidencial ao obsceno fundo eleitoral de 5,7 bilhões de reais a evidência mais cintilante dessa pantomima, pois os parlamentares da oposição puderam camuflar de antibolsonarismo sua avidez por dinheiro.

De modo que, se queremos mudança, temos que derrotar conservadores e reacionários tanto na eleição presidencial quanto na eleição para o Congresso. O problema é que não só a disputa presidencial está polarizada entre um conservador (Lula) e um reacionário (Bolsonaro), como as candidaturas “alternativas” não passam de versões não menos facciosas desses dois. Como já vimos, toda a movimentação de Lula se dá na costura das facções, segundo um sentido rebaixado da ação política, tida como reservada aos profissionais. Para Lula, empenhar-se pela transformação do Congresso seria dar um tiro no próprio pé: o sucesso dele depende de negociações com o Congresso como ele é, estuário e teatro da luta de facções em busca de poder para fazer dinheiro, tudo com base no exercício faccioso dos poderes institucionais, práticas de que o caso da Petrobrás é o exemplo mais notório. É por isso que Lula se movimenta como se a anulação das condenações facciosas que sofreu valessem por um atestado de inocência ampla, geral e irrestrita, inclusive para os crimes conexos das forças congressuais cujos processos também já empacaram no concatenado facciosismo do Judiciário, como nos casos do quadrilhão do pMDB e do quadrilhão do PP.

É dessa perspectiva que a possível chapa Lula-Alckmin deve ser analisada: trata-se de uma solda facciosa para garantir às facções que tudo ficará como sempre, e não para enviar ao Mercado provas de um “centrismo” que Lula não precisa dar desde a Carta de 2002! Pretender que Lula precisa de Alckmin para não parecer um esquerdista é, na melhor das hipóteses, uma ingenuidade. Mesmo se fosse assim, a união deles seria um anacronismo que já discuti aqui e aqui: nem Lula, nem Alckmin representam hoje o que o PT e o PSDB foram no passado, quando ainda pareciam partidos voltados à transformação do Brasil, tema que recentemente retomei aqui. Embora haja quem enxergue nessa união uma “revolução republicana“, o fato é que a geringonça tupiniquim, pela adesão de Alckmin a Lula, finalmente chancelaria a saída facciosa com que os tucanos e o establishment sonharam em março de 2016, quando estavam em luta contra o que havia de republicano na não menos facciosa LavaJato: Lula cimentando as facções num muro de pedras para conter a vontade pela mudança da maioria da sociedade brasileira.

Diante da crise de legitimação do EDA, a solidez desse muro é aparente e ele poderá ruir se emergir uma alternativa que, dialogando sob orientação democrática com o sentimento antissistema da maioria da sociedade, concatene nossas duas urgências. Como a construção de uma alternativa assim demanda tempo, é improvável que ela se apresente para 2022. Entretanto, dado o Brasil ser como é, não é de descartar que a crise de legitimação acabe por produzir mais um aleijão político, levando a que nas fissuras do muro de Lula venha a medrar uma vigarice como a candidatura de Moro, como se ele ainda pudesse suscitar as esperanças que suscitou no início da LavaJato — seria a tragédia depois da farsa.

Fica o Registro:

Ciro perdeu a oportunidade de fazer da ação facciosa da PF contra ele e seu irmão um pretexto para atender a prevista movimentação das candidaturas regionais do PDT contra sua pretensão de disputar a presidência da República (Ciro está a ser cristianizado quase 1 ano antes da eleição…). A solidariedade que recebeu de Lula acabou por enredá-lo em mais uma contradição, pois acabou por dizer que nunca chamou Lula de ladrão… Ao fim e ao cabo, se Ciro fosse capaz de tirar consequências profícuas da sua situação política real, anunciaria apoio a Lula e se colocaria à disposição para ser candidato a governador de São Paulo, tendo Márcio França de vice e com Haddad para o senado. Seria uma frente de facções para ninguém botar defeito.

Heloísa Helena, porta-voz da Rede Sustentabilidade, deu entrevista sobre as aflições da agremiação, que vem sofrendo com a saída de parlamentares para outros partidos e precisa ampliar sua votação para o Congresso a fim de transpor a cláusula de barreira. Interessante observar que ela encarou com a maior naturalidade (a Rede “não pode reclamar”) a saída dos parlamentares eleitos pela Rede, como se o fato de eles terem se associado ao partido na modalidade de “candidaturas cívicas” independentes tornasse essa independência uma prerrogativa individual deles, e não um compromisso com os eleitores. Ora, eles se candidataram pela Rede precisamente porque perceberam, com razão, que seus eleitores não tinham simpatia pelos partidos para os quais agora migram. Logo, o vínculo com a Rede não deveria ser encarado nesse sentido liberalóide que lhe deu a ex-senadora. A desorientação dessa Rede não tem fim.

A AUTOINTITULADA ESQUERDA ABRE CAMINHO PARA MORO

Carlos Novaes, 28 de novembro de 2021

Desde que Moro explicitou suas pretensões eleitorais, 11 de cada 10 analistas da mídia convencional, assim como políticos que se apresentam como adversários do ex-juiz, passaram a difundir a ideia de que ele, finalmente, teria assumido o que sempre foi, um político, e, assim, agora estaria no lugar certo. Ora, com essa recepção à candidatura de Moro esse pessoal está a dizer que os procedimentos facciosos dele como juiz serão perfeitamente aceitáveis quando se derem na arena política. Eles estão, sem perceber, reconhecendo que a política, para eles, é o lugar para a ação facciosa, que não tem de obedecer princípios e, pior, nem mesmo respeitar a norma legal (o alastramento da corrupção que o diga!).

Numa frase: tudo se passa como se o facciosismo de Moro, que atropelou a Justiça, fosse condenável apenas no papel de juiz, sendo perfeitamente aceitável na prática política — (sem esquecer que o cinismo do lulopetismo, e dos demais facciosos, classifica o notório facciosismo deste ou daquele magistrado do STF segundo as próprias conveniências, o que explica as oscilações da opinião deles sobre o que decide, por exemplo, um Gilmar Mendes…)

As raízes dessa recepção “legitimadora” do facciosismo por meio da sua banalização podem ser vistas à flor da terra por quem acompanha este blog, e todas elas levam ao mesmo tronco: o apego ao Estado de Direito Autoritário, cuja funcionamento básico se dá pela luta entre facções, como venho discutindo há tempos.

Combater a corrupção é central

O fato de Moro ter feito do combate à corrupção um meio faccioso de golpear adversários políticos não nos obriga a deixar de lutar contra a corrupção, nem, muito menos, normaliza a corrupção, como, na real, tem pretendido a nossa autointitulada esquerda, que se tornou facciosa quando, lá atrás, aderiu à política convencional sem nenhuma perspectiva de transformação. Já vimos como até uma figura como Haddad (com Boulos e Freixo a tiracolo) simplesmente abandonou a luta contra essa mazela, que é o combustível da reprodução diuturna do modus operandi do Estado de Direito Autoritário, cujas ocasionais maiorias governativas facciosas são conquistadas pelo dinheiro, como Bolsonaro, o mandante faccioso de turno, está, mais uma vez, a demonstrar.

Com base nos procedimentos execráveis de Moro no Paraná, virou moda vilipendiar a LavaJato em geral, como se os resultados obtidos no Rio contra a quadrilha chefiada por Sérgio Cabral pudessem ser tratados do mesmo modo como se condena o que foi feito arbitrariamente contra Lula. Não que alguém ouse defender Cabral. Não chegam a tanto, pelo menos publicamente. O que quero salientar é o silêncio sobre o acerto havido na ação do Judiciário contra um esquema de corrupção que está longe de ser uma exclusividade do Rio de Janeiro. Em suma, nenhum político faccioso fala em combater a corrupção porque todos eles estão, em alguma medida, envolvidos nela, o que, de saída, sempre os impediria (se o quisessem) de lutar contra a desigualdade na perspectiva de construir um Estado de Direito Democrático.

Como já vimos, o problema da corrupção está na raiz da nossa urgência por ordem, e — quando entendemos que ela, a corrupção, é uma prática voltada à reprodução do Estado que sustem o mal maior (a desigualdade) — não podemos deixar de ver os vínculos entre a corrupção e a nossa urgência social. Já exploramos aqui as relações entre essas duas urgências, apontando que o Brasil só iniciará a construção de um Estado de Direito Democrático quando se formar uma força política que articule a ambas, improdutivamente postas uma contra a outra, como ficou claro na polarização fajuta entre Bolsonaro e Haddad na eleição de 2018 (que fique claro: se a polarização entre os dois era fajuta, a diferença entre eles era notória, o que levou muitos de nós, apesar de tudo, a votar em Haddad).

Bolsonaro agrava nossas duas urgências enquanto blefa contra a democracia

Já vimos que Bolsonaro não é danoso pelo que diz contra a democracia, mas pelo que faz contra a maioria da sociedade, afinal, ao manejar o Estado de Direito Autoritário, ele não apenas não enfrentou nossas duas urgências, como as fez mais graves — alguns exemplos bastam: no âmbito da ordem, além de se render à corrupção do Centrão e torpedear o combate institucional ao coronavírus e conexos, Bolsonaro ainda tem dado força aos desmandos policiais e incentivado a desordem ambiental e social que provém do desmatamento e do garimpo. Na chamada questão social, além de uma política econômica socialmente ruinosa para os mais pobres e para as classes médias, além de reformas socialmente danosas e voltadas a proteger privilégios, Bolsonaro ainda desmontou o Bolsa Família, programa que embora não combatesse a desigualdade, contribuía para minorar os sofrimentos que ela traz para os segmentos mais pobres da população.

Não obstante, nossa autointitulada esquerda não se comove e insiste que o principal problema não é o que Bolsonaro faz, mas o que ele diz, daí a insistência dela em convocar (em vão) a sociedade para defender uma democracia que essa maioria sabe não estar ameaçada pela besta. Quer dizer, como não pode enfrentar a urgência por ordem (sendo ela mesma cúmplice da corrupção, não pode politizá-la), e como tampouco pode enfrentar a urgência social (sendo ela mesma beneficiária da ocupação ocasional de postos de mando no Estado que mantém a desigualdade, não pode atacá-lo), nossa autointitulada esquerda deu-se ares de historicamente sábia e se agarrou preguiçosamente ao frentismo, fazendo dos blefes do besta um espantalho cômodo: para esse pessoal, antes de tudo deve estar a bandeira conservadora da defesa da “nossa democracia”, do nosso (suposto) Estado democrático de direito. O que nos leva de volta a Moro.

Moro vai politizar a corrupção e explorar o sentimento antissistema

Diante de adversários que insistem em fazer a campanha eleitoral sem levar em conta a realidade — e, por isso mesmo, empunhando a fraca bandeira da defesa da democracia, que tem como pretexto unicamente os desmoralizados blefes de Bolsonaro, aos quais a maioria nunca levou a sério –, Moro poderá explorar o sentimento antissistema tanto contra Bolsonaro como contra os outros adversários. Contra Bolsonaro porque ao se render ao Centrão o besta explicitou que não tem vínculos críveis com o pendor antissistema da maioria; contra os demais porque todos eles (pelo menos até aqui) são defensores da volta ao estado de coisas anterior a Bolsonaro.

Quer dizer, Moro vai abrir caminho pela mesma avenida em que Bolsonaro desfilou em 2018, não por outra via. Por isso mesmo, não faz sentido explorar as chances de êxito de Moro à luz da polarização fajuta entre Lula e Bolsonaro, afinal, a depender do andar da carruagem, a maioria da sociedade pode vir a entender que não há polarização alguma entre dois candidatos obedientes ao facciosismo do sistema. Nessa mesma ordem de ideias, não há que fazer comparações entre Moro e Ciro, afinal Ciro é figura conhecida do jogo entre facções e não tem como se fazer alternativa a Lula; ao passo que Moro pode explorar a ilusão de que não faz parte do sistema e tem tudo para se tornar alternativa a Bolsonaro. Dessa perspectiva, sou levado a me afastar da ideia de que Moro seria o bolsonarismo sem Bolsonaro: o ex-juiz poderá ser uma alternativa conservadora mais consistente precisamente porque exibiria contraste com uma das características que opõem o bolsonarismo raiz à maioria da sociedade brasileira: a defesa explícita de bandeiras antidemocráticas.

Um Moro “antissistema” e “democrata” pode vir a representar, aos olhos dos incautos, uma “renovação”, inclusive geracional, difícil de combater, ainda mais se insistirem no cantochão de que o ex-juiz é uma “ameaça à nossa democracia”… Eis onde nos poderá levar o conservadorismo e o oportunismo estatista da nossa autointitulada esquerda, que amesquinhou seus horizontes políticos, programáticos e teóricos aferrando-se à defesa do Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação. Logo saberemos.

O “FORMALISMO” DE LULA

Carlos Novaes, 23 de novembro de 2021

Mutatis mutandis, Daniel Ortega venceu a eleição presidencial na Nicarágua como Putin venceu as suas na Rússia e como Bolsonaro venceu aqui em 2018: os respectivos candidatos de oposição foram impedidos de concorrer depois de levados arbitrariamente à prisão. Por isso, muitos observadores da cena política estranharam a declaração dada ontem por Lula ao jornal espanhol El País:

“Por que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e Daniel Ortega não? Por que o Felipe González aqui pode ficar 14 anos no poder? Qual é a lógica?”

Ora, ninguém disse que Ortega não pode ficar no poder por 16 ou 14 anos. A objeção é que ele, ao contrário de Merkel e González, consiga ficar no poder porque encarcerou os adversários, impedindo-os de disputar a eleição.

Mas não há o que estranhar. Mais uma vez, Lula se agarrou a um formalismo para defender o indefensável. Ele age como se pudesse se proteger alegando desconhecer fatos amplamente divulgados sobre a ilegitimidade do processo eleitoral da Nicarágua, e deixa de lado justamente aquilo que torna inaceitável para um democrata a “vitória” de Ortega.

Esse tipo de cinismo não é novo no lulopetismo (e tampouco é exclusividade dele). Quem acompanhou as ações da LavaJato contra o próprio Lula e contra os tucanos de São Paulo e Minas pôde notar tanto o facciosismo que construiu a condenação de Lula, quanto aquele que permitiu aos tucanos se safarem das consequências dos malfeitos havidos em obras do Metrô e do Rodoanel, ou nas negociatas de Minas. Por um lado, montaram contra Lula processos judiciais fajutos, de modo a forçar a relação direta dele com a roubalheira havida na Petrobrás quando, de fato, era ele o presidente da República; por outro lado, as investigações sobre as roubalheiras no Metrô e no Rodoanel sequer chegaram a se desenvolver a ponto de permitirem denunciar judicialmente os governadores Geraldo Alckmin e José Serra. Os processos contra Aécio jazem sob lápide. O que há de comum nos dois casos e qual a relação disso com o cinismo de Lula diante do que se passa na Nicarágua?

O que há de comum é a incontornável conclusão de que Lula, Alckmin, Serra e Aécio protagonizaram governos e ações políticas com vastas e profundas ações de corrupção. Se contra nenhum dos quatro foi possível conduzir um processo judicial hígido, com direito à ampla defesa e sem facciosismo, a Justiça não pode, mesmo, puni-los pelos crimes havidos sob sua responsabilidade. Entretanto, qualquer pessoa que tenha conhecimento dos fatos, ainda mais quando diante da recuperação de vultosas quantias do dinheiro roubado (como no caso da Petrobrás), qualquer pessoa razoável, eu dizia, não poderá deixar de repudiar politicamente esses personagens e (se não seus partidos), pelo menos, seus assessores e correligionários mais diretos.

O cinismo está em fazer do caráter inconclusivo da dimensão judicial um meio de legitimar a covardia conveniente de não tirar consequências políticas dos crimes havidos. Lula e os seus usam as condenações injustas como atestados de inocência ampla, geral e irrestrita (inclusive para crimes conexos, pois estão, mais uma vez, prontos a se aliarem ao MDB e a forças do Centrão profundamente implicadas na Petrobrás e em outros casos de corrupção). Já os tucanos tocam suas vidas políticas com a normalidade cínica que a mídia convencional aceita daqueles a quem reconhece como aliados.

Talvez não haja exemplo mais redondo desse cinismo comum a lulopetistas e tucanos do que o modo pelo qual Fernando Haddad se conduz na cena política, como tempos atrás já apontei, na seção Fica o Registro deste post aqui. Naquela altura, em 2018, além do cinismo, descortinei, e critiquei, também o ensaio da jogada em que, agora, em 2021, o mesmo Haddad se empenha com a desenvoltura dos convictos: a união facciosa de Lula com o mais notório dentre os tucanos conservadores em atividade, Geraldo Alckmin. Recuperemos o que vimos lá atrás:

  • Fernando Haddad apontou em entrevista o caráter seletivo da indignação que certos setores da sociedade têm exibido contra a corrupção. Ele tem toda razão e entendo como fundamental apontar que essa hipocrisia é parte do que há de fraudulento no jogo de poder em curso. Entretanto, entendo como igualmente fundamental registrar que a escolha de Haddad não é melhor: ele não mostra nenhuma indignação com a corrupção… A outra face dessa fleuma conveniente é a esperteza contida nessa forma de tergiversar sobre o caso de Lula: “Eu tenho a convicção de quem leu o processo”… – como se convicções políticas se formassem da mesma maneira como se fazem as convicções jurídicas… Por isso mesmo, Haddad abre mão de toda luta política contra Alckmin nesse assunto, como se apontar a convergência entre Paulo Preto e os governos tucanos fosse algo a ser feito apenas no plano jurídico! Não à toa, Haddad declara preferir a palavra de Alckmin à palavra “de quem quer que seja que esteja aí, enrolado com a justiça”, como se enrolados com a justiça não estivessem todos, inclusive Lula. Haddad escolheu esconder-se da crise acocorado sob um telhado de vidro, mas de microfone na mão.
  • Na mesma entrevista, Haddad anacronicamente salientou convergências que vê entre PT e PSDB, como se fosse possível saltarmos os últimos trinta anos (no curso dos quais eles montaram uma polarização fajuta) e covardemente esquecermos que as convergências se deram sobretudo na acomodação à desigualdade, na revitalização dos dispositivos paisanos da ditadura (p-MDB e DEM) e na adesão à corrupção como método de reunir poder para fazer dinheiro. Perdidos no tempo, o PT e o PSDB que ele tem na cabeça são personagens de fábula.
  • É que, tal como naquele cinema pobrinho dos faroestes fajutos dos anos sessenta, onde as cenas perigosas recusadas pelos dois protagonistas “adversários” eram encenadas pelo mesmo dublê, nessa pantomima anacrônica para reavivar a união FHC+Lula Haddad tem a pretensão de ser “descoberto” como o dublê ideal, o que nos leva ao risco de assisti-lo a pregar a união nacional contra o “patrimonialismo moderno” vestindo um macacão emporcalhado de petróleo e montado num jegue – ficcionista nenhum anteciparia que a realidade pudesse descaracterizar D. Quixote e Hamlet a ponto de ser possível desfigurá-los numa fusão tão impertinente.

Se os três parágrafos imediatamente acima descreveram, a quente, o que se passava em março de 2018, agora, em novembro de 2021, estamos a assistir o frondejar daninho do que foi plantado então: a união facciosa (e para inglês ver) de duas forças que, há trinta anos, recusaram unir-se quando isso teria significado a construção de um vetor de luta contra o facciosismo!

Quer dizer, tanto na desejada vitória com Alckmin, quanto no comentário sobre a “vitória” de Ortega, Lula está a exercitar sua condição de líder faccioso empenhado em proteger o Estado de Direito Autoritário como modelo, de costas para tudo o que signifique a trabalheira de construir um Estado de Direito Democrático. Só os muito cínicos e/ou muito cegos podem se entusiasmar com mais essa postulação de Lula à presidência da República.

Fica o Registro:

– Na mesma entrevista ao El País, Lula saiu-se com essa:

“O eleitor brasileiro votou no Bolsonaro pelas mesmas razões que o americano votou no Trump. Foi um momento de desajuste emocional de uma parte da humanidade.”

O obscurantismo dessa observação não faz feio ao lado de uma outra, já explorada aqui, e permite ver por outro ângulo o facciosismo de Lula: ele trata como mero “desajuste emocional” a infelicidade dos descaminhos havidos na luta das mais diferentes sociedades contra o sistema que ele e outros representam, aqui e alhures, sistema esse que deu ocasião ao sucesso dos aventureiros mencionados. Como líder faccioso, Lula pretende que se tome como racionalidade inescapável a razão cínica que o orienta precisamente porque abdicou da luta contra a desigualdade na perspectiva de construir um Estado de Direito Democrático.

– Bolsonaro, embora tenha abandonado o golpismo, continua com seu “método” de blefador: insinua que pode não renovar a concessão da Globo, que vence em outubro de 2022, como se estivesse em condições de posar de machão e, pior, como se dependesse apenas dele a decisão.

– O UOL publicou artigo interessante sobre a condução daninha que Ortega dá ao processo institucional na Nicarágua, no qual o autor explora as ambivalências que caracterizam o exercício da vice-presidência e da “copresidência” pela mulher de Ortega. Ainda que se empenhe em mostrar as diferenças entre a condição de vice-presidente e a de copresidenta, o autor deixa escapar o principal quando se trata de caracterizar a natureza institucional deletéria da ação de Ortega. Nos meus termos, o facciosismo de Ortega pode ser facilmente resumido se recorrermos a ensinamento de Afonso Arinos: “o vice-presidente é vice da República, não do presidente”. Já a copresidente é “co” do presidente Ortega, não da República da Nicarágua.

O SENTIDO NACIONAL DA POLÍTICA MIÚDA

Carlos Novaes, 16 de novembro de 2021

No post imediatamente anterior, publicado aqui há cerca de um mês, antecipamos o que a mídia convencional traz, agora, como notícia da “nova” realidade de Bolsonaro: suas dificuldades para lidar com os interesses eleitoreiros das facções nas composições estaduais. Para quem analisa a situação no intuito de se orientar acerca do rumo político do país, esse jogo miúdo estadual, em si mesmo, interessa pouco, pois o resultado não varia: todos eles se arranjam, com os sacrifícios de praxe, e as versões locais do Estado de Direito Autoritário continuam.

O que ainda há de interessante nisso, porém, é o fato de que a movimentação de Bolsonaro no âmbito estadual se mostra atribulada não apenas em razão da imbecilidade dele, mas porque essa costura de interesses esbarra na preferência da sua base paisana por uma ruptura com o “sistema”. Bolsonaro está a fazer a política facciosa pró-sistema que a sua base mais fiel rejeita. Essa base insiste em Bolsonaro como alternativa antissistema. Por que, depois de tudo que houve, depois até mesmo da Carta do Temer, essa base paisana ainda acredita que Bolsonaro venha a se conduzir de um modo antissistema, encarando toda evidência contrária como tática? Porque nosso cérebro trabalha sobretudo com as narrativas em que ele próprio se empenhou e já enviou à memória. Para ele, é mais fácil elaborar uma narrativa justificadora do que uma narrativa contraposta, afinal, enquanto o primeiro tipo tem a marca do mero ajuste; o segundo impõe a trabalheira que toda construção nova requer.

