Arquivo da categoria: REFORMA POLÍTICA

Posts antigos e novos sobre o tema da reforma política. Eles trazem reflexões sobre financiamento público de campanhas eleitorais, voto em listas partidárias, candidaturas avulsas e outros temas.

ACERTO ENTRE A RAPOSA E O AVESTRUZ

Carlos Novaes, 02 de agosto de 2017

A vitória que Temer acaba de obter na Câmara dos Deturpados dá uma boa ideia do que seria consagrado com a adoção do parlamentarismo. Esse autêntico “parlamentarismo de ocasião” neutraliza temporariamente a contradição Executivo x Legislativo através de uma esdrúxula governabilidade da minoria. Esse arranjo aberrante é mais uma explicitação da guerra de facções de que é palco o Estado de Direito Autoritário. Ontem, na ponta oposta às facções vitoriosas de hoje, a facção integrada por Janot voltou acertadamente a pedir a prisão de Aécio, num exercício faccioso dos poderes institucionais ainda mais escancarado do que da primeira vez, pois agora fez a solicitação indicando a primeira Turma do STF, que lhe parece mais afinada com suas preferências.

Enquanto isso, o PT finge querer derrubar Temer, e o PSDB orienta o voto contra o golpista, enquanto não desgruda dos cargos ministeriais que ocupa e, por isso mesmo, deu votos para protegê-lo. Nesse festival de hipocrisia e cinismo, a sociedade fica no papel de marido traído que se recusa a tirar consequências do que está evidente: o mundo político mandou às favas a opinião pública precisamente porque está certo de que a sociedade não vai se mexer.

Embora não faltem políticos profissionais certos de que o eleitorado sequer vai se lembrar do que se passou, os mais precavidos estão a preparar legislação eleitoral que os proteja da ira do eleitor que for ao voto usinando a memória recente: estão para aprovar o voto em lista, de modo a não terem que pedir o voto para si. Pela modalidade aventada, mas ainda não aprovada, os nomes de quem exerce mandato legislativo teriam preferência na lista, de modo a oferecer alguma garantia de reeleição a esses deturpados que nos infelicitam, levando-os, assim, a aprovarem a mudança. Na outra ponta, a do financiamento das campanhas eleitorais, embalados pela mentira de que são elas, as campanhas, a causa da corrupção, eles preparam um assalto ao Tesouro Nacional da ordem de 4 bilhões de reais para o chamado financiamento público. Ou seja, como já discuti aqui, querem, na mesma jogada cínica, se livrar de ter de pedir voto e dinheiro.

Num cenário desses, a separação entre eleito e eleitor se tornaria ainda maior do que já é, situação que escancara o que há de contraproducente na nossa inércia: eles não param, e não irão parar de apostar numa ordem política democrática de novo tipo, pela qual uma participação eleitoral segundo ritual democrático acabará sempre por legitimar um exercício faccioso dos poderes institucionais voltado a manter a desigualdade exercida contra os interesses de pelo menos 80% da população, o que é o oposto do que se poderia almejar para uma democracia consolidada e só nos poderá levar na direção de uma regressão autoritária.

O impasse em que se encontra o país, que, opõe, de um lado, mais de 80% do eleitorado preferindo a remoção de um gestor que conta com apenas 5% de aprovação popular e, de outro lado, uma camarilha facciosa de representantes comprados com recursos subtraídos da gestão pública precisamente para sustentar esse gestor repelente; um impasse assim — em que a imensa maioria não consegue fazer valer uma preferência tão clara contra os interesses nocivos para si de uma minoria que se pode tão facilmente estigmatizar (e já estigmatizada!), só se explica pela seguinte ordem de fatores:

– a desigualdade é tão grande que levou a uma autonomia sem precedentes da política profissional em relação à sociedade, autonomia que caracteriza tanto as instituições de representação do Estado, como as da sociedade (parlamentos, sindicatos, associações, etc);

– essa autonomia gerou um espírito de corpo que faz dos profissionais da política (no Estado e na sociedade) um “grupo” com interesses próprios, ainda que atravessado por conflitos em torno de desfrute do exercício faccioso dos poderes institucionais, conflitos que eles buscavam resolver através das disputas eleitorais entre si;

– as contradições de um modelo assim perverso aumentaram, a ponto de opor momentaneamente os braços empresarial e político profissional do establishment, e os conflitos já não podem esperar eleições para serem resolvidos: a luta de facções ganha corpo dentro do próprio aparelho de Estado, conflagrando as instituições e explicitando a crise de legitimação que um Estado assim não pode deixar de engendrar;

obnubilada pelas paixões subalternas despertadas por essas disputas eleitorais, aturdida pela balbúrdia das facções — cenário em que o que há de renhido tem muito pouco que ver com diferença de ideias; pelo contrário, em larga medida se explica pela motivação igual de conquistar poder para fazer dinheiro – a sociedade ou se engaja como massa de manobra (e fica fazendo papel de boba nessa polarização PT-PSDB, por exemplo); ou fica de mero espectador desse balé dos enganos a que chamamos crise, à espera de que “alguém” protagonize a próxima volta no parafuso.

É por isso que o que se passou hoje na Câmara representa, de fato, a escolha feita pelo país. Todos os agentes, o Brasil inteiro, eleitores, políticos profissionais, situação e oposição, virtuosos e corruptos, polícia e ladrão, réus e juízes se acertaram para procrastinar: todos, ainda que cada um a seu modo, segundo seus próprios cálculos, estão a pagar para ver o jogo só em 2018. Façam suas apostas, ainda que Janot, parece, vá fazer mais uma.

FACCIOSISMO REPUGNANTE

Carlos Novaes, 22 de setembro de 2016

O Estado brasileiro se acha ocupado por facções entrincheiradas que lutam pelo poder para preservar os próprios interesses, que são, em última instância, subalternos ao interesse maior dos muito ricos: a manutenção da desigualdade. Por razões que já explorei em três das séries mais recentes publicadas neste blog, e em outros artigos conexos, esse blocão convulsionado formado pelos maiores partidos brasileiros assentados no Congresso (representação), por grandes empresas (mercado), por setores fundamentais da burocracia estatal (Judiciário e polícias) e pelo Executivo (gestão), esse blocão, como eu dizia, está de costas para a sociedade e briga entre si pelo proveito a ser tirado da ira popular que este descaso, deles próprios, gera.

Alguns lances recentes permitem ilustrar com clareza esse jogo nefasto:

– A aprovação em comissão do Senado (representação) de restrições à distribuição do Fundo Partidário, à posse em mandatos e do tempo de TV aos pequenos partidos.

A propaganda diz tratar-se de medidas para restringir o incentivo à manutenção e à criação de partidos de aluguel, melhorar a representação e tornar menos custosa a obtenção da governabilidade. Tudo falso, assim como outras feitiçarias, de que já tratei aqui.  No caso do Fundo Partidário, a mudança reforçará com mais dinheiro os partidos que já são grandes, distorcendo ainda mais nossa dinâmica de representação. Como há tempos defendi aqui (artigo onde também adverti sobre o papel futuro de Cunha na articulação da miuçalha da Câmara) e aqui, o Fundo Partidário tem de ser extinto, não concentrado em benefício de poucos. Isso sim acabaria com o incentivo aos partidos de aluguel. Temos de obrigar os partidos a correrem atrás do dinheiro, assim como têm de correr atrás do voto. O fato de que o p-MDB, nosso mais vistoso partido de aluguel, sairia dessa manobra com ainda mais dinheiro público é uma evidência de que essa mudança não nos serve.

No caso da restrição à posse em mandatos, a cláusula de barreira pretendida vai levar à perda de representação, reforçando o poder das rotinas já encasteladas no Congresso contra as forças da mudança atuantes na sociedade. Junto com o reforço da concentração do dinheiro do Fundo Partidário nos que já são grandes, a cláusula de barreira poderá significar o fim dos pequenos partidos autênticos, digam-se eles de esquerda ou de direita. Se somarmos a isso as restrições no acesso à TV, verdadeira mordaça contra quem pensa diferente, teremos o pior dos arranjos possíveis quando se pensa em consolidação da democracia.

O correto seria extinguir o Fundo Partidário (medida que seria mortal para os muitos partidos de aluguel de pequeno porte), se mantendo as normas atuais para a posse nos mandatos e distribuindo-se de maneira mais democrática o tempo de TV. As dificuldades que uma dinâmica de representação (Legislativo) desse tipo imporia para a gestão (Executivo) não seriam maiores do que aquelas que vêm sendo impostas pelos partidos de aluguel, sejam eles grandes ou pequenos. Na verdade, os cardeais do Congresso imaginam que essas mudanças tornariam mais fácil para eles submeter seus ávidos subordinados. Talvez eles tenham razão nisso, mas o custo para nós desse “sucesso” não seria menor do que esse que já vimos pagando pela briga miúda deles, pois a avidez final continuará a mesma.

 – Tentativa de descriminalização, na calada da noite e sem prévio aviso, dos esquemas de caixa2.

Ao lado da lei já aprovada, com o beneplácito do PT e do PSDB, para o repatriamento de dinheiro escondido, essa manobra tentada ontem, também com a participação de PT e PSDB, é das mais emblemáticas no esforço deles para conter o que ainda pode haver de danoso ao sistema político enquanto tal no teatro de operações da Lava Jato — sem prejuízo do que de danoso a facção paranaense ainda possa trazer ao PT, visto que não se trata de uma conspiração, mas de luta política no âmbito de uma abóboda de convergências ditadas pela profissão de político. Em suma, enquanto Temer marcha na direção da reação, o banditismo avança no Congresso Nacional, e a facção paranaense aprofunda seu unilateralismo espetaculoso contra o PT, como nessa prisão do ex-ministro Guido Mantega, revogada por Moro tão logo se deu conta de que havia, mais uma vez, ido longe demais.

Lá onde não chegar nosso cinismo é que será o ponto de partida para uma transformação nesse estado de coisas intolerável.

 

DERROTAR O ENTULHO DO p-MDB PARA NOS GOVERNAR COM RESTOS DA ARENA?!!

A culminância da transição “lenta, gradual e segura”

Carlos Novaes, 03 de abril de 2016

 

As conexões aventadas entre a morte do ex-prefeito Celso Daniel e o dinheiro corrupto das empreiteiras cúmplices dos políticos no roubo à Petrobrás acabam de trazer de volta à cena do crime figuras como OAS, Silvinho e Ronan Pinto. Diante de tudo o que até aqui já sabemos, essas conexões não são implausíveis, mas também ainda não foram confirmadas. Entretanto, o alarido da mídia, tão silente diante das conexões que vão além do lulopetismo, já dá a coisa como certa e a máquina da embromação continua seu trabalho a todo vapor: quanto mais queimado o lulopetismo mais espessa se faz a cortina de fumaça sobre todos os outros implicados na corrupção, e mais se prepara a catarse enganadora que virá com a posse de Temer depois de um eventual impeachment de Dilma.

Observemos de perto: embora iniciada na primeira instância do Judiciário, a Lava Jato já chegou faz tempo ao Supremo Tribunal Federal-STF, para onde foram, e têm sido, envidas as evidências colhidas contra políticos com mandato. Não obstante, as iniciativas novas do juiz Sergio Moro ainda continuem a roubar a cena, pois a Lava Jato não anda no STF. Por que as denúncias que envolvem, por exemplo, Aécio, Renan e Temer não geram investigações eficazes como as que nutrem Moro, mesmo o STF dispondo de mais recursos do que a primeira instância paranaense? Por que o grosso da mídia convencional se contenta com tão pouco, a despeito do que Delcídio e Cerveró já confessaram? Por que a investigação sobre o caixa2 da dupla Dilma-Temer não anda no TSE? A que destino levará o Supremo a Lava Jato com esse empenho em se certificar de que não houve coação às confissões de empreiteiros para Moro, especialmente se considerarmos que dizer-se coagido diante de uma instância superior leniente pode — sem anular os resultados políticos já alcançados — melar tecnicamente o processo? O Supremo é fôro privilegiado ou fôro (dos) privilegiados? Neste segundo caso, a Lava Jato terá servido apenas para eliminar o lulopetismo, salvando-se tudo o mais na Disneylândia da corrupção em que se divertem, faz décadas, e às nossas custas, políticos e empresários.

Um desfecho como este será a realização da unilateralidade da Lava Jato e a sociedade brasileira indignada terá feito papel de trouxa: um escândalo de corrupção que envolve todo o sistema político terá sido posto exclusivamente na conta do lulopetismo e, assim, nós pagaremos o pato para continuarmos a ser “representados” e “governados” pelos mesmos agentes corruptos de sempre. Para impedir um desfecho como este, precisamos ir às ruas. O problema é chegar às ruas e dar de cara com os restos do lulopetismo, que tão recentemente se lembrou de suas velhas bandeiras. E pior: está a desfraldá-las para ajudar Dilma a salvar seu mandato sensibilizando Malufs, Kassabs e companhia, com os quais terá de governar, então. Ou seja, todo o engajamento da auto-intitulada esquerda para salvar o mandato presidencial em que está agarrada depende de abrir espaço no governo para aqueles que sempre foram apontados por ela mesma como a besta-fera a combater!

Tanto o comportamento do STF, em palácio, quanto o da auto-intitulada esquerda, nas ruas, devem ser encarados como aspectos do mesmo mal: a autonomia da política em relação ao mundo real, onde estamos a maioria de nós.  De um lado, com a nossa inércia eleitoral quando se trata de fazer escolhas para o Legislativo, vimos, há décadas, elegendo delegatários, não representantes: nós votamos com negligência e eles autonomamente nos dão as costas. Além de terem conquistado fôro especial para si, esses delegatários negociam com o gestor da vez a escolha disputada dos juízes para o STF, instância do Judiciário que, política por força da lei, vem sendo moldada ao gosto da sua freguesia, os políticos corruptos: são laços difíceis de desatar, leitor. De outro lado, com a nossa inércia mental quando se trata de fazer escolhas para a mudança, vimos, há décadas, depositando esperanças em organizações que se especializaram em tirar proveito, para seus eternos dirigentes, da simulação da luta contra a desigualdade. Aboletados em seus postos, esses dirigentes criaram pra si um mundo não menos à parte de nós do que o dos políticos, e só recorrem às ruas quando entendem que é nelas que estão as possibilidades de continuação do seu joguinho: são práticas difíceis de combater, leitor.

A rua precisa ganhar um sentido novo, de pressão máxima ao palácio. Na conjuntura atual, nada é mais oportuno e adequado do que reivindicar eleições para a presidência da República e para o Congresso ainda neste ano de 2016, junto com a escolha de prefeitos e vereadores. Diante da desmoralização do Executivo e do Legislativo federais, deixemos ao eleitor decidir o futuro imediato — e ele o fará tendo ainda frescos os fatos trazidos à luz pela Lava Jato. Com essa medida, passaríamos a ter as eleições municipais e nacionais juntas, de quatro em quatro anos, permanecendo intercaladas as eleições para governador e deputados estaduais, que ficariam para 2018, como já previsto no calendário em curso. Contra uma providência simples como essa vão aparecer toda sorte de argumentos, brandidos pelos mesmos que defendem saídas, estas sim, inteiramente ineficazes e/ou artificiais, tais como o impeachment e o parlamentarismo. Invencionices como essas se destinam tão-somente a deixar a decisão sobre a situação política para os próprios políticos nela implicados, mais uma vez evitando o caminho óbvio, a consulta eleitoral ao povo. Vejamos:

– O impeachment de Dilma.  Não há, no processo em curso, nenhuma evidência de crime contra a presidente. O que há é um espalhafato que faz convergir contra Dilma todo o sofrimento que a crise tem trazido. Se aprovado o impedimento, tomaria posse um vice da República sem qualquer legitimidade (pois o afastamento da titular terá sido um golpe), e sem qualquer credibilidade (pois o vice tem sido vice em tudo o que de condenável se imputa a Dilma e, ademais, está implicado nos desmandos que vem sendo apurados). O impeachment, se aprovado, nos levaria a uma sucessão sem povo, o que é inaceitável numa situação destas. Por outro lado, uma vez derrotado o impeachment na Câmara, tampouco teremos uma solução para o país, seja porque Dilma já não reúne condições de governar, seja porque um governo dela, por organizado que fosse, não poderia ir além do loteamento de sempre, dessa vez reunindo minorias de triste memória, o que nos levaria a situação ainda pior.