Quando, em 2002, Lula lançou a Carta aos Brasileiros, a base lulopetista com preferência firme pelo socialismo viveu dilema cerebrino parecido. Naquela altura, não foi incomum encontrar petistas com a narrativa de que a Carta respectiva também era apenas um recuo tático, para vencer a eleição; depois de vencer, Lula haveria de fazer um governo no rumo do socialismo… [A criação do PSOL saiu da frustração dessa expectativa (para, no final, acabar repetindo a capitulação petista, mas sem carta – mas isso já é outra história)]. Voltemos.

A manobra que Lula consubstanciou na Carta deu certo não apenas porque era para valer, mas, sobretudo, porque foi realizada afinada com a democracia e num ambiente político de esperança: ficou incontornável dar uma chance a Lula e seu PT. A situação de Bolsonaro é oposta: ele já ocupa a presidência da República, e o faz de um modo tão incompetente e desumano, que, ao contrário de Lula em 2002, já não pode suscitar qualquer esperança. Bolsonaro é a certeza de que dias piores virão.

Lula, agora, ainda pode suscitar esperanças por três razões: primeiro, o desastre do governo Bolsonaro torna qualquer um motivo de esperança; segundo, os governos Lula foram indiscutivelmente melhores que o governo Bolsonaro; terceiro, Lula pode camuflar sua condição de agente faccioso na injustiça que sofreu na disputa contra outras facções. O Lula injustiçado no jogo bruto do sistema ajuda a esconder o fato de Lula ser figura central na operação do mesmo sistema, nesse caso, o Estado de Direito Autoritário.

É nessa camuflagem que Lula pode dialogar com o sentimento antissistema da maioria da sociedade brasileira, em seu natural pendor cerebrino pelas narrativas acomodatícias. Vem daí minha surpresa com as notícias sobre o interesse de Lula em ter Alckmin como vice em sua chapa. Afinal, se Alckmin viesse a enveredar por esse caminho suicida, estaria a formar com Lula uma chapa pró-sistema em estado puro. Alckmin na vice ajuda a quebrar o que há de falso encanto na candidatura de Lula. Fiquei surpreso porque, a ser verdade o desejo que se atribui a Lula, ele, ao contrário do que imaginei, não entendeu bem o lugar que ocupa na política brasileira atual. Seria um erro cuja irracionalidade compete com aquela que o levou a não disputar a eleição de 2014 no lugar de Dilma — em política, do irracionalismo saem conformações monstruosas…

E mais: esse balão de ensaio de Alckmin como vice de Lula pode ter ajudado Eduardo Leite nas prévias do PSDB. É que os tucanos paulistas que temem ter de enfrentar Alckmin na disputa pelo governo de SP podem ter sido levados ao cálculo de que prender Dória na disputa pela própria reeleição ajudaria a empurrar Alckmin para a chapa de Lula, uma vez que o único adversário temível para Alckmin na disputa pelo governo paulista é justamente Dória, que ainda manejaria a máquina estando no cargo. Se for assim, Lula terá contribuído para que um adversário perigoso se viabilize como candidato à presidência.

Seja como for, por que Alckmin abandonaria a grande chance de voltar a pilotar o segundo orçamento do país em troca da condição figurativa de vice do Lula? Ademais, essas especulações devem ter motivado ainda mais Alckmin para a disputa do governo de SP, mesmo se tiver de enfrentar Dória, e não o desconhecido Garcia; afinal, depois de tentar atraí-lo para a chapa de Lula, o PT terá alguma dificuldade para atacá-lo na disputa para governador — se servia para vice, por que não serve para governador?

Se Lula vem semeando dificuldades em terreno que parecia propício, Bolsonaro está a encontrar dificuldades no terreno lamacento em que sempre chafurdou: a emergência de Moro não como terceira via (como já apontei no último parágrafo desse post aqui), mas como candidato na própria via em que o besta se julga senhor. Moro pode se tornar uma alternativa bolsonarista a Bolsonaro, dando novo embalo ao reacionarismo antissistema, que quer substituir o Estado de Direito Autoritário por um Estado com menos de direito e mais autoritário, vamos ver.

SENTIMENTO ANTISSISTEMA E A ELEIÇÃO DE 2022

Carlos Novaes, 17 de outubro de 2021

Nessas últimas semanas fizemos uma pausa para assistir sumirem no horizonte a histeria golpista, a bobagem do “frentismo” e alguns dos equívocos conexos. Nada disso deixou rastro, e vem se generalizando na mídia o clima de campanha eleitoral. Nenhum dos assíduos alarmistas de até bem pouco tempo sentiu necessidade de rever o que veio dizendo ao longo desses longuíssimos quase dois anos de disparates. Esse olhar de paisagem é parte do conformismo que ajuda a consolidar a bitola do velho normal como parâmetro para o desenrolar da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. Mas essa normalidade é aparente, pois a ilegitimidade é real.

Enquanto a maioria da sociedade anima suas expectativas orientada segundo a preferência pela democracia associada ao pendor antissistema, os políticos de carreira, profissionais do sistema, persistem no jogo de facções orientados para a disputa eleitoral do ano que vem, ocasião em que redefinirão seus cacifes para repartir o privilégio do exercício faccioso dos poderes institucionais.

Quem percebe essa assimetria de fundo entre a maioria da sociedade e os políticos facciosos não pode deixar de considerar a situação política como precária, especialmente depois que Bolsonaro, emparedado pela ação de segmento desgarrado da sua própria base, foi obrigado a jogar fora, precocemente e à vista de todos, o recurso ao blefe do “golpe”, escancarando sem subterfúgios sua sabida rendição ao velho normal, o que desembocou na campanha pelo fantasioso objetivo da reeleição.

Note bem, leitor: em 2022 Bolsonaro já não poderá jogar como se fosse antissistema, como fez com êxito em 2018. Pelo contrário: para se credenciar à reeleição ele terá de partir da condição de ocupante do cargo de presidente da República. Quer dizer, sempre que se jactar de alguma “realização”, sempre que comparar seu governo com governos anteriores, Bolsonaro estará afirmando sua condição de figura do sistema, não a ele contraposta. Isso muda tudo na campanha dele.

Ao contrário do que fez em 2018, para 2022, como está enleado ao velho normal, Bolsonaro terá de buscar alianças com outras facções, entrando de cabeça no jogo viciado dos palanques eleitorais dos estados, nos quais já não haverão os candidatos “antissistema” que se multiplicaram como ratos na eleição passada, e ajudaram a criar a onda favorável. Náufrago do próprio desgoverno, Bolsonaro irá aparecer procurando amparo nas boias cada vez mais ariscas de figuras carimbadas, disputando acordos políticos que em 2018 hostilizou, retoricamente, com sucesso.

Essa coreografia esvazia parte do que em 2018 foi erroneamente chamado de antipetismo, como se o eleitor estivesse rejeitando o PT, e não o sistema, ou seja, o Estado de Direito Autoritário, do qual o PT era, então, a face mais visível. Quer dizer, mesmo o que houver de antipetismo dificilmente se orientará na direção de Bolsonaro, um presidente inepto e desuamano, rendido ao sistema, que em 2022 nada poderá oferecer de novo.

Só quem não enxerga (ou não acredita) na crise de legitimação que subjaz o ânimo antissistema da maioria do eleitorado acha que Bolsonaro é um candidato forte porque dispõe da caneta, da força do cargo, como se o fato mesmo de estar no cargo já não gerasse antipatias, especialmente no caso de um governo tão mal avaliado. Para esse pessoal, “Bolsonaro não deve ser subestimado como veio sendo e, em 2018, acabou por chegar onde está”. Ora, o erro em 2018 (meu e de muitos outros) não foi “subestimar” Bolsonaro, mas subestimar a força do ânimo antissistema da maioria do eleitorado — não se viu que qualquer um que se colocasse na posição antissistema teria levado aquela eleição. Bolsonaro não foi o primeiro, nem será o último imbecil a se dar bem não obstante sua imbecilidade, afinal, o que dá forma às situações histórias não são as escolhas individuais dos espertalhões, mas as complexas interações entre essas escolhas e as escolhas dos demais…

Naquela altura, Bolsonaro pôde realizar uma campanha de segundo turno não apenas sem precisar fazer qualquer movimento concessivo, mas repelindo alianças; recuar para posições centristas ter-lhe-ia tirado votos, como então analisei aqui. Em outras palavras, em 2018 a maioria do eleitorado queria radicalidade antissistema. Sem esbanjar lucidez, e com a ajuda da nossa autointitulada esquerda (esse marisco agarrado ao Estado de Direito Autoritário), a maioria viu em Bolsonaro essa radicalidade.

A solidez aparente da polarização entre Lula e Bolsonaro não é aparente apenas porque o besta arruinou-se. A solidez dessa polarização fajuta (e fajuta não porque eles sejam a mesma coisa – não são!! – mas porque ambos são modos de aparecer muito diferentes de um mesmo problema: a falta de alternativa para construir um Estado de Direito Democrático orientado pelo combate à desigualdade), a tal solidez, eu dizia, é aparente também porque a preferência por Lula tampouco é sólida, e só persiste porque a crise de legitimação não aflora às consciências como resultado do Estado de Direito Autoritário, que também é obra de Lula.

Na falta de uma alternativa, a radicalidade da crise fica dissimulada na retórica do processo eleitoral, e permanece sendo vivida como sofrimentos contemporâneos, mas não concatenados, ganhando formas isoladas nas queixas ante o arbítrio policial contra uns, a fome de outros, os desvalimento social ante privilégios burocráticos de alguns, o desemprego de muitos, a corrupção, a ruína do espaço público, o racismo, a frustração da ascenção social, a deterioração urbana, as assimetrias de gênero, a perda da capacidade de consumo, a violência cotidiana, as mazelas ambientais, etc.

Ante rol tão poderoso de sofrimentos, e uma vez compreendido que o pendor antissistema persiste, não poderá deixar de haver espaço para uma ou mais candidaturas contrapostas à dupla que mais facilmente pode ser apontada como “do sistema”: Lula-Bolsonaro. Dos nomes que já se atiraram à disputa, o menos viável me parece Ciro Gomes, sendo o mais viável Eduardo Leite. Ciro tem escassas possibilidades porque é homem do sistema que insiste (desde 2018) em fazer a briga facciosa tradicional, referido às facções, centrado nelas, buscando apoios e polarizações no âmbito desse jogo – tudo isso com modos de coronel intemperante, fazendo uso de palavrões, numa figuração que não sugere alternativa aos modos belicosos de Lula e Bolsonaro. Exemplo recente desse comportamento equivocado ele nos deu ao declarar que Lula teria conspirado em favor do golpe contra Dilma, afirmação estapafúrdia por si só (tanto que logo em seguida teve de desdizer) e que, ademais, o mostrou preocupado com tema ao qual o eleitorado devota interesse zero.

Lançado ao grande público em programa da Globo muito bem roteirizado e coreografado, Eduardo Leite vem mostrando que poderá se revelar o avatar ideal para a ilusão de que uma novidade poderá, “serenamente”, deixar tudo de ruim para trás… Embora não seja propriamente um jovem, Leite combina a condição de governador de Estado com o fato de ser o nome mais destacado de uma nova geração, o que na situação atual vem a calhar: além de aparentemente dialogar com o pendor antissistema (Leite não teria os vícios das gerações mais velhas), sua mocidade ajuda a embalar a ideia de que é possível recomeçar, especialmente nesse figurino calmo, a contrastar com a brutalidade de Bolsonaro e com a crispação ocasional de Lula. O fato de Leite ter se declarado gay também ajuda, pois essa característica pessoal vai ao encontro da grande diversidade da sociedade brasileira, que tem estado encoberta pelo barulhento reacionarismo de costumes que a fugaz aderência de Bolsonaro ao sentimento antissistema acabou por sugerir, equivocadamente, que fosse majoritário entre nós. Não é. Nosso conservadorismo de costumes não é reacionário, isto é, a maioria dos nossos conservadores não quer impor sua régua de costumes aos demais e até gostaria de poder mostrar isso na próxima eleição…

Como Lula tem a história que tem e sofreu perseguição e punição movidas a arbitrariedades e injustiças por parte de formações facciosas adversárias, ele vem se beneficiando de aspectos do sentimento antissistema, pelo menos até que surja uma alternativa… Vamos ver como as facções adversárias vão se virar para trabalharem o “frentismo” (vejam os caprichos da história…) não contra Bolsonaro, mas contra Lula, tirando proveito do sentimento antissistema, e empurrando com a barriga a crise de legitimação. Leite pode se ajustar a esse papel.

EX-ELEITORES DE BOLSONARO SÃO PARTE DA SOLUÇÃO

[Em 03/10] ATENÇÃO: está disponível aqui, e na aba LINKS, a mais nova versão, em .pdf, com alterações e acréscimos, do meu livro sobre obras-primas de Púchkin e Turguêniev.

EX-ELEITORES DE BOLSONARO SÃO PARTE DA SOLUÇÃO

Carlos Novaes, 26 de setembro de 2021

Para quem acompanha este blog, a entrevista que Bolsonaro concedeu à Veja e suas declarações públicas mais recentes nada trouxeram de novo: ele está tentando consolidar uma nova fase, centrada no objetivo de construir uma candidatura viável à reeleição (ainda que sem abandonar de todo o objetivo delirante de um dia ser um ditador, e o objetivo mais próximo, de salvar da cadeia a si e aos seus, como detalhei aqui). Para desapontamento da minoria paisana mais autoritária da sua base minoritária (minoria dentro da minoria), ele desistiu até da propaganda do “voto impresso”, e mais: para fazer esse novo recuo, o besta se apoiou no ministro Barroso, presidente do TSE, a quem acusava de ter influenciado indevidamente o Congresso…

Agora, Bolsonaro elogia Barroso pela iniciativa de ampliar a transparência do processo eleitoral, o que equivale a reconhecer a idoneidade da urna eletrônica. Somado ao telefonema para Moraes, esse elogio é o arremate da sujeição do besta ao velho normal. Se juntarmos essa sujeição à discussão que fizemos nos períodos pré e pós 7 de setembro, temos a extensão do equívoco dos que insistem em prever que Bolsonaro, “fera ferida”, “não vai parar” e logo voltará a atacar “nossas instituições democráticas” e a fazer “ameaças à democracia”. São essas fantasias que orientam o contínuo, e inútil, esforço pela construção da frente.

Felizmente, há pesquisas que nos ajudam a explorar esse cipoal aparente. Já vimos aqui alguns dos números da última pesquisa DataFolha. Neste domingo, a Folha de S.Paulo trouxe novos números.

O mais interessante nesses números é que eles permitem ilustrar de maneira nova a relação entre “preferência pela democracia”, “temor de golpe/ditadura”, “ameaças à democracia” , “confiança no que Bolsonaro diz” e “desempenho de Bolsonaro como presidente”. Embora a matéria sonegue o percentual dos que declaram ter votado em Bolsonaro no segundo turno de 2018, omitindo uma informação fundamental para a análise dos dados, ela nos mostra como essa parte do eleitorado se posiciona nas questões acima e permite comparar suas respostas com as do eleitorado em geral.

Na tabela a seguir, dispus os dados para comparação e fiz comentários aos blocos de temas. Julgue por si mesmo, leitor (para ampliar, clique na tabela e, então, clique novamente sobre a imagem dela):

Fonte: Instituto DataFolha, via matéria na Folha de S. Paulo.

Diante do contraste interessante e perfeitamente compreensível entre, de um lado, a avaliação majoritária dos eleitores de Bolsonaro de que não há chance de ele dar um golpe (68%) e, por outro lado, o desapontamento da base paisana autoritária dele com os recuos do chefe depois do dia 7, a jornalista que apresentou os números do DataFolha na matéria avaliou que

De forma contraditória, os que votaram em Bolsonaro dizem, em sua maioria, não haver chance de que ele dê um golpe de Estado —mas, ao mesmo, tempo, a base bolsonarista ficou desapontada quando ele recuou por meio de uma carta feita com a ajuda do ex-presidente Michel Temer (MDB).

Embora compreensível, esse juízo equivocado é muito ilustrativo do equívoco mais geral sobre o que se passa, afinal, não há contradição alguma: a base paisana autoritária de Bolsonaro não representa a maioria que deu a vitória a Bolsonaro no segundo turno de 2018. Pelo contrário: a maioria daquela maioria prefere a democracia e jamais endossou os delírios autoritários do besta (sabem-no um blefador), delírios estes apoiados apenas por quem incorporou o delírio ao pé da letra. A maioria dos ex-eleitores de Bolsonaro está como a maioria dos demais: espera, sem muita clareza, uma alternativa democrática antissistema, sempre que por “sistema” entendermos o Estado de Direito Autoritário, que está em crise de legitimação.

BOLSONARO DEVE SER DERROTADO; NÃO DERRUBADO, MAS… — 2 DE 2

Carlos Novaes, 19 de setembro de 2021

Depois da análise do que se passaria no dia 7, e do que se passou ali e nos dias imediatamente subsequentes, vimos no artigo anterior que Bolsonaro não é uma ameaça pelo que diz contra a democracia, mas, sim, pelo que seu autoritarismo faz amparado no “de direito” do Estado de Direito Autoritário. Esse conjunto de análises está amparado no que venho dizendo pelo menos desde antes das eleições de 2018, período no qual tenho tentado fundamentar uma leitura da realidade política brasileira totalmente diferente, e até oposta, em conteúdo e forma, do que tem sido o padrão das análises com assento na mídia convencional.

Hoje, o caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo traz um artigo de André Singer, professor de Ciência Política na USP. O artigo é, em forma e conteúdo, um retrato de corpo inteiro do ponto de vista que tenho combatido. A crítica abaixo, por sua vez, contraria o usual em forma e conteúdo: na forma, trata-se de não aceitar a interdição ao debate que impera no meio acadêmico brasileiro, onde todos citam todos e ninguém critica ninguém. No conteúdo, trata-se de uma vez mais mostrar a inconsistência do onipresente “frentismo“.

Não seria descabido se o leitor fosse ao texto de Singer antes de prosseguir na leitura desta crítica.

A forma sugere que o conteúdo foi provado

Na forma, o artigo de Singer reproduz o padrão médio do que tem sido publicado pelos intelectualistas na mídia: mistura o jeitão informado do intelectual com a ligeireza jornalística, trazendo citações precariamente harmonizadas entre si e com a realidade que se propõe a analisar. Talvez a melhor prova dessa afoiteza seja a pergunta que Singer fez, e não respondeu, a respeito do uso que deu a um texto de Leon Trotsky.

Depois de conceder que a situação brasileira é muito diferente daquela que o revolucionário russo tinha em mente quando produziu sua análise, Singer pergunta: “Por que, então, lembrar texto nonagenário, escrito em um dos piores invernos europeus?” Desafio qualquer um a encontrar resposta a essa pergunta no texto de Singer. Pelo contrário, ele vai fugir da resposta insistindo na forma: fazer citações de autores que pensaram situações alheias e alhures, como se as correspondências entre as realidades estivessem dadas, fossem óbvias (depois de, claro, ter colocado a vacina de que as aproximações devem ser feitas “cum grano salis”…). E insiste na forma, como se ela pudesse legitimar o conteúdo que ainda precisaria ser demonstrado.

Venho dizendo que Bolsonaro é um imbecil que chegou à presidência da República com delírios de ditador e se encontra em profunda desorientação porque esbarrou na sólida preferência da maioria de nós pela democracia, e na cerrada barreira das facções que manejam o Estado de Direito Autoritário. Para Singer, porém, Bolsonaro parece perfeitamente orientado. Para nosso autor, a semelhança das situações de Brasil (2021) e Alemanha (193?) pode ser vista na “técnica utilizada por Bolsonaro para iludir os demais atores em cena”. Singer invoca Stefan Zweig, ali onde o escritor diz do “método hitleriano”:

“Uma dose de cada vez, e depois de cada dose uma pequena pausa. Sempre só um comprimido e depois esperar um pouco para verificar se não era forte demais, se a consciência do mundo tolerava essa dose.

Ora, já vimos, antes do dia 7, que Bolsonaro não está progredindo por doses, está recuando por coices, precisamente porque a realidade brasileira repele vivamente o que ele pretende (tudo oposto ao que o “método hitleriano” encontrou na sociedade alemã, afundada na crise depois da Primeira Guerra). Mas Singer não desanima, e mantém a forma.

Depois de fazer uma menção ligeira a Hannah Arendt, ao que parece para dar um ingênuo pito de advertência à burguesia brasileira (essa sempre tão sonhada aliada), Singer busca amparo na ideia do “autoritarismo furtivo”, de Adam Przeworski, descrito como “um processo ‘devagar e sempre’, em que a erosão, conduzida por governantes eleitos, ocorre bastante por dentro das leis e é cheia de vaivéns” — bem… gostaria muito que alguém me mostrasse o que há de “furtivo” e de “devagar e sempre” na ação de Bolsonaro. Como vimos no artigo anterior, a ação danosa dele é escancarada e não se faz contra as franquias democráticas, contra as quais ele tem se limitado a vociferar em recuo, ao contrário do que sugere Singer, quando fala do uso “furtivo” de “brechas disponíveis para restringir a liberdade de expressão” (é justo o contrário: Bolsonaro quer a mais ampla “liberdade de expressão” porque abriga nela as suas provocações).

Aliás, Singer invoca um filósofo para dar nome novo ao comportamento básico do bolsonarista militante: um provocador. Agora, o velho comportamento que conhecemos como provocação se chama trollagem, como se o fato de a provocação ser feita na internet autorizasse sua elevação a conceito — na citação abaixo, quem substituir troll por provocador e trollagem por provocação verá que a palavra nova não nos colocou um passo adiante do que já sabíamos. Diz Singer:

“O filósofo Rodrigo Nunes explicou […] como a alternative right, à qual Trump e Bolsonaro se aliaram, ‘descobriu as vantagens de assumir a posição de uma das figuras centrais da cultura contemporânea: o troll’. Para redigir este artigo, aprendi que ‘to troll’, na internet, é algo como jogar uma isca para pegar trouxas.

A chave para compreender a trollagem é que ela busca “introduzir ideias ‘polêmicas’ e ‘controversas’ no debate público de maneira irônica, humorística ou com certo distanciamento crítico, mantendo sempre a dúvida sobre o quanto ali é brincadeira ou para valer”, diz Nunes.

Para ilustrar os perigos da confusão entre “brincadeira” e “para valer” — aliás, uma ambiguidade típica das provocações, — Singer traz a invasão do Capitólio, nos EUA, por uma turba de arruaceiros seguidores de Trump:

Brincadeira ou tentativa golpista de verdade? Uma mistura fatal, pois, ocupado durante quatro horas, o Congresso dos Estados Unidos da América teve que ser defendido a tiros, custando cinco vidas.”

Antes de mais nada, note, leitor, como Singer faz duas trollagens nas linhas acima: numa, fica parecendo que as cinco vítimas foram decorrência de tiros disparados em defesa do Capitólio, quando a verdade é que uma única invasora foi vítima de tiro, sendo também ela a única que morreu no que ele diz, em outra trollagem, “defesa” do Capitólio (como se a instituição tivesse, mesmo, estado em risco). Quer dizer, não foi “de brincadeira”, nem “para valer”, pois embora os arruaceiros não estivessem brincando (e isso sempre esteve claro), tampouco a invasão foi “para valer” porque eles jamais tiveram qualquer chance contra a lei, e não há “confusão” alguma quanto a isso, tanto que pude antecipar aqui o cerne daqueles fatos.

Mutatis mutandis, aquele punhado da base paisana de Bolsonaro que queria invadir o STF no dia 7 também não estava brincado, mas tampouco houve qualquer chance de eles conseguirem fazê-lo. Aqueles pobres diabos não entenderam que o chefe, um provocador de garimpo, estava a blefar. Ademais, as provocações de Bolsonaro não estão a fortalecê-lo, mas a desgasta-lo. Ele não ganhou gente nova e teve aumentada a sua rejeição. A maioria já está farta deste imbecil também porque já entendeu que se trata de um imbecil!

Mas Singer insiste em nos prevenir contra a ameaça que Bolsonaro representaria para a democracia, e até recorre a um paralelo estapafúrdio com Mussolini, como se a marcha ascensional do bufão italiano rumo ao cargo de primeiro-ministro pudesse ser comparada à trajetória de tropeços e recuos do Malasartes brasileiro, já desgastado pela incompetência e desumanidade com que está a se conduzir na presidência da República.

Certo de que estamos à beira do abismo, tal como na Alemanha examinada por Trotsky, Singer apela para que façamos dos bolsonaristas uma “franja lunática e isolada” (como se já não o fossem!!), tarefa redundante para a qual repete ideia que Marcos Nobre apresentou tempos atrás, aparentemente também inspirada nas reflexões do pensador e revolucionário russo; só que Singer não quer defender unidade no segundo turno, como fez Nobre, ele quer unidade pelo impeachment de Bolsonaro e, coração generoso, se dispõe a buscar “pontos unificadores” entre “esquerda, centro e direita”… — pobre Trotsky, a quem só restaria dizer “vai indo que eu não vou”. Ademais, com a campanha eleitoral na rua, essa unidade não passa de fantasia.

Se Bolsonaro vier a sofrer impeachment, o que sequer está no horizonte, será porque a população foi levada a um sofrimento diante do qual qualquer “unidade” frentista conversada entre facções será irrelevante, afinal, embora não o “saiba” conscientemente, a maioria da sociedade percebe que está a viver as consequências do que nos governos tucanos e lulopetistas foi a adubação incessante (com o estrume da corrupção) de “pontos unificadores” entre “esquerda, centro e direita” — o que é uma outra forma de ver como Singer é mais um dos que estão agarrados às instituições do Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação.

BOLSONARO DEVE SER DERROTADO; NÃO DERRUBADO, MAS… — 1 DE 2

Carlos Novaes, 17 de setembro de 2021, 15:43h

Com acréscimo na seção Fica o Registro, em 18/09, às 12:30h e ++ acréscimos às 15:45h e às 17:39h

Embora rejeite Bolsonaro e reprove o governo dele, a maioria da sociedade brasileira não se mobiliza para derrubá-lo, como chegou a fazer contra Collor e, depois, com outra configuração, por outras vias e segundo outras motivações, com o golpe contra Dilma. É que a maioria de nós se encontra num impasse: de um lado, rejeitamos Bolsonaro, mas já não temos as ilusões que tínhamos no Legislativo (representação) e no Judiciário (judicação) para corrigir o que identificamos como nefasto no Executivo (gestão) — ou seja, já não confiamos nas instituições, desconfiança que caracteriza a crise de legitimação do Estado de Direito AutoritárioEDA. Afinal, quem já não se encheu do jogo faccioso dos Gilmares? Quem ainda leva a sério uma CPI manejada pelo jogo faccioso dos Renans? Dois exemplos recentíssimos: o assunto do foro de Flávio Bolsonaro saiu da pauta do STF; a CPI, depois de aprovar a convocação de ex-esposa de Bolsonaro, desistiu do interrogatório de alto potencial explosivo.

Ao entendermos que pedir às facções que derrubem Bolsonaro não é uma solução, somos levados ao outro lado do impasse: se impõe a intuição incômoda de que o desafio é muito maior: temos de construir métodos, ferramentas e programa para fazermos da derrota de Bolsonaro o início da ação política que nos permita transpor o Estado de Direito Autoritário, dando solução à crise de legitimação. Evidentemente, esse estado de coisas ainda não está claro para as consciências, mas esse é o plano profundo em que as escolhas são feitas e em que nadam os oportunistas.

Em suma: derrubar Bolsonaro fortaleceria as facções (que agiriam respaldadas na nossa pressão), e “legitimaria” este Estado (pois respaldaria instituições cujas práticas nos infelicitam); já derrotar Bolsonaro requer se empenhar e programar o início da luta efetiva por um Estado de Direito Democrático. Daí o falso paradoxo que desorienta a autointitulada esquerda e os progressistas, tão cegos em seu empenho para voltar ao velho normal: a maioria rejeita Bolsonaro, mas não vai às ruas implorar que eles o derrubem.

A inércia dessa maioria que rejeita Bolsonaro e, ao mesmo tempo, não confia nas facções que dão corpo à prática nefasta das instituições, resulta também da desorientação em que estas facções, intelectuais, jornalistas e intelectualistas (intelectual com cacoete de jornalista) a mantém quando insistem no alarido midiático de que Bolsonaro é uma ameaça às franquias democráticas, a um suposto Estado democrático de direito. Permitam-me explicar essa ideia paulatinamente, à luz dos fatos havidos desde o 7 de setembro.

A própria base de Bolsonaro o levou à capitulação

Se não houvesse ocorrido o desgarramento da sua base paisana (a “sociedade civil” dele), não teria havido capitulação e provavelmente Bolsonaro poderia fazer da Carta e do telefonema a Moraes mais um lance de mera pantomima entre fanfarronice verbal e rabo-entre-as-pernas. Ao passar das palavras à ação golpista, porém, a base paisana mostrou a Bolsonaro que ele já não controlava os desdobramentos dos próprios blefes nem em suas fileiras , com severas consequências na economia, que ele usara como pretexto para a aposta desumana no trato da pandemia. Afinal, a paralização de estradas pela ação golpista de seguidores que ele próprio incitara a participar de mais um blefe, se tornara, a paralização, um problema econômico que ele não poderia sequer tentar transferir para outros agentes, como vem insistindo em fazer com os danos econômicos provocados pela pandemia.

Embora a mente confusa de Bolsonaro não tenha deixado de usinar os três objetivos que esmiuçamos aqui (ser ditador; vencer a reeleição e/ou salvar da cadeia a si e aos seus), a capitulação e seus desdobramentos escancararam o pragmatismo a que ele foi arrastado em razão dos problemas com a justiça (inquéritos contra si e os seus e a CPI — ao contrário da maioria de nós, Bolsonaro, agente faccioso, teme os estragos relativos dessas movimentações adversárias). Quer dizer: a preferência da maioria da sociedade pela democracia e a ação institucional das facções adversárias obrigaram Bolsonaro a modelar seus sonhos numa banda mais estreita: ficou ainda mais marginal o objetivo delirante de se tornar um ditador, e ganhou força a fantasia de se tornar um candidato eleitoralmente viável (ou seja, em condições de vencer).

Tenhamos como marco da capitulação de Bolsonaro o dia 9 de setembro, que foi analisada detalhadamente aqui desde a sua preparação, passando pelo dia 7, até os desdobramentos mais sensíveis na própria base do besta. Vista nos termos em que a vimos, essa capitulação exigiria de analistas e políticos uma reorientação na forma de ajuizar os problemas e na ação política para enfrentá-los. Infelizmente, não é isso o que ocorre; pelo contrário, o que marcou o transcurso desta semana que nos separa da capitulação do besta foi a insistência no discurso (e na prática dele decorrente) de que Bolsonaro é uma ameaça à democracia, a um suposto Estado democrático de direito.

Danos de Bolsonaro não são à democracia

A maioria da sociedade rejeita Bolsonaro pelo conjunto da obra, nela incluída a sua sequência de blefes danosos. Mas ela, a maioria, não o leva a sério pelo que diz em ameaça às franquias democráticas — ela já o entendeu como um blefador e que na prática daninha dele na presidência há de tudo, menos ações efetivas para suprimir na marra franquias democráticas. Por exemplo:

– Bolsonaro tentou, pela via legal, tornar inconfiável a franquia democrática ancorada na urna eletrônica; não conseguiu, blefou e teve de engolir a decisão da Câmara contrária ao voto impresso;

– Bolsonaro ataca a franquia democrática da imprensa livre, maneja a distribuição, que lhe é “de direito”, das verbas de comunicação segundo suas preferências, mas não fez nenhuma ação concreta para fechar ou, muito menos, empastelar órgãos de imprensa;

– Bolsonaro faz uso torpe, até obsceno, do direito à livre expressão e manifestação nas redes sociais, mas não tomou medidas para suprimir as vozes contrárias (até pelo contrário, investe no caos da desregulação);

– Bolsonaro promoveu manifestações contra as instituições na linha do golpe de Estado, mas se limitou a blefes, não passou à prática e, como vimos, teve de implorar recuo à base paisana que partiu para a ação depois de incitada por ele.

A rejeição de Bolsonaro está ancorada, portanto, não numa suposta ameaça que esse fanfarrão represente à democracia, mas no uso real que ele vem fazendo das prerrogativas da presidência da República legadas pelo Estado de Direito Autoritário-EDA, construído nos últimos trinta anos. Vejamos alguns exemplos de danosas ações ilegítimas, mas “de direito”.

O problema é o EDA em crise de legitimação

– O EDA permitiu a Bolsonaro se eximir de combater a pior pandemia em décadas. Ele pôde não apenas assistir, sem nada fazer, a morte de centenas de milhares de brasileiros, como ainda sabotou esforços de outros. No entanto, a CPI encarregada de investigar os crimes relacionados a essas escolhas está a descobrir que o EDA não propicia instrumentos/instituições que amparem punições adequadas (isso se as facções o quisessem…);

– O EDA deu oportunidade a que Ricardo Salles desmontasse, dentro do “de direito”, IBAMA e Chico Mendes, passasse a boiada, com incontáveis crimes ambientais diretos, envolvendo madeireiras, mineradoras, atravessadores, grileiros, barcos pesqueiros, incendiários e toda sorte de bandidos da selva;

– O EDA protege em seu marco legal as ações nefandas de Sergio Camargo à frente da Fundação Palmares, não havendo leis ou instituições que possam barrar ações tão claramente agressivas ao bem comum, no que talvez seja a prova mais cabal do racismo estrutural entranhado na própria forma do “de direito” no Brasil;

– O EDA permitiu que a FUNAI, instituição “de direito” destinada a proteger e promover a melhoria da vida dos povos ameríndios, fosse transformada numa agência dos interesses de ruralistas, o grupo mais claramente voltado contra essas populações vulneráveis;

– O EDA deu ocasião, no âmbito do “de direito”, à mais importante operação judicial contra a corrupção, a Lava Jato, no curso da qual foi possível que as facções distribuíssem arbitrariedades a tal ponto que, hoje, é tão impossível defendê-la quanto parabenizar aqueles que se ocuparam de contê-la, pois o resultado final é a impunidade da maioria dos envolvidos graúdos, numa autêntica apoteose facciosa;

– O EDA possui uma Constituição tão precariamente regulamentada que, mais de trinta anos depois de sua promulgação, Bolsonaro ainda pode pretender retirar da população ameríndia o direito à demarcação das suas terras, aspecto “de direito” que há muito deveria estar estabelecido;

– O EDA é tão frouxo na proteção de direitos humanos e individuais básicos que ações policiais arbitrárias, com emboscadas, espancamentos, assassinatos, violações de domicílio e toda sorte de autoritarismos estão plenamente abrigadas no âmbito do “de direito”, a tal ponto rotinizadas como prática institucional que Bolsonaro tem espaço de sobra para se congratular com elas e buscar entre seus praticantes a sua base miliciana, complemento indispensável da sua base paisana, tudo em arremedo aos dispositivos paisano e militar da ditadura;

– O EDA é tão propício à proteção de privilégios, que mais de trinta anos depois do fim da ditadura paisano-militar, tudo continua ilegítimo no que é “de direito” para os hierarcas da burocracia: além de privilégios previdenciários, temos juízes com remunerações finais estratosféricas e militares acumulando salários em estatais que são um escárnio à pobreza vivida pelo nosso povo, ao qual se atiram migalhas como se fossem medidas contra a desigualdade.

Nenhuma dessas macabras ações ilegítimas tem a ver com as franquias democráticas. Nenhuma delas ameaça o (suposto) Estado democrático de direito, até porque jamais deixaram de ser compatíveis com essa versão dele!

Portanto, Bolsonaro não é uma ameaça pelo que diz contra a democracia; ele é maléfico pelo que faz contra a maioria da sociedade e contra os segmentos mais vulneráveis dela. Bolsonaro pôde fazer tudo isso sem alterar as franquias democráticas, sem ser barrado pelo “de direito” de um suposto Estado democrático de direito. Mas nossa autointitulada esquerda e nossos progressistas não podem enxergar isso porque estão agarrados feito mariscos a este Estado, que também é obra deles. No tempo em que os progressistas (PSDB) e a autointitulada esquerda (PT) detiveram o privilégio de comandar o exercício faccioso dos poderes institucionais, acomodaram-se ao jogo das facções e não se empenharam em nenhuma reforma estrutural “de direito” que impedisse esse uso ilegítimo das instituições, que já então acontecia, só que em menor intensidade (em algumas áreas) e com menos descaramento.

Aliás, foi precisamente a acomodação deles ao status quo faccioso que nos levou à crise de legitimação e, dela, ao sentimento antissistema na maioria da sociedade e, deste, à vitória de Bolsonaro em 2018, como já expliquei aqui e em muitos outros posts deste blog. Por outro lado, a insistência no “frentismo” pela democracia decorre também das dificuldades desse pessoal para enfrentar um programa alternativo detalhado, que exigiria, no limite, que cada um dissesse, afinal, qual é a democracia que almeja. Para esse pessoal, tudo se passa como se a democracia já não precisasse ser discutida, como se ela já tivesse sido “consolidada” e, ao mesmo tempo, falam de instituições “colapsadas”, de “crise institucional”, de “instituições que funcionam”, de “instituições que resistem”, instituições “conspurcadas“, com toda sorte de inconsistências evidentes. No final, quando Bolsonaro tiver ficado para trás, muitos irão bater no peito e dizer: “nossa sólida democracia venceu!”, quando a vitória terá sido da maioria da sociedade que prefere a democracia, e do Estado de Direito Autoritário, que usa essa energia para derrubar ou derrotar quem o ameaça.

Por tudo isso, não é de surpreender que no curso desta semana que nos separa do dia da capitulação de Bolsonaro, intelectuais, jornalistas e os cada vez mais numerosos intelectualistas tenham insistido em dizer que Bolsonaro logo irá voltar a mobilizar o golpismo contra o suposto Estado democrático de direito. Na mesma toada, políticos adversários do besta vêm insistido em convocar atos esvaziados em “defesa da democracia”. Não entenderam (ou fingem não entender) o que se passou: com seu blefe maior, Bolsonaro abriu no dia 7 a campanha eleitoral de 2022. Essa passagem para uma outra etapa do jogo quase deu errado porque a base paisana radicalizada tentou, mesmo, invadir o STF e barrou estradas, o que levou as facções adversárias a reagirem com dureza e, pior, impôs a iminência de um revés econômico que soterraria de vez as chances eleitorais do besta, justamente o que ele pretende recuperar nessa nova fase. Foi a resposta necessária a esse cenário adverso que levou Bolsonaro à capitulação.

É hora de fazer a amarração recuperando o que foi dito no início deste artigo.

Campanha para derrotar Bolsonaro, não para derrubá-lo

Como as facções querem tirar proveito do isolamento de Bolsonaro, e como a maioria da sociedade não se mobilizou, não há interesse real em derrubá-lo. Embora rejeite Bolsonaro, a maioria da sociedade não confia nas instituições comandadas pelas facções e, por isso, ela se recusa a empenhar a energia antissistema para que as facções derrubem Bolsonaro. Como detalhadamente explicado aqui, a população só irá às ruas para derrubar Bolsonaro diante de uma catástrofe cujos danos suplantem sua aversão ao sistema. A deterioração da economia, com pandemia, poderia levar a isso, mas ainda não aconteceu.

De modo que à manifestação eleitoral do dia 7 irão se seguir outras manifestações igualmente eleitorais. Assim como Bolsonaro mobilizou a parte mais ativa da sua base para ir às ruas, os adversários dele também terão de levar aos seus comícios os segmentos mais ativos das suas respectivas bases. Mas, assim como já não daria certo Bolsonaro voltar a convocar os seus com base em blefes antissistema (ele só voltará a isso se houver movimentação pelo impeachment; ou no caso de revés eleitoral inapelável, no ano que vem); também não dará certo se a oposição fizer a convocação para as suas manifestações com base no blefe da derrubada de Bolsonaro.

Mas foi o que fizerem, no dia 12, o MBL e o VPR, que convocaram ato pela derrubada de Bolsonaro… (não é de surpreender que tenha dado pouca gente…). Naturalmente, como o MBL e o VPR não dispõem de candidato próprio à presidência, apareceram por lá os candidatos que, na mão inversa, não dispõem de base eleitoral: Ciro, Doria e outros menos cotados. Todos fizeram o discurso inócuo pela derrubada de Bolsonaro, mas estavam em plena campanha eleitoral — (a seguirmos assim, haverá inúmeras oportunidades para que as facções judiciais do EDA façam uso faccioso dos “rígidos” dispositivos legais que permitem punir “campanha eleitoral antecipada” — só rindo).

Lula parece ser o único que entendeu o que se passa

Lula, o mais notório chefe de facção, não entrou nem no “frentismo”, nem no oba-oba pelo impeachment. Mais uma vez, ele tira consequências precisas do que recomenda a sua sagacidade. Primeiro, como ele está empenhado em costurar (nos bastidores) apoios eleitorais de outras facções (inclusive das que derrubaram Dilma, parte das quais está, por enquanto, sugando Bolsonaro), não faria sentido ele passar a defender a derrubada do besta — além do que, essa ação o mostraria para o público apostando nas facções. Segundo, como a permanência de Bolsonaro não o atrapalha eleitoralmente, pelo contrário (pois, como é óbvio, o melhor para Lula é enfrentar um candidato cuja rejeição impeça de fazer maioria no segundo turno), o melhor será derrotar o besta. Terceiro, como não escapa a ninguém minimamente informado que o impeachment de Bolsonaro é improvável, não haveria porque Lula se empenhar num movimento em que seria derrotado pelo adversário que pretende enfrentar na eleição. Mas isso ainda não é tudo, nem o mais importante.

Quarto, Lula não defende a derrubada de Bolsonaro porque já entendeu o sentido profundo da outra metade do dilema em que se encontra a maioria da sociedade que rejeita Bolsonaro e não confia nas facções: em sua vocação natural para a inércia, a maioria tende para uma saída cômoda, não para a trabalheira de uma alternativa ao EDA. Ora, o que pode haver de mais cômodo (no sentido prático e no sentido moral) do que uma volta de Lula, o injustiçado (e o foi!), como se a injustiça que ele deveras sofreu na luta de facções fizesse dele não o faccioso que se deu mal e, depois, deu a volta por cima, mas um presumido líder antissistema que, ainda por cima, sabe lidar com o sistema?

Como não poderia deixar de ser, ao se conduzir dessa maneira, Lula, que é infernal!, terá o cuidado de se apresentar como um defensor da democracia (sugerindo-a ameaçada pela reeleição de Bolsonaro, ao qual derrotar caberia a ele …), e não como uma alternativa, que Lula não pode ser, ao Estado de Direito Autoritário que ajudou a construir e, depois, a arruinar, com suas práticas facciosas… Entretanto, como já entendeu que a maioria não embarcou no “frentismo”, Lula critica o frentismo por sua indefinição programática, com o que faz outra laçada eleitoreira, dessa vez com as expectativas programáticas da maioria insatisfeita… E la nave vá…

Fica o Registro:

Em 18/9

[12:30h] – Resultado da pesquisa DataFolha mais recente, publicado depois das linhas acima, traz números que ajudam a entender que a maioria da sociedade tem bem clara a diferença entre os blefes de Bolsonaro e a ação efetiva, que poderia levá-lo a ser derrubado: Bolsonaro blefou no dia 7 que não mais cumpriria decisões judiciais de Alexandre de Moraes. Se, de fato, ele passasse do blefe à ação, 76% entendem que ele deveria sofrer impeachment.

57% dizem nunca confiar no que Bolsonaro diz (percentual que, por certo, inclui os que o sabem um blefador), sendo nada menos do que 85% (57+28) o percentual dos entrevistados a declarar alguma desconfiança sobre o que Bolsonaro diz (outra vez: aqui há muita gente que não confia porque o sabe um blefador).

[15:45h] – Novos resultados da pesquisa DataFolha mostram que 70% preferem a democracia a qualquer outra forma de governo. Mais interessante, porém, são os dados sobre o golpismo de Bolsonaro e as chances de o Brasil voltar a viver sob ditadura.

Mesmo sob o alarido da mídia e bombardeados pela pregação unânime de intelectuais e intelectualistas: 45% veem nenhuma chance de o golpista passar do blefe à ação; 30% dizem haver muita chance de Bolsonaro dar um golpe; e outros 20% dizem ver um pouco de chance. A matéria da Folha soma os 20% aos 30% e encontra 50% de alguma chance de golpe… Deixo ao leitor julgar o quanto essa soma é adequada, considerando que dar golpe não significa o sucesso do golpe.

Quando se trata das chances de o Brasil voltar a viver sob ditadura, os números são: 45% descartam a possibilidade de uma ditadura, 31% dizem haver um pouco de chance de uma ditadura, e 20% muita chance. Esses números permitem calibrar melhor as respostas sobre a chance de Bolsonaro dar um golpe: é que como as intensidades não batem, é de supor que mesmo os que acham que há alguma chance de Bolsonaro dar um golpe entendem que não tem como a ação ser bem sucedida.

Finalmente, é notável como, na opinião da maioria dos entrevistados, todos os três poderes ameaçam a democracia: Legislativo (69%); Executivo (71%) e Judiciário (63%). Esses números ilustram a aversão às práticas institucionais facciosas, bem como ajudam a quantificar a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário-EDA.

[17:39h] – Em artigo de Antonio Prata, na Folha de S. Paulo de hoje, lê-se que:

“Não à toa, semana passada, a esquerda decidiu não ir às tristes manifestações do MBL e do Vem Pra Rua. Eu fui. Numa ditadura bolsonarista, minha vida corre risco, sob um governo do Temer & MBL & Vem Pra Rua, não. Mas pro pessoal do movimento negro, pros pobres, indígenas e todas as minorias Brasil adentro, tanto sob Bolsonaro quanto sob qualquer um daqueles delinquentes que riem de forma obscena no jantar, o pau de arara & a bala “perdida” & a vala comum são a regra. Há 521 anos.”

Nessas poucas linhas vê-se alguns dos equívocos que venho procurando desfazer sobre o que se passa na política brasileira:

(i) Prata não entendeu que já estamos em campanha eleitoral, assim, estranha que a “esquerda” não tenha ido ao comício eleitoral da “direita”…;

(ii) Prata acredita, mesmo, que há o risco de uma ditadura bolsonarista, e teme pela própria vida no caso do fim das franquias democráticas, mas…

(iii) Prata não pode deixar de reconhecer que um Estado ditatorial, sem franquias democráticas, fará pouca diferença para a maioria vulnerável que já vive o cotidiano sob um Estado de direito com franquias democráticas… Para que todos possam levar a vida que Prata leva sob franquias democráticas, teríamos de passar do Estado de Direito Autoritário para o Estado de Direito Democrático. Mas Prata, como todos os progressistas e a autointitulada esquerda, se preocupa é com a preservação do primeiro, embora cheio de compaixão e consciência hipócritas ante o sofrimento de quem é vítima cotidiana do exercício faccioso dos poderes institucionais. Nessas pouca linhas, Prata resumiu o cômodo programa conservador do “frentismo”.