– O parlamentarismo. Mesmo depois de recusado em dois plebiscitos por larga maioria de eleitores, esse continua a ser o sonho das elites deste Congresso corrupto, pois daria a elas o céu sem que precisassem morrer: a gestão do orçamento público viria para dentro do próprio parlamento, deste parlamento, sem ser mais necessário negociar com um presidente da República eleito diretamente pelo povo. Tudo se passa como se os problemas para obter a coalizão entre o Legislativo e o Executivo fosse uma decorrência de eles estarem separados, quando, na verdade, esses problemas existem precisamente porque eles operam segundo a mesma lógica: com base na reeleição infinita para o Legislativo instalaram-se rotinas voltadas a exercer o poder para fazer dinheiro. Em que o parlamentarismo alteraria essas rotinas na direção de mais eficiência e menos corrupção?

A hora é essa: ampliando o que já foi dito aqui, ocupemos as ruas em desobediência civil até que se convoquem eleições diretas para Presidente, Senador, Deputado Federal, Prefeito e Vereador em 2016. Chega dos mesmos!

Fica o Registro:

Este artigo já estava escrito quando, agora há pouco, li no UOL o editorial da Folha de S. Paulo de hoje, em que o jornal propôs a renúncia de Dilma, apelando para que Temer fizesse o mesmo, tudo no intuito de que “o poder retornasse logo ao povo” e não sem assinalar, como já fiz aqui, a necessidade de Eduardo Cunha ser afastado da linha de sucessão, uma vez que o país jamais aceitaria essa figura incontroversa na presidência da República. Entendo que o jornal foi até onde poderia ir. Dilma já respondeu ao editorial dizendo que não renunciará. Cabe a nós, em desobediência civil, irmos à rua exigir novas eleições para os cargos eletivos federais ainda este ano, junto com os municipais, inaugurando-se um novo calendário eleitoral para o país.

LULA, O PRIMEIRO-MINISTRO SONHADO PELOS TUCANOS

O feitiço se vira contra os feiticeiros, mas para salvá-los (diga o que disser FHC, o impoluto…)

Carlos Novaes, 16 de Março de 2016 — (15:45)

A ida de Lula para a Casa Civil da presidência da República com poderes para, além de fazer a articulação política com o Congresso, também alterar a política econômica do governo, ou seja, como um super ministro, significa a sua volta ao comando do país. Não deixa de ser irônico que seja mais uma vez Lula a tirar todas as consequências espalhafatosas de um projeto tucano vicário: Lula é o primeiro-ministro do semi-presidencialismo que dias atrás foi proposto pelo PSDB em sua incessante vontade de arremedar a França, cacoete que vem desde os tempos da academia uspiana.

Diga-se o que se disser de Lula, por mais defeitos que se lhe possam apontar, não há nele falta de coragem e de argúcia para explorar mesmo as menos propícias possibilidades de escape em situações difíceis. Foi assim em 2005, quando fez do mensalão a plataforma de lançamento do Lula incontrastável que a Lava Jato atingiu em pleno voo; e é assim agora, quando se lança num mergulho de flecha pois, mesmo com os recursos de navegação tão avariados, enxergou a única oportunidade de redenção realmente aberta: pode enquadrar Dilma e tentar salvar seu legado, o que implica, se conhecemos esse legado em toda a extensão do seu significado, estender a mão generosa a toda sorte de anjos caídos…

Que o leitor julgue, mas tenho como certo que Lula se decidiu pela ida ao ministério depois de ter ficado claro que Aécio vai passar a dividir com ele as honras da Lava Jato, pois as declarações de Delcídio requerem que se abra um processo contra o escorregadio tucano mineiro. Mas não pense, leitor, que eu estou indo na onda de supor que a decisão de Lula vem da disposição de lutar contra os tucanos, fazendo jus à polarização tola das ruas e da mídia convencional. Não. Os tucanos, mais uma vez, precisam de Lula, e desesperadamente. Lula vai para a articulação entre o Executivo e o Legislativo para salvar todo o sistema político do xeque em que foi colocado pela Lava Jato e, de quebra, oferecer uma saída confiável ao mercado, como não poderia deixar de ser. Lula volta ao planalto para dizer: “é assim que se faz, seus imbecis!”. Lula vai para o comando do país de modo a garantir que o Brasil continue a ser controlado por essa tralha que tão traiçoeiramente nos representa. Lula vira o primeiro-ministro que os tucanos sonharam ao preço de forçar o país a viver o pesadelo de uma tentativa desesperada de refazer a solda do Real. Nas linhas a seguir vou tentar explicar as afirmações acima. (Agora, se você é do tipo que acha meus artigos longos, leitor, faça o seguinte: não leia).

A crise política foi, finalmente, instalada

Confirmando desdobramento que tentei antecipar aqui e aqui, o encadeamento das denúncias de Nestor Cerveró e Delcídio Amaral arrastou o país a uma verdadeira crise política porque, com base nelas, a Lava Jato reuniu tanto evidências de crime envolvendo Dilma e a chapa Dilma-Temer, como achou a ponta do novelo tucano em Furnas. Essa crise política real é de superação complexa porque o nosso Congresso Nacional, instância na qual, em tese, se processam e superam as verdadeiras crises políticas, não tem legitimidade para enfrentar os desmandos do Executivo, e isso por duas razões principais: primeiro, porque seus principais líderes são líderes precisamente enquanto distribuem a seus pares poder e dinheiro obtidos de suas relações com operadores da corrupção concatenados com o Executivo; segundo, porque esse Legislativo federal veio desde o início da Lava Jato empenhado em produzir uma falsa “crise” política para precisamente encobrir a crise de representação que a ação comandada por Sergio Moro pôs a nu e feriu de morte, a saber: nossos representantes não nos representam, são antes delegados dos interesses dos grandes do “mercado” que, junto com eles, reúnem poder para fazer dinheiro na ciranda da desigualdade.

A “crise” política que os profissionais da política alimentaram no curso de 2015 para jogar no colo do Executivo toda a conta da corrupção, uma corrupção que, saída da desigualdade, está na raiz da ilegitimidade da representação deles, se voltou contra eles, se fazendo crise real, por três razões principais: primeiro, ao embaraçarem a ação do Executivo, deram tempo para que a Lava Jato acumulasse evidências não apenas contra a presidente, mas também contra eles mesmos; segundo, a fragilidade intrínseca de um Executivo sob Dilma, cuja capacidade defensiva contra a Lava Jato pôde ser embaraçada tão facilmente (ainda que com custos econômicos enormes para a sociedade brasileira), levou a cálculos precipitados sobre sua queda e, assim, ao afloramento sem controle das ambições conexas no p-MDB (embates entre Cunha, Renan e Temer) e no PSDB (disputas entre Aécio, Serra e Alckmin), com a correspondente dificuldade de concatenação da ação conjunta deles no Legislativo, o que deu ainda mais espaço, e tempo, para a ação do Judiciário, âmbito no qual a Lava Jato, apoiada no direito e na opinião pública, vem empurrando o STF a agir.

Ou seja, a crise (política e econômica) em que estamos mergulhados é, sobretudo, e antes de tudo, uma crise aguda do divórcio crônico entre os interesses do sistema político do país e os interesses da maioria da sociedade, que vem sendo ludibriada pelos políticos profissionais a fazer escolhas por um ou por outro dentre eles, quando, na verdade, nenhuma das forças políticas que se exibem no teatro de operações está a altura de oferecer uma alternativa. Exploremos as razões que nos levam a essa desorientação:

A desigualdade como problema político

Embora os números que atestam o caráter único da nossa desigualdade sejam conhecidos de toda gente e quase todo mundo fale contra essa mazela social e econômica, há pouca compreensão sobre o papel dela na nossa crise de representação política e nos males respectivos, com destaque para a corrupção. O desmanche do PT é apenas o mais vistoso exemplo do poder que a desigualdade tem de levar as organizações de ação coletiva surgidas para combatê-la a selecionarem como dirigentes justamente os militantes mais sensíveis à acomodação com ela. É que a pobreza é tão intensa e as dificuldades à ascensão individual se mostram tão intransponíveis, que todo grupo de pressão que se forma logo é chamado a ver as oportunidades de ganhos para si. É na peneira que separa os mais e os menos suscetíveis à acomodação que se dão as lutas internas iniciais. Em sociedades menos desiguais, as possibilidades de realização pessoal são maiores, e quem se interessa pela ação coletiva chega às organizações de reivindicação com seus problemas mais básicos já resolvidos, não sendo tão prementes as motivações do seu engajamento.

Os sindicatos brasileiros, sejam os ligados aos tucanos, sejam os ligados ao lulopetismo, são o melhor exemplo dessa distorção que tento agarrar nos estreitos limites deste artigo de blog, escrito sob as urgências do momento. A vida na máquina sindical é sempre muito menos cansativa e mais rendosa do que aquela que é imposta pela vida no trabalho. Além de escaparem à rigidez das relações de poder impostas aos seus representados pela estrutura empresarial, os sindicalistas gerem sem nenhuma fiscalização orçamentos não raro significativos, sem contar sequer com um arremedo de legislativo para fiscalizar o gasto do dinheiro à sua disposição – daí as disputas crescentemente violentas pelo controle da máquina sindical rentável, onde Executivo e Legislativo coincidem, em mais um arremedo de parlamentarismo.

No PT não foi diferente: Lula e José Dirceu foram os cabeças da seleção dos piores, numa prática que neutralizou pelo ostracismo, afastou por desencanto, ou enxotou com hostilidade, todos aqueles que se contrapuseram efetivamente aos seu métodos. O resultado foi uma máquina burocrática que, moldada por nulidades como Silvinhos, Delúbios, Vaccaris, Falcões, Okamotos e assemelhados, concentrou-se na prática de ganhar poder para fazer dinheiro. Esse apodrecimento precoce foi habilmente ocultado pelo manejo calculado de bandeiras embalsamadas caras aos agentes sociais sinceramente motivados à luta contra a desigualdade. Embora tenha sofrido um solavanco no mensalão, essa mentira serviu de barragem à mudança em todo o período Lula e, como não poderia deixar de ser, chegou sob pressão máxima no período Dilma, com os resultados desmoralizantes que conhecemos graças sobretudo à Lava Jato.

Uma desigualdade como a brasileira (ou a russa) engendra a corrupção precisamente porque impõe sofrimentos que atingem escalonadamente a imensa maioria da sociedade (como discuti aqui) e não podem deixar de gerar numerosa militância organizada contrária a eles; contingente no qual não chega a ser difícil selecionar interlocutores “confiáveis”, levados a se fazerem amigos da ordem desigual que de início combatiam (daí que na maioria das organizações haja tão pouca alternância, pois na imensa maioria delas se permite a danosa reeleição infinita – tal como no poder Legislativo…). Na outra ponta, setores empresariais apregoadores de supostas leis de mercado, mas altamente dependentes do dinheiro público, demonizam a ação estatal enquanto instalam propinodutos entre o estado e o mercado que garantem tanto o fim da concorrência que alegam defender, quanto a canalização privilegiada do poder de estado que simulam execrar. Assim, uma obra que custaria 100 alcança facilmente o preço final de 200, pois alegando os riscos de receber 150 para devolver ilegalmente 50 ao agente estatal corrupto, o empresário cria uma oportunidade para aumentar seus lucros em mais 50…

Em suma (1): nessa situação de crise aguda de mazelas crônicas, temos dificuldades de saber como pensar e proceder porque não vemos a relação entre a desigualdade, a corrupção, a crise de representação e a ideologia enganadora do livre mercado (livre apenas para quem perde). Eis o conjunto danoso agarrado pela Lava Jato e que pôs em xeque todo o sistema político brasileiro.

Desorientados, tendemos a escolher lado onde não há lado a escolher.

Uma polarização enganosa

Para além do envolvimento de ambos na corrupção, para além do que há de convergente entre eles nessa reestreia de Lula na praça dos Três poderes, a maior evidência da semelhança fundamental entre PT e PSDB aparece justamente no enfrentamento à desigualdade, que, como vimos, está na base da corrupção e da crise de representação que nos infelicitam. Por mais que se possa reconhecer as políticas sociais da era Lula e o que restou delas nos anos Dilma, o fato é que embora elas tenham minorado os efeitos da pobreza, muito pouco, e mesmo nada significaram na diminuição da desigualdade em si e, muito menos, na alteração da ordem social que gera e garante essa desigualdade, situação muito parecida com a era tucana de FHC. Ricos e pobres continuaram separados pelo mesmo abismo, ainda que todos tenham se deslocado na escala de ganhos. Nada é mais emblemático dessas limitações do que a declaração de Lula de que no seu governo pobres e ricos ganharam dinheiro como nunca antes.

A essa semelhança mais geral, que reflete o compromisso de ambos com o pacto do Real — os tucanos porque o instituíram e o o lulopetismo porque a ele aderiu em 2002, depois de ter cumprido a larga curva de capitulação a que foi levado pela ânsia por poder e dinheiro — se soma a mesma falta de imaginação no exercício do poder político eleitoral: ambos se rendem às exigências do p-MDB para a partilha do governo. Assim, embora adversários eleitorais, ambos governam segundo respeitem a cláusula pétrea do pacto: os ricos não podem perder e os pobres só melhoram se todos puderem melhorar, ou às custas da qualidade de vida das camadas médias. Já o papel do p-MDB como dobradiça, que deitou raízes há mais de cinquenta anos (como busquei explicar numa série de quatro artigos publicados aqui), deveria servir de mais uma evidência para o caráter fajuto da polarização entre PT e PSDB, já que ambos possuem não apenas uma face compatível com o entulho autoritário que sobreviveu ao fim da ditadura paisano-militar, como dele não podem prescindir quando chegam à presidência da República.

Como não poderia deixar de ser, esses três partidos e os outros que os satelizam estão envolvidos em práticas de corrupção, acusando-se uns aos outros diante do público, para efeitos do alarido da mídia, mas negociando diligentemente intra-muros, no intuito de a cada percalço entregar tão somente os esquemas mais manjados, como deram exemplos as inúmeras pizzas assadas nos últimos anos pelas CPIs instaladas no Congresso nacional, palco do jogo combinado de sempre, onde eles simulam nos representar para nos enganar e, claro, garantir a permanência do esquemão mais geral, que a Lava Jato colocou em xeque. Por isso a volta de Lula vai ser agarrada como uma possibilidade única de restauração do status quo.

Resumindo, os onipresentes e antigos esquemas de corrupção do p-MDB acoplam-se aos menos antigos esquemas do PSDB e aos recentes esquemas do PT conforme detenha a presidência da República este ou aquele destes dois últimos partidos. Diante disso, não fosse a estupidez humana tão conhecida, o engalfinhamento apaixonado nas ruas por hordas sinceras de um e outro lado (nos quais há quem queira ver luta de classes) seria de estarrecer o observador medianamente informado. A volta de Lula pode nos ajudar a ver tudo com clareza.

Em suma (2): para quem está interessado em que o Brasil dê um passo à frente, criando leis e políticas que diminuam significativamente a desigualdade, permitindo sufocar a corrupção e reinventar a representação, não faz sentido escolher entre o castigo ao PT ou ao PSDB, nem, muito menos, depositar esperanças no p-MDB. Temos de nos livrar dos três enquanto os três se agarram para se salvarem.

Desorientados, nos dividimos entre os que criticam Moro por perseguição seletiva ao PT, e aqueles que o apoiam por combater a corrupção simbolizada no PT, ignorando as mazelas de p-MDB e PSDB. Enquanto isso, o sistema parece ter encontrado a via de escape que buscava, mas sob a batuta de Lula, não contra ele.

A unilateralidade da ação da Lava Jato

Além da desigualdade e da polarização enganosa exploradas acima, também a unilateralidade da Lava Jato contra o lulopetismo ajudou a nos levar à desorientação. Em primeiro lugar, ao negligenciar as falcatruas de PSDB e p-MDB, Moro deu munição política à defesa dos corruptos; em segundo lugar, porque essa injustiça flagrante gerou insegurança nas pessoas de bem quanto ao que realmente a Lava Jato estava a almejar. Essa unilateralidade deriva, por certo, também de uma certa cultura conservadora, anti-petista por hábito, não por fundamento (se atinassem para os fundamentos saberiam que o PT é um aliado da ordem da desigualdade). É nesse conservadorismo que se tem agarrado os críticos modorrentos da Lava Jato: tendo servido a era Lula, “teorizam” as ilusões geradas por ela e tentam a qualquer custo salvar suas próprias biografias, como se houvesse muita gente interessada nelas. Não querem ver que o poder de fogo da Lava Jato se centra no lulopetismo porque é dele a presidência da República, foi sob ele que a corrupção na Petrobrás encontrou seu desenho mais recente, ainda que herdando operadores da presidência FHC, pois o p-MDB muda o presidente a que serve, mas não os tarimbados operadores de que lança mão.