ENSINAMENTOS DO RACHA NA BASE BOLSONARISTA -2 DE 2

Carlos Novaes, 13 de setembro de 2021

Indicamos no artigo anterior como a segmentação dos apoiadores de Bolsonaro em agentes estatais (polícias, congressistas, militares) e agentes da sociedade civil permite observar na minoritária base bolsonarista o dilema do Brasil: de um lado, as minorias beneficiárias do Estado de Direito Autoritário; de outro, a insatisfação da maioria da sociedade com esse Estado. Esmiuçemos isso.

No caso dos bolsonaristas, as facções estatais pretendem, mesmo, é melhorar a situação privilegiada em que já vivem neste Estado, e, por isso, não irão se arriscar em aventuras golpistas; já a “sociedade civil” bolsonarista, que sofre como todos os demais as mazelas deste Estado, está movida pelo sentimento antissistema, e quer, mesmo, deixar este Estado para trás. O mesmo dilema brasileiro aparece na maioria que se opõe a Bolsonaro: há, de um lado, as facções estatais de oposição, empenhadas em preservar o Estado de Direito Autoritário, no âmbito do qual elas disputam entre si o privilégio para o exercício faccioso dos poderes institucionais; e, de outro lado, há a maioria insatisfeita da sociedade brasileira, cuja preferência pela democracia foi fraudada pelo Estado de Direito Autoritário.

Dizendo o mesmo de um outro modo: essa insatisfação generalizada contra o Estado de Direito Autoritário levou-o a uma crise de legitimação. A falta de lucidez da maioria da sociedade insatisfeita levou-a a se dividir na hora de buscar uma alternativa para essa crise, que ela vive sem ajuizar: uma parte, minoritária, quer a solução tosca e inviável de voltar ao Estado ditatorial; enquanto a parte majoritária prefere a democracia, mas não tem clareza de como avançar para um Estado de Direito Democrático. Contra ambas atuam todas as facções estatais, que querem, cada uma a seu modo, preservar o Estado de Direito Autoritário.

Como essa luta pela preservação se dá em meio a uma crise de legitimação, essas facções também se dividem: a minoria bolsonarista facciosa, que se nutre do sentimento antissistema para buscar melhorar posições dentro deste Estado (nas polícias e no Congresso, por exemplo), não pode deixar de tencionar incessantemente o sistema; já as facções não-bolsonaristas não só estão impedidas de reconhecer a crise de legitimação (afinal, este Estado é obra delas), como precisam fazer a maioria da sociedade acreditar que a preservação dele é do interesse dela — daí precisarem acreditar (ou fingir acreditar) que a ameaça golpista de Bolsonaro é real, o que leva ao engano/embuste da “defesa da democracia”, da preservação de um suposto Estado democrático de direito. Desse embuste/engano saiu o equívoco do “frentismo” e a confusão sobre as nossas instituições, que ora estão em pleno funcionamento, ora estão colapsadas e ora estão como que adormecidas. Quem bobear enlouquece lendo esse pessoal.

É nessa ordem de razões que Lula, em todo o seu contraste com Bolsonaro, é parte importante do problema, não da solução. Toda a movimentação do Lula tem se dado nos bastidores: ele acumula forças na arregimentação das facções estatais para só depois enfrentar a sociedade insatisfeita e sedenta por uma alternativa ao Estado de Direito Autoritário do qual Lula é, hoje, o mais notório defensor!

Lula realiza esse tour paparicado pelas facções (inclusive com vênias suas àquelas do golpe contra Dilma) porque elas o sabem detentor de 40% de preferência eleitoral, com potencial de 55% no segundo turno, situação que mostra fundamentalmente duas coisas: (i) que a maioria da sociedade continua desorientada em meio à barafunda das suas próprias insatisfações, e (ii) que os espertalhões da política profissional continuam a usar a franquia eleitoral-democrática, o voto das pessoas, para medirem-se entre si e definir quem vai comandar o exercício faccioso dos poderes institucionais a cada vez (um exemplo entre muitos: a distribuição facciosa do poder para auferir privilégios do exercício do mando na Petrobrás deu no que deu!). O máximo que Lula propõe é voltarmos a 2010, o que não seria desejável nem se fosse possível (por mais “saudável” que fosse a “nossa democracia” naquela época…).

Tudo isso quer dizer que nossos problemas estão fundamentalmente no Estado, não na sociedade. O problema está nas nossas instituições, não no nosso povo que, por mais desorientado que esteja, vem há décadas perseverando na luta pela democracia. Sendo de observar que essa desorientação se deve largamente ao tamanho da traição sofrida daqueles em quem depositou a sua confiança (leva tempo para achar um rumo novo). A perseverança pela democracia vem sendo solapada pela política profissional facciosa, que sequestrou a Política, tornou-a sua refém e se empenha para desautorizar a ação política independente, que rejeita a restauração e quer ir adiante.

ENSINAMENTOS DO RACHA NA BASE BOLSONARISTA -1 DE 2

Carlos Novaes, 12 de setembro de 2021

A minoria que forma a expressiva base propriamente popular de Bolsonaro, os tais 20%, é constituída por segmentos da sociedade civil (base paisana dele) e por segmentos oriundos diretamente do aparelho estatal (notadamente, agentes e ex-agentes das instituições policias, mas não só). Já se tornou trivial observar que a solda entre esses segmentos resulta do conservadorismo reacionário que professam, no qual tem lugar central a religiosidade evangélica. Ainda que sem contestar essa visão geral, parece útil explorar poros nesse organismo de aparência tão inteiriça, e o 7 de setembro nos fornece material útil.

Venho tentando mostrar que o delírio de Bolsonaro por tornar-se ditador, que orienta sua motivação golpista, não tem lastro e acaba sempre por assumir a forma de blefe. Faz tempo que Bolsonaro se acostumou a passar da fanfarronice verbal para o rabo-entre-as-pernas, e, nesse aspecto, não houve novidade: depois da fanfarronice dos discursos do dia 7, tivemos o rabo-entre-as-pernas na carta e no telefonema a Moraes no dia 9. A novidade foi outra, no dia 8.

Depois de antecipar que Bolsonaro faria da manifestação do dia 7 mais um blefe, mostrei como ele próprio antecipou para os seus seguidores que se tratava de um blefe. Entretanto, nem tudo correu como esperado por Bolsonaro (e por mim): embora, como esperado, a PMilícia não tenha posto a cara, parte da base não entendeu (ou não quis aceitar) que se tratava de um blefe, saiu do roteiro e partiu para o bloqueio de estradas. Eis a novidade: essa movimentação obrigou Bolsonaro a um gesto inédito: ao vexame de solicitar diretamente aos seus, já no dia 8, que recuassem na direção do velho normal.

Veja bem leitor: se parte da base não tivesse partido para a ação golpista, se Bolsonaro não tivesse sido obrigado a dar esse vexame, a carta e o telefonema do dia 9 seriam parte da paisagem, pois tanto a base como o chefe teriam se comportado como sempre. A novidade foi a revolta da base. O fato de Bolsonaro ter tentado consertar o estrago com a narrativa de que se trata de uma tática, que obedeceria ao mesmo objetivo estratégico ditatorial, não atenua o revés, mesmo que toda a sua base tivesse se agarrado religiosamente a essa narrativa confortadora (coisa que, sabemos, não ocorreu: houve defecções e nenhum ganho).

Mas isso não é tudo, nem o mais instrutivo a ser extraído dessa novidade do desgarramento de parte da base bolsonarista radicalizada. Observe-se que quem saiu do roteiro não foram os segmentos oriundos do Estado de Direito Autoritário, os quais já fazem parte do jogo das facções e a ele obedecem (esse pessoal da área policial ficou quietinho, e recebeu elogios…); quem não seguiu o roteiro foram segmentos bolsonaristas da sociedade civil, que estão motivados pelo sentimento antissistema. Esse contraste ajuda a ver que o jogo de Bolsonaro é um jogo faccioso (dentro do sistema), não um jogo antissistema. O besta está perfeitamente afinado com seu braço policial/estatal, mas encontra problemas de sintonia com os segmentos civis que o apoiam.

Note bem, leitor: não estou tentando descrever o que se passa dentro da cabeça de Bolsonaro, não estou discutindo as intenções dele, o que ele conscientemente conspira; pelo contrário: estou tentando agarrar a dinâmica da ação dele pelo que ela é, na prática, como resultado da trajetória dele como ator desde sempre integrado ao sistema, isto é, ao Estado de Direito Autoritário, cuja solidez interesseira (oriunda de uma bem manejada e instrutiva luta contra a ditadura) se contrapõe aos delírios ditatoriais do mesmo Bolsonaro, que transitou dos porões da ditadura para o charco congressual, onde ele sempre combinou fanfarronice verbal e rabo-entre-as-pernas. As peças estão em seus lugares, o jogo é o mesmo, só que realizado sob as condições adversas de uma crise de legitimação.

Olhada dessa perspectiva, a fissura na base de Bolsonaro permite ver ainda que enquanto o chefe e as facções estatais que o apoiam estão sendo levados, pelo embate com as facções adversárias, a ver na crise de legitimação (que não entendem, mas vivem como confusão auspiciosa) uma oportunidade para melhorar sua condição dentro do Estado de Direito Autoritário; o segmento bolsonarista da sociedade civil tem a inclinação contrária, e quer tirar todas as consequências da crise de legitimação (que não entende, e só enxerga com base na ideia de derrubar o “sistema”), tentando resolvê-la com um Estado ditatorial, o que esbarra na preferência pela democracia da maioria da sociedade brasileira.

De modo que não há motivo para surpresa quando o desfecho da complexa sequência de eventos dos últimos dias ganha a aparência de um “acordão”.

Não é exatamente que houve um acordão, pois “acordão” sugere um certo modelo de conspiração totalizante, na qual todos os agentes teriam tido voz acerca do que fazer no caso. Não é assim que funciona, até porque a composição das facções não é fixa, pois elas se fazem e refazem no curso do jogo, o que, entre outras coisas, dá margem de manobra para os membros mais poderosos — muitos dos quais sequer participaram dessa rodada, embora estejam plenamente afinados com ela, como Lula (que fala com Temer por música…). Como quer que seja, há grande afinação em torno do objetivo principal das facções: preservar o Estado de Direito Autoritário. Bolsonaro, cujos objetivos, como vimos no artigo anterior, o fazem oscilar alucinadamente, vem tendo diminuído o seu raio de manobra e sendo levado a obedecer a lógica geral do “sistema”, para desagrado da “sociedade civil” dele.

Fica o Registro:

Na Folha de S. Paulo de hoje há um artigo representativo dos caminhos tortuosos a que os últimos acontecimentos levaram os defensores do nosso suposto Estado democrático direito:

“Nos dias 8 e 9, a discussão sobre impeachment avançou aceleradamente, […]. Eram elas, as instituições funcionando, […]

Mas, olhem só que lástima…, um

“acordão impediu que instituições funcionassem“.

Como assim? Quer dizer: quando os agentes institucionais de um suposto Estado democrático de direito atuam de acordo com o que sonha o observador, as instituições estão funcionando; quando eles atuam em outra direção, já não são as instituições… ??! A que contorcionismos constrangedores são levados os que não reconhecem a dinâmica facciosa e a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário!

O arremate dessa “análise” das instituições (que ora estão “em colapso”, ora estão “funcionando” e ora estão “imobilizadas”) só poderia ser um choramingo em tom nostálgico:

se o acordão contra o impeachment prosperar, não teremos de volta nossa democracia saudável de alguns anos atrás“.

Como já não dá para dizer “consolidada”, virou “saudável”… Ainda assim, gostaria muito que alguém me dissesse o que de tão saudável foi tirado da nossa democracia e que estaria a nos fazer tanta falta.

BOLSONARO COMO BODE EXPIATÓRIO

Carlos Novaes, 10 de setembro de 2021, às 18:59h

Depois do Day after e de suas primeiras consequências, na vertigem do dia 09, chegamos ao dia 10 de setembro. Bolsonaro continua a ser a questão por uma razão simples: este imbecil é o presidente da República. Quer dizer, não é que Bolsonaro seja tão genial que nos mantenha fixados nele, seguindo a pauta ditada por ele. Não. Tudo decorre de um erro monumental cometido pela maioria da sociedade brasileira, que o elegeu. Gênio ou imbecil, ele não poderia senão ocupar o centro das atenções.

Como é o presidente da República, e como o protagonismo derivado do exercício do cargo o coloca no centro das atenções, somos levados a vê-lo como forte. Como ele atua sobretudo provocando danos e sofrimentos, não podemos deixar de vê-lo pelo que é, um mal. Mas disso não decorre que ele esteja a se fortalecer como um genial agente do mal. Por mais poder que ele detenha por força do cargo, ele não está mais forte agora do que estava no dia 7 de setembro. Pelo contrário, ele está mais fraco. Esse é o ponto. Como antecipado aqui: Bolsonaro saiu do fiasco do 7 de setembro ainda mais longe dos seus objetivos.

Na verdade, se o objetivo dele for tornar-se um ditador, ele nunca teve chance. Se o objetivo dele for a reeleição, ele se fez derrotar no curso do último ano e meio de incompetência, desumanidade e blefes. Se o objetivo dele for livrar da cadeia a si e aos seus, ele ainda tem chances, que derivam da capacidade de ele explorar a suposta ameaça que representa à democracia — e explorar nas duas vias: (i) junto àqueles que o apoiam, que julgam estar num projeto ditatorial, mas estão servindo de massa de manobra na luta do besta contra (ii) as facções adversárias que fazem dele o principal problema a enfrentar e têm o poder de colocá-lo na cadeia. Em suma: ele usa o gado para negociar com as facções adversárias um modo de escapulir.

Não é o caso de tentar entrar na cabeça de Bolsonaro (que fedor!) para saber a qual desses três objetivos ele está, a cada vez, conscientemente perseguindo. Qualquer pessoa sensata pode considerar que o besta navega em delírio (e ao sabor dos fatos) entre esses três portos, tentando não afundar num impeachment e buscando garantir proteção mínima no final. Quando muito delirante, ele acha que tornar-se ditador está visível da proa do veleiro. Quando em seu estado normal, obtuso, ele não enxerga os danos e sofrimentos que provocou, e fantasia embarcar na chalana de uma candidatura eleitoral viável. Quando obrigado ao pragmatismo pelo jogo das facções, ele maneja o bote salva-vidas para escapulir das consequências das malas-artes da família. Vem dessa navegação alucinada a impressão de que é louco ou gênio. Nem uma coisa, nem outra. Bolsonaro é limítrofe e, por isso, é inútil, por exemplo, tentar saber se ele pensa o próprio recuo como uma tática: seja como for, o recuo se impôs e o tornou ainda mais fraco.

A crença de que Bolsonaro é um gênio do mal depende de uma outra: da crença de que ele representa uma grande ameaça à democracia, ou a um suposto Estado democrático de direito. Esmiuçemos isso.

O primeiro passo é compreender que nessa crença, as duas suposições giram em falso: nem Bolsonaro é uma ameaça real às franquias democráticas, nem há um Estado democrático de direito a que ele pudesse ameaçar.

Bolsonaro não é uma ameaça real às franquias democráticas não porque não tenha uma ditadura como objetivo, mas porque esse objetivo é completamente inviável. Desde as lutas contra a ditadura paisano-militar de 1964, a maioria da sociedade brasileira persevera na preferência pela democracia, preferência que, no curso de trinta anos, se fortaleceu enquanto (a um só tempo) decorrência e alimento da sua diversidade e complexidade. Embora a democracia não tenha transitado completamente para o aparato estatal, transição truncada que assumiu a forma desse Estado de Direito Autoritário, a maioria da sociedade sabe bem a diferença entre uma democracia almejada, a deformação sob a qual vive, e o que seria uma outra ditadura.

Quando a polícia invade o Jacarezinho, a população sabe que os moradores não estão sendo vítimas da democracia, embora também saiba que a polícia age amparada num Estado de direito. Quando as facções políticas fazem o exercício faccioso dos poderes institucionais, roubando, criando privilégios, protegendo os muito ricos, perseguindo ou discriminando, a população sabe que eles agem se valendo do Estado de direito cujo autoritarismo manejam em proveito próprio, e mais: sabe que eles invocam a democracia que dizem defender justamente para encobrir o uso malsão que fazem do direito. Quer dizer, nessas práticas nefastas há direito, e há autoritarismo; situação típica da deformação sob a qual vivemos no Brasil: o Estado de Direito Autoritário. É por isso que não faz sentido falar em “nossas instituições democráticas”. As nossas instituições são “de direito”, não “democráticas”. Elas funcionam arbitrariamente, distribuindo ou sonegando direitos conforme se é pobre ou rico, forte ou fraco, autoridade ou homem comum.

Bolsonaro venceu a eleição porque parecia antissistema, ou seja, contra esse estado de coisas. Mas ao pretender derrotar o Estado de Direito Autoritário (o “sistema”) propondo uma ditadura, Bolsonaro ficou derrotado de saída: esbarrou na preferência pela democracia da maioria da sociedade e, ao mesmo tempo, deu de cara com a força do Estado de direito construído e manejado pelas facções estatais. O Estado de Direito Autoritário é forte para conter Bolsonaro e fraco para satisfazer a preferência da maioria da sociedade precisamente porque é “de Direito” (tem os instrumentos para conter Bolsonaro e prevê as franquias democráticas para seu próprio funcionamento malsão) e “Autoritário” (suas práticas agridem a maioria da sociedade e também podem ser usadas contra Bolsonaro).

Bolsonaro nunca teve chance precisamente porque delirou transpor o Estado atual com mais autoritarismo, quando a maioria da sociedade quer se livrar do autoritarismo, completando a transição da democracia. Como dito mais de uma vez neste blog, o Estado de Direito Autoritário está em crise de legitimação não por ser de Direito, mas por ser Autoritário; logo, não há um Estado democrático de direito a defender. O que precisamos defender e ampliar sãos as franquias democráticas que nos permitem seguir na luta por um Estado de Direito Democrático. Nossos inimigos principais são as facções dos políticos profissionais e hierarcas do Estado, não este imbecil do Bolsonaro, por mais danoso que ele seja (e é!!).

O que tem dado tração a essa contraposição fajuta entre Bolsonaro e um suposto Estado democrático de direito é o fato de que esse parafuso sem rosca vem sendo “apertado” pelas duas extremidades ao mesmo tempo, uma girando na direção contrária à da outra. Nenhum dos dois lados quer quebrar o parafuso, mas ambos se valem do aumento da tração para alcançar seus objetivos sem que o país saia do lugar. Discutimos mais acima os objetivos de Bolsonaro. O objetivo das facções, aquele que une a todas elas, já foi explorado em vários posts deste blog: restaurar o velho normal, fazendo da derrota de Bolsonaro uma alavanca para relançar o Estado de Direito Autoritário, empurrando com a barriga a crise de legitimação como se ela fosse uma crise entre poderes, uma crise institucional — ou seja, as facções têm Bolsonaro como o bode a ser retirado da sala, mas para isso o fantasiam de fera ferida.

Ora, “fera ferida” é exatamente o que Bolsonaro não é. A fera ferida é perigosa precisamente porque além de preservar todas as suas forças e capacidades, ainda tem o incremento da adrenalina fornecida pelo ferimento que não a debilitou, mas irritou. Acreditar que Bolsonaro ficou mais perigoso decorre da crença contrafactual de que ele vem se fortalecendo como ameaça real ao Estado de Direito Autoritário…

“GOLPISMO” EM VERTIGEM

Carlos Novaes, 09 de setembro de 2021 — 21:25h

Bolsonaro enviou ao povo brasileiro uma mensagem que não faz jus sequer ao baixo nível dos blefes que marcaram a conduta dele na presidência. Nenhum presidente jamais se dirigiu ao país de maneira tão vergonhosa, tão pusilânime. Bolsonaro tem uma vida pública tão indigna que sairá da presidência sem ter reunido condições de ser lembrado pela história.

Não poderia haver contraste maior entre o teor do documento e a hora vivida pelo país. Não é de surpreender que a carta indigente tenha saído de um esboço feito por Temer, um mestre da embromação facciosa que ocupa lugar central na trajetória do p-MDB, dispositivo paisano da ditadura paisano-militar que deu lugar ao Estado de Direito Autoritário que nos infelicita.

Esse desmoronamento de Bolsonaro solapa os projetos de longo prazo do neofascismo no Brasil, mas pode servir de estrume para que as facções contornem a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, a começar pelo oba-oba em torno da “vitória da democracia”, como se ao nos livrarmos de Bolsonaro não devêssemos, ao mesmo tempo, nos dar conta de que quem sai fortalecido é o jogo das facções estatais a serviço dos interesses dos muito ricos. Lula vai surfar nisso para, mais uma vez, consolidar uma aliança com as facções mais conservadoras, cujas práticas, que não lhe são estranhas, normaliza a cada rodada de conversas — tudo pelo bem do povo, claro.

Hoje mais cedo ainda havia “análises” conclamando urgência na defesa da nossa democracia, que estaria ameaçada pela besta. Nunca esteve. Bolsonaro esmaga os pobres, os vulneráveis, radicalizando o que o velho normal sempre fez ao manejar um suposto Estado democrático de direito. Houve até quem nos informasse a “novidade” de que Bolsonaro só não deu o golpe porque não contou com apoio das FFAA – não diga!!! Essa é a chave da cegueira: jamais entenderam a distância entre delírio e possibilidade real. Jamais entenderam que as FFAA não operam no vazio, que elas estão imersas em uma sociedade cuja maioria rechaça mais uma ditadura, por menos lúcida que essa maioria possa estar em relação ao que é necessário para alcançar um Estado de Direito Democrático.

Na verdade, boa parte dessa cegueira intelectual deriva da fragilidade que eles próprios sentem no Estado de Direito Autoritário a que estão aderidos; afinal, a crise de legitimação é real e pode ser sentida na aversão que a maioria da sociedade brasileira devota à política dos profissionais, ao “sistema”. Eles denominam “defesa da democracia” a mistura conservadora de medo, incerteza e cobiça a que estão entregues.

A contra face da cegueira dos “analistas” é a surpresa dos bolsonaristas, não menos cegos sobre o que se passava. Mesmo depois de Bolsonaro ter assumido de véspera que faria mais um blefe, eles precisaram ser esbofeteados pela rendição total do “líder” para acordar. A desorientação é geral, e não vejo como o Brasil possa fazer de tudo isso um aprendizado profícuo.

Fica o Registro:

Evidentemente, é estapafúrdia qualquer comparação entre as declarações de recuo de Bolsonaro e aquelas em que o Talibã promete moderação, mesmo como mera metáfora. Bolsonaro está batido em seus próprios termos, não tem meios para reagir em direção diferente e já está aplainando terreno para uma saída negociada para depois que deixar a presidência (pensa em si e nos filhos – a conversa com Moraes já é parte disso). O Talibã venceu em seus próprios termos, e dispõe de todos os meios. Esse tipo de associação é próprio de quem insiste em considerar Bolsonaro uma ameaça ao velho normal — afinal, entender o contrário vai exigir rever muita coisa… Quem tem de se constituir em vetor contra o velho normal é a maioria da sociedade brasileira.