Como quer que se pendurem as razões acima, porém, a razão principal da unilateralidade da Lava Jato está no fato de que a sociedade brasileira ainda não produziu uma força organizada capaz de oferecer uma alternativa política ao país. Sem alternativa de mudança em que se apoiar, a Lava Jato se vê na contingência de dosar os inimigos que faz, de se apoiar na confusão gerada pela luta entre forças igualmente comprometidas. Sem alternativa de mudança em que nos engajarmos, nos vemos a escolher entre o que está aí, e somos empurrados a tudo enxergar sob a ótica dessa escolha mal feita. O Judiciário se fez vetor da mudança porque o sistema político faliu, mas um poder sozinho não faz transformação, mormente se atuando convictamente apenas na primeira instância.

A hora é tão crucial para o país, e ela nos chega em momento tão pouco auspicioso, que foi necessário mais de um ano de “crise” política, “crise” essa que prolongou e tornou muito pior do que deveria ter sido essa crise econômica que nos leva à beira do colapso, para que o divórcio entre a sociedade e seu sistema político ficasse evidente: da perspectiva deles, dos políticos profissionais, a única saída é uma volta ao passado; da nossa perspectiva, da sociedade que transcende o mercado, a única saída é fazer dessa volta ao passado a evidência cabal de que não queremos saber deles.

Em suma (3): Lula chega a primeiro ministro não exatamente para conquistar imunidade para si, mas para conferir imunidade a todo um sistema. Lula chega a primeiro ministro não para se refugiar no Supremo Tribunal Federal, mas para fazer-se interlocutor-ponte entre os Três Poderes, na perspectiva de reintegrá-los ao jogo de poder que a Lava Jato escangalhou. Se der certo, é como se Lula passasse direto de Bettino Craxi a Berlusconi, o que não deixaria de ser uma depuração…

A desorientação tenderá a aumentar porque além das dificuldades já postas à compreensão da trama, Lula volta ao proscênio com a fama imerecida de campeão do combate à desigualdade. Foi para enfunar essa fama que ele  reivindicou a a condição de orientador da política econômica do governo. A Lava Jato viverá agora o seu dilema: ao abrir baterias contra Aécio, deixará de ser unilateral, mas ao preço de paradoxalmente estimular a convergência política do sistema político contra si. A sociedade brasileira precisa se reinventar não exatamente para apoiar a Lava Jato, mas para salvar a si mesma.

O PT ARRUINOU O PETISMO E O SISTEMA POLÍTICO

 Debate com amigos e leitores – 2

Carlos Novaes, 26 de maio de 2015

 

Todos estamos a ver a desenvoltura daninha de Eduardo Cunha, a orientação firme do governo Dilma para alcançar um ajuste nas contas públicas, e o fim do PT. Ganharemos muito em compreensão sobre, afinal, o que se passa, se concatenarmos os três eventos, ao invés de atribuir a Cunha um “vigor atípico” no comando do legislativo; de enxergar na ação de Dilma uma “traição”; e de proteger o PT com análises que buscam separar, nele, o joio do trigo, dizendo tolices como “o PT é um patrimônio do Brasil”.

Imersos no teatro da guerra, ainda em meio à poeira dos escombros de estruturas engaioladas, estamos diante das últimas operações da mais formidável vitória política dos que se beneficiam da desigualdade entre nós; maior do que a obtida por eles no golpe paisano-militar de 1964 contra o reformismo voluntarista de Jango-Brizola – e tão formidável quanto o foi a convergência de motivações individuais e organizadas que resultou no PT entre 1977 e 1989. E essa vitória foi possível porque os “líderes” atuais do PT (que há muito estão no posto) tiveram êxito em arrastar todo o partido, inteirinho, a uma capitulação que o fez passar de uma instituição de luta contra a desigualdade e a pobreza que infelicita muitos para uma ferramenta burocrática ajustada ao enriquecimento de poucos. À medida que fomos nos dando conta do que se passava no PT, fomos nos rebelando, nos afastando, nos ajustando, ou aderindo ao novo estado de coisas que se instalava na mesma velocidade em que o acesso aos cargos de poder ia permitindo aos que queriam se dar bem reunir poder na luta interna do partido. Tragédia conhecida, mas pouco compreendida, especialmente em suas consequências. Vou me restringir aqui aos temas que abriram esse artigo.

Cunha é a imagem política do PT em ruínas. Me explico: quando o PT ainda era empurrado por um petismo autônomo diante do lulismo (coisa que só existe na luta interna: quem conta com o apoio do Lula, e quem não conta – isto é, entendo essa história de lulismo em sentido amplo como besteira), ou seja, bem antes de se instalar o lulopetismo (mostrengo que só surgiu, quem diria, depois da derrota definitiva do Zé Dirceu, quando foi possível soldar carisma e burocracia de um modo que Weber jamais imaginou – mas com os mesmos propósitos nefastos), quando o petismo ainda era um fenômeno político relevante, eu dizia, a política de alianças eleitorais do PT balizava todo o sistema político e orientava o eleitor: quem estava com o PT era de “esquerda”, quem não estava era, no mínimo, a “não-esquerda”. Com o passar dos anos, nas maiores, mais concentradas e, por isso mesmo, mais informadas concentrações urbanas do país, notadamente na região metropolitana de SP, o eleitorado foi desenhando um mapa de preferências muito nítido*: periferias apoiavam o PT, áreas ricas eram anti-petistas, e áreas intermediárias apresentavam oscilações mais marcadamente conjunturais (constatei isso há 20 anos, como se pode ver um exemplo aqui).

Naquelas condições, as coligações proporcionais foram um mecanismo de reforço ao que havia de melhor em nosso sistema eleitoral: a força do voto individual para o legislativo passava a transmitir sua potência a toda a coligação em que o candidato estivesse inserido, com o que, em razão do quase rigoroso comportamento do PT (falar, agora, dos desvios tomaria muitas linhas), se foram construindo dois campos opostos, cada um deles diversificado, todavia, o que resultava em ganhos quando se pretende um engajamento plural e informado do eleitor: um pluripartidarismo orientado em dois campos, em suma**. Mas a sede de poder, a pressa de tirar a si e aos seus das agruras da desigualdade, em suma, a obstinação de fazer do PT instrumento de uma, e só uma, geração, falaram mais alto e o partido avacalhou um princípio balizador de preferências cuja fecundidade estava ainda em seu início. O PT passou a se aliar a qualquer um que permitisse chegar a algum orçamento. Eduardo Cunha é resultado disso, leitor, e sua presumida capacidade de iniciativa, seu vigor na busca de propósitos políticos, celebrados até em editoriais, nada mais são do que sinais do avanço que os interesses miúdos logram fazer sempre que os grandes temas são desmoralizados por aqueles que os defendiam.

Ou seja, Cunha não é mais desenvolto ou arrojado do que seus antecessores no cargo — é que já não há as travas que antes barravam a ação desse tipo de “liderança”. Não foi por acaso que alguém como Cunha se criou e desenvolveu dentro do p-MDB, essa ameba voraz que estaria destinada ao desaparecimento se a ordem eleitoral introduzida pelas escolhas do PT não tivesse sido desmanchada por ele mesmo (nada mais natural, portanto, que, ao fim e ao cabo, p-MDB e PT tenham acabado nesse abraço malsão que dá corpo burocrático ao lulopetismo***). Cunha e os seus aliados mais chegados no Congresso são o nosso EI e, o Corão deles, mas para inglês ver, é uma mistura do Regimento Interno da Câmara com o Código de Defesa do Consumidor (daí o shopping do Cunha!). Eles, que são o Retrato de Dorian Grey do PT, nos fazem reescrever Gramsci: “quando o velho não morre e o novo dinamita a si mesmo, é certo que surgirão situações monstruosas”.

Respondendo a amigos 1: portanto, quem hoje se enche de empáfia democrática pregando o fim das coligações proporcionais faz como o enólogo que condena vinho blend ruim saído de vinhedo envenenado propondo como solução proibir a mistura das uvas, mas mantendo as parreiras, como se a pureza operasse o milagre de fazer uvas ruins produzirem bom vinho. Pior ainda fica quando são petistas os que berram, dizendo que essas coligações enganam ao eleitor: falam de si mesmos, pois só eles acreditam que estão a se misturar com quem é muito diferente deles próprios – senhores, enganados estão vocês, pois o PT já não engana a não ser aos “petistas”. A esse respeito, por caridade, apresento a esse pessoal, cujo porta-voz é o cientista político André Singer, um poema do Drummond:

Cerâmica

Os cacos da vida, colados, formam um estranha xícara. / Sem uso, / Ela nos espia do aparador.

 

O ajuste de Dilma é a imagem econômica do PT em ruínas. Me explico: Dilma é a presidente da República de um partido que chegou ao poder em 2003 tendo aderido ao pacto do Real, posto em pé pelos tucanos, na era FHC. Lula fez um ajuste mais duro do que este que ela tenta por de pé, mas ninguém quer lembrar disso. Como quer que seja, a natureza desse pacto incrementalista em que os ricos não podem perder nem riqueza, nem instrumentos que geram essa riqueza tão desigualmente distribuída, é esta: quando é possível, incrementa-se a vida dos de baixo, via consumo; quando não dá, não se incrementa ou, até, se recua. Dilma se move dentro dessa lógica, e não há nenhuma traição – azar de quem, contra toda evidência disponível (como aqui, aqui, aqui…), acreditou que podia ser diferente. E digo mais, mesmo um governo com outra orientação não poderia escapar de algum ajuste nesse momento, em razão das escolhas anteriores que a adesão ao pacto impôs. Em outras palavras, mesmo um governo que estivesse disposto a romper o pacto não poderia fazer muito diferente neste momento – teria de tomar impulso antes. Logo, o problema não é o ajuste de Dilma (correto, até, no que propõe para essa farra em que se transformou o seguro desemprego, néctar do nosso sindicalismo burocrático único, aferrado ao imposto sindical), mas o fato de que ela faz uso dele para salvar o pacto e, com ele, a candidatura de Lula em 2018. Por isso mesmo, não cobro de Dilma um projeto inteiriço de ajuste, como fazem os liberais crentes nas receitas neoclássicas, que buscam desculpas para criticarem o que eles próprios estariam a fazer, como tonitroou, recentemente, o geógrafo Demétrio Magnoli, que escreve como se movesse placas tectônicas, mas o que sai da montanha é, sempre, um rato.

A evidência mais clara da empulhação que é a indignação com o ajuste de setores do PT é o fato de que esse pessoal passou todos esses anos sem dizer nada, seja contra os pilares do pacto, seja a favor de medidas tributárias acertadas que, agora, às pressas, desenterram do fundo de gavetas emperradas. Além disso, julgando-se mais democráticos (e até radicais!), passaram a trombetear contra o financiamento legal de campanhas por empresas, fingindo que não é com eles o financiamento ilegal de campanhas por empresas. Com esse tipo de proposta essas pessoas estão apenas aumentando o rol do que a lei declara ilegal, mas não dão um passo na direção de obter o cumprimento da lei que JÁ é desrespeitada. Em suma, querem resolver questões de polícia com uma medida política equivocada: afinal, o que precisamos impor, via polícia, é o fim do caixa-2; e adotar, via política, um teto nominal de contribuição exclusiva, para empresas e cidadãos. Algo como no máximo 100 mil reais por empresa e por cidadão, obrigando a pulverização das fontes de financiamento. Essa medida, por si só, baratearia as campanhas, pois não há nada mais difícil do que arrancar dinheiro pequeno, que não gera reciprocidade garantida. Aliás, não é o dinheiro das empresas para campanhas, mesmo se grande, que gera corrupção – o que gera corrupção é a vontade de enriquecer à sombra da impunidade para quem rouba dinheiro público, como já discuti aqui.

Respondendo a amigos 2: a ideia do financiamento público é errada porque quer garantir aos políticos um dinheiro certo para suas campanhas, dinheiro que vai fortalecer essas mesmas estruturas viciadas que julgam combater demonizando anacronicamente o privado. Parte das campanhas já é pública: tempo de TV, fundo partidário. Entendo que o tempo de TV deve continuar como está, salvo alguma outra distribuição do tempo disponível aos partidos. Quanto ao fundo partidário, sou pela sua extinção, pois esse é um uso do dinheiro público que contribui para a formação de máquinas burocráticas a um só tempo azeitadas e amorfas: azeitadas com o nosso dinheiro em benefício das cúpulas, mas amorfas em vida política porque as direções nacionais dos partidos mantém seus diretórios como “provisórios” de modo a mandar neles como querem.

Finalmente, o PT desperta hoje um ódio e uma repulsa que se propagam, e até motivam idas à rua, precisamente porque aqueles que sempre foram contra o PT encontraram em seus malfeitos uma motivação, por assim dizer retroativa, para expiar ressentimentos acumulados do tempo em que o “virtuoso”, “combativo” e “solidário” PT expunha o que havia de acomodado, injusto e imoral nas preferências desigualitárias dessas camadas conservadoras. Não é à toa que essa movimentação tenha resultado na transformação do impeachment da presidente numa causa, na base do “não custa tentar, se colar, colou”, comportamento institucionalmente deletério a que se somaram tucanos sem causa honesta para defender e, até, juristas, que inverteram a ordem legal: trata-se , agora, não de encontrar a lei para o crime, mas de minerar um “crime” que se ajuste à lei!.

* – Nas eleições do ano que vem esse desenho irá mostrar mudanças importantes. Como a conduta do eleitor é função do que os políticos propõem, o PT já não vai contar com a periferia de SP como antes, pois deixou de oferecer ao eleitor parâmetros claros para a organização da sua preferência. Veja bem, leitor: a causa do abandono do PT não são apenas os escândalos; antes deles, vem a razão que tornou possível as práticas que abriram caminho àquelas que geraram os escândalos.

** – O que explica a pulverização eleitoral mais recente é precisamente o fim daquele ordenamento que a prática do PT gerava: a combinação de coligações proporcionais com firmeza na demarcação dos campos foi gerando, eleição a eleição, uma aglutinação de forças que o fim do rigor petista interrompeu e, desde 2010, vem apresentando sinais claros de reversão. De novo, a conduta do eleitor é função do que lhe é proposto.

*** – Logo, não há o tal pemedebismo por contágio congressual, à partir dos anos 80, como quer Marcos Nobre. O que há é muito mais grave: o p-MDB está onde sempre esteve nos últimos 50 anos, e o PT capitulou desde baixo, em sua relação com o eleitor.

REPRESENTAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO

Debate com amigos e leitores – 1

Carlos Novaes, 23 de maio de 2015

O leitor me ajudaria a deixar mais claras as linhas que se seguem se lesse antes seis (pois é…) outros posts deste blog, a saber:

1. A política entre a memória e o fluxo

2. Uma mudança de alcance mundial

3. Só 4 – Já

4. Partidos e profissionais da representação

5. Nem abnegados, nem delegatários

6. Desigualdade, mudancismo e voto – é a política! – 4 de 4

Embora não esteja de acordo com Rousseau ali onde ele diz que “o homem nasce livre e por toda parte se encontra acorrentado”, tenho como certo que a reeleição para o legislativo mantém a ferros  eleitores e eleitos, o que contraria o sentido do jogo da representação, que se destina a mantê-los em liberdade organizada. Os eleitores estão presos à rotina que os embotou para a inércia: a grande maioria vota para o legislativo sem prestar atenção no que faz, confortavelmente convencida de que não há como mudar a situação. Os eleitos, mesmo os novatos, são peneirados desde há muito numa malha que reúne dois fios: o fio trançado por essa rotina embotada do eleitor e aquele tramado na rotina dos interesses organizados. De modo que eles chegam ao legislativo como boi de canga: com um ou outro vício particular, mas com os calos certos nos lugares certos para a utilidade a que se destinam, que é engendrada, claro, não pelas necessidades da maioria desavisada, mas pelos interesses das minorias organizadas. Um sistema assim só pode selecionar os piores e levar ao desinteresse dos melhores — o fim da reeleição, por si só, já tornaria o legislativo desinteressante para uma  legião de picaretas que é atraída pela peneira atual.