BOLSONARO IMITA TRUMP ATÉ NA COVARDIA

Carlos Novaes, 09 de setembro de 2021

O 7 de setembro vai se revelando a invasão tupiniquim do Capitólio.

O golpismo do besta se desfez por si mesmo no momento em que ele passou da fanfarronice verbal para o rabo-entre-as-pernas em relação aos seus próprios seguidores, pantomima que se deu quando ele pediu o recuo do bloqueio às estradas feito por transportadores, essa versão claramente empresarial do golpismo. Em seguida, levou o rabo-entre-as-pernas para o cenário internacional, e passou a bajular a China na abertura da cúpula dos BRICs, ocorrida esta manhã (sim, leitor, depois do dia 08, veio o dia 09…).

Agora, esse jegue coxo, que já havia parado de escoicear, sequer poderá voltar a mostrar os dentes sem ser acompanhado por uma aura de ridículo. Não se pode dizer que as manifestações do dia 7 de setembro foram o canto de cisne de Bolsonaro porque os cisnes não cantam quando morrem.

Daqui prá frente, vamos assistir ao festival de “valentia” e “sensatez” dos facciosos de todos os matizes “oposicionistas”, com o correspondente crescimento das manifestações de rua contrárias ao imbecil, pois, como diz o velho ditado, “cão danado, todos a ele!”. E nessa marcha, a maioria da sociedade brasileira caminha para ser feita de trouxa pelos políticos profissionais outra vez.

De par com esse embuste, a mídia convencional vai ficar coalhada de artigos “analisando” a “nova” situação, onde a nota predominante será o olhar de paisagem para as besteiras ditas ao longo de todos esses meses, no curso dos quais 11 de cada 10 representantes dessa miséria analítica abordava o apocalipse à sua própria maneira, ora querendo uma frente contra este imbecil, ora festejando as “nossas instituições” (isto é, o Estado de Direito Autoritário), ora atribuindo ao besta os cálculos mais sofisticados, ora inventando correlações históricas risíveis em sua vacuidade e ausência de poder explicativo, ora enaltecendo, quando não bajulando, figuras facciosas execráveis até quando fazem a coisa certa.

OUTRA COISA:

Aos interessados no realismo literário na Rússia do século XIX, informo que em julho próximo passado concluí a versão final do meu livro sobre as relações que julgo ter descoberto entre obras dos escritores russos Ivan Turguêniev e Aleksandr Púchkin. A mera leitura dos índices do meu trabalho mostra que o estudo do material literário me levou a interpretar de maneira nova passagens decisivas de Eugênio Oneguin e de Notas de um caçador.

Eis o link para a versão integral do livro, em formato .pdf:

LITERATURA CONTRA IMOBILISMO NA RÚSSIA DO SÉCULO XIX

Realismo literário como crítica em obras-primas de Aleksandr Púchkin e Ivan Turguêniev

O FEITIÇO ENGOLIU O FEITICEIRO

“HIC RHODUS, HIC SALTA!”*

Carlos Novaes, 08 de setembro de 2021 – 23:59h

Diferentemente da PMilícia, que, tal como previsto, não deu a cara na efeméride do blefe golpista, transportadores bolsonaristas estão a se mostrar mais aguerridos e não entenderam o recado do chefe nos dois discursos de ontem. Parte deles levou a sério os blefes do besta e tenta parar as estradas do país nesta quarta-feira.

Em razão da desorientação em que se encontra, e diante da situação adversa que venho tentando analisar neste blog, uma vez desafiado pela estupidez dessa base fiel e radicalizada, Bolsonaro não pode fazer outra coisa senão explicitar que SIM, esteve todo o tempo blefando. A desmoralização não poderia ser maior: o dia 8 chegou com tudo, e pôs Bolsonaro de cócoras! Eis a transcrição do áudio gravado por ele aos caminhoneiros:

Fala para os caminhoneiros aí que [eles] são nossos aliados, mas esses bloqueios aí atrapalham a nossa economia. Isso provoca desabastecimento, inflação, prejudica todo mundo, em especial os mais pobres. Então, dá um toque nos caras aí, se for possível, para liberar, tá ok? Para a gente seguir a normalidade.

Deixa com a gente em Brasília aqui agora. Não é fácil negociar, conversar por aqui com outras autoridades, não é fácil. Mas a gente vai fazer a nossa parte aqui, vamos fazer a nossa parte aqui, tá ok?

Sempre foi blefe. Sempre foi campanha eleitoreira. De tal forma que ele agora tem de mendigar recuo dos que engambelou com seu estelionato ideológico, enquanto os abandona no meio da estrada. E o recuo é para deixá-lo atuar como chefe de facção no jogo das facções em Brasília, rendição que quem lê este blog constatou há muito tempo. Bolsonaro não procura pretextos para um golpe, ainda que delire por ele — ele está numa ratoeira armada por ele mesmo. Não tem como dar certo, pelo menos desde a resposta burra que deu à Covid-19.

Veja bem, leitor: o que sobra, agora, dos milhares de textos e análises publicados na mídia convencional sobre fantasiosos planos desse suposto gênio do mal para criar o caos e ter um pretexto para o golpe??!! Esse pessoal nunca entendeu o que se passa no país. Para entender, é necessário reconhecer a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário e, então, perseguir a desorientação geral que ela gera, pois essa crise permanece oculta às consciências, embora exerça toda a sua força sobre corações e mentes.

* – de Esopo, em O Fanfarrão; via Marx, em O 18 Brumário.

FIASCO!

Carlos Novaes, 7 de setembro de 2021, às 12:10h

Com ++++ acréscimos às 13:28h, às 17:40h, às 18:00h e às 19:29h

Sem ser espetacular, o público que foi à manifestação governista em Brasília garantiria êxito a qualquer comício político, não tivessem seus organizadores garganteado que o comparecimento seria algo inédito — tivemos menos do mesmo. Dessa perspectiva, foi um fiasco, o que deve ter contribuído para o tom desanimado em que Bolsonaro fez seu discurso previsível, repetindo o que já vinha dizendo. Como não poderia deixar de ser, mais uma vez ele adiou qualquer desfecho mais assertivo, cumprindo o roteiro do seu reiterado estelionato ideológico.

Quem acompanha este blog não ficou surpreso, mas esse truque de circo, pelo qual se gera a expectativa máxima e se entrega a emoção mínima, já torrou a paciência de quem entende minimamente o que se passa: esse sujeito está perdido e não tem para onde ir. O problema é que ele é o presidente da República.

Vamos aguardar pelo que ocorrerá em SP, embora não haja motivo para imaginar que se dará ali coisa diferente do que se passou na capital.

[13:28h] — Bolsonaro pediu aos manifestantes do DF que o assistam no evento de SP, às 16 horas. Observe leitor como esse convite/adiamento é revelador de como o besta se deu conta do fiasco que protagonizava: o convite embute mais uma promessa fraudulenta, como se em SP ele vá realizar a pirueta prometida, mas nunca mostrada. Em mais esse adiamento, o besta passou recibo de que percebeu o quanto deixara a desejar ao público presente. Bolsonaro encontrou no palanque o vazio do que ele mesmo representa. O espantalho vai voar para SP, onde repetirá o seu discurso, talvez com alguma retórica golpista mais “enfática”, dando material para as facções adversárias apresentarem as suas não menos manjadas coreografias. Vamos ver.

[17:40h] — A manifestação de SP esteve longe de cumprir as expectativas, ainda que tenha sido maior do que a do DF. Mais uma vez, a despeito de toda a dinheirama gasta no recrutamento, o besta sentiu a catinga do insucesso. O que mudou entre o discurso de Bolsonaro no DF e o de SP foi que ele, ao invés de falar em “uma pessoa”, deu nome ao boi e se declarou em desobediência em relação às determinações judiciais que Alexandre de Moraes, ministro do STF, venha a exarar.

É que Bolsonaro entendeu que armou uma ratoeira para si mesmo, fato antigo, que veio se impondo aos poucos, cuja evidência capital foi o fiasco dessa manhã no DF. Ali ficou claro para boa parte da massa de manobra que ela está fazendo papel de otário coletivo. Bolsonaro sentiu o peso do anticlímax (desmoralização que tínhamos antecipado) e, como remendo, fez uma promessa para o discurso da tarde, o que o levou a esse passo covarde, tentando reduzir a crise à figura de Moraes. É mais um blefe, tão consistente quanto o prometido bloqueio das estradas brasileiras por caminhoneiros aliados…

Teremos de esperar para ver o que ele fará quando as decisões de Moraes o atingirem pessoalmente. Quanto às decisões que atingem outras pessoas, como as prisões recentemente decretadas pelo ministro, Bolsonaro teria de invadir pessoalmente as cadeias ou, no caso de futuras prisões (há mandados por cumprir), tentar impedir pessoalmente a ação policial respectiva… mais cedo ou mais tarde, o besta vai acabar preso.

[18:00h] — Evidentemente, não passa de rematada bobagem atribuir ao STF (e, muito menos, a Moraes) o fato de ainda não estarmos sob ditadura. Se só tivéssemos o STF é que já estaríamos sob ditadura. O que impede Bolsonaro de avançar em seu delírio ditatorial é a preferência pela democracia da maioria da sociedade brasileira, preferência que se traduz — de maneira torta, é verdade — nesse Estado de Direito Autoritário manejado por facções beneficiárias (aí incluída a alta oficialidade das FFAA), às quais tampouco interessa uma ditadura, especialmente de alguém tão imbecil e impopular como Bolsonaro. O besta está cercado, com pouco apoio. No primeiro passo real que der na direção de uma ditadura, será preso. Poderá haver arruaças, mas elas serão contidas e se dissiparão. A maioria da sociedade brasileira está a pagar um preço altíssimo pela sua falta de lucidez, advinda fundamentalmente da junção de ignorância com crendices.

[19:29h] – A essência deste dia 7 é: mais uma vez em sua vida de celerado, depois de lançar-se à sorte no garimpo, Bolsonaro se vê ainda mais longe dos seus objetivos: fez um papelão e ainda frustrou boa parte daqueles que saíram de casa para apoiá-lo naquele que seria o dia decisivo… A essa altura, o besta deve estar se dando conta de que no período em que integrou o baixo clero congressual era feliz e não sabia: podia dizer as bobagens que quisesse, a ninguém ocorria de lhe cobrar resultados, mansidão na qual ele enriquecia a si e à família na roubança miúda das rachadinhas… E o vento levou…

ESTELIONATO IDEOLÓGICO COMO “MÉTODO”

Carlos Novaes, 02 de setembro de 2021

Tempos atrás, por ocasião do caso Silveira, apontei aqui que

“Bolsonaro está, desesperadamente, girando o hagadezinho para encontrar um meio “cortês” de fazer campanha eleitoral fingindo ser antissistema, mas perfeitamente integrado ao jogo de facções. O ensaio “descortês” feito há poucos meses, que analisei aqui aqui, não deu certo, e a teatralização didática daquele fracasso está sendo justamente esse caso Silveira.”

Bolsonaro é tão tosco, manjado e previsível que, quando ele fala, a realidade torna-se didática! Permitam-me ser minucioso; prometo que vai compensar.

É que o besta fez hoje uma indagação e uma promessa que parecem triviais, mas que, uma vez entendidas, concentram aspectos centrais da situação política:

(i) A indagação: “Alguém já me viu brigando com algum Poder, alguma instituição?”

(ii) A promessa: “Ninguém precisa temer o 7 de setembro”.

Com a indagação cínica (i), ele, com o rabo entre as pernas, busca normalizar seus blefes como coisa de campanha, deixando claro que não quer confusão para além da fanfarronice verbal, que alimenta as mídias, alarma os tolos e é útil aos espertos de um e de outro lado.

Com a promessa (ii), o besta demarca para os seus seguidores que não quer confusão na abertura de sua campanha eleitoral. Ou seja, o verniz cínico faz da promessa um recado.

A reunião dos dois lances deixa claro que Bolsonaro julga ter encontrado a fórmula que procurava: um meio “cortês” de fazer campanha eleitoral fingindo ser antissistema.

Observe bem a diferença, leitor, pois é nela que está evidente que não há, mesmo, o que temer desse jegue manco: embora tanto nas manifestações do ano passado como na de agora o blefe tenha papel central, a diferença entre aquele ensaio “descortês” e o 7 de setembro “cortês” está em que, agora, o próprio blefador desmentiu o blefe antes do fim da jogada. Por que?

Primeiro, porque sabedor de que não tem condições de dar um golpe, ele tem de jogar todas as suas fichas na via eleitoral (insistir em arruaças assusta seus próprios seguidores, gerando medo de ir à manifestação);

Segundo, porque ele está cada vez mais isolado, com o cerco das facções contrárias no exercício faccioso dos poderes institucionais se fechando consideravelmente em torno dele e dos seus;

Terceiro, porque ele precisa aproveitar a abertura da campanha eleitoral, o 7 de setembro, para consolidar entre os seus eleitores mais motivados a maneira “cortês” de fingir ser antissistema. Ou seja, ele precisa que os tolos engulam, sem se dar conta, o estelionato ideológico de que têm sido vítimas, afinal, eles têm sido insistentemente chamados para uma ruptura e tudo sempre acaba em acomodação com o Centrão… (que, por sua vez, já vai dando sinais de dificuldades para se acomodar…)

Quer dizer, é melhor essa minoria desorientada já ir se acostumando, pois vai ter que seguir essa cartilha sabendo que a única maneira (improvável) de passar de minoria à maioria eleitoral é haver algum desastre incontornável (e improvável) do outro lado. Ou seja, por meio de blefes o eleitorado de Bolsonaro foi levado a viver permanentemente sob o estado febril do garimpo: tudo o que há para eles é lama, mas em algum lugar deve haver uma gema em que pôr as mãos. Isso explica porque, contra toda evidência real, os bolsonaristas garganteiam certeza na vitória já no primeiro turno.

O problema é que o dia da eleição está longe e há um mundo de Brasil ruim daqui até lá. Não tem como dar certo.

FICA O REGISTRO:

Por falar em “estelionato”, a Folha de S. Paulo noticiou agora à noite atitude da FEBRABAN que não pode deixar de ser interpretada como um rompimento com o estelionato de representação praticado por Paulo Skaf, presidente da Fiesp em fim de mandato. Resumindo: a FEBRABAN mantém seu manifesto contra o golpismo e diz ao BB e à Caixa que façam como quiserem. Ficou tudo ainda pior para Bolsonaro, ainda que nunca seja demais assinalar que esse empresariado não merece confiança quando se pretende um Estado de Direito Democrático para o Brasil.

Outra coisa:

Aos interessados no realismo literário na Rússia do século XIX, informo que no curso deste mês de julho concluí a versão final do meu livro sobre as relações que julgo ter descoberto entre obras dos escritores russos Ivan Turguêniev e Aleksandr Púchkin. A mera leitura dos índices do meu trabalho mostra que o estudo do material literário me levou a interpretar de maneira nova passagens decisivas de Eugênio Oneguin e de Notas de um caçador.

Eis o link para a versão integral do livro, em formato .pdf:

LITERATURA CONTRA IMOBILISMO NA RÚSSIA DO SÉCULO XIX

Realismo literário como crítica em obras-primas de Aleksandr Púchkin e Ivan Turguêniev

ACABOU!

Carlos Novaes, 30 de agosto de 2021

Com +++ acréscimos na seção Fica o Registro, em 31/08 (13:08h e 18:32h) e em 01/9, às 20:40h

Para quem ainda teimava em achar que havia algum caminho para o governo de Bolsonaro, as movimentações havidas ontem e hoje entre os donos do dinheiro deixam claro que acabou. Os manifestos da Fiesp/Febraban e do Agronegócio indicam até uma competição pelo desembarque: a primeira articulação titubeou e deu tempo ao “concorrente” de se arrumar em campo e assumir essa duvidosa vanguarda no abandono do navio. Interessante observar que ao negociar para adiar o manifesto negociado pelo presidente da Fiesp, Lira mostrou que o Centrão já perdeu o timing da conjuntura: os maiorais do empresariado já entenderam que não adianta dar espaço para Bolsonaro manobrar — o que há é um movimento a exigir a rendição definitiva dele.

Não é que não vai haver golpe. Disso já sabíamos desde o ano passado, apesar de todo o alarido da mídia convencional e de seus colunistas, a prever o golpe a cada linha. Os recuos incessantes do besta vêm ofertando evidências sucessivas contra os que ainda temiam que ele saísse das quatro linhas. Exatamente ao contrário do que previam os alarmistas, ao invés de avançar, o golpismo vem sendo atropelado no curso da semana, e quem precisa de trégua é Bolsonaro (nem os PMilícias vão botar a cara).

O que já não vai haver é governo de Bolsonaro. Os donos do dinheiro entenderam que os blefes golpistas atrapalham os negócios. Bolsonaro virou um jegue coxo (com todo respeito pelos jegues).

O 7 de setembro da besta está desmoralizado de saída, por mais gente que venha a se aglomerar. Ademais, tudo indica que haverá contingente equivalente (ou maior) a se manifestar contra Bolsonaro no mesmo dia 7, especialmente em SP. Como quer que venha a se dar empiricamente, esta comemoração da independência será o evento de abertura da campanha eleitoral de 2022 porque chancelará a condição irremediavelmente minoritária do besta: ao soldar sua relação com o Centrão e, ao mesmo tempo, responder aos devaneios golpistas da sua base, Bolsonaro se afastou duplamente do que é necessário para fazer maioria eleitoral no Brasil: ser antissistema e pela democracia. Ou seja, o que é bom para o Centrão e para o bolsonarismo não é bom para o Brasil e a moda da próxima estação será afastar-se de ambos. Nessa frente não vão faltar oportunistas!

Fica o Registro:

[31/08 – 13:08h] – Em discurso proferido esta manhã em Uberlância (MG), Bolsonaro não fez ataques a instituições ou autoridades, mas manteve o registro cínico que marca suas intervenções ao insistir em insinuações sobre as manifestações em seu favor em 7 de setembro, dizendo: “As oportunidades aparecem. Nunca outra oportunidade para o povo brasileiro foi tão importante ou será importante quanto esse nosso próximo 7 de Setembro”. O contraste entre o silêncio contra as facções adversárias (rabo entre as pernas) e o enunciado malicioso sobre o dia 7 (fanfarronice verbal) pode ser interpretado de muitas maneiras — não vai faltar quem veja nisso a genialidade que muitos atribuem a este imbecil. Mas essa variação é irrelevante, pois o fundamento básico desse contraste é fácil de localizar: Bolsonaro sempre se conduziu na vida com a psicologia febril do garimpeiro, de apostar na boa sorte de uma oportunidade decisiva, na qual o resultado almejado sorri para quem persiste. As amarras institucionais que o Estado de Direito Autoritário contrapõe ao seu sonho ditatorial são encaradas por ele como o barro tenaz a ser vencido para chegar à pedra preciosa. Em face das evidências de que ainda dessa vez o barro venceu, o besta vem cedendo, mas não pode desvencilhar-se de todo do desejo e, assim, volta a explicitar a fantasia de quem, apesar de tudo, sonha com o milagre de que a pedra rebrilhe. E o Brasil a dançar nessa loucura…

Observe, leitor, como o contraste que venho explorando entre fanfarronice verbal e rabo entre as pernas escancara a dubiedade insanável da situação de Bolsonaro: o rabo entre as pernas corresponde, em última instância, à obediência ao Centrão, ao establishment; a fanfarronice verbal diz respeito exclusivamente à sua autoritária minoria bestificada. Dessa perspectiva, Bolsonaro, ao devanear com a solda entre facciosismo e ditadura, se faz um aleijão a encarnar em si mesmo o fato de que nem as facções, nem mais autoritarismo são alternativa para a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. A única saída para o Brasil é cerrar esforços contra a desigualdade na perspectiva de um Estado de Direito Democrático.

[18:32h] – Há aqui, na Folha de S.Paulo, uma análise da movimentação do empresariado que traz conhecimento empírico utilíssimo, mas deixa passar o principal. O artigo mostra os bastidores da articulação entre os empresários, o que é relevante conhecer, embora não decisivo. Entretanto, o sentido do artigo é mostrar que a força da política profissional (governo+Lira — ou seja, a força das facções estatais de situação) desarranjou o ímpeto inicial do movimento, que já era tíbio. Ora, o empresariado nunca foi de dar demonstrações antigovernamentais coesas, e, muito menos, firmes. Lembremo-nos de que no golpe contra Dilma o chamado Mercado foi o último a aderir (eles não queriam o impeachment, não por apego à democracia, mas porque entendiam, com razão, que o golpe atrapalharia os negócios). No movimento atual, o que importa salientar não é a tibieza, mas o ineditismo de uma insatisfação que, de tão generalizada, ganhou a forma rara de um manifesto. Por mais que a força das facções contrárias os faça recuar na cena aberta, o recado foi dado, a batata está assando, e não há nada que Bolsonaro possa fazer para enfiar a fumaça de volta na chaminé.

[01/9, às 20:40h] — Vimos aqui, em maio de 2020, que os blefes de Bolsonaro o levaram a uma situação insustentável precisamente porque não havia um calendário eleitoral para o qual dirigir as emoções suscitadas naquela altura. Agora, embora a eleição de 2022 ainda esteja longe, a dinâmica da conjuntura levou a essa antecipação inédita, sendo que nessa dinâmica frenética a candidatura de Lula joga um papel central, pois, em razão dos fatos havidos em 2018, o ex-metalúrgico faz contraponto total e perfeito ao desastre governamental protagonizado pelo ex-tenente. Como Lula não pode escapar do papel de nome do sistema (afinal, ele é a figura mais vistosa do jogo das facções — vem daí já terem começado a dizer que ele “pacificará o país”…), e Bolsonaro mantém suas fantasias ditatoriais, o besta acaba empurrado a alimentar o delírio em torno da farsa de que ele é o nome antissistema (com Centrão a tiracolo…). Vem daí ele ter declarado hoje que “com flores não se ganha guerra não, pessoal. Quando se fala em armamento, quem quer a paz, se prepare para a guerra” — é mero jogo para inflar a plateia do dia 7 com gente oriunda da minoria já convertida. O problema é que depois do dia 7, vem o dia 8, que será seguido pelos dias terríveis que a situação da economia está a prenunciar.

DESMORALIZAÇÃO COM DATA MARCADA: 8 DE SETEMBRO

Carlos Novaes, 23 de agosto de 2021

Com acréscimos na seção Fica o Registro, em 25/08, às 13:05h

Recupere na memória, leitor, toda a trajetória das iniciativas de força de Bolsonaro desde que ele planejou instalar bombas quando era tenente, passando pelo “acabou, porra!” de 2020, até o “sem voto impresso não vai ter eleição”, e me diga: em qual dessas situações Bolsonaro se aproximou do seu objetivo? De qual dessas tentativas de autoafirmação ele saiu mais forte do que entrou? Pois é, de  n e n h u m a! A história desse voluntarioso é uma trajetória de fracassos com o enriquecimento que premia os espertos – é também por isso que ele reúne em apoio a si esse vasto contingente de recalcados, mesmo quando endinheirados. O fato de ele ter vencido a eleição presidencial é prova da desorientação brasileira diante de seus desafios, não de supostas qualidades deste imbecil.

Ao se deixar arrastar para mobilização decisiva (mais uma…) da sua minoria , Bolsonaro é o gato que colocou o guizo no próprio pescoço e, de antemão, deu forma de blefe a mais essa tentativa de golpe. Veja bem, leitor: por mais arruaças que venham a fazer no dia 7, o dia seguinte será o do prosseguimento da vida como tem sido. Bolsonaro não reúne nenhuma condição para dar um golpe e derrubar o Estado de Direito Autoritário:

– seria um golpe a favor de quem já ocupa o poder com perda crescente de apoio por sua desastrosa (des)governança. Testado e reprovado, Bolsonaro já nada pode prometer. Quer dizer: está evidente que um Bolsonaro sem encantos quer poderes ilimitados para provocar ainda mais danos;

– seria um golpe contra a preferência da maioria da sociedade brasileira pela democracia;

– seria um golpe contra os interesses das facções que, de costas para a maioria da sociedade, ocupam e atuam com desenvoltura no Estado de Direito Autoritário;

– seria um golpe condenado ao isolamento internacional;

– seria um golpe que atrapalharia a fruição do que as forças de estado armadas já desfrutam. No caso das FFAA, há rotinas e privilégios aos quais um golpe por Bolsonaro não beneficiaria; no caso das PMs, além das rotinas e privilégios de que desfrutam os oficiais (especialmente quando dão baixa…), há a crescente expansão para atividades administrativas (por exemplo: seus soldados são, hoje, os atendentes de telefonia com o treinamento e os custos salariais mais caros do mundo! – obra do Estado de Direito Autoritário que Bolsonaro quer derrubar com um golpe);

Todo o frenesi da movimentação política convencional se orienta não pelo dia 7 de setembro de 2021, mas pelo dia 02 de outubro de 2022. O calendário eleitoral é o horizonte de qualquer político profissional com um entendimento mínimo do que se passa:

– Foi um presente para Dória que um comandante regional da PM de SP tenha feito a tolice de convocar adesão à manifestação de Bolsonaro, pois isso permitiu ao bolsonarista arrependido, que deve sua vitória em 2018 a Bolsonaro, posar de democrata decidido em cima dessa minoria obtusa que não consegue medir o quanto é fraca (o cagaço real em que muitos governadores vivem vem da precariedade que sentem existir em sua própria condição de mando, afinal, eles estão a ocupar um Estado em crise de legitimação);

– Quando Flávio Dino aproveita o isolamento de Bolsonaro para elogiar Mourão, além de exibir cegueira político-ideológica, faz aceno aos milicos e ainda atua de forma oportunista para ajudar Lula a se reaproximar deles e de pelo menos parte do eleitorado afeiçoado a eles;

– Quando diz que o ato do dia 7 será “fogo-de-palha”, Mourão não fala sozinho, e está a investir no isolamento e na desmoralização de Bolsonaro (já há dissonâncias até na facção militar palaciana);

– Quando os governadores pedem reunião de paz com Bolsonaro, estão a jogar o jogo das facções para fazer do isolamento e do inevitável malogro de Bolsoanro uma via de restauração do Estado de Direito Autoritário, cuja crise de legitimação não entendem, mas dela sentem efeitos nos humores da população. Como Bolsonaro é a resultante final da crise de legitimação, eles precisam dele como besta expiatória [nunca é demais explicar: não há conspiração; deveria ser evidente meu entendimento de que os governadores agem assim como digo, mas não pensam assim – o que os conduz é a meta de manter o velho normal em funcionamento, pois foi nesse ambiente que eles construíram suas vidas políticas, com ilusões, espertezas e boas intenções… e é contra essa arrumação que a besta golpista arremete; nem passa pela cabeça desses governadores estarem a se empenhar pela manutenção de um Estado de Direito Autoritário, até porque, assim como muitos, eles estão convencidos de que vivem num Estado democrático de direito];

Enfim, o país está nessa balbúrdia ansiosa porque a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário vive precipitação permanente, na qual tudo que parecia sólido se desmancha no ar: o espectro do golpe não interrompe a sua ronda porque o sistema político profissional não tem condições de oferecer uma alternativa real ao país, tendo por real uma alternativa que faça do combate à desigualdade o eixo articulador do objetivo de alcançar um Estado de Direito Democrático para o Brasil.

Embora Bolsonaro não tenha a mínima chance de se tornar um ditador, as fantasias dele permitem toda sorte de mistificação democrática — mas quando vier o pós-Bolsonaro é que teremos toda a extensão da tragédia, seja pelo legado macabro do besta, seja pela intensificação da guerra das facções na disputa pelo comando — e quando falo em intensificação, tenho em mente a rotina de ilegalidades facciosas a que o país tem sido submetido nessa luta contra a besta, pois uma das evidências de que não vivemos sob um Estado de Direito Democrático é o fato de que nós não poderíamos derrotar Bolsonaro seguindo a letra pétrea da lei (daí que tenhamos de, contraditoriamente, apoiar ações facciosas de um Moraes, de um Gilmar, de um Renan ou de um Alcolumbre quando eles atuam contra a besta — para, mais adiante, recebermos de volta todos os danos desses apoios…). A vida é dura, como há tempos tentei explicar aqui.

Fica o Registro:

25/08 — Hoje mais cedo, presente na solenidade do dia do soldado, Bolsonaro não fez uso da palavra. Como não ver nesse silêncio um recuo típico de quando o besta entra na fase do rabo entre as pernas, depois da fanfarronice da vez? Ele já está a esfriar os ânimos para o 7 de setembro — o silêncio de Bolsonaro num evento que serviria na medida para que ele insuflasse a sua minoria explicita na prática o que foi dito acima analiticamente: a tentativa de golpe tomou a forma de blefe por antecipação!

Ah! o aspirante a ditador também desistiu de pedir o impeachment de Barroso. Precisa analisar?

DESORIENTAÇÃO E ALARIDO ENGANADOR

Carlos Novaes, 22 de agosto de 2021

O que vou dizer a seguir poderá ser melhor compreendido por quem tiver em mente tudo o que foi dito em pelo menos dois antigos artigos deste blog. É que há pouco mais de quatro anos (Jun. 2017), escrevi aqui que a banalização do recurso ao impeachment estava associada à crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário:

o impeachment já não tem o poder prestidigitador que vinha tendo, pois a ilegitimidade do próprio Congresso veio a furo.  A melhor maneira de perceber que um truque de mágica ficou manjado é vê-lo a ser encenado por qualquer um – pois é o que estamos a ver: há gente propondo impeachment por todo lado; ele, o impeachment, virou a varinha de condão da luta de facções em que está abismado nosso Estado de Direito Autoritário

Na mesma conjuntura em que as linhas citadas acima foram escritas, também tentei mostrar aqui a diferença entre “crise institucional” e “crise de legitimação”, explicando que as facções são transversais às instituições do Estado de Direito Autoritário, indicando o facciosismo no meio militar e apontando que, naquela altura da crise (set. 2017), estávamos abrindo espaço para

uma solução ao mesmo tempo conservadora, constitucional, eleitoral e militar. A versão abominável seria a eleição de Bolsonaro, que banalizaria o emprego das prerrogativas do art. 142 da Constituição, tornando rotina a presença militar nas ruas; a versão horripilante seria a eleição de qualquer dos nomes do chamado “centro”, com o qual se alinhem as bancadas evangélica, da bala e do boi. Nossa passividade levou o Brasil a uma atipicamente prolongada crise de legitimação, uma vez que a falta de legitimidade do Estado não encontra outra ebulição senão a das suas próprias facções internas, as quais, dada sua natureza apartada da vida real, não podem gerar alternativa. Se não nos mexermos, se nos limitarmos a rogar respeito a uma Constituição que já foi rasgada, acabaremos por encontrar uma nova estabilidade, em termos muito mais desfavoráveis à imensa maioria de nós e, ainda pior, com o voto da maioria de nós.

O jogo pós 2017 foi jogado do modo como sabemos e nossa situação só não é pior porque, para nossa sorte, Bolsonaro revelou-se ainda mais imbecil do que parecia: como expliquei aqui, aqui e aqui, ele desperdiçou a oportunidade que o coronavírus lhe deu de figurar como salvador da pátria enquanto nos imporia restrições militares constitucionais na forma de GLOs voltadas ao combate da pandemia. Se Bolsonaro tivesse logrado colocar os milicos na rua sob seu comando, seria muito mais difícil fazê-los voltar para os quartéis do que será agora, quando eles tiverem de deixar os cargos que passaram a ocupar disfarçados de paisanos nesse desgoverno. Quer dizer: com GLOs generalizadas (e legais!!), Bolsonaro teria pavimentado com material sólido o caminho para uma tentativa de golpe.

Mas a preferência da imensa maioria da sociedade pela democracia, em contraste com a ruidosa minoria saudosa da ditadura paisano-militar, arrastou o imbecil a uma série de escolhas incongruentes: fazer o jogo do Centrão em busca da “governabilidade” e, na direção oposta, insistir em tentativas de golpe condenadas ao fracasso, tudo isso combinado com o abandono da população à própria sorte, seja na pandemia, seja na ausência de alguma governança. Felizmente, essa danosa barafunda impediu que em torno de Bolsonaro se fundissem, por exemplo, as bancadas BBB (Bíblia, Bala e Boi), como eu temia que ocorresse se o eleito em 2018 fosse um candidato do chamado “centro”, ou seja, algum profissional do velho normal. É que ao insistir em ser adversário do Estado de Direito Autoritário, Bolsonaro se coloca como não confiável para o jogo institucional faccioso em que estão arrumados os negócios de boa parte dos membros dessas bancadas, por mais conservadoras e reacionárias que elas sejam (e são!). Assim, esse pessoal fascistóide fica com ele, mas não vai com ele: ficam para receber o butim, mas o abandonarão assim que ele tentar colocar na panela a galinha dos ovos de ouro, como ficou claríssimo na derrota do voto impresso.

Como já disse aqui, não é que Bolsonaro tentar um golpe – ele tem feito seguidas tentativas de golpe, novela que ainda exibe traços de tragédia porque a desorientação é a principal característica da conjuntura. Não fosse a sagacidade dos profissionais e o alarido da multidão de inocentes úteis que enche páginas e telas da mídia, já deveria estar claro que as tentativas de golpe (que o são!) sempre assumem a forma de blefe porque o golpe é inviável, e inviável principalmente em razão da enorme assimetria de forças: a imensa maioria da população é contra uma solução autoritária para a crise de legitimação, estando incluída nessa maioria esmagadora até parte dos defensores de Bolsonaro. Daí que a encenação seja sempre a mesma: tensão verbal máxima na tentativa, seguida de rabo entre as pernas ao ganhar a forma de blefe. E tem mais: se a assimetria entre as forças que se enfrentam vier a sofrer alteração, será pelo aumento do percentual das pessoas alinhadas contra as pretensões ditatoriais do besta, não a favor. A maioria de nós está farta do Estado de Direito Autoritário, mas quer vê-lo pelas costas não pela supressão do “de Direito”, mas pela eliminação do “Autoritário”, que garante privilégios, impõe arbítrios e promove assimetrias injustas. Infelizmente, esse estado de coisas ainda não ganhou clareza cognitiva e não tem como ganhar a forma de um vetor pela transformação.

Deixando de lado a desorientação dos numerosos inocentes úteis, que vivem a combater os próprios  medos fazendo alarido mais ou menos intelectual contra o golpe, prestemos atenção nos espertos: eles estão se aproveitando da imbecilidade de Bolsonaro para tentar unir ao lado deles a maioria da opinião pública, que vem sendo conduzida a achar que era feliz e não sabia, como se fosse possível esquecer as derrotas e sofrimentos de onde esses espertos tiraram poder, dinheiro, prestígio e privilégios no curso dos últimos trinta anos. Vem daí o alarido em torno de um suposto Estado democrático de direito ameaçado. Vem daí o “frentismo” contra Bolsonaro e, ao mesmo tempo (até porque não se trata de uma conspiração), as tentativas de acerto com o besta, em nome da harmonia entre os poderes… Vem daí o revigoramento de Lula.

Quem é do ramo sabe que o recurso ao impeachment está esgotado; já Bolsonaro, que não é do ramo (e contra quem há pilhas de pedidos de impeachment), se presta ao papelão de fazer pedido de impeachment desprovido de qualquer base legal. Se estivéssemos sob um Estado de Direito Democrático, esse disparate de Bolsonaro seria recebido às gargalhadas. Mas como vivemos sob um Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação, o gesto desesperado do inimigo patético se torna tábua de salvação para os espertos: chamam todos a cerrarem fileiras em torno de um STF e de um Congresso que têm sido unha e carne com as injustiças, arbitrariedade e privilégios que infelicitam a maioria da sociedade brasileira insatisfeita. É nessa onda que Lula vem surfando como se ainda fosse alternativa e tipos como Alexandre Moraes vão ganhando impulso para nos impor toda a sua agenda reacionária depois que puderem deixar de se ocupar desse tigre de papel que é Bolsonaro (ainda que o papel, por estar em chamas, esteja a provocar muitos incêndios danosos).

NÃO VAI TER GOLPE

Carlos Novaes, 15 de agosto de 2021

À luz da conjuntura, a prisão de Roberto Jefferson foi positiva e um lance de mestre de Alexandre Moraes: primeiro, porque o mensaleiro arrependido já havia passado de todos os limites em sua defesa da ditadura para proteger a liberdade… Prendê-lo, assim como no caso do Silveira, deu mais um sinal de que o caminho que eles gostariam de trilhar está bloqueado; segundo, porque em seu fervor pelo chefe, Jefferson fez de si mesmo o 05 de Bolsonaro — não é como prender a Sara Winter; ao atingi-lo, Moraes expõe toda a bazófia blefadora do besta, pois o obriga a ficar parado sob pressão dos seus seguidores frustrados. O problema deles é encarar a distância entre sonho e realidade.

Vem daí, dessa frustração, o sentimento de urgência que tomou conta do bolsonarismo. E os “frentistas” e defensores de um suposto Estado democrático de direito entram na pilha, até porque o alarido rende atenção pré-eleitoral. Cria-se a ideia de que a situação tornou-se especialmente tensa. Estaríamos na iminência (mais uma!) de um golpe, como pareceu a muitos lá em abril/maio de 2020. Mais uma vez, não é nada disso. Tal como antes, Bolsonaro não sabe o que fazer diante das adversidades e a cada passo afunda um pouco mais no atoleiro em que marcha.

É assim que, quando a gente pensa que a besta esgotou o repertório da própria desmoralização, ela ataca de guarânia paraguaia. Claro, depois do fiasco do desfile da sucata, o jeito de mobilizar o gado é chamar alguém para tocar o berrante. Sobrou para o decrépito Sergio Reis, sem forças para sequer erguer o berrante, que dirá tocá-lo. Vai acabar com o chifre enfiado na testa, feito aquele intrépido invasor do Capitólio — que capítulo triste dessa farsesca tragédia brasileira.

VOTO IMPRESSO E CRISE DE LEGITIMAÇÃO — 2 DE 2

Em 10/08/2021, às 19:00 — O TIRO SAIU PELA CULATRA — No desfile militar com as três forças militares do país, Bolsonaro consumou o blefe clássico, aquele que desmoraliza o blefador e também o jogo. De tanto blefar, teve de mostrar o jogo real, e expôs os militares ao ridículo: em sua obediência ao entulho autoritário, as FFAA acabaram por terem de aparecer de público como sucata. Aos que ainda temiam um golpe militar de Bolsonaro: agora já não pode haver dúvida de que o dispositivo militar do besta é tão real quanto o era o dispositivo militar do Jango, em 1964… Felizmente, dessa vez o ridículo está do outro lado.

VOTO IMPRESSO E CRISE DE LEGITIMAÇÃO — 2 DE 2

Carlos Novaes, 07 de agosto de 2021

Se, como vimos no artigo anterior, a maioria da sociedade brasileira lutou por democracia, prefere a democracia, vota democraticamente e ainda assim se vê contrariada pela prática do Estado de Direito Autoritário, fica evidente que a contrariedade é com o Estado, não com a democracia.

Separar a noção de “Estado de direito”, das noções de “autoritarismo” e de “democracia” é fundamental para entendermos o que se passa. Ao arremedar o que seria o Estado de Direito Democrático almejado pela maioria da sociedade brasileira, as forças políticas que hegemonizaram a construção do Estado de Direito Autoritário foram levadas a construir laços com as aspirações dessa maioria, pois, se não o fizessem, o Estado de Direito Autoritário seria inviável de saída. O desafio foi engendrar laços que pudessem ser postos a serviço dos seus próprios interesses facciosos. Como se trata de uma dinâmica social, não de uma conspiração, as acomodações necessárias levaram tempo (já lá se vão mais de 30 anos!!) para irem logrando seus êxitos e, então, uma a uma (Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma) foram encontrando seus próprios limites, até o conjunto entrar em desarranjo, como estamos a ver na forma dessa crise de legitimação.

Quer dizer: o jogo entre as facções estatais que se constituíram (e estão em movimento) nesse processo de transição democrática truncada (sem ruptura com o Estado ditatorial anterior) não pôde e não pode afrontar de maneira visível o desejo fundamental da maioria: a consolidação de uma democracia. Por isso, as facções foram levadas a fazer da engenharia eleitoral (via “Estado de direito”) o ponto de encontro (no “de direito”) entre aquele desejo da maioria (“democracia”) e a sua própria dinâmica facciosa (o “autoritarismo”, que trai aquele desejo): a realização de eleições honestas tem permitido contemplar o desejo da maioria e, ao mesmo tempo, oferece um solo firme (a regra) para que as facções afiram seu próprio tamanho na hora de fraudar tudo o mais que se segue à eleição — eis uma forma elaboradíssima de cinismo político-social.

A urna eletrônica é confiável porque ela é o mecanismo tecnológico da franquia democrática que traduz todo o arranjo legal entre a aspiração democrática da maioria da sociedade e os interesses facciosos daqueles que que se dedicam ao exercício faccioso dos poderes institucionais no Estado de Direito Autoritário. A urna eletrônica tem de ser confiável porque essa confiabilidade favorece a cegueira dos eleitores para as fraudes que se dão antes das eleições (nas promessas das campanhas eleitorais) e, sobretudo, é essa confiabilidade da urna que amarra o eleitor à dinâmica institucional das fraudes que se dão depois da proclamação dos resultados eleitorais, pelos quais a urna afere e atesta as forças disponíveis para o jogo das facções.

A veracidade da urna eletrônica está a serviço da ilegitimidade da prática política real. Evidentemente, a solução do paradoxo não está em tornar a urna eletrônica inconfiável, como querem os que propõem o voto impresso.

Conhecer essa ordem de razões é fundamental para entender o alcance do que se passa quando o presidente da Câmara e maioral do Centrão, Arthur Lira, se apresenta seguro ao enviar ao plenário a PEC do voto impresso, derrotada na comissão especial que a analisou, dizendo:

“vamos levar sim a questão do voto impresso para o plenário, onde todos os parlamentares eleitos legitimamente pela urna eletrônica vão decidir. E eu friso: foram eleitos todos pela urna eletrônica”.

Lira sabe do que, e de onde, fala. Sob o argumento de que pretende “pacificar” a questão, ele tomou uma iniciativa que só os ingênuos ou ideologicamente cegos podem interpretar como favorável a Bolsonaro; pelo contrário, assim como no caso do otário Daniel Silveira, Lira está a criar condições para tornar ainda mais difícil a vida do presidente a quem tem na mão. É que depois de recuar dos arroubos ditatoriais se rendendo ao Centrão, rendição essa que foi acompanhada da entrega do butim na forma de verbas e cargos (extraídos sobretudo da facção militar), Bolsonaro – que não entende o jogo das facções mesmo estando no núcleo duro dele – não obteve a paz que ingenuamente imaginara que alcançaria. Ele simplesmente não se dá conta de que governar um Estado de Direito Autoritário requer que o presidente se torne ele próprio um agente faccioso para arbitrar a guerra incessante entre as facções, sendo vedado a ele se colocar contra esse Estado, como faz ao insistir no voto impresso.

A estupidez e o pendor ditatorial que constituem a natureza bruta de Bolsonaro o tornaram incapaz de exercer a presidência da República no Estado de Direito Autoritário: a estupidez o leva a desprezar a complexidade do jogo das facções, em tudo enxergando conspirações contra si e os seus; o pendor ditatorial, além de aparta-lo do desejo por democracia da maioria da sociedade, ainda o empurra a querer resolver na marra a guerra das facções – em ambos os casos, ele se põe como adversário ditatorial do Estado de Direito Autoritário, o que realimenta a auto ilusão de enxergar a si mesmo como um vetor antissistema, justamente o sistema do qual proveio e ao qual, pela outra ponta, voltou a integrar quando se rendeu ao Centrão retirando cargos dados à facção militar com a qual delirava poder dar um golpe, golpe este com o qual, não obstante a falta de lastro, ele ainda blefa nesse vaivém de barata tonta entre suas duas origens, a militar (do Estado ditatorial), e a paisano-congressual (desde o seu primeiro mandato no Congresso do Estado de Direito Autoritário). Não tem escapatória, e tampouco tem como dar certo.

FICA O REGISTRO:

Aos interessados no realismo literário na Rússia do século XIX, informo que no curso deste mês de julho concluí a versão final do meu livro sobre as relações que julgo ter descoberto entre obras dos escritores russos Ivan Turguêniev e Aleksandr Púchkin. A mera leitura dos índices do meu trabalho mostra que o estudo do material literário me levou a interpretar de maneira nova passagens decisivas de Eugênio Oneguin e de Notas de um caçador.

Eis o link para a versão integral do livro, em formato .pdf:

LITERATURA CONTRA IMOBILISMO NA RÚSSIA DO SÉCULO XIX

Realismo literário como crítica em obras-primas de Aleksandr Púchkin e Ivan Turguêniev

VOTO IMPRESSO E CRISE DE LEGITIMAÇÃO — 1 DE 2

Carlos Novaes, 05 de agosto de 2021

A percepção da maioria da sociedade de que o Estado de Direito Autoritário não apenas não favorece como solapa as condições para a consolidação de uma democracia no Brasil é o vetor central da crise de legitimação do Estado brasileiro, que atua segundo práticas escancaradamente ilegítimas nos três poderes da República. Quer dizer, quando se refere ao Estado, a maioria de nós, que preferimos a democracia, já está além da desconfiança contra ele e, por isso, estamos prontos para receber com simpatia qualquer crítica à atuação arbitrária, corrupta, enganosa e privilegiadora dele.

Já vimos a origem da prolongada crise de legitimação que se confunde com esses sentimentos, já discutimos seu desenvolvimento, já mostramos que não se trata de uma crise institucional e, chegando aos detalhes, explicamos que a vitória de Bolsonaro em 2018 se deu porque ele logrou a maioria ao fazer parecer que seu alegado (e falso) compromisso “antissistema” era uma resposta real à crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário.

O desespero que conduz Bolsonaro pela trajetória que o leva a um beco-sem-saída se deve ao fato de que o logro chegou ao fim: não apenas a maioria da sociedade, mas até a maioria dos eleitores que votaram em Bolsonaro no segundo turno em 2018 já entendeu que esse imbecil não tem a menor condição de oferecer uma alternativa à crise de legitimação do Estado; pelo contrário: seja por suas delirantes motivações ditatoriais, seja em sua autocontraditória (pelo que diz), mas coerente (pelo que sempre fez) rendição ao Centrão (um dos vetores facciosos que embarreiram a consolidação de uma democracia entre nós), seja, ainda, por sua incompetência desumana (escancarada diante da Covid-19), Bolsonaro está na contramão do que quer que a maioria de nós possa almejar como saída para o país. É nessa espiral para o fundo do poço que entra a bandeira do chamado “voto impresso”.