Ao propor o fim da reeleição para o legislativo almejo uma transformação desse estado de coisas malsão, que é menos do que uma revolução porque a camada de solo a ser revirada é a da política, apenas — a ordem estatal e a natureza da propriedade continuariam como estão, a menos que viessem a ser discutidas, e democraticamente alteradas, na nova dinâmica política que a transformação traria, mas essas alterações, embora desejáveis, não são condição para o fim da reeleição proposto. Ainda que tenha como certo que revoluções são eventos espontâneos, que, como tal, não podem ser provocados, não me furto a declarar que, na ausência de uma revolução, minha preferência por uma transformação resulta também do aprendizado de que revoluções são eventos que, ao revirarem toda a memória, acabam por exigir uma ordem ainda mais férrea do que a anterior para restaurar rotinas básicas à convivência política, concentração de poder que é, sempre, o oposto da democracia e, por isso mesmo, uma vez adotada, jamais confirmou o caráter transitório que de início se apregoou, por mais sinceros que tenham sido os que o prometeram — os quais, tão certo como dois mais dois são quatro, acabam sempre em um de dois grupos: o dos que mandam ou o dos que estão a ferros.

O impacto do fim da reeleição para o legislativo sobre a vida política seria enorme porque é nessa reeleição que, em todo o mundo, está ancorado todo o sistema político como o conhecemos: quando alguém se elege para um mandato parlamentar, mesmo que seja o primeiro, recebe de pronto uma rotina de memórias que se ajustam às memórias que ele próprio traz. Do lado da sociedade (família+eleitores+mercado), ele já vai amarrado a compromissos e expectativas que estão ancorados na ideia e, sobretudo, na perspectiva da reeleição, perspectiva que é dele próprio e de todos os que tem interesses gravitando em torno dele: trata-se de alguém que mudou de vida, que entrou numa carreira. Do lado do estado (poderes constituídos+burocracia), as memórias que o constrangem (em geral ele já chega treinado para ser docemente constrangido) são as das dinâmicas de poder já instaladas, dirigidas quase totalmente por políticos de carreira, e aquelas memórias que resultam da rotina legislativa enquanto tal, que não é necessariamente má, e estão preservadas nos acervos e, de certa forma, nas cabeças das assessorias parlamentares, por sua vez rotinizados para atender profissionais da política, mesmo que de primeiro mandato, repita-se.

Olhada dessa perspectiva mais ampla que acaba de ser esboçada, fica claro que os dois grandes conjuntos produtores de memórias que constituem e constrangem o sistema político, a sociedade e o estado, seriam fortemente afetados pela transformação proposta. Em outras palavras, não tem muito cabimento fazer objeções à proposta desconsiderando seu potencial de mudança, como se ela fosse mais uma reforma política das muitas que estão por aí, como se para absorve-la bastasse uma mera adaptação das rotinas existentes. Uma vez varridos de seus mandatos legislativos os atuais donos do poder, em poucos anos o sistema político estaria operando em uma dinâmica totalmente diferente, cujo desenho não podemos sequer esboçar, ainda que saibamos muito bem o que terá sido deixado para trás nessa aposta do engajamento do cidadão na escolha de seus representantes, que é menos do que a democracia direta sonhada por alguns (que será, sempre, de alguns, pois não há na sociedade a ânsia participacionista imaginada), e muito mais do que a inércia que temos hoje, pela qual se elegem delegatários, não representantes.

Tendo em mente a tensão entre memória e fluxo, entendo que representação (legislativo) é instância onde o pólo mais dinâmico é o fluxo (mudança), não a memória (conservação): é pela representação que a sociedade expressa no plano político a sua vontade de mudança, por menor que seja, e é para dar capilaridade a esses vetores que a representação tem de estar apta ao fluxo, e não colonizada por memórias de rotina que se cristalizaram via reeleição (ainda que na maior parte do tempo venha a prevalecer a conservação). Rotinizar em memórias reificadas (subsistemas de poder parental, corrupção, interesses corporativos de tipo religioso, militar, etc) o fluxo da representação é o principal resultado da reeleição para o legislativo, que desperdiça por inapetência, ou barra por interesse, fluxos de mudança: amarram-se pessoas, esquemas e mandatos numa grande engrenagem que a todos engata e a ninguém é dado travar.

A novidade que a proposta traz, portanto, não tem nada de inovadora, ela apenas restaura o sentido da representação, que foi avacalhado porque lá atrás não se antecipou o monstro que nasceria da profissionalização do legislativo, um poder que é fluxo para ter legitimidade na produção de memória para o judiciário, esse sim um poder em que o pólo dinâmico é a memória, não o fluxo. É por isso que, com acerto, se diz que o juiz não decide segundo o alarido da opinião pública: ele não vai no fluxo, pois para decidir ele resgata a memória, que está nas leis, na jurisprudência e nos costumes — naturalmente, há algo de fluxo na jurisprudência e na interpretação dos costumes, mas um juiz não pode, a um só tempo, contrariar a lei, a jurisprudência e os costumes ao tomar uma decisão e, ainda assim, fazer justiça. Mas um representante tem o dever de contrariar a tudo isso e, assim fazendo, uma vez tendo persuadido a maioria dos seus pares, mudar as leis que serão aplicadas pelo judiciário.

Essa atividade de legislador é a principal função do representante. Entretanto, a rotinização saída da reeleição para o legislativo criou barreiras à principal ação do parlamentar, pois legislar é mudar, e o que menos as rotinas querem é mudança. Daí a crise geral dos parlamentos, de um lado, amarrados às rotinas do poder executivo (gestão) e àquelas dos grupos de poder que financiam campanhas e moldam a opinião pública; e, de outro lado, constrangidos pelo judiciário que, nessa situação anômala de um legislativo que não dá vazão ao fluxo da sociedade, se viu chamado a introduzir algum fluxo à memória legal que a inoperância do legislativo vai deixando anacrônica — daí toda a nova doutrina jurídica que hipertrofiou o poder de interpretação dos juízes, um mal necessário em razão de uma anomalia de fundo, que é a perpetuação quase vitalícia e hereditária dessa aristocracia dos políticos de carreira, aferrados a interesses tidos como inalteráveis. O que faliu não foi a democracia representativa, mas o sistema eleitoral de profissionalização política.

Resgatar a função de legislar será a primeira conquista da transformação proposta, pois todos os candidatos terão de ser ajuizados pelo eleitor segundo o que propõem: nem o candidato vai poder se esconder sob a memória das rotinas políticas que o fizeram candidato; nem o eleitor vai poder se abandonar ao conforto da memória de reiterar o já conhecido. Uma dinâmica como essa, de renovação permanente dos legisladores, não implica necessariamente uma renovação permanente da ação legislativa, pois a ação de legislar depende de alcançar um mandato, que, por sua vez, depende da conquista de eleitores, que não mudam de opinião da noite para o dia. Além disso, a memória preservada nas assessorias parlamentares joga aqui o seu papel e ela será parte da “negociação” permanente entre a conservação e a mudança.

Temer uma hipertrofia do poder de influenciar, ou mesmo decidir, dessas assessorias é supor que o parlamentar sempre novato do novo modelo terá o mesmo perfil de um certo parlamentar novato que o modelo atual engendra: o bocó manipulável. Ora, o bocó manipulável é o filho caçula da memória reificada; ele chega ao parlamento submetido a toda ordem de interesses organizados, organização da qual não participou — um tipo assim não pode ser tomado como padrão para pensar aqueles que terão passado pelo escrutínio eleitoral do novo modelo, a menos que se suponha que a transformação que proponho terá como resultado fazer das eleições legislativas uma loteria eleitoral. Mas essa é uma hipótese que as melhores cabeças não poderiam endossar: os participacionistas teriam que desacreditar do povo que supõem estar pronto, e ávido, para tomar decisões de modo direto; os revolucionários teriam de fazer pouco caso do mesmo povo em que depositam suas esperanças termidorianas; e os democratas iluministas teriam de reconhecer como infundadas as suas esperanças de, pelo modelo atual, persuadir o eleitor à mudança.

ESSA REFORMA POLÍTICA É UM VÔMITO!

Carlos Novaes, 19 de maio de 2015

 

Empanturrada com a comida tóxica do cardápio midiático que buscou embota-la com a ideia de que o país precisa de uma reforma em seus sistemas eleitoral e partidário, a opinião pública brasileira é convidada a se reconhecer aliviada no vômito triplo em que seus profissionais da política mais uma vez transformaram no que lhes apraz os anseios difusos dela por uma representação autêntica. Primeiro, o “distritão” vai deixar sem representação alguma a maioria do eleitorado, uma vez que, por definição, 513 deputados federais não tem como traduzir, com seus votos exclusivos, mais de 200 milhões de eleitores; segundo, a coincidência de mandatos de cinco anos é o paraíso da malandragem, proposto por Marina Silva e adotado, claro, pelo p-MDB, que já critiquei pormenorizadamente aqui: mais mandato para os políticos profissionais e menos força de mudança nas mãos do eleitor; terceiro, o fim da reeleição para o executivo vai retirar do sistema de gestão da coisa pública (executivos) a possibilidade de reconduzir as boas experiências, que seriam ainda melhores se a “representação” (nos legislativos respectivos) não fosse composta pelos esquemas de rotina saídos do mal uso do nosso sistema eleitoral.

Tal como é hoje, nosso sistema eleitoral é muito bom: de um lado, para o legislativo vota-se em indivíduos ou em lista (o voto na legenda partidária), sendo que o voto individual do eleitor não esgota sua força no indivíduo que recebe o voto, pois ela se propaga mesmo se o candidato escolhido não ganha a eleição: os votos dados a ele são somados aos de outros perdedores e ganhadores do mesmo partido ou coligação, de modo que nada é desperdiçado no cômputo final e, assim, se o sistema produzisse representantes, todos estaríamos, sempre, representados; de outro lado, para o executivo, pode-se reconduzir o gestor que faz uso apropriado dos recursos do orçamento. O defeito, portanto, não está na distribuição da força dos votos, mas naqueles que os recebem, leitor. Temos que trocar de políticos, não de sistema político. A única maneira de trocar, mesmo, de políticos é impedi-los de voltar uma vez cumprido um, e único, período legislativo, ou seja, acabar com a possibilidade de reeleição para representantes (e não para os gestores!), como já tratei aprofundadamente aqui e em outros textos deste blog.

Políticos profissionais tem o mesmo defeito de todo ser humano: querem o paraíso, sem precisar morrer. A diferença é que eles imaginam, mesmo, que é possível chegar lá, e fazem dessa meta a principal ocupação de suas vidas tortas! O paraíso para eles é chegar ao poder depois de uma campanha em que não precisaram pedir nem dinheiro, nem voto. Pois bem, a proposta de coincidência de mandatos de cinco anos os deixa bem próximos dessa meta religiosamente perseguida, especialmente se caída do céu amarrada a uma outra providência, o tal financiamento público de campanhas eleitorais: o conforto de mandatos de cinco anos, sem nenhuma consulta intermediária para qualquer instância, consulta essa que permite ao eleitor ajuizar a situação política e punir ou premiar com seu voto, logo em seguida, este ou aquele partido, grupo ou esquema político. Hoje, bem ou mal, nosso calendário de eleições descasadas a cada dois anos permite, por exemplo,  ao eleitor insatisfeito com o governo de Dilma eleito em 2014 punir o PT nas eleições locais de 2016, o que, se não constitui uma ferramenta de transformação, configura, pelo menos, um serviço de crítica indireta que altera a rotina demoníaca do poder.

É difícil para uma pessoa de bem imaginar a alegria coruscante na alma de um político profissional, desses de carreira, diante da possibilidade de somar à reeleição infinita, regalia de que já goza, uma troca compulsória nas cobiçadas cadeiras de gestão orçamentária (prefeitos, governadores e presidentes) junto com o conforto de só ter de lembrar do eleitor a cada cinco longos anos e, ainda por cima, com o chantili do financiamento público de campanha, que não é senão a satisfação safada de poder bater impunemente a carteira do mesmo eleitor a quem não precisou dar conversa para arrancar mais um período de sossegada “representação”. Ou seja, o eleitor vai pagar, via canalização compulsória do seu dinheiro (assim como um “gato” numa rede de água já escassa), a propaganda enganosa de mandatos que não terá sequer como ajuizar, uma vez que o fervor dessa cozinha embaçada da eleição geral não vai aprontar senão uma gororoba de alhos, bugalhos, joio e, vá lá, algum trigo. Em suma, a institucionalização da rotina do vômito, quando o que precisamos é de um laxante!

É TANTA BESTEIRA QUE DÁ ATÉ DESÂNIMO… MAS PERSEVEREMOS

 Carlos Novaes, 15 de abril de 2015

(atualizado em 16 de abril de 2015)

BESTEIRA 1: O financiamento de campanhas eleitorais por empresas é causa da corrupção; por sua vez, o principal problema do país. Portanto, precisamos de uma reforma política que institua o financiamento público de campanhas eleitorais.

1.1. –   A) As empresas financiam campanhas eleitorais não apenas para obterem vantagens compensatórias via corrupção. Elas financiam políticos para garantirem o status quo e, sempre que possível, o alterarem de maneira controlada, segundo seus interesses. É um erro supor que os políticos que fazem o jogo dos grandes empresários são simplesmente venais (embora sejam também venais), e que o façam simplesmente por dinheiro. Não. Eles tem a mesma visão de mundo. Se fosse apenas uma questão de dinheiro, seria possível comprar políticos venais para aprovar políticas igualitárias. Mas isso é impossível porque eles estão lá selecionados pela peneira da ordem como ela é. A eleição deles é parte de uma imensa rotina, rotina essa ancorada na reeleição infinita para o legislativo.

B) Os montantes de dinheiro oriundo de corrupção revelados nos casos mais recentes deveriam ser suficientes para que se percebesse que uma corrupção dessa monta não se destina a campanhas eleitorais, por mais caras que sejam. Veja o dinheiro que as empreiteiras deram para campanhas: são quantias muito menores do que as envolvidas nos desmandos em que elas se enfiaram depois. O dinheiro da corrupção não é retribuição de financiamento de campanha, é dinheiro destinado a enriquecer os envolvidos, ou seja, dinheiro para políticos e lucros para as empresas  – de novo: dinheiros esses que vão muito além do que se gasta em campanhas. Nessa engrenagem, o financiamento de campanha é o de menos. Suponhamos que conseguíssemos acabar com o financiamento privado de campanha (com todo mundo respeitando a lei aprovada…e não houvesse caixa dois…), por que razão isso acabaria com a corrupção se a corrupção, nesse caso, resulta da vontade de ser rico às custas do dinheiro público? Eles continuariam a roubar, leitor! Na verdade, o financiamento público seria o povo pagando a campanha de políticos que, uma vez eleitos, vão continuar fazendo o jogo dos grandes empresários, casando poder (política, Estado) com dinheiro (empresas, mercado), como sempre.

1.2 – O principal problema do país é a desigualdade e é ela que articula a máquina política como ela é, tal como discuti em série de quatro artigos recentes, iniciada neste aqui.

1.3 – A única reforma política de que realmente precisamos é o fim da reeleição para o poder legislativo, como já argumentei aqui, aqui, aqui, aqui e, sobretudo, aqui. Se mudar modelo eleitoral fosse solução, não haveria problemas nos países que adotam o que querem introduzir aqui…Ou o leitor acredita que na França, nos EUA, na Alemanha, na Espanha ou na Itália as coisas são muito diferentes? Cada um deles tem seu próprio sistema eleitoral…

1.4. – A) O financiamento das campanhas tem de ser privado. Temos de obrigar os políticos a correrem atrás do dinheiro como correm atrás do voto. Quem não consegue reunir um mínimo de apoio financeiro vindo de forma autônoma e espontânea da parte de cidadãos engajados não tem legitimidade para querer ser representante. Financiamento público só vai facilitar para que as coisas não mudem, pois os políticos vão ter a garantia do dinheiro público (o nosso) para as despesas básicas, e vão continuar com o caixa dois. Afinal, porque o financiamento público levaria ao fim do caixa dois, se hoje, com a legislação proibindo, o caixa dois impera? Se for para mudar alguma coisa, seria para instituir um teto nominal fixo e exclusivo (apenas para um candidato/partido) de contribuição, para pessoas e empresas, mas sem ilusões de que isso acabaria com o caixa dois.

B) O fato de os políticos divergirem sobre o fim do financiamento por empresas não deve nos confundir. Políticos de partidos com burocracias consolidadas e hierarquizadas sob seu controle (o PT é, de longe, o melhor exemplo), defendem o financiamento público porque o dinheiro público entraria via partido e, assim, ficaria sob controle dos hierarcas da burocracia. Políticos de partidos com máquina, mas sem cultura burocrática centralizada (o PMDB é, de longe, o melhor exemplo), recusam o fim do financiamento de empresas e a troca pelo financiamento público justamente porque isso diminuiria muito o poder individual que cada um ainda tem dentro da imensa máquina partidária, dando mais poder aos chefes do momento, os quais, por sua vez, sabendo do arranjo precário em que seu mando repousa (veja-se o poder repentino que um Eduardo Cunha ganhou contra mandões antigos, tipo Renan e Temer), preferem manter as válvulas de escape que a relação individual com as empresas garante. Ou seja, os dois lados só se unem se for para adotar o financiamento público complementar: nós, os contribuintes, entramos como trouxas e eles mantém a traficância com as empresas na ordem legal (sem prejuízo de algum caixa dois, claro) e ainda recebem o nosso dinheiro para satisfazer a raia miúda que os importuna pedindo algum para a campanha.

RESUMO 1: A corrupção em grande escala não resulta de um arranjo contábil inspirado na reciprocidade (como no caso do suborno do guarda de trânsito), mas da disposição de ser rico a qualquer preço, e de isso ser possível. A ideia de que todo desvio é a mesma corrupção é falsa e é uma maneira de naturalizar a coisa. Com o financiamento público de campanhas eleitorais vão bater sua carteira, leitor.

 

BESTEIRA 2: A terceirização de mão-de-obra se destina a aumentar a competitividade dos produtos brasileiros, sendo um modelo novo em que todos ganham.

2.1. – A competitividade dos produtos brasileiros não é baixa porque a mão-de-obra é contratada diretamente pelas empresas. Ela é baixa porque nossos produtos são fabricados de modo atrasado, desnecessariamente oneroso, caráter oneroso esse que não deriva de os salários e/ou os custos de mão-de-obra serem muito altos, mas de os processos de produção serem pouco rentáveis em razão dos baixos investimentos de proprietários que preferem entesourar a investir. A terceirização se destina a compensar as perdas com produção obsoleta via diminuição de custos com mão-de-obra. Ou seja, jogar a carga do atraso do país nas costas dos mais fracos, e continuar atrasado.

2.2. – Duas coisas básicas: primeiro, toda desregulamentação torna mais forte quem já é forte e ainda mais fraco quem já é fraco; segundo, toda mercadoria fica mais cara a cada intermediário pelo qual passa. Assim, primeiro, se a mão-de-obra é o pólo fraco do mercado de trabalho, não há como ela aumentar seu poder de barganha num modelo em que ela não negocia com quem compra sua capacidade de fazer alguma coisa, mas com quem compra a mera possibilidade de alocar essa capacidade; segundo, para que o intermediário da mercadoria “mão-de-obra” ganhe algum será necessário que um dos outros dois (patrão e empregado) perca: ou o patrão paga mais pela mão-de-obra ou a mão-de-obra passa a ganhar menos…

2.3. – O avanço dessa proposta na Câmara dos Deturpados é a primeira demonstração na arena política federal de que o pacto instituído pelo Real acabou: os muito ricos enxergaram na confusão instalada pelos escândalos de corrupção uma oportunidade de darem um passo adiante, saindo do jogo contemporizador do pacto que FHC iniciou e Lula continuou, como tenho discutido em vários posts deste blog, como aqui, aqui e sobretudo aqui. É por isso, porque essa proposta escancara que o pacto acabou (afinal, terceirizar é beneficiar os muito ricos às custas diretamente dos pobres), que Lula veio a público pedir o veto de Dilma. É por isso também que o PSDB se mobiliza contra a terceirização: ambos tem claro que o naufrágio é comum e que Eduardo Cunha está a serviço dos muito ricos, CONTRA os pobres. Agora o leitor tem mais elementos para entender porque defendi aqui que PT e PSDB se unissem contra a pretensão de Cunha de presidir a Câmara dos Deturpados.

RESUMO 2: A proposta de terceirização prospera porque os políticos profissionais entenderam que sua sobrevivência política depende muito dos laços com os grandes empresários e quase nada dos vínculos com o eleitor, uma vez que a rotina da reeleição infinita mantém todos sob inércia: os políticos na inércia de beneficiar a si e aos ricos; os eleitores na inércia de votar por votar, na qual se dá bem quem já é conhecido, sem relação com o que faz ou deixa de fazer. Por isso, duas coisas: primeiro, e mais uma vez, a grande mudança é acabar com a reeleição para o legislativo; segundo, a proposta de coincidência de mandatos de cinco anos é a deformação mais nefasta que poderia acontecer, pois dá mais mandato aos políticos e menos possibilidades de troca ao eleitor, que passaria a votar só de cindo em cinco anos, não de dois em dois, como hoje [e pensar que essa proposta, agora abraçada pelo PMDB (claro), foi lançada por Marina Silva, que dizia defender uma nova política!!].

 

BESTEIRA 3: A diminuição da maioridade penal para 16 anos vai contribuir para a diminuição da criminalidade e vai punir bandidos que se beneficiam indevidamente do fato de serem jovens.

3.1. – Encarcerar jovens de 16 anos só vai diminuir a criminalidade se ocorrerem duas coisas: primeiro, se a mudança levar os jovens de 16 anos a mudarem de atitude; segundo, se os jovens de 16 não forem substituídos por jovens de 15 anos. Pois bem, acreditar que a mudança vai levar os jovens de 16 a reavaliarem sua conduta é ignorar que a entrada na vida do crime não é uma decisão racional, tomada num momento de cálculo da relação custo-benefício. Não. Entrar para o crime é uma prática gradual, que se constrói ao longo de anos na vida de crianças a quem faltou família, escola, saúde e trabalho (para os pais). Alguém socializado assim vai encarar a maioridade penal como um transtorno a mais a ser enfrentado. Ponto.

De toda maneira, se a nova maioridade levar a alguma diminuição na oferta de mão-de-obra para o crime, haverá uma valorização dos que tem 15 anos. Considerando que nesse meio juvenil de insegurança e baixa auto-estima a dimensão do “reconhecimento” joga papel fundamental, não será de surpreender se a nova maioridade levar a um aumento da criminalidade, pois aos de 16 que continuarão no crime se juntarão os de 15, de 14… que se verão “promovidos” de uma hora para outra (v. o romance de Paulo Lins, Cidade de Deus – outra coisa: observe o recrutamento do EI junto a adolescentes…).

3.2. – O encarceramento do criminoso não é uma punição. Encarar assim a sentença de prisão é reconhecer que o condenado, uma vez cumprida a pena, tem todo direito de delinquir novamente, pois já pagou pelo que fez. Não. Encarcerar se destina a proteger a sociedade do criminoso e, ao mesmo tempo, conquistá-lo pela oferta de meios para que ele não volte a delinquir. A rigor, a prisão deveria suprir com itens afins toda a lista de itens faltantes que levaram o individuo ao crime, descrita mais acima: família, escola, saúde e trabalho.

RESUMO 3: Se for aprovada, essa mudança na maioridade penal vai levar a um aumento da criminalidade que está ao alcance e/ou depende dos jovens.

BESTEIRA FRESQUINHA: ontem publiquei este Post. Em artigo de hoje na página dois da Folha de S.Paulo há uma barafunda fantástica sobre o tema da maioridade penal, que ilustra o besteirol como nada antes. Depois de mostrar-se adepto do “punir severamente” os criminosos, o autor, sem assumir que o que o levou a escrever o artigo é o fato de ser a favor dessa besteira de redução da maioridade para 16 anos, desdiz seu próprio “argumento” “científico”: depois de dizer arbitrária a definição de 18 anos (como se isso não fosse inevitável, uma vez que em algum parâmetro temos de parar a contagem), ele sugere um escalafobético exame clínico para… maiores de 16 anos!! –  dei uma gargalhada quando li isso, especialmente porque depois de grafar “16 anos” ele pôs um ponto de interrogação… Em suma, segundo ele, no melhor estilo Kiko (o do Chaves) “18 anos é arbitrário; que tal 16?”.

 

BESTEIRA 4: Com a chegada ao poder federal o PT se deixou desvirtuar, se afastando da sociedade, se perdendo em práticas erradas e entrando nessa crise em que se encontra, da qual só sairá se voltar às origens.

4.1. – a burocratização oligárquica do PT é muito anterior à chegada de Lula à presidência e foi consolidada no primeiro Congresso do partido, em 1991, como apontei há mais de 20 anos, aqui. O caso Lubeca, de 1989, foi apenas o primeiro que chegou à luz, embora logo abafado. Depois vieram, só para citar os mais notórios, o caso denunciado corajosamente por Paulo de Tarso Vencesllau (1993), o rompimento de César Benjamin com conhecimento de causa (1995) e a morte do Celso Daniel (2002). O partido que chegou ao poder federal em 2003 já estava organizado e preparado para aderir ao pacto do Real, para o mensalão, para proteger Delúbio, para esquecer a bandeira do fim do imposto sindical, para amparar Palocci, para defender Sarney como um brasileiro acima dos outros, para se vangloriar de que os bancos nunca ganharam tanto dinheiro como sob seu poder, para lotear a Petrobrás, para sustentar Vaccari. Basta?

4.2.  – O PT desenvolveu tal expertise em matéria de manipulação de valores morais que inventou essa história de que sua imersão no dinheiro da corrupção foi resultado de ter de entrar no jogo para poder sobreviver. É daí que vem a tese do financiamento público de campanhas. Querem nos fazer acreditar em duas patranhas numa jogada só: que o dinheiro da corrupção foi só para campanhas (o que de todo modo seria inaceitável) , e que o financiamento público se destina a moralizar a política, e não a aumentar o domínio dos hierarcas sobre a máquina, deixando ainda menos espaço aos inocentes úteis que ainda continuam a lutar por um outro PT.

4.3. – Crise comporta alternativa. O caso do PT não é de crise, é de esgotamento. O PT acabou; e acabou porque se mostrou igual aos outros, que tampouco alternativa são. Mesmo que o PT tivesse energia para voltar às origens, o que não tem, a sociedade já não disporia de trouxas em número suficiente para sustentar uma farsa dessas. O que não quer dizer que essa burocracia formidável não possa vegetar por mais algumas eleições.

 

BESTEIRA 5: O Brasil é uma nação maravilhosa e precisa de um projeto de país que dê ao seu povo uma vida menos infeliz e nos conduza ao lugar que merecemos no concerto das nações.

5.1. Uma nação que comporta essa desigualdade não pode ser maravilhosa. Não carecemos de projeto, já os temos, e tivemos, até demais. Temos até profissionais de projeto, que os fazem a quem pagar, um melhor do que o outro. Mas de que adiantam projetos se não há força política relevante que queira implementá-los?

5.2. O conserto das nações é uma desafinação só, pois cada uma é horrível à sua própria maneira. Não há exemplo a seguir, modelo a imitar, parâmetro a alcançar. Tampouco há saída para um só país num mundo em que está a faltar água.

RESUMO 5: Antes de buscar o conteúdo (projeto), temos de alterar profundamente a forma (instituições). O caminho da mudança está bloqueado pela couraça da rotina. Para sair dessa, é básico acabar com a política como profissão, tirar todo mundo da inércia e só então nos lançarmos a uma verdadeira controvérsia sobre o caminho a seguir, como defendi aquiaqui e aqui.

“FORA DILMA” É BOLA FORA

A morte de uma irmã minha, Elisa, em dezembro, levou-me a deixar este Blog de lado. A cobrança amena de amigos e leitores no frigir dessa crise que o país atravessa me empurrou a retomá-lo.

Carlos Novaes, 11 de março de 2015

 

Collor foi posto para fora da presidência da República porque não teve como impedir que o fizessem símbolo do que há de pior na política brasileira aos olhos do cidadão: a rotina da corrupção. Hoje, porém, todo cidadão medianamente informado tem clara toda a limitação do justo fora Collor, afinal, não só o próprio Collor é senador da República, como as duas principais casas legislativas da mesma República trazem na presidência dois colloridos de primeira hora naqueles dias: Renan no Senado e Cunha na Câmara devem sua arrancada para esses cargos ao profissionalismo com que prestaram serviços ao mesmo Collor. Para variar, fizemos o serviço pela metade: faltou o legislativo, essa casamata da corrupção em que as políticas anti-povo são a rotina.

Ninguém de boa fé compara Dilma a Collor, pois, para dizer o mínimo, ela não pode ser apontada como estando à testa de um esquema de corrupção: o cabeça dessa testa é outro. Assim, já devíamos ter percebido duas coisas: primeiro, que impeachment é medida paliativa que fortalece o legislativo, o poder cuja rotina corrupta infelicita o país, segundo, que nossos problemas não se resolverão afastando a presidente; na verdade, eles ficarão ainda maiores se ela sair, pois seus substitutos, a depender do desfecho, serão Temer ou Cunha, os dois homens fortes do p-MDB, partido cuja prática nefasta analisei em artigos recentes aqui.

Também já tratei aqui da fragilidade política de Dilma, assim como das limitações do projeto a que obedece, não sendo o caso repetir os argumentos só para não parecer dilmista; o que importa é apontar o erro monumental de aderir a essas manifestações, comandadas por gente que na campanha presidencial recente defendeu a abertura de um “saco de maldades” repleto de “medidas impopulares” cuja inspiração é a mesma das medidas adotadas pela presidente, que nada mais faz do que se conformar às exigências inescapáveis do pacto costurado pelos tucanos e ao qual o PT se rendeu faz tempo, como já discuti aqui, aqui e aqui (e em muitos outros artigos neste Blog). A essência desse pacto é: se as coisas vão bem e os ricos podem ganhar, dá-se alguma coisa aos de baixo; se as coisas vão mal, os pobres pagam o ajuste, sempre em respeito à cláusula pétrea de que os ricos não podem perder.

É exatamente porque o tal pacto comum a tudo preside — as duas principais forças não apresentam caminhos alternativos e toda eleição revela-se apenas a disputa pela troca de turno na guarda presidencial — que muitos dos que dizem não defender o impeachment não se saem melhor do que os colloridos em revolta: do muito de irresponsabilidade e besteira que tenho lido sobre a situação política, nada foi mais repelente do que a emblemática declaração de Aloísio Nunes, para quem o gozo está em “ver Dilma sangrar” até o fim do mandato — esse senhor, que defende o quanto pior melhor (certamente porque o pior fica para os pobres) é um irresponsável senador por São Paulo, leitor. A besteira mais nociva, não apenas porque encobre o essencial, mas porque fortalece a farsa dominante, é a confusão entre preconceito de classe e luta de classes (como se a palavra classe operasse milagres), como se a raiva contra os pobres por parte dos colloridos frustrados que comandam essas manifestações fosse suficiente para trazer de volta uma polarização que o tempo e as circunstâncias tornaram implausível: assim como Collor não foi escorraçado pela luta de classes, Dilma não está sendo vítima dela. Se o espectro de uma anacrônica luta de classes tivesse removido Collor, o desfecho não teria sido tão incompleto a ponto de mais do que preservar ervas daninhas como Cunha, ter fertilizado o solo para a prosperidade delas. Se Dilma estivesse no topo da pirâmide de uma luta de classes, não seria tão frágil e nem dependeria tanto de ser quem liga cadeira e caneta no âmbito do pacto conservador que partilha com seus principais “adversários”.

O essencial que essa pretensa luta de classes em torno do impeachment da presidente encobre é a falência do sistema político que submete, penaliza, coloniza e avacalha o país: na barafunda que fala de classes presumidamente em luta sem sequer nomeá-las, que dirá distingui-las, singularizá-las no cenário político, se acaba por legitimar como eixo articulador dessas classes (só em sonho insurgidas) precisamente a ordem política que abriga tudo o que não presta. É a luta de classes fajuta à serviço da manutenção do status quo! Que legitimidade tem o Congresso, ESSE Congresso, para afastar a presidente? Que crime cometeu a presidente que a distinga para pior dos presidentes, e das maiorias legislativas que os elegeram, das casas que comandariam o processo do seu impedimento? O país precisa é do impeachment do Congresso Nacional e a única maneira de fazê-lo é pelo fim da reeleição para o legislativo, como já demonstrei em vários textos aqui.

A ideia de que estaria a haver luta de classes fortalece a farsa dominante, o que também contribui para a manutenção do status quo: a farsa de que o PT representa os interesses dos pobres. O lulopetismo habituou-se a arregimentar os pobres em favor de um projeto político voltado à manutenção do poder que permite fazer dinheiro, não distribuí-lo e, por isso mesmo, também ele mantém Dilma sob pressão nefasta. A prática recente atesta para quem quiser enxergar que no xadrez jogado por Lula o sacrifício da rainha (por definição, da Inglaterra) não é carta fora do baralho manjado: Dilma será útil enquanto puder realizar o ajuste que o pacto conservador exige para o lulopetismo poder dar mais uma volta no parafuso sem rosca em que gira o país. Se essa volta for bem sucedida, Dilma terá sido maltratada no cargo para o retorno do aliado Lula em 2018; se der errado, Dilma terminará o mandato sacrificada por um Lula que sempre terá deixado claro seu desacordo com a “sucessora-traidora”, etc. Agora, se conseguirem a proeza de se enroscarem ali onde não há rosca, sempre haverá a saída de a rainha ser sacrificada com a perda do cargo, em favor de uma crise ainda maior, da qual suponham poder sair vencedores, distraídos de que o vórtice já engoliu a todos.