O voto impresso é uma tentativa do besta de juntar os trapos e dar aos seus últimos seguidores uma bandeira para empunhar: combina crítica (falsa) ao Estado, aprimoramento (inexistente) de nossa engenharia eleitoral, defesa (fajuta) da democracia e empoderamento (vicário) do eleitor individual. Detalhemos.

Ao fazer a crítica de como o Estado organiza a eleição, Bolsonaro tenta vibrar a corda “antissistema” que a crise de legitimação mantém esticada. Ocorre que todas as alegações de fraude eleitoral trazidas por ele contra a urna eletrônica são falsas. São uma mistura de histórias velhas com conjeturas idiotas, para as quais não há uma única evidência nem amparo na razão. Ao revidar pedindo prova de que a urna eletrônica não é fraudável o besta nos dá, isso sim, mais uma prova da própria imbecilidade, afinal, qualquer pessoa capaz de pensar com o mínimo de lógica sabe que todo sistema complexo é comprovadamente hígido até que se prove sua falha, sendo impossível fazer prova outra da infalibilidade dele!

Pretender que o voto impresso seja um aperfeiçoamento da engenharia eleitoral eletrônica esbarra em evidências contrárias: a impressão do voto traria custos financeiros e materiais adicionais, além de aumentar consideravelmente o tempo de votação, o que exigiria, no mínimo, dobrar o número de urnas (seções eleitorais). Além disso, o voto impresso seria retrocesso inconveniente porque introduziria, ele mesmo, um elemento de fraude, pois traria de volta a conferência manual do voto, evento que sempre esteve no centro das fraudes eleitorais do tempo do voto em papel, cujas impropriedades veremos a seguir.

Ao invés de defender a democracia, o movimento pelo voto impresso é um ataque às bases dela, e por meio de um argumento fajuto. A delegação de poder está na base da democracia: o eleitor delega ao Estado o poder de organizar o processo eleitoral e, no curso dessa delegação de longo prazo ele, o eleitor, delega a outrem (ao candidato eleito), pelo voto, a delegação conjuntural da sua própria parcela de poder. Quer dizer, o poder do eleitor é por assim dizer delegado duas vezes: primeiro, de forma mais estável, a quem organiza o pleito, segundo, de forma mais dinâmica, a quem se submete ao pleito. O movimento pelo voto impresso parte da suposição fajuta de que é possível ao eleitor não fazer a primeira delegação, justamente aquela da qual deriva a segunda. Por essa ideia fajuta, é como se o eleitor pudesse ser o fiscal e o garante do seu próprio voto individual. Além de contrariar os fundamentos da democracia, essa ideia também é fajuta à luz de um reles raciocínio prático: ao conferir e fiscalizar seu voto impresso caindo na urna o eleitor nada faz de diferente do que fazia o eleitor do passado, quando escrevia, olhava e enfiava na urna o seu voto em papel. Esses gestos nada garantem sobre os passos futuros daquele pedaço de papel: reunido a outros, ele será anonimamente despejado numa mesa e contado por mãos humanas. Ou seja, escrito em papel, impresso, ou eletrônico, o voto sempre foi e sempre será conferido, fiscalizado e contado pelos agentes previstos pelo Estado, nunca pelo indivíduo – e isso está na base da democracia.

Reside justamente nessa volta da manipulação do voto em um pedaço de papel o desmentido de que o voto impresso aumentaria o poder do eleitor sobre o seu voto individual. Essa fantasia requer acreditar que tudo se resume no fato de o eleitor enxergar seu voto impresso caindo na urna plástica. Por fiel que tenha sido a impressão, e por mais que o eleitor esteja seguro de que viu seu voto impresso cair na urna, ele não terá o menor controle sobre as etapas subsequentes, as quais, como vimos no parágrafo acima, dependerão de operações manuais de terceiros, tal como era na época do voto em papel. É a essa manipulação material, não eletrônica, que os defensores do voto impresso chamam indevidamente de auditagem pública!

O movimento pelo voto impresso destina-se a tornar ainda mais frágil o exercício das franquias democráticas. Ao contrário do que dizem seus defensores, o que se pretende é questionar o “de direito” e incrementar o que há de “autoritário” no Estado de Direito Autoritário.

Como já esmiuçado em vários posts deste blog, é exatamente por ser “de direito” que nosso Estado de Direito Autoritário dialoga com aspectos fundamentais do Estado de Direito Democrático a que ele arremeda desde a transição democrática truncada. Ali onde esse arremedo impõe a consulta à vontade popular na hora de decidir o quinhão de poder de cada facção na luta pelo privilégio de comandar o exercício faccioso dos poderes institucionais, o Estado de Direito Autoritário se viu constrangido a banir a fraude da engenharia eleitoral, tudo o mais podendo ser fraudado depois. É essa contradição que está na base da frustração em que vive a maioria da sociedade brasileira: lutou pela democracia, prefere a democracia, vota democraticamente e foi condenada a viver sob um Estado de Direito Autoritário – eis outra maneira de mostrar a crise de legitimação.

Vejamos mais de perto essas complexidades, no próximo artigo.

ENCENAÇÃO NA LUTA DAS FACÇÕES

Carlos Novaes, 28 de julho de 2021

Em Fica o Registro, link para meu livro sobre obras de Aleksandr Púchkin e Ivan Turguêniev

O modo saliente com que a facção militar vem se conduzindo no governo intensifica duplamente a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário: primeiro, porque permite ver também as instituições militares segundo suas práticas ilegítimas (o que a análise convencional chama de “perda de prestígio”); segundo, porque é uma saliência que traz à lembrança, na forma de blefe, o autoritarismo real que os milicos promoveram e que a maioria da sociedade repudia pelo menos desde a chamada transição democrática. Ou seja, a facção militar está na contramão do que interessa à maioria e, como já vimos, nem no meio militar ela teria condições, se realmente o quisesse, de impor uma saída golpista para a crise.

Entretanto, desde o início do ano passado a mídia convencional insiste em insuflar o medo ao golpe. Fazendo o inverso disso, desde sempre este blog veio explicando o quão infundado é esse medo, que está a serviço da restauração. Só muito recentemente, depois da total desmoralização de Bolsonaro e seus blefes, a mídia tem combinado a propagação desse medo com o deboche. Entretanto, mesmo quem debocha sucumbe à confusão divulgando a ideia tola de que as movimentações mais salientes da facção militar (à qual chamam de “ala militar” ou de “partido militar”) são o sinal de um golpismo latente a ameaçar um suposto Estado democrático de direito. Não é nada disso, leitor.

Peguemos o exemplo mais recente, essa história em torno do general Braga Neto, ministro da defesa. Tudo se passa como se o tosco Braga Neto estivesse realmente empenhado em obter o voto impresso e, assim, resolveu enviar recados golpistas, primeiro ao Congresso, depois ao STF, sobre cancelar as eleições em caso de não adoção da mudança pretendida por Bolsonaro. Essa leitura permite ao comentador convencional abordar a situação como mais uma “crise institucional” a ferir a nossa democracia… E chovem manchetes e comentários indignados!

Na verdade, o que quer que tenha sido dito e venha sendo feito por Braga Neto deve ser avaliado tendo em mente que o general é chefe de facção, assim como Ciro Nogueira ou Lula – é um jogo dentro do Estado, pelo qual os atores buscam reunir poder para fazer dinheiro. Vendo que sua facção está a perder poder (portanto, um sinal de fraqueza, não de força), Braga Neto grita o que o chefe quer ouvir para mostrar serviço, tal como o Centrão faz pela outra ponta. Estão todos a tentar arrancar tudo o que podem enquanto há tempo. Quer dizer, Braga Neto se dirigiu a Bolsonaro, não ao Congresso, nem ao STF. O “recado” dele deve ser recebido pelo leitor bem informado como um lance intra muros, a soar como um blefe dentro do blefe. O que disse o ministro da defesa não encontra eco substancial na alta oficialidade das FFAA que, entretanto, não pode desmenti-lo precisamente porque entende como mais vantajoso obedecer a Constituição a que o golpismo estaria a ameaçar!

Quem não faz uma análise detida da situação estrutural do Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação fica assim, dançando ao ritmo do que há de supérfluo na conjuntura, e só põe a mão no fruto quando ele já está podre. Por exemplo: só agora descobriram a rivalidade entre os milicos do palácio e os paisanos do Centrão, as duas facções que dão expressão original (militar e congressual) ao autoritarismo de Bolsonaro… Quem lê este blog sabe, pelo menos desde junho de 2020, que Bolsonaro teria de fazer

“uma reconfiguração da presença militar, levando os milicos a entregarem postos de mando recém conquistados. Essas conquistas haviam sido obtidas no embalo de um projeto ditatorial sem lastro e, portanto, eram uma exceção que erodiu à medida que Bolsonaro veio sendo empurrado de volta ao velho normal.”

Em suma, quanto mais a facção militar grita as suas perdas, mais longe estamos de um golpe e mais fundo nos abismamos na crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário…

Enquanto isso, os braços congressuais das facções fingem disputas que encobrem a disputa que deveras fazem: fingem que travam uma batalha sem trégua por objetivos gerais contrastantes; enquanto disputam para valer os meios de ditar os termos da trégua em que deveras se entendem para distribuírem entre si o que arrancam do lombo da maioria da sociedade. Exemplo disso é o fundo eleitoral: todas as facções querem dinheiro público legal para repartir entre si (o PT sempre foi o maior entusiasta desse fundo, assim como do outro, o fundo partidário), mas sabendo da oposição da maioria da sociedade, embrulham a coisa de modo a obter o dinheiro se comprometendo o mínimo possível, encenação pela qual empurram o ônus uma para a outra, o que reitera a ilusão de polarização ali onde todos estão de acordo. Em seguida, se unem na propagação de que ser contra esses fundos é ser contra a política, como se a política se resumisse à prática e à existência dos políticos profissionais, ávidos por fundos.

Nessa disputa facciosa pelo modo de configurar a forma do poder entra, por exemplo, o telequete “presidencialismo versus parlamentarismo”… A coisa toda pode ser resumida assim: as facções que dispõem de estrutura burocrática firme e liderança arbitral preferem o presidencialismo (PT, PDT etc), já as facções que dependem de ampla e permanente concertação interna de interesses (cuja origem são os partidos da ditadura, p-MDB e ARENA, formados na prática miúda, pois não podiam disputar a presidência da República), se dizem parlamentaristas. A versão mais recente dessa patranha é o semipresidencialismo (ou semiparlamentarismo), que consiste em manter a figura do presidente, mas retirando poderes da presidência da República em favor do Congresso, deste Congresso

Enfim, pró ou contra Bolsonaro, as facções continuam a se entender para preservar o Estado de Direito Autoritário e nada do que aconteceu no último mês trouxe novidade.

FICA O REGISTRO:

Aos interessados no realismo literário na Rússia do século XIX, informo que no curso deste mês de julho concluí a versão final do meu livro sobre as relações que julgo ter descoberto entre obras dos escritores russos Ivan Turguêniev e Aleksandr Púchkin. A mera leitura dos índices do meu trabalho mostra que o estudo do material literário me levou a interpretar de maneira nova passagens decisivas de Eugênio Oneguin e de Notas de um caçador.

Eis o link para a versão integral do livro, em formato .pdf:

LITERATURA CONTRA IMOBILISMO NA RÚSSIA DO SÉCULO XIX

Realismo literário como crítica em obras-primas de Aleksandr Púchkin e Ivan Turguêniev

O CARÁTER CONSERVADOR DO FRENTISMO

Carlos Novaes, 23 de junho de 2021

Com acréscimos às 19:00h, em Fica o Registro

A luta dos democratas no Brasil requer duas atitudes simultâneas: uma de conservação, que consiste na garantia de permanência para as franquias democráticas já vigentes; e uma outra, de inovação, que consiste na luta pela consolidação da democracia em um Estado de Direito Democrático. Pela conservação, se conservam os aspectos positivos da transição democrática truncada, que nos trouxe do Estado da ditadura paisano-militar ao Estado de Direito Autoritário que nos infelicita. Pela inovação, se completará a transição da democracia desde a sociedade (onde ela vem viva lá das lutas contra a ditadura) para o Estado, que ao longo desses mais de 30 anos resistiu o quanto pôde a se transformar. Em outras palavras, o Brasil não dará um passo adiante enquanto a maioria conservadora que já garante as franquias democráticas não desabrochar em uma maioria inovadora, lucidamente empenhada na luta pela construção de um Estado de Direito Democrático, cujo pilar central é o enfrentamento da desigualdade.

Para que esse desabrochar aconteça, o Brasil precisa de uma vanguarda intelectual e política em tudo oposta ao que propõe o “frentismo” contra Bolsonaro. Esses políticos e intelectuais, muitos dos quais compõem a nossa autointitulada esquerda, supõem (ou alegam) que o besta ameaça as instituições colapsadas de um fantasioso Estado democrático de direito. Ora, nem a maioria da sociedade brasileira, cerca de 80%, precisa de uma Frente para defender a manutenção do que ela já garante e que, por isso mesmo, Bolsonaro não tem condições de esmagar: as franquias democráticas; nem essas franquias democráticas podem ser tidas como consolidadas numa forma estatal democrática. O Brasil dos frentistas requer fazer vista grossa (quando convém) para as evidências diárias do seletivo autoritarismo pelo qual, há mais de 30 anos, o Estado de Direito Autoritário faz o exercício faccioso dos poderes institucionais contra a maioria da sociedade brasileira.

Na prática, como está limitado à defesa das franquias democráticas, confundindo-as com um Estado democrático de direito inexistente, o “frentismo” se deixou aprisionar num beco-sem-saída conservador, amputando a luta democrática de seu ímpeto inovador. É por isso que os frentistas propõem conservadoramente a volta ao Brasil pré-Bolsonaro, e se aferram à defesa deste Estado de direito, cujas práticas Bolsonaro tem feito ainda mais autoritárias, embora exerça o cargo no âmbito do “de direito”. Também não é outra a explicação para os frentistas não enxergarem a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, afinal, uma crise de legitimação não é senão o sentimento da maioria de que são ilegítimas as práticas do Estado sob o qual vive.

Mesmo o melhor “frentismo” está cego para (e nem saberia o que fazer, se o enxergasse) o que há de auspicioso no sentimento antissistema da maioria da sociedade brasileira. Deriva dessa cegueira a confusão que fazem entre Política (com P maiúsculo) e a prática dos profissionais da política, como se recusá-los fosse uma recusa à política enquanto tal, que diz respeito a todos nós.

E os frentistas já vêm cegos desde antes de ser tornarem frentistas: foi essa cegueira que permitiu a Bolsonaro se tornar o único beneficiário da justa fúria antissistema que orientou a maioria do eleitorado em 2018. Quer dizer, a cegueira dos futuros frentistas favoreceu a vitória de Bolsonaro e é um obstáculo à construção do movimento que, para além de derrotar o besta, enfrentaria programaticamente a besta ditatorial viva em facções militares, milicianas e paisanas.

Fica o Registro:

Descendo da análise de caráter geral para o solo da prática política propriamente eleitoral, o notório revigoramento eleitoral de Lula já deixou claro que compor uma frente anti-Bolsonaro implica aderir, de antemão, a Lula, o que, de cara, afasta muita gente. Mas, (e até por isso), a força do controvertido Lula vai suscitar uma arregimentação contrária, ou seja, uma frente anti-Lula, frente esta que, diante de uma possível implosão de Bolsonaro, poderá ser liderada por um terceiro. Ainda não temos elementos para saber se esses desdobramentos levarão ou não à realização de um segundo turno na disputa presidencial.

De todo modo, a teoria do “frentismo” caminha para garantir a si mesma a mais ingrata vitória, pois como quer que a realidade venha a se apresentar, um segundo turno em 2022 se anuncia, de antemão, o estuário conservador ou de uma gloriosa frente, ou de duas: a frente anti-Bolsonaro e a frente anti-Lula. Como defensor do Estado de Direito Autoritário, o frentismo é inderrotável.

[19:00h]

– A saída de Salles do ministério é mais uma baixa no núcleo duro de Bolsonaro e faz estrago ainda maior do que a queda de Araújo. O fato de ser mais um a cair sendo elogiado pelo chefe deixa ainda mais claro o contínuo enfraquecimento do besta, que não consegue manter no governo auxiliares de sua preferência pessoal. O leitor pôde e pode acompanhar neste blog essa trajetória descendente: vitorioso na eleição, Bolsonaro passou a atolado, e então a, blefador, rendido, desorientado, acuado, de joelhos e exasperado.

– A confirmação pelo STF da suspeição de Moro no julgamento de Lula é mais uma má notícia para Bolsonaro, e dupla: fortalece Lula e, por isso mesmo, dá espaço para Moro, que poderia se tornar não uma terceira via, mas o próprio representante da via que Bolsonaro tem desgastado com sua incompetência e truculência. Moro é o único que pode se tornar uma alternativa para boa parte do eleitorado mais afeiçoado a Bolsonaro, no caso de ele se desgastar a ponto de sugerir derrocada — afinal, esse pessoal que dá apoio aparentemente incondicional a Bolsonaro é neófito em luta política real, e tenderá a se encolher, não a se radicalizar, se a conjuntura se revelar irremediavelmente adversa ao “líder”. Esse cenário tenderá a ficar nítido nas ruas, à medida que as manifestações contra Bolsonaro crescerem (como tudo indica que vai acontecer). A movimentação bolsonarista de rua se expandiu no vácuo gerado pelo coronavírus. Com a oposição na rua, o desânimo deles tenderá a aparecer.

COMENTÁRIO À POLÍTICA CONVENCIONAL

Carlos Novaes, 19 de junho de 2021

Ciro Gomes precisa dar um rumo digno para sua história política, e ele não o fará se insistir em ser um candidato inviável à presidência da República, especialmente se essa insistência se der em busca do apoio eleitoral de facções à direita do espectro político convencional, movimento fadado ao insucesso e que deixará o PDT em situação fragilíssima. A direita convencional jamais confiará a Ciro (e, menos ainda, ao PDT) a condução dos seus interesses — o que é outra maneira de enxergar a inviabilidade de uma indesejável “terceira via” das facções.

Se quiser evitar o fiasco que se anuncia para sua candidatura à presidência, Ciro precisará dar dois cavalos de pau para realizar um lance de mestre: primeiro, parar de insultar e caluniar gente decente que pensa diferente dele; segundo, parar de empregar o linguajar da direita, a violência dos autoritários e a intemperança dos irritadiços ao fazer o necessário e oportuno combate político ao Lula; terceiro, reunir os dois cavalos-de-pau anteriores para dar potência a um lance de mestre: ser candidato a governador de São Paulo fazendo oposição ao PT e se apresentando como alternativa tanto ao bolsonarismo arrependido do PSDB, quanto ao frentismo de Boulos, representante mais notório da autointitulada esquerda aderida ao Lula.

Ao realizar esse movimento, Ciro livraria o PDT de um naufrágio certo, abriria uma alternativa para si, e colocaria vários candidatos do partido em boas condições nas disputas regionais pelo Brasil afora, especialmente nas eleições para a Câmara e para Governador, cujos candidatos, entre outras vantagens, se livrariam do desgaste de ter de “cristianizar” a inviável candidatura presidencial de um correligionário.

E SE BOLSONARO FOR O FAUSTÃO DA POLÍTICA?

Carlos Novaes, 17 de junho de 2021

Longe de mim pretender injustiçar o Faustão comparando-o a Bolsonaro como pessoa ou personagem público. Mas pode haver uma simetria formal, que independe de uma comparação de conteúdo.

Faz mais de vinte anos estudo e pesquiso televisão, testando material audiovisual do telejornalismo à telenovela, passando por programas de auditório, minisséries e talk shows. Lá nos idos de 2003-2005, em um dos mais longos e detalhados estudos que fiz, amplamente amparado em pesquisas em tempo real com telespectadores, examinei a performance de apresentadores como Silvio Santos, Ratinho, Gugu e Fausto Silva. Uma das surpresas (pelo menos para mim) desse esforço foi a descoberta de que Fausto Silva era o menos apreciado pelos telespectadores, não obstante comandasse o programa de maior audiência. Em 2016, ao discutir aqui simetrias entre o “domingão da política” e o “domingão da TV”, tive oportunidade de mencionar, de passagem, o que aprendera sobre Fausto Silva mais de uma década antes, e escrevi:

“A se debater em meio às rotinas propriamente políticas do legado paisano da ditadura, a sociedade brasileira tem nos domingos televisivos rotineiros a reiteração por assim dizer cultural desse legado, não apenas na versão mais retrógrada de um Silvio Santos perturbado, com tiques de déspota senil e aparentemente inofensivo, a simular harmonia familiar enquanto arruína o negócio dela; mas também, e sobretudo, com Fausto Silva, em seu Domingão do Faustão, um programa a que as pessoas assistem não obstante estarem sempre prontas a declarar desapreço pelo apresentador. Qualquer um que venha pesquisando TV profissionalmente sabe que Fausto é visto pelo público como alguém que “não deixa os outros falarem”, sendo frequentemente classificado como “autoritário”, “grosseiro” ou “rude” pelo telespectador que, ainda assim, continua a assisti-lo: abandonado a rotinas, esse telespectador imagina encontrar no palco do “Domingão” a “vida real” do elenco ficcional da Globo; mais ou menos como o eleitor que depois de ter votado para o legislativo segundo rotinas sonhou encontrar na sessão dominical do impeachment um representante à altura dos desafios da hora presente.”

De modo que foi nada surpreendente para mim a reação do público ao trabalho do substituto de Faustão no último Domingão — na verdade, Fausto era um personagem cuja substituição o público desejava sem exatamente sabê-lo. O modo ameno, quase carinhoso de Leifert ajudou a compor o quadro.

Ao contrário do que muitos pensam, entendo que para além de tudo que já há de explícito contra Bolsonaro, o modo crispado e exasperado de ele exercer o cargo já deu, havendo contra ele um desejo profundo de substituição, em parte considerável do público não exatamente pelo conteúdo, mas pela forma: as pessoas estão fartas dos irritadiços e querem alguém mais ameno na presidência da República (virão daí dificuldades adicionais para Ciro Gomes).

O EQUÍVOCO DO FRENTISMO CONTRA BOLSONARO

Carlos Novaes, 12 de junho de 2021

Há anos o esforço maior deste blog é discutir a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, mostrando como essa crise se torna dia-a-dia mais aguda com a intensificação da luta entre as facções estatais em busca de poder para fazer dinheiro através do exercício faccioso dos poderes institucionais. Essas facções fazem seu jogo de costas para a imensa maioria da sociedade brasileira e vem daí a sensação correta de que Estado e sociedade estão separados no Brasil. A crise é de legitimação porque a imensa maioria da sociedade já não reconhece como legítimo o Estado de Direito Autoritário, que mata e pune fazendo uso ilegítimo da força; rouba fazendo uso ilegítimo do poder de contratar; cria privilégios para alguns enquanto desampara a maioria fazendo uso ilegítimo do poder de distribuir verbas; promove a injustiça fazendo uso de um sistema tributário ilegítimo, que obedece à máxima de que “os ricos não podem perder”, enquanto esmaga as camadas médias e esfola o povo pobre; condena o país ao atraso fazendo uso ilegítimo do poder estatal para, ora manter, ora reforçar o que há de pior na estrutura econômico-social do país: a desigualdade.

A imensa maioria da sociedade já enxergou tudo isso e muito mais, mas o faz de maneira desigual, segundo preferências em conflito, pois nossos cérebros não poderiam mesmo concatenar de uma hora para outra, de modo coletivo, as razões e os afetos suscitados por esse conjunto de desafios, que nos são apresentados em meio a sofrimentos que não param de crescer numa luta pela vida cada vez mais dura. Sem saber como, temos de enfrentar de uma só vez duas urgências: uma urgência social e uma urgência por ordem. Como já discuti aqui, a dificuldade de concatenação mencionada arrastou a maioria da sociedade brasileira a se dividir opondo essas duas urgências, ao invés de procurar uma saída que encare o fato de que as duas urgências são mutuamente dependentes. Vem daí, em última instância, a mais nova polarização fajuta, Lula x Bolsonaro. Nem Lula é resposta para a urgência social; nem Bolsonaro é alternativa à urgência por ordem, como detalhei quando discuti Haddad x Bolsonaro em 2018. A maioria da sociedade brasileira marcha no pátio do seu labirinto.

Para piorar a situação, como Bolsonaro orienta seu governo criminoso segundo o desejo delirante de se tornar um ditador, criando com isso toda sorte de tensão institucional, a maioria da intelectualidade brasileira e a nossa autointitulada esquerda encontraram uma oportunidade para, ao defenderem as franquias democráticas agredidas pelo desejo ditatorial de Bolsonaro, acabarem por entrar no beco sem saída de defender este Estado de Direito Autoritário como se ele fosse um Estado democrático de direito. Com isso, ficam todos na contramão do virtuoso vetor saído dos sentimentos conflitantes da maioria da sociedade brasileira: a crise de legitimação do Estado que a massacra. Em suma, esses bem pensantes ficam a defender um Estado que a maioria de nós já não quer!

Esse é o equívoco básico da “Frente” contra Bolsonaro, não sendo surpresa alguma que esse “frentismo” rapidamente tenha vindo a dar saltos para o nada. Primeiro pularam fora os oportunistas, que logo puseram na rua suas candidaturas. Mais adiante, a volta de Lula ao cenário eleitoreiro com aura de injustiçado (que o foi!) soterrou de vez o “frentismo”, visto que a força de Lula escancarou uma das fraquezas mais evidentes da ideia de Frente: na verdade, falava-se em frente porque não havia ninguém em condições de liderar o campo antiBolsonaro… Com o revigoramento de Lula… Finalmente, temos agora uma nova versão do “frentismo”, cujo principal teórico é o professor de filosofia da UNICAMP e presidente do CEBRAP, Marcos Nobre, que acaba de descobrir o papel do segundo turno numa eleição presidencial em dois turnos: promover a reunião de quem pensa de modo semelhante contra o candidato a quem rejeita…

Em entrevista recente, Nobre pretende dar fundamento à sua descoberta com três ideias básicas: (i) nossas instituições estão em colapso; (ii) se perder a eleição, Bolsonaro tentará dar um golpe; (iii) Bolsonaro é um candidato fortíssimo.

(i) Bem, Nobre está a chamar de “colapso das instituições” a crise de legitimação do Estado, só que ele vê essa crise pelo lado do Estado, não pelo lado da maioria da sociedade. Note bem leitor, Nobre fala de “colapso” como se esse tal colapso nada dissesse acerca da qualidade da prática propriamente institucional dessas instituições estatais. Por isso, ele defende o Estado. Ora, essas instituições estão voltadas para dentro de si mesmas porque são, faz tempo, teatro de uma luta entre facções estatais pelo exercício faccioso dos poderes institucionais. Esse encapsulamento nas instituições só cresce, como estamos a ver todos os dias e é por isso que a maioria da sociedade já não as legitima. Peguemos casos recentes: como não ver facciosismo quando Pazuello não é punido; ou quando a Polícia Civil do Rio mata a esmo no Jacarezinho; ou quando a Caixa lança um programa de crédito voltado à PM com 100% de financiamento da casa própria; ou quando Fux direciona a dedo a distribuição de processos no STF; ou quando o deputado Silveira é preso ao arrepio da lei; ou diante de um orçamento paralelo que permite a certos deputados comprarem tratores por cinco vezes o preço; ou quando mineradoras e madeireiras encontram aliados nos órgãos ambientais; ou quando a FUNAI se volta contra os índios?!

(ii) Não é que Bolsonaro pode tentar um golpe. Não. Ele vem tentando faz tempo. Afinal, o que têm sido as manifestações antiinstitucionais dos últimos anos senão tentativas de golpe, ainda que na forma de blefes?! Só que, como detalhei aqui e aqui, a besta tem se deparado com a rejeição da maioria da sociedade brasileira a mais autoritarismo (afinal, essa maioria entende ilegítimo nosso Estado de Direito Autoritário não por ele ser de Direito, mas por ele ser Autoritário…) e na falta de apoio das FFAA (que estão à vontade com o autoritarismo já em vigor). Se perder a eleição, como é mais provável, Bolsonaro ainda terá contra suas pretensões golpistas a materialidade dessa derrota, quer dizer, a maioria do eleitorado terá lhe dado as costas. Logo, o desejo delirante de Bolsonaro de se tornar ditador não deve servir para desenhar nenhuma tática e, muito menos, para orientar qualquer estratégia na luta por um Estado de Direito Democrático para o Brasil. O que Nobre propõe é o que também o Centrão e os militares querem: a restauração do estado de coisas anterior a Bolsonaro, justamente o que nos levou a Bolsonaro…

(iii) Não temos como antecipar a força eleitoral de Bolsonaro em 2022. Contra ele há tudo o que sabemos; a favor dele pode haver uma melhora sensível na economia e o arrefecimento da pandemia. Quanto essas “melhoras”, se ocorrerem, compensarão os sofrimentos e contrariedades havidos? Não sabemos. A julgar pelos dados hoje disponíveis, as escolhas de Bolsonaro o fixaram na contramão das preferências da imensa maioria da sociedade brasileira, o que torna muito difícil uma vitória eleitoral numa eleição disputada em dois turnos, por mais competitivo que ele venha a ainda se mostrar. Agora, se não houver “melhoras”, não há porquê descartar uma vitória de Lula já no primeiro turno.

Enfim, não precisamos de Frente alguma para enfrentar Bolsonaro, ainda menos se o programa da Frente for restaurar a situação anterior a Bolsonaro (como se isso fosse possível…). Precisamos reunir forças para construir um projeto que nos permita combater a desigualdade na direção de um Estado de Direito Democrático articulando as nossas duas urgências, a urgência social e a urgência por ordem. Se não houver essa reunião de forças até a eleição de 2022, voltaremos a nos dividir tão improdutivamente quanto em 2018 e, nessa situação rebaixada, cada um escolherá o que parecer menos pior, o que nos levará a fazer maioria contra Bolsonaro, se ele estiver no segundo turno.

Fica o Registro:

– Faz algum tempo, discuti em mais de um post neste blog indícios de que a luta entre facções estatais havia chegado ao Exército. Tempos depois, ponderei que a defesa do impeachment de Bolsonaro era contraproducente quando se almeja construir no Brasil um Estado de Direito Democrático, pois o vice-presidente da República é o general Mourão, que se chegar ao poder dará ainda mais coesão ao facciosismo militar. Mais recentemente, apontei a dinâmica facciosa dos militares em torno de Bolsonaro e discuti porque eles não entrariam na aventura de um golpe para dar ainda mais poder ao besta: além de já estarem sendo atendidos pela situação atual, se participassem de um golpe a favor de um mandatário impopular eles não poderiam deixar de se transformar em força auxiliar da PMilícia. Por último, ao analisar a caso da indisciplina de Pazuello, observei que a decisão de não puni-lo abriu o Exército para a lógica da PMilícia, que reside na quebra permanente da hierarquia militar em favor da disposição para o uso danoso da força. Ainda que essa decisão do alto comando militar tenha sido um recuo tático para melhor enfrentar o golpismo de Bolsonaro, e não uma capitulação diante do aspirante a ditador, o fato é que essas intenções dos agentes valem pouco diante da dinâmica criada pela força dos fatos: pode haver incremento à insubordinação e à quebra da hierarquia.

– Para acompanhar essa dinâmica propriamente militar vejo como fonte interessante o coronel da reserva Marcelo Pimentel Jorge de Souza. Em entrevista recente, ele fala do que intitula um Partido Militar, chefiado por generais da reserva e da ativa e voltado a ocupar e permanecer no poder sem um golpe como o de 1964. Olhada com atenção, a reflexão do ex-coronel mostra em detalhes o funcionamento faccioso desse braço político dos militares, sendo útil substituir a metáfora “partido militar” pela designação mais apropriada de facção, providência que joga luz na crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que nos foi legado pela transição democrática truncada.

– O voto impresso vem sendo combatido de maneira improdutiva porque o argumento básico é condená-lo como um “retrocesso” quando comparado ao avanço tecnológico alcançado com o voto virtual. Esse fetiche tecnológico bloqueia discutir o principal. O problema com o voto impresso é político, seja num sentido analítico, seja num sentido prático. De uma perspectiva analítica, ao imprimir o voto para a verificação pelo eleitor se dará a ele um poder contraproducente (e que ele jamais teve!): o poder para conferir o seu voto individual. No sistema antigo, uma vez aberta a urna, eleitor nenhum poderia identificar nela o seu voto. Às mesas de apuração cabia conferir as cédulas e apurar os votos. O fundamento de um sistema eleitoral, seja o voto em papel ou eletrônico, é realizar a conferência depois que o eleitor, ao delegar a parcela de poder que o seu voto representa, delegou também a competência para que se faça a conferência da preferência embutida nessa delegação. No caso do sistema adotado no Brasil, a conferência eletrônica pode ser verificada e acompanhada por vários agentes independentes e concorrentes, não havendo ganho nenhum em transferi-la para o eleitor individual. Do ponto de vista prático, se está a abrir a possibilidade de que eleitores interessados em impugnar os votos de determinadas urnas, ou motivados a tumultuar a hora da eleição, apontem defeito inexistente, pois sendo o voto secreto, não será possível tirar de pronto a prova.

EXÉRCITO TRANSPÕE AS “QUATRO LINHAS” E ABRE CAMINHO PARA A LÓGICA DE MILÍCIA

Carlos Novaes, 03 de junho de 2021

O que sempre soubemos: Bolsonaro nunca aceitou a disciplina do Exército e tampouco perdoou os dissabores vividos na força, que o puniu por atos de indisciplina. A novidade: ao decidir não punir a participação do general Pazuello, da ativa, em ato político de apoio a Bolsonaro, o comandante do Exército se rende à indisciplina do ex-tenente que almeja montar um exército seu para tornar-se ditador.

Não punir Pazuello é abandonar o regulamento do Exército, favorecendo a indisciplina coletiva e seu desdobramento mais direto: a quebra da hierarquia. Quebrar a hierarquia militar da PM tem sido a atitude básica dos agrupamentos milicianos, nos quais manda quem for mais resoluto na hora de provocar danos, independentemente de patente.

A maioria da sociedade brasileira já não pode enxergar o Exército sequer como uma instituição do Estado de Direito Autoritário, pois o que acaba de acontecer é um passo além das “quatro linhas” até do autoritarismo do Estado de direito brasileiro. Ao optar por uma decisão tão contrária à preferência de muitos dos seus pares, encolhendo-se para preservar rotina de benesses, o comandante do Exército põe a crise de legitimação do Estado em um patamar que encoraja os delírios ditatoriais de Bolsonaro.

TERCEIRA VIA, DUAS ROLHAS E MAIS UM IMPEACHMENT

Carlos Novaes, 26 de maio de 2021

O golpe contra a inepta Dilma deixou claro que “condições políticas” para o impeachment de um presidente da República podiam ser fabricadas a gosto pelos políticos profissionais com assento no Congresso, como explorei em série e artigos da época. Outrossim, a dinâmica política explicitada naquele golpe teve como resultado o escancaramento da luta de facções e a desmoralização do Congresso enquanto agente depositário das esperanças por dias melhores para a maioria da sociedade brasileira. Tendo ficado claro que o dispositivo do impeachment não garantia nada mais do que a repetição do circuito malsão, pois o problema está sobretudo no Congresso, os políticos profissionais passaram a ser confusamente execrados por grande parte da sociedade, em mais um sintoma da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que levou à vitória de Bolsonaro.

Embora os motivos miúdos, propriamente empíricos, sejam diferentes nos dois casos, o fato é que não há impeachment contra Bolsonaro pela mesma razão que não houve impeachment contra Temer: o Congresso não tem legitimidade política para propor o impedimento político do presidente da República. Por mais que a imprensa convencional alardeie a CPI e promova Renan (logo quem!!), já não há trouxas suficientes para legitimar essa “solução” política para os nossos problemas. Para quem não é tonto, os políticos profissionais se tornaram farinha do mesmo saco e essa é uma briga entre eles para benefício deles (ainda que a lâmpada de Diógenes possa mostrar exceções).

Bem sei que a “governabilidade” dos mandatos de Temer e Bolsonaro foi comprada ao Congresso (há sábios calculando a eficiência dessa compra), mas entendo essa capacidade de compra como resultado da própria crise de legitimação que, entre outras coisas, impede o impeachment. Quer dizer: o Congresso discute preço e aceita pagamento para dar governabilidade a um presidente claramente impopular porque não havendo grandes manifestações de rua pelo impeachment de um presidente impopular (pois a maioria da sociedade já não acredita neste mecanismo como solução política), para a maioria dos congressistas o impeachment continua a ser menos rentável do que o toma-lá-dá-cá.

Em suma: só haverá impeachment quando a política dos profissionais for deixada de lado e contingentes esmagadores forem às ruas entendendo que um presidente deva ser afastado do cargo por um crime não apenas claro e repugnante, mas pelo qual a pessoa se sinta realmente atingida. Numa situação assim, a maioria da sociedade usará o Congresso como mero dispositivo para livrá-la de um criminoso intolerável, engolindo a repulsa que tem pelos profissionais. Uma vez engolida, a repulsa teria de ser expelida, o que abriria novas possibilidades de luta. Infelizmente, até agora nem o coronavírus levou a maioria da sociedade a esse ânimo novo.

O revigoramento eleitoral de Lula é, entre outras coisas, sintoma desse impasse: com o impeachment desacreditado como solução política, e sem ativa e generalizada indignação anticrime contra o besta, a vontade de mudança dos descontentes com Bolsonaro se volta para o calendário eleitoral, o que dá novo empurrão à antecipação da campanha de 2022 que Bolsonaro já havia suscitado quando, aos blefes, passou a acompanhar (com idas e vindas) as manifestações das suas hordas autoritárias. Daí a precoce e precária polarização entre Lula e Bolsonaro, com o segundo turno parecendo se desenhar ainda antes do primeiro o turno, um estado de coisas que sacramenta a CPI como mero adereço cenográfico para o teatro eleitoral de 2022, conjunto que dá fluxo à inércia do jogo de facções que tenta contornar a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, pois ninguém pode ignorar que a maioria do Congresso não vê senão como variantes do mesmo jogo ter Lula ou Bolsonaro como presidente.

Dessa perspectiva, podemos ver o alcance danoso dessa polarização:

–  Lula e Bolsonaro funcionam como rolhas a impedir o surgimento do novo em seus respectivos campos, o que faz deles expressão acabada da falta de alternativas que caracteriza a prolongada crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário;

– são quase nulas as chances de que a sociedade se mova na magnitude necessária a empurrar para fora do cargo, antes da eleição de 2022, o repulsivo criminoso Bolsonaro (o que não seria de todo perdido se o intervalo fosse preenchido com a construção de uma alternativa centrada no combate à desigualdade e orientada para um Estado de Direito Democrático);

– Lula ganha ímpeto para uma eleição da qual, se vencer, sairá para entregar menos do mesmo, o que é outra evidência da sua inserção no jogo das facções em meio a uma crise de legitimação do Estado que ele, a autointitulada esquerda, os centros e as direitas defendem como um Estado democrático de direito.

Ter em mente o que acaba de ser dito ajuda a entender tanto a sensação crescente da inviabilidade de uma “terceira via” (entendida no sentido convencional ou no sentido transformador), quanto a impressão de que Lula pode ganhar no primeiro turno.

A terceira via convencional parece inviável precisamente porque qualquer dos candidatos de costume (Ciro, Marina, Dória, Jereissati) ou aventados como novidadeiros (Huck, Amoedo, Mandetta, Boulos, Moro) desde sempre se apresenta como integrado ao que precisa ser deixado para trás: o marco institucional construído nos últimos trinta anos que, não obstante autoritário, é defendido por todos eles como um Estado democrático de direito (daí a adesão ao “frentismo” por parte de todos eles). Esse é o fundamento último para o fato de todos esses personagens surgirem tão parecidos em sua inviabilidade e, por isso mesmo, gastam a maior parte do tempo buscando improvisar alianças entre si, como se a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário não estivesse a exigir uma alternativa real. Note leitor como cada um desses candidatos, seja do grupo costumeiro, seja do grupo novidadeiro, pode ser imaginado fazendo aliança eleitoral com praticamente quaisquer dos outros, aí incluído o Lula, o qual, também por isso, pode simular que significa uma alternativa, e não a rolha que impede o surgimento de uma alternativa real. Como Bolsonaro é a encarnação macabra (e inefetiva) do espectro permanente da ameaça ditatorial, todos esses candidatos se dizem contra ele usando a defesa da democracia como biombo para esconderem a precariedade do que propõem.

A terceira via transformadora depende de um projeto consistente que reúna as nossas duas urgências: a urgência social e a urgência por ordem, como expliquei detalhadamente aqui, aqui, aqui e aqui. Ora, na polarização eleitoreira Lula x Bolsonaro, o primeiro funciona como rolha a impedir o surgimento do novo no campo da urgência social e o segundo é a rolha a entulhar o campo da urgência por ordem. O primeiro trata a urgência social com políticas compensatórias; o segundo trata a urgência por ordem com porrada. Todos os outros candidatos estão desequipados para liderar uma alternativa transformadora porque sequer reconhecem o básico: precisamos reunir as duas urgências para que a maioria da sociedade brasileira pare de sofrer desnecessariamente sob o atraso imposto por esse Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação. Enquanto a necessidade desse projeto não ficar clara, vamos ficar a oscilar entre as emoções de momento. A emoção da vez é o injustiçado Lula.

PSEUDO-DESFECHO MELANCÓLICO, E DANINHO, DE UMA FARSA TRÁGICA

Carlos Novaes, 23 de maio de 2021

Lá atrás, na luta contra a ditadura paisano-militar em prol de um Estado de Direito Democrático, Lula apoiou FHC para o senado (1978). Mais adiante, eles estiveram meio juntos, meio separados na Constituinte (1988) e na eleição presidencial solteira, vencida por Collor num segundo turno em que FHC apoiou Lula (1989). No impeachment de Collor (1992), FHC e Lula estiveram outra vez juntos, mas contando com o apoio de parte do que restara do dispositivo paisano da ditadura também contrariado por Collor (p-MDB, ex-arenistas e seus satélites do Centrão). Os eventos em torno da eleição e deposição de Collor (incluindo o nefasto papel da Globo) deixaram claro o caráter truncado da transição democrática: o entulho autoritário ainda jogava um papel central na vida política do país, sendo indispensável derrota-lo para construir um Estado de Direito Democrático.

O início dessa construção requeria uma aliança entre PSDB e PT, as duas forças nascidas da luta pela democracia. Por isso mesmo, em 1993, estava no ar a possibilidade de uma aliança entre PSDB e PT para, na eleição de 1994, derrotar o que restara da ditadura. Ministro da Fazenda de Itamar Franco, FHC construiu naqueles dias o Plano Real, Lula ficou contra, e consolidou-se entre eles uma polarização nefasta e fajuta: nefasta porque para derrotarem um ao outro precisaram nutrir o entulho autoritário; fajuta porque eles polarizaram para (i) fazerem as mesmas coisas e (ii) entregarem ao país o mesmo resultado: aliados ao entulho autoritário, (i) fizeram políticas compensatórias para os pobres obedecendo ao dogma de que os ricos não podem perder, e (ii) nos entregaram o Estado de Direito Autoritário, cuja crise de legitimação nos trouxe a Bolsonaro, que não é senão o representante do entulho autoritário nutrido pelas escolhas de Lula e FHC, ainda que eles não o soubessem e, muito menos, o pretendessem, é claro.

De modo que é simplismo imaginar que Bolsonaro seja filho do golpe do impeachment contra Dilma, iniciado pelo PSDB, ou da corrupção do PT, mais visível na roubalheira havida na Petrobrás. Na verdade, tanto o golpe contra Dilma como a corrupção do PT já foram elementos da deterioração do papel de protagonistas que ambos vinham desempenhando na polarização fajuta, conjunto anterior ao facciosismo da LavaJato: pelo lado do PSDB, Aécio questionou a legitimidade da vitória de Dilma apenas para “encher o saco”, mas não viu que a sua metade do entulho autoritário já sentia-se forte o suficiente para apoderar-se da molecagem e dar o golpe; pelo lado do PT, Lula legou a Dilma a corrupção (mensalão, petrolão, etc) com que contentara a sua metade do entulho autoritário, sem perceber que uma hora eles se julgariam fortes o bastante para dispensá-lo e, até, colocá-lo na cadeia — a LavaJato foi o terreno para essa guerra de facções. Ou seja, o que PSDB e PT apontam reciprocamente como causa para o surgimento de Bolsonaro são recibos de suas respectivas cegueiras para o que de pior fizeram: mantiveram as forças da ditadura paisano-militar em banho-maria enquanto fingiam combater o que sustenta toda essa (des)ordem autoritária, que rouba e mata: a desigualdade.

Por isso mesmo, nem PSDB, nem PT reconhecem seja que sofremos sob um Estado de Direito Autoritário, seja, muito menos, que esse Estado está em crise de legitimação. Reconhecer o caráter autoritário do Estado que eles construíram acabaria com a fantasia de que vivemos sob um Estado democrático de direito; reconhecer a crise de legitimação desse Estado denunciaria a própria ilegitimidade da ação política deles, o que desnudaria como ridículas as suas atuais pretensões de protagonismo conjunto. O encontro recente de FHC e Lula visando 2022 deveria ter ocorrido em 1993, e trinta anos de más escolhas não podem ser simplesmente abolidos pelo encontro amistoso de dois velhotes.

Como não poderia deixar de ser, esse encontro vem suscitando as mais vivas comemorações por parte daqueles que estão agarrados a este Estado de Direito Autoritário, especialmente nos “frentistas” da nossa autointitulada esquerda, ansiosos por mais uma falsa solução para os nossos problemas, querendo nos fazer acreditar que o Brasil precisa de uma restauração, não de uma transformação. Para essa mágica, precisam tomar os blefes de Bolsonaro contra as franquias democráticas como uma ameaça real, como se o besta pudesse, mesmo, suprimir o que de democracia há em nosso Estado de Direito Autoritário. Já vimos em muitos posts deste blog as explicações para a crescente desmoralização de Bolsonaro, já integrado ao velho normal, embora como uma versão especialmente danosa dele – mas danosa não contra as franquias democráticas, e sim contra o que sempre foi negligenciado por PSDB e PT: o exercício faccioso dos poderes institucionais contra os pobres e pretos, contra os índios, contra o meio-ambiente, tudo sob a solda da corrupção e em favor de reunir poder para fazer dinheiro, sem tocar, é claro, nos interesses dos donos do dinheiro.

Só a reunião de cegueira, covardia e oportunismo permite a alguém embarcar num arranjo desses!