Em suma, ao teimar em não aceitar o papel de Dutra, para o qual fora escolhida por Lula para manter quente a cadeira, Dilma se reelegeu presidente para conhecer uma solidão política só comparável com a de Vargas. Entretanto, “Dutra” que é, ela não dispõe de nenhum dos recursos políticos que permitiram ao ex-ditador fazer de seu auto-sacrifício uma rosca nova no parafuso de então. Por isso mesmo, a menos que se comprove relação direta da presidente com os desmandos na Petrobrás ou em outra parte, quem é responsável defende a continuação de Dilma, não para vê-la sangrar, mas para que faça o melhor que puder para aliviar a carga inescapável que está a cair sobre os ombros dos mais fracos.

DESIGUALDADE, MUDANCISMO E VOTO — 2 de 4

Escolhas passadas arbitram perdas presentes e comprometem o futuro

Carlos Novaes, 25 de novembro de 2014

 

Dizia eu no artigo anterior que o p-MDB de 2014 está exatamente onde sempre esteve, desde o p-MDB de 1965: coadjuvante de um arranjo político baseado num modelo eleitoral cujo limite é conservador porque destinado a sustentar a desigualdade. O lulopetismo oligarquizado e burocratizado é o substituto, do momento, para a cúpula hierárquica da burocracia paisano-militar, pano de fundo cujas diferenças embaçamos para melhor fazer o foco na continuidade de largo curso que o p-MDB simboliza, e que é preciso entender para poder transformar. O mistério é como isso foi possível não obstante tenhamos assistido na tela da Globo as mudanças contínuas que a sociedade brasileira e o mundo viveram no curso desses 50 anos, a começar pela queda do Muro e pelo processo que nos conduziu, através do voto, a transitar do mando dos generais para os governos do PT.

Se, do ângulo da desigualdade, tudo mudou para que tudo ficasse como estava, vejamos o que há de mais importante do lado da mudança e do lado da permanência. A mudança mais importante, quando se tem em mente entender o que se passa com o objetivo de transformar o país contra a desigualdade, é que multiplicaram-se os atores organizados. Não apenas temos hoje muito mais organizações políticas dos tipos que já tínhamos em 65, como partidos e sindicatos, mas também inventamos e sustentamos muitas outras formas de organização estável de ação coletiva, como ONGs e movimentos sociais de várias feições. Entretanto, em razão mesmo da desigualdade e da forma desigual com que sua magnitude se faz sofrimento para aqueles que estão submetidos a ela, ou seja, em como ela se distribui desigualmente no espectro social, todo esse esforço de ação organizada perdeu potência transformadora: no caso das organizações tradicionais (partidos e sindicatos), depois do impulso inicial, convergente com o primeiro petismo, a velha atração pelos benefícios de ter “chegado lá” levou seus dirigentes ao abandono dos propósitos transformadores iniciais (a Carta aos brasileiros e a manutenção do imposto sindical são os símbolos mais claros dessa capitulação); no caso das organizações de novo tipo, o problema foi que, salvo exceções conhecidas, seus dirigentes desviaram seus vetores de força na direção do Estado, legitimando-o tal como é, tratando-o comodamente como o estuário natural das carências (vide a Constituição postergada), sem que se tivessem formado na sociedade anéis firmes em torno do inegociável na luta contra a desigualdade — em ambos os casos vigorou o velho ditado “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

Insistir sobre a capacidade de cooptação do Estado brasileiro para explicar esse fenômeno seria fazer o cachorro correr atrás do próprio rabo, uma vez que essa capacidade é exatamente o simétrico da “inclinação” dos burocratas das organizações à cooptação, e o que dá vigência a elas, digo à capacidade e à “inclinação”, é a desigualdade. Apontar que o fim da desigualdade resolveria o problema seria desconsiderar que o que permite a manutenção da desigualdade são também aquelas capacidade e “inclinação”. Em suma, o problema é entender onde estão apoiadas as forças pró-desigualdade e porque as melhores e mais autênticas forças em prol da mudança, quando não morrem na praia, vítimas da violência paisano-militar do Estado brasileiro, acabam por se acomodar ao sol filtrado por uma desigualdade cuja magnitude não só não diminui, mas parece que se prepara para aumentar, tal como vem acontecendo no chamado mundo desenvolvido, com o qual nos parecemos cada vez mais (ou seria o contrário?).

De fato, o cenário político brasileiro apresenta uma configuração semelhante à vigente em países chamados de primeiro mundo, sendo exemplos mais nítidos a Espanha e a Itália: a primeira porque um movimento de rua recente, ainda mais abrangente e vigoroso do que o nosso, motivado a contestar o ajuste fiscal exigido pelo capital para corrigir efeitos tóxicos das suas próprias estripulias, acabou por também desembocar eleitoralmente na polarização eleitoreira PSOE-PP, com a vitória da alternativa mais conservadora, ou seja, ainda mais apegada do que o PSOE aos dogmas do mercado que haviam gerado o veneno contra cujos efeitos a rua se mobilizara — o disparate se deu porque o PSOE era governo e o PP se assentava na condição confortável de oposição (pela mesma ordem de razões, mais um pouquinho de Petrobrás na campanha e Aécio teria derrotado Dilma).

Já com a Itália nos parecemos duplamente: tanto porque nossa ida às ruas contra os limites do pacto conservador que nos infelicita tem sido pouco menos aguerrida do que lá, sem o ímpeto espanhol (afinal também ele malogrado, tal como sua versão norte-americana, ainda menos efetiva do que o 15M ibérico, o Occupy — sem prejuízo de que, lá como cá, nada chegou ao fim); também parecemos com a Itália, eu dizia, porque a nossa corrupção é igualmente endêmica e, se for combatida a fundo, poderá arrastar com ela todo o sistema político e boa parte das grandes empresas, tal como quase aconteceu na Bota no decurso da chamada “operação mãos limpas” — o que não deixa de ser uma deixa, embora já surjam vozes “sensatas”, saídas dessa nova jabuticaba analítica brasileira, a “crítica camarada”, a nos advertir para os perigos da síndrome de Berlusconi, sem perceber que o remédio prescrito é precisamente o que realizaria a síndrome: como sabido, o fascista bufo, e a “nova” corrupção que o acompanhou, emergiram da devastação provocada pela “mãos limpas” exatamente porque ela não devastou a ordem política, que foi preservada, mas apenas a elite política italiana.

Lá como cá, o mesmo fosso entre a lógica de palácio (mantenedora da ordem desigual), e a lógica da rua (de quem sofre a desigualdade), e o mesmo desfecho frustrante das mobilizações de rua, que esbarram nos aparatos policiais e se dissipam em falsas polarizações eleitoreiras entre as forças que se especializaram em disputar os postos de mando do palácio. Como em cada país o arranjo político se dá segundo modelos eleitorais e partidários peculiares, havendo as combinações institucionais mais variadas para acabar nas mesmas frustrações na representação, a solução não virá pela imitação de uns do modelo eleitoral dos outros, o que deveria ser suficiente para soterrar todas as ilusões em torno de uma reforma política redentora para o Brasil: o país e o mundo precisam de uma transformação política que dobre a aposta na busca de uma forma democrática de resolver conflitos que incorpore ainda mais a vontade dos insatisfeitos.

Conectado àquela mencionada multiplicação de atores organizados verificada no curso dos últimos 50 anos da política brasileira, temos um dispositivo institucional invariante. Partilhado por praticamente todas as chamadas democracias ocidentais, sua longeva solidez porosa ajuda a explicar a perda do ímpeto transformador das novas organizações sociais porque faz dele o principal filtro político contra a mudança: a reeleição infinita para o legislativo, cuja inadequação e imbricação com a desigualdade discuti longamente aqui e em outros textos deste blog. Em poucas linhas: por mais novidades que tragam, aqueles novos atores organizados esbarram num sistema político estruturado para não mudar, pois a reeleição infinita permite a perpetuação dos mesmos personagens e das mesmas rotinas, independentemente de o quanto a sociedade tenha mudado — em outras palavras, se as sociedades mudam devagar, ainda mais lenta se faz a mudança quando elas estão amarradas pela reeleição infinita. Para piorar as coisas, essa dinâmica da reeleição é replicada em praticamente todos as novas organizações: a tendência é reconduzir quem já está no comando, numa negação ao fluxo de mudança que vem da sociedade — não sei não, mas desconfio que as direções de nossas organizações sociais são ainda mais estáveis do que as das grandes empresas, que realizam trocas para não perder o bonde do fluxo das mercadorias.

Explicar a crise de representação pela lógica de palácio (como faz Marcos Nobre com seu pemedebismo) é tomar o efeito como causa do problema: há crise de representação não porque criou-se uma dinâmica de palácio em que uns vetam os outros (isso, quando muito, descreve lá a briga entre eles, enquanto já divorciados da sociedade e ocupados do butim – ao preço de deixar de lado o lastro que permite que eles se deem ao luxo dessa briga), mas porque a escolha do representante em uma sociedade que quer mudança se faz segundo um modelo eleitoral hostil à lógica da rua (na qual estão mais ou menos engajados os representados), que obriga fazer a escolha sempre entre os mesmos, o que leva à fratura do fluxo já lento da mudança pelo acionamento dos freios da inércia que o modelo favorece no comportamento propriamente eleitoral do cidadão que, não obstante, quer mudança.

Essa a engrenagem de onde também saiu a nossa transição lenta, gradual e segura da ditadura para a democracia, com o p-MDB preservando seu papel de pelego graças à especialização na política eleitoral miúda que a ditadura o obrigou a adquirir e para a qual ele seleciona, há 50 anos, os mais tarimbados profissionais nessa correia de transmissão que sai dos municípios, passa pelos Governos e Assembléias estaduais e chega ao Congresso Nacional, sem jamais precisar de projeto nacional algum, pois este sempre será o trabalho do outro — esse é o legado propriamente político da ditadura paisano-militar para a continuidade da desigualdade: sem o saber, ao adestrar o p-MDB, a ditadura criou o partido ideal para tirar proveito desse modelo eleitoral em benefício da manutenção da desigualdade mesmo sob democracia, pois esse partido aglutina forças não por ter um projeto para o país, mas precisamente por não tê-lo: ao mimetizar na política os interesses individuais miúdos que são a matéria escura da sociedade, o p-MDB é o próprio entulho autoritário embrulhado para presente — ele é a memória que empata o fluxo.

Não é à toa que agrada aos tucanos letrados ver o p-MDB cindido em duas criaturas (MDB e PMDB), uma antes da abertura política e outra depois, pois assim se joga fora precisamente a ponte orgânica entre esse antes e esse depois, transfiguração que se deu segundo os desígnios de uma transição “lenta, gradual e segura”: o p-MDB foi o instrumento para a política Geisel-Golbery, conjunto que respondeu pela preservação dos interesses da ordem do capital numa democracia desigualitária. Reapertado pelo lulopetismo, o plano Real tucano é um nó de marinheiro nessa corda antiga, que desde sempre está a amarrar os interesses dos extremos: os muito ricos são governistas enquanto fazem o governo, a quem só assim engolem; e os muito pobres o são porque dependem do governo, a quem só sufragam enquanto lhes dá de comer.

Logo, não foi um erro de cálculo de presidentes mal assessorados que fez do p-MDB peça indispensável ao projeto mudancista que orienta o país desde o realinhamento eleitoral de 1994: o plano Real. PSDB e PT, conquanto não proponham nenhuma ruptura com o passado, precisam do p-MDB na sua disputa improdutiva pelo protagonismo na condução do projeto comum precisamente porque ele só poderia ser dispensado se houvesse uma ruptura com o passado, cuja continuidade ele representa. O fato de no início de cada uma das suas respectivas eras governativas, tanto tucanos como lulopetistas terem tentado seguir sem o p-MDB mostra apenas que, como não poderia deixar de ser, eles partilham não apenas o projeto, mas também seu ponto cego: um projeto que satisfaz aos muito ricos e aos muito pobres, levando os primeiros a ganhar dinheiro como nunca e os segundos a comer como nunca antes, não é um projeto transformador numa ordem econômica com grande desigualdade porque as faixas do meio do espectro social, motor de arranque de qualquer transformação, são justamente aquelas que pagam o pato. Ou seja, uma vez sacrificada a energia social transformadora, o resultado só pode ser as forças mudancistas dependerem da capacidade acomodatícia que a força partidária conservadora provê. A força do p-MDB se nutre duplamente do sofrimento das camadas médias: a desorientação delas tanto favorece a construção da falsa polarização em que ele se encosta como indispensável, como confere a ele os votos indispensáveis para que possa se fazer encosto.

Assim, não faz nenhum sentido enxergar na polarização telecatch da eleição presidencial de 2014 a tradução de um impasse real porque não estaria “mais à vista a possibilidade de que alguém melhore sem que alguém piore”, como quer Marcos Nobre. Não. Há um vasto segmento intermediário perdendo desde o início, seja na remuneração da dívida pública, contraída pela maioria junto aos rentistas, seja na degradação correspondente da qualidade de vida nas maiores cidades. Em outras palavras, o analista não pode comprar a ilusão das camadas médias (entre as quais está toda a camada superior dos empregados da indústria) como se fosse real: os ganhos fátuos que ela comemora em consumo custaram a deterioração da qualidade de vida, enormes perdas ambientais não contabilizadas e o comprometimento da capacidade de investimento do Estado no futuro próximo, tudo em favor dos mais ricos, cujos interesses tem sido garantidos pelas duas forças que se enfrentam desde 1994 e cujo êxito varia conforme elas tenham ou não sucesso em receber a adesão governista dos muito pobres, não sem antes lograrem alcançar a simpatia daquela parte das camadas médias que oscila eleitoralmente de um lado para o outro porque PT e PSDB são mais parecidos entre si do que Democratas com Republicanos, nos EUA, ou PSOE com PP, na Espanha.

Como o Brasil emergente vem mais e mais se parecendo com os emergidos, fica cada vez mais difícil saber quem copiou a quem. Por isso, os modelos explicativos apoiados na ideia de que o país mais adiantado é o espelho do mais atrasado, ou na sua versão mais dialética (a palavra não é minha) sobre um desenvolvimento desigual e combinado, estão com água na gávea — afinal, pelo andar da carruagem da desigualdade em toda parte, parece estar havendo uma reversão pela qual o Brasil que temos sido sempre fora o futuro do mundo, que já não é o que era, como concluiu Paul Valéry diante do horror da primeira guerra mundial. Nessa ordem de idéias, em que se destaca simetrias e semelhanças sob a ordem do capital, e se desconfia das noções de “forma original” e “cópia”, um suposto atraso brasileiro no concerto das nações tem de ser visto com cautela.

MAIS UMA DA CRÍTICA CAMARADA

Carlos Novaes, 22 de novembro de 2014

Em artigo na Folha de S.Paulo de hoje, André Singer, não sem de cara nos garantir que quer sim apuração e punição rigorosas (puxa, ainda bem!), aborda o caso da Petrobrás para nos advertir sobre os perigos de um escândalo à italiana, e para nos indicar aquela que é a saída das saídas para onze em cada dez críticos camaradas: a reforma política — como já expliquei em uns e outros textos neste blog, essa é uma saída tão estreita que se enveredarmos por ela é certo que nos baterão a carteira.

A operação de Singer é tão emblemática da crítica gasparzinho, e do que nela é preciso combater, que vale fazê-la de mote para a discussão. Segundo ele:

“Não adianta desbaratar esta ou aquela rede de propinas, por mais vasta que seja, e não mexer nos custos de campanha.”

Como se sabe, o PT que está empapado do óleo da Petrobrás é o mesmo que lambuzou-se no mensalão, e não é outro senão aquele que vem defendendo há tempos o tal financiamento público de campanhas eleitorais. Vejam só as sutilezas da crítica purgante: ao mesmo tempo em que nos recomenda como remédio a solução defendida pela burocracia que se compraz nos desmandos a serem remediados (ou seja, trata-se de um tônico para o PT, cujo óleo preferido não é exatamente o de fígado de bacalhau), ela também se faz porta-voz de uma nova aplicação para a lei Thomaz Bastos: se os petroreais são dinheiros para campanhas, cujas belas imagens custam os olhos da cara, então precisamos adotar algo como o financiamento público, não? Apenas para tornar o ponto mais claro: “os políticos estão nos roubando porque precisam do nosso dinheiro para fazer campanha, e a gente não dá” – kekéilson!?!

 

Os números do mensalão são tão irrisórios quando comparados aos da Petrobrás que os atuais acusados se sentiriam insultados se aqueles valores fossem oferecidos como gorjeta aos seus motoristas (embora Singer, criterioso, diga que o montante “parece” maior). Assim, se o próprio STF, por muito menos, derrogou a lei Thomaz Bastos, por que deveríamos aceitar a jurisprudência pretendida por Singer? Se seguirmos a trilha do volume do dinheiro até seu destino, o “argumento” dos custos de campanha como explicação da corrupção revela todo o seu ridículo: está evidente que só uma parte se destinava a campanhas; o grosso ficava com as próprias empreiteiras, na forma de lucros exorbitantes, com os próprios intermediários, em contas fora do país e… pois é, ainda falta chegar às contas bancárias dos próprios políticos, esses sim os verdadeiros beneficiários particulares de todo o esquema. Em suma, ao invés de acabar com a corrupção, o financiamento público iria permitir aos políticos corruptos aumentarem sua poupança.

Seja como for, por que deveríamos acreditar que:

1. dotar as campanhas de dinheiro público iria, como num passe de mágica, satisfazer os apetites que essa dinâmica onívora (além de dinheiro, ela traga reputações, escrúpulos, etc) levou PT, PSDB, PMDB e demais a desenvolver?

2. se, como os mensalões, metrôs, sivans, refinarias e túneis já deixaram claro, PT e PSDB não respeitam a lei já existente, iriam respeitar uma que proibiria toda e qualquer ajuda privada para campanhas?

A verdade é uma só: em mais uma prova de que PT e PSDB partilham o mesmo projeto, a condução temerária da Petrobrás pelos petistas acabou por fazê-la merecer o X que os tucanos haviam desenhado para a PetrobraX deles: finalmente a petroleira se parece com uma autêntica empresa do império X do aventureiro Eike, o nosso Berlusconi que não chegou a bufão político (cada país tem o fanfarrão multiplicador que merece).

Como sabemos, por experiência própria, que um país precisa bem mais do que a ação devastadora de um judiciário decente para fazer de seu bufão político um Berlusconi (ou de seu Berlusconi um bufão político), tomara sejam fundados os temores de André Singer e esse escândalo arraste com ele toda a nossa ordem política corrupta e corruptora. Parodiando o troco do Ferrez ao choramingo do Luciano Huck em busca do rolex perdido: “se for para salvar a vida, fica barato!”.

DESIGUALDADE, MUDANCISMO E VOTO — 1 de 4

P-MDB e GLOBO, 50 anos de algum pão e muito circo

Carlos Novaes, 21 de novembro de 2014

A ditadura paisano-militar instalada em 1964 foi o desfecho desfavorável ao povo de uma polarização em que se disputava o modo de arranjar o capital local e o tamanho da desigualdade dele decorrente. Venceram os inimigos do povo e a ordem desigual cuja magnitude o golpe buscou preservar se mantém até hoje, ainda que o voto direto pleno e a liberdade de imprensa tenham sido recuperados, o que já quer dizer alguma coisa. A TV Globo e o p-MDB que hoje conhecemos foram criados logo no início da ditadura e estão para completar 50 anos. As duas instituições tem uma marca de nascença comum:  foram engendradas com um papel pré determinado, o de “legitimar” a ordem estabelecida.

Desde o início orientada pelo instinto animal capitalista de a tudo abarcar, a Globo se encarregou de ir armando a lona mais abrangente que pôde, atuando por cima no fito de conquistar a preferência do telespectador, no que se tornou uma especialista. Em contrapartida, tendo já de saída interditada a disputa dos principais cargos de mando do país, cujo provimento deixara de ser eletivo, o p-MDB foi orientado pelo instinto de sobrevivência a se acomodar à disputa por baixo pela preferência do eleitor, no que acabou por se tornar também um especialista. Aparentemente eram movimentos opostos, mas que guardavam grande convergência: a emissora partia dos grandes centros, onde havia grande concentração demográfica, para dali estender a potência de antena ao interior do país; o partido vinha da disputa local miúda por milhares de prefeituras e câmaras de vereadores, para dali dar potência à representação na câmara federal e no senado. O encontro dos dois esforços se dará na transição para a democracia, na qual ambos tiveram mais uma vez o mesmo papel: preservar o que desse da desigualdade garantida pela ordem em ruínas à qual deviam o próprio surgimento.

À medida que a lona se estendia em busca do telespectador, maior era o contingente de eleitores sob ela; à medida que o descontentamento da rua crescia, maior era o contingente de telespectadores inclinados a votar na alternativa possível, especialmente nos centros socioeconomicamente mais dinâmicos, menos amarrados ao governismo que caracterizava (como ainda caracteriza) as regiões em que a população sofre uma dependência maior e mais direta do poder. Assim, de um lado, o p-MDB fazia a disputa local miúda, que então abarcava o grosso do eleitorado do país, âmbito em que não chegou a haver alteração relevante e bastou dar continuidade às práticas do antigo PSD (ou da UDN), mobilizando dezenas de milhares de agentes políticos para a disputa do executivo e do legislativo em milhares de municípios. De outro lado, nos grandes centros, o mesmo p-MDB se conformou à disputa para o legislativo apartada da eleição para presidente da República, governador e prefeito, cuja escolha não mais se dava pelo voto popular.

Ao tornar supérfluo para a oposição desenvolver e defender para valer projetos de governança de alcance mais geral, a ditadura não só obrigou o partido de oposição a se especializar nos métodos da disputa miúda, como o privou (e ao país) dos influxos trazidos pelas disputas mais gerais à vida partidária — o p-MDB nasceu como um partido coadjuvante, cuja prática, enquanto inibia, descartava ou sequer atraia os mais combativos, foi diuturnamente selecionando (e premiando) profissionais da política especializados na busca do êxito via traficância miúda e sem projeto próprio de poder nacional: protagonismo municipal, acomodação estadual e caronismo federal (soa familiar?). Essa supremacia adestradora do jogo miúdo era de tal ordem que em 1974, quando o eleitorado conduziu um realinhamento eleitoral que deu ao p-MDB 16 das 22 cadeiras em disputa para o Senado, o senador eleito por S. Paulo foi um político então desconhecido, Orestes Quércia, que só alcançara a condição de candidato porque os maiorais do p-MDB achavam impossível derrotar Carvalho Pinto, o candidato da ARENA, e, claro, desprezavam a condição de candidato majoritário enquanto tal (diga-se de passagem que essa vitória de Quércia em 74 fortaleceu em torno dele a política miúda e foi com base nela que ele se impôs como vice da candidatura de Montoro a governador, em 1982, deslocando Covas).

Enquanto isso, a Globo foi desenvolvendo uma programação em três faixas básicas: a chamada linha de shows, as novelas e o telejornalismo. Como a extensão da potência de antena era onerosa e requeria tempo distribuir equipamentos para vencer as grandes distâncias que o tamanho do país impõe, a emissora desde logo teve como desafio conquistar o telespectador dos grandes centros, âmbito restrito no qual, pelas mesmas limitações financeiras e logísticas, se dava a medição da audiência à TV. Ou seja, enquanto o p-MDB tinha como tarefa primeira conquistar o eleitor do interior, menos afeito à mudança e de cujo apoio dependiam o grosso das representações legislativas proporcionais (mormente para a Câmara federal) e dos executivos municipais, a primeira tarefa da Globo foi satisfazer ao gosto dos moradores das grandes concentrações urbanas, mais propensos à mudança e de cuja audiência viriam os recursos para financiar a expansão da rede. Considerando que os esforços das duas instituições eram vigiados de perto pela ditadura paisano-militar, cujos dispositivos de repressão e censura não chega a ser necessário rememorar, tudo se passava dentro do mesmo marco geral comum: constatação limitada da realidade, fantasia truncada e, portanto, interdição à mudança.

Como não se tratava de uma ordem totalitária, mas autoritária, havia política e, portanto, graus de liberdade. Na exploração deles emergiam atores menos obedientes: o p-MDB teve seus “autênticos” e a Globo teve seus “comunistas”, vozes que, a um só tempo, embora denunciassem a ordem malsã, não podiam deixar de reforçá-la, pois o ato mesmo de denunciar, respeitando os limites do marco geral ditatorial, atualizava a obediência devida por todos ao regime autoritário vigente. Esses graus de liberdade eram exercidos (e tolerados) de modo diferente conforme a esfera de atuação: assim como nas disputas para as prefeituras, unidades orçamentárias ordenadoras de despesas, nunca houve muito espaço para os autênticos do p-MDB, também no telejornalismo da Globo não havia lugar para dissonâncias, pois a sua dramaturgia (a do jornalismo, pois ele tinha, como tem, a sua própria carpintaria dramática) sempre foi orientada para fantasiar a realidade da desigualdade em favor da conservação: as duas vozes que passaram a obedientemente se alternar na bancada coreografada do Jornal Nacional funcionavam como mimetização simbólica de uma alternância vicária entre a dupla p-MDB-ARENA na não menos coreografada liça política, que não raro assumia o jeitão de um telecatch. Sem o saber, Cid Moreira e Sérgio Chapelin iam treinando a opinião pública na aceitação do dualismo fajuto, e por isso estéril, que ainda hoje se faz notar na porfia vã entre PT e PSDB — mas não nos adiantemos tanto.

Eleitoral e diretamente dependentes de um jogo saído da política miúda dos municípios, e institucionalmente submetidas ao governador respectivo, as representações nas Assembleias estaduais eram, tal como hoje, pouco afeitas à contestação e pródigas em negociações de interesses apartados do que quer que a sociedade aspirasse — um autêntico circo, onde todos tinham voz e vez desde que respeitados a geleia geral e o “decoro”, recebendo-se, em contrapartida, os favores ou deferências que a caneta do governador determinasse sob a vigilância uniformizada que tinha atrás de si. Tudo mais ou menos no espírito da “linha de shows” da Globo, onde os campeões de audiência eram o Programa do Chacrinha e o Programa Silvio Santos, nos quais se acolhia igualmente aberrações e talentos, reunião cujo potencial explosivo era desengatilhado pela figura judicante do apresentador, que naturalizava simbolicamente a ordem unipessoal desigualitária anti-povo vigente fora do palco distribuindo arbitrariamente, no mesmo palco, microfone, bacalhau e dinheiro, contando com a retaguarda prestimosa das uniformizadas chacretes, silvetes e congêneres, cuja passividade feminina disciplinada era o rebate tergiversador da hierárquica ordem militar masculina. Como deveria ser óbvio, não estou postulando a existência de nenhum gênio do mal que a tudo tenha previa e intencionalmente concebido: representações são exercício de mimetização que invocam memórias já partilhadas e, por isso, em geral tendem inercialmente à convergência formal, independentemente das intenções de quem quer que seja — o que dá trabalho é romper a inércia e, por isso, televisão e políticos mudam tão devagar e, na mesma batida, telespectador e eleitor não são menos lentos para mudar de canal e de voto, mantidas as condições normais de temperatura e pressão.

Tendo como certo, portanto, não ser por acaso que a palavra representação seja empregada tanto para descrever a ação política como a ação dramática, também não haverá de ser casual que os teatros das grandes encenações que treinaram eleitores e telespectadores no jogo proibido x permitido tenham sido (e, de certa maneira, ainda venham sendo) o Congresso Nacional e as telenovelas noturnas da Globo. Assim como a anti-candidatura de Ulisses Guimarães à presidência contra o general Ernesto Geisel — uma pedagógica encenação de “enfrentamento”, pois o recuo já estava embutido — acabou por preparar os ânimos para a lenta, gradual e segura transição até as eleições diretas (e para além delas…), também a teledramaturgia novelesca da Globo foi a encenação de exercícios prolongados de transição em que ganhadores e perdedores nunca chegavam realmente a se caracterizar — nossa Lei de Anistia, que encobriu torturadores e não se ocupou dos desaparecidos, foi fruto da mesma inclinação pelos panos quentes.

Ao assistir, torcendo por ela, Gerusa, a neta do coronel Ramiro Bastos, realizar sua fantasia romanesca proibida com o Dr. Mundinho (o “Dr.” é importante), um jovem que se opunha ao avô poderoso e que, sem poder chegar à condição de coronel, contentou-se em disputar o posto eletivo de “Intendente do porto” contra a vontade do velho autocrata, ao acompanhar o desenrolar dessa trama em que tudo mudou para que tudo ficasse como estava, aspecto que a desdita da rebelada Malvina (magistralmente vivida pela então estreante Elizabeth Savalla) não deixou de realçar, o telespectador-eleitor não estava sendo entretido para esquecer a realidade, antes estava sendo levado a considerá-la sob a ótica de um pacto em que a mistura do velho com o novo não resultava em um monstrengo, mas na felicidade de todos (ou quase). Além de Walter Durst, também Dias Gomes, Bráulio Pedroso e Jorge Andrade fizeram uso, nas suas novelas daquele período, desse arremedo da “linguagem esópica” que caracterizara a literatura russa sob censura tzarista no século XIX (um exemplo é o conto Relíquia viva, de Ivan Turguêniev, cuja análise fiz aqui (pag.192).

A chegada à presidência da República do p-emedebista ultra-conservador Tancredo Neves pelo voto indireto, tendo como vice José Sarney, da ARENA, foi o coroamento desse jogo de esconde-esconde midiático-político, que reunia políticos experimentados na prática de arrancar na miúda o voto do eleitor para fazer às suas costas a traficância dos interesses graúdos. O ápice da mistificação se deu na tela da Globo, que depois de ter tentado em vão esconder a campanha das diretas, cobriu esse resultado do malogro da luta popular de modo a levar o eleitorado à fantasia de que era ele o responsável por aquela “conquista” no Colégio eleitoral da ditadura — nada poderia ser mais emblemático do impasse em que nos encontrávamos e, por isso mesmo, o circo tinha de ser total: apresentou como uma conquista da sociedade um arranjo palaciano destinado a burlar o que ela mais queria, por mais complicado que tenha sido para os políticos profissionais lograr tal resultado. Aliás, foi complicadíssimo precisamente porque destinado a contornar o incontornável, a desigualdade — frustração de que o PT foi o principal beneficiário.

Veio a Constituinte e nela o pluripartidarismo nominal foi suplantado pelo “bipartidarismo” real, naquela altura ainda com a exceção do PT, que corria por fora, energizado por ligação direta própria com a sociedade. O Centrão, assim como a ARENA havia feito, organizou os mais conservadores e o p-MDB continuou a fazer o jogo pela outra ponta, mas agora em um cenário em que as posições de mando estavam quase invertidas — o símbolo desse rearranjo estava em que Ulisses Guimarães passara de anti-candidato à presidência da República à presidência dos trabalhos constituintes: quem tivesse acompanhado o período anterior não poderia ver nisso propriamente uma transformação. Com efeito, a despeito da formidável mobilização da sociedade, as aspirações das ruas foram vencidas pelos interesses de palácio, que nos legaram uma Constituição postergada: repleta de novidades alvissareiras, mas quase tudo que dizia, e diz, respeito a alterar a ordem que mantém a desigualdade foi procrastinado para regulamentação ulterior. Esse resultado reproduziu a lógica dramatúrgica das novelas dos anos 1970, nas quais, depois de muito lutarem comendo o pão que o diabo amassou, os mocinhos colhiam como vitória uma solução de compromisso com o estado de coisas que combatiam. Ou seja, a cadência da transição lenta, gradual e segura pautou e continua a pautar a vida política nacional, e é contra essa lógica de palácio que as ruas voltam a se agitar, empurradas pelos sofrimentos intoleráveis da desigualdade (voltaremos a isso).

Ao dar apoio para o quinto ano de mandato do arenoso Sarney, o p-MDB deixou claro que pau que nasce torto morre torto: nascidos e selecionados num longo processo em que não se disputava um projeto nacional, peneirados segundo fossem capazes de êxito em renhidas disputas miúdas (ainda que por presas graúdas), os profissionais do p-MDB não viram problema, sequer fizeram caso, de que a prorrogação do mandato do presidente indireto implicaria em que a eleição presidencial direta prevista seria realizada inteiramente desamarrada das eleições para os legislativos federais: eles não aspiravam a presidência, mas o mando da lógica de palácio, cujo pólo dinâmico, sabiam-no desde sempre, era o Congresso, onde JÁ estavam assentados (e de onde a reeleição infinita permite que não saiam). Foi esse cálculo antigo que selou a sorte de Ulisses Guimarães nas eleições presidenciais de 1989: disputando uma eleição solteira, apartado das ruas e sem projeto, ele viu seus partidários aderirem ao candidato da Globo (claro!), cuja capacidade de manipulação foi mais uma vez posta a serviço da manutenção da desigualdade e contra a lógica da rua, então simbolizada por Lula (julgo que o leitor tiraria mais proveito dessa narrativa se lesse também dois outros textos meus: Quando a memória mais entrava do que informa o fluxo e A Política entre a memória e o fluxo).

Enfim, quando, em nossos dias, saturados de tanta porfia eleitoral escamoteadora, novela e teledramaturgia jornalística, temos, de um lado, no folhetim Império, a Globo a arrastar o tal beijo gay a ponto de dar-lhe a forma de uma fotografia, num arranjo plástico em que os protagonistas mais parecem pai e filho, e nenhum dos dois é um gay tão convicto assim, e enxergamos a semelhança com a camuflada dupla gay da novela O Rebú, velha de 40 anos (1974), onde Buza Ferraz aparecia comportadamente “adotado” por Zimbinsky — e, de outro lado, temos Michel Temer, o comandante do p-MDB e vice-presidente da República, a observar, com a fleugma costumeira, que no caso Petrobrás há que eventualmente corrigir “exageros”… diante de tergiversações desse porte e a essa altura dos acontecimentos e dos costumes, onde o vanguardismo sem risco da Globo não passa de um arrombar portas abertas e o mudancismo sem risco do p-MDB é a face visível de uma inserção eleitoral de 50 anos, não sei exatamente onde se pode encontrar amparo para a tese de Marcos Nobre de que a prática p-medebista teve origem congressual na década de 1980 e, a partir de então, contaminou o resto do sistema político: o autor parece acreditar que o câncer de medula do nosso sistema político se deva a erro de postura e seja transmitido por contágio atmosférico!

Na verdade, não há propriamente singularidade, mas a razão é outra: centrismo, demismo, pemedebismo, tucanismo, lulismo e lulopetismo são projeções prismáticas na ordem política local de uma mesma interdição imposta aqui pela ordem do capital: o enfrentamento da desigualdade.

O PALÁCIO E A RUA — 4 de 4

Carlos Novaes, 08 de novembro de 2014

 

A lógica da rua só ganhará um vetor transformador se superar a falsa dicotomia PT-PSDB e der um passo à frente, ou seja, se deixar para trás essas duas forças do pacto incrementalista que se arrasta há 20 anos como arranjo saído de lutas abertas outros 20 anos antes — ainda que sem desconsiderar que parte do nosso devir terá muito a ganhar se a raiva não nos impedir de reconhecer os grandes serviços que tucanos e petistas ainda podem prestar no plano palaciano, mormente se fizerem um recolhimento concatenado dos cacos do seu projeto comum, como apontei no post imediatamente anterior.

Sentindo o perigo da obsolescência, o PSDB vai se aguentando como pode, mas a ausência de uma liderança inconteste deixa espaço para que parte de suas energias seja gasta na luta interna pelo cabeça, ao mesmo tempo em que ao que lhes sobra em apoio entre a minoria mais beneficiada pelo projeto comum (“que nunca ganhou tanto dinheiro”, disse o outro…), lhes falta em reconhecimento por parte daqueles a quem a derrubada da inflação abriu uma abertura por onde tentar organizar a vida. Enquanto isso, o PT, a mais estruturada das duas forças, que ao contar com liderança de carisma popular afinal domesticado não deixa de contar também com a empatia do contingente mais numeroso dos beneficiados pelo pacto, volta a encenar a autocrítica típica dos espertalhões: “ajudem-me a ser maravilhoso como eu era antes”. Esse truque de simular humildade enquanto se diz o maioral ao mesmo tempo que se dirige com gravidade afetada ao cabide dos inservíveis para resgatar do abandono a surrada batina do “socialismo”, esse truque é velho e já em 1994 Rui Falcão tirou proveito dele para, assim como hoje, ocupar a presidência do partido. A diferença é que naquela altura nosso canastrão se dirigia ao público interno como militante, enquanto agora busca o aplauso das grandes plateias como protetor.

Olho neles — a artimanha pode dar certo porque é a cara da nossa cultura cristã autocomplacente. O lulopetismo já não sobrevive sem os recursos do poder de Estado, e tudo fará para não perde-lo, o que inclui a continuação do uso abusado que vem fazendo dele. A pseudo radicalidade da bandeira do “controle da mídia” serve como cortina de fumaça para o abandono das bandeiras realmente radicais, como o combate à desigualdade com uma reforma tributária correspondente e o enfrentamento dos interesses do agronegócio predador dos recursos naturais.

Mas não se deve cometer o erro de permitir que a rejeição a esses dois partidos conduza à celebração indevida da ação espontânea e/ou à recusa da forma partido enquanto tal, pois ainda não há substituto organizacional para a ação política coletiva eficaz, uma vez que ela depende da reunião duradoura de quem entende pensar o bem comum de forma semelhante  — sobre isso, remeto o leitor a posts anteriores, que podem ser encontrados aqui e aqui. De toda maneira, tão certo como não se poderá descartar a ação partidária é que a lógica da rua não poderá ser abarcada nem só pela forma partido, nem muito menos por um único partido — a unidade terá de vir da própria ação, unidade esta que dependerá não do desenho retilíneo da proposta, mas, bem ao contrário, do tanto de abertura à invenção que ela favorecer.

A lógica de palácio aferrada à desigualdade que nos infelicita mobiliza uma memória incrustada em bens e procedimentos, uma memória nefasta que informa e é retroalimenta por rotinas de poder legislativo descoladas do fluxo do mundo da vida, onde estamos todos nós. O dispositivo que garante esse estado de coisas é a reeleição para o legislativo, na qual se assenta a profissionalização da representação na forma de uma carreira. Se o mundo legislativo já tem suas próprias rotinas, inescapáveis em qualquer instituição, essas rotinas se tornam ainda mais hostis à mudança quando se submetem aos interesses dos mesmos de sempre, quando muito com substituições que nada renovam. Nada mais parecido com um vereador do que um deputado, a ponto de não haver espelho de parlamentar que possa responder à pergunta “espelho, espelho meu, existe alguém mais cretino do que eu?”. Embora tenha feito o diagnóstico certo, Lênin concebeu o remédio errado, pois supôs que o fim do cretinismo parlamentar exigia o fim da representação parlamentar. Não. O que faz o cretino é a profissionalização, não a representação. A tarefa da rua é acabar com a reeleição para o legislativo.

A primazia dessa tarefa sobre qualquer outra deriva de quatro razões principais: ela pode ser efetivada na ação de cada um mesmo antes de se tornar uma norma nova (basta não votar mais em quem já teve mandato); é simples de entender; permite adesões com motivação e intensidade diferenciadas; e tem grande poder transformador: qualquer um pode entender e se alegrar com a ideia, aderir a ela pelas razões mais idiossincráticas, com engajamento prático não menos próprio e obtendo da sua adoção o desmonte de toda a engrenagem em que estão assentados os hierarcas de Estado e os oligarcas de partido. Se a lógica da rua impuser o fim da reeleição para o legislativo, a lógica de palácio, seja a congressual, seja a partidária, seja a do Executivo, vai ser profundamente alterada para melhor, a começar pelo fato de que a certeza de que vai ter de voltar à vida anterior depois do mandato tornará todo representante um zeloso mantenedor de vínculos.

Dada a enorme visibilidade que o manejo do orçamento dá aos titulares do poder Executivo, fomos levados ao engano de achar que o poder advém principalmente do manejo desses recursos. Mas não é assim. O poder mais efetivo está na mão dos que logram alcançar e permanecer na condição de representantes profissionais (legislativos). As práticas de um Sarney, um Renan ou um Temer só são viáveis pelo instituto da reeleição, pois ela seleciona e premia os piores. Não por acaso as vantagens dessa rotina foram descobertas pelos praticantes de outras rotinas, filhas de suas respectivas memórias reificadas, que se opõem ao fluxo da mudança que atravessa a sociedade: os religiosos com pretensões hegemonistas, a parentela com aspirações dinásticas e os milicos saídos da rigidez dos códigos, afeitos ao uso da força contra a “indisciplina” do nosso povo. Não foi à toa que Ulisses Guimarães, macaco velho, contemplando o plenário de uma sessão do Congresso desde a cadeira da presidência, advertiu com travo amargo em resposta a um interlocutor que menoscabava o chamado “baixo clero” parlamentar: “bobo é quem ficou lá fora”.

Mas o melhor resultado dessa proposta não é a alteração profunda da lógica de palácio, o que já não seria pouco. O melhor é o que vai ser construído na lógica da rua, pois o atrativo que há numa proposta de ativa desobediência civil como essa é também a qualidade que marca toda verdadeira transformação: ela não tem dono, e o único desdobramento que pode ser antecipado é o de que se alcançará o fluxo entre a rua e o palácio. Ou seja, com o fim da reeleição dos nossos representantes nós vamos ter todos os problemas que já temos, mas não teremos o de não ter perspectiva e será bem mais difícil ao homem da rua — seja ele passante, ambulante, pedinte, laborante, residente ou manifestante — dizer “não é comigo”.

O PALÁCIO E A RUA — 3 de 4

Carlos Novaes, 08 de novembro de 2014

 

Como já pude dizer aqui cerca de dois anos antes das manifestações de 2013, para neutralizar o potencial transformador da lógica da rua, os oligarcas da lógica de palácio passaram a propagar com ênfase crescente os poderes milagrosos de uma Reforma Política, contando com o apoio entusiasmado dos inocentes úteis de plantão para lograr acomodar o desejo de mudança das ruas na bitola estreita de um novo arranjo palaciano destinado a dar sobrevida à ordem da desigualdade. Em contrapartida, parte da autointitulada esquerda marxista (pobre Marx), adversária sincera da ordem desigualitária, pretende submeter a diversidade de forças que inerva a lógica da rua ao ritmo cansado do anacrônico motor da “luta de classes”, cuja manivela de partida, perdida entre os escombros dos morticínios industriais do início do século XX, nossos empenhados amigos jamais desistem de tentar reencontrar. Os primeiros, acertada e infelizmente, entendem que é possível neutralizar as ruas a ponto de que nada aconteça; os segundos, fantasiosa e danosamente, supõem poder dirigir as ruas segundo sujeitos pré-figurados inconsistentes na direção da derrubada da ordem enquanto tal.

E meio à barafunda reinante, pode-se dizer que aquilo que se entende pela tal Reforma tem três eixos principais: o modelo eleitoral, o sistema partidário e o financiamento de campanhas eleitorais. Essa relojoaria institucional genuinamente $ui$$a, destinada a concatenar num conjunto final as variadas propostas para cada um desses três eixos, teria como alegados objetivos principais: aproximar representantes de representados; fortalecer, quando não criar, uma ordem política baseada em (poucos) partidos programáticos; e diminuir, quando não acabar, a corrupção. Tudo naturalmente culminando na grande apoteose cívica de um plebiscito ou de um referendo, pois nada se decidirá sem o povo.

Considerando que em todo o mundo das chamadas democracias ocidentais, em que se podem encontrar os mais diferentes e criativos arranjos institucionais dos três eixos da nossa alardeada Reforma, a crise de representação só faz crescer, a existência de partidos programáticos é só uma quimera e a corrupção é uma prática política onipresente, considerando essas verdades inconvenientes, parece que não há nenhuma base factual para imaginar que a solução para qualquer um de nossos problemas sairá de um rearranjo na lógica de palácio que, quando muito, traria aos mesmos políticos profissionais o “desafio” de se acostumarem a novas rotinas de superfície. Para quem se interessa por argumentos detidos contra cada uma dessas mudanças, na categoria REFORMA POLÍTICA deste blog há textos tratando pormenorizadamente dos vários aspectos desse assunto: voto distrital ou em lista; cláusulas de barreira e exigências programáticas; financiamento público de campanhas eleitorais; fim do voto obrigatório (sou contra, pois seria a porteira para introduzir desestímulo crescente à participação dos mais fracos, que é tudo o que querem os que já são fortes).

Tudo somado, declaro que: 1 – considero nosso sistema eleitoral proporcional individual com a opção da lista (o voto na legenda) excelente, pois entendo que cada cidadão deve ter ao seu dispor um sistema que traduza da maneira mais direta possível a sua vontade de escolha — a única correção seria exigir que as coligações proporcionais estivessem atadas a uma coligação majoritária (hoje entendo que a objeção à coligação proporcional não procede, até porque ela está atada à lógica da lista e o eleitor está informado dela quando vai votar); 2.a. – entendo que restrições à criação de partidos são uma tutela indevida sobre a lógica da rua com o único propósito de facilitar a vida dos oligarcas na hora das negociações no âmbito da lógica de palácio — a única correção seria o fundo partidário, que deveria ser extinto, ainda que preservando o acesso às plataformas de mídia, que deveria favorecer menos aos que já são grandes; 2.b. – suponho descabida a exigência legal de partidos com prática orientada  programaticamente, pois não há como alcançar tutela eficaz sobre o que só pode resultar da vontade livre dos agentes; 3 – vejo o financiamento exclusivamente privado das campanhas eleitorais como benéfico às relações representante-representado, pois se já não tiverem que correr atrás nem do dinheiro para os gastos básicos de campanha os políticos ficarão ainda mais longe do povo — a única correção seria estabelecer um teto nominal fixo para contribuições individuais e empresariais, fazendo valer as leis que já existem para punir o caixa2.

Entendo que ao invés de desperdiçar tempo e energia na disputa em torno de uma Reforma Política desnecessária, PT e PSDB deveriam tomar medidas para defender o projeto comum, ameaçado pela reação organizada no Congresso. Nessa ordem de prioridades palacianas, menos implausível do que alcançarem uma Reforma Política redentora seria um acerto pragmático para uma atuação já não digo conjunta, mas pelo menos esporadicamente convergente no âmbito congressual da lógica de palácio.  Bem sei que eles já fazem isso quando se trata da proteção mútua nos malfeitos recíprocos, como dão exemplo as pizzas do tipo CPI do Carlinhos Cachoeira e, ainda ontem, a ironia dos acertos em torno da marmelada em que vão transformando a CPI da Petrobrás — a ironia está em que a ação palaciana foi simultânea ao farisaico discurso de Aécio propugnando a apuração dos mesmos crimes. Ou seja, o que estou sugerindo é que eles, vez ou outra, deem novo sentido a essa prática de ação conjunta em que já estão treinados.

A grande ameaça às conquistas da Constituinte e do Real é que a atuação, hoje isolada, dos bloquinhos partidários conservadores e das chamadas bancadas transversais pode ganhar concatenação estrutural. Grupos como o ruralista, o evangélico e o da bala, mais as bancadas nanicas, são hoje um segmento conservador instável de representantes profissionais, mas podem ganhar forma menos errática e se tornarem a infantaria de defesa da desigualdade e da injustiça social no Congresso. Elas cresceram em número e, não por acaso, pela primeira vez enxergam dentro de uma grande bancada, a do PMDB (claro!), um nome confiável e com capacidade de comando, Eduardo Cunha, parlamentar de reputação incontroversa eleito pelo Rio que esteve à frente, ou na articulação miúda, de todas as iniciativas conservadoras ou reacionárias da legislatura atual.

Não é segredo para ninguém medianamente informado que se Eduardo Cunha chegar à presidência da Câmara dos Deputados toda pessoa de bem logo sentirá as mais sinceras e pungentes saudades de Inocêncio de Oliveira e Severino Cavalcanti. No âmbito congressual da lógica de palácio e em nome do projeto gradualista comum, Dilma deveria chamar Aécio a um entendimento para que as duas forças, ainda que mantendo suas hostilidades institucionais, somassem esforços para que o Senado fosse presidido pelo PSDB e a Câmara pelo PT (ou vice versa), cabendo ao PMDB de Temer as devidas compensações em ministérios — um típico toma-lá-dá-cá. Um arranjo assim permitiria conter o ímpeto das forças mais nocivas à democracia pactada em que vivemos (ruim com ela, pior sem ela), daria parâmetros mais seguros para algum desenvolvimento, sem desmanchar a polarização fajuta de que os dois partidos julgam se beneficiar, e abriria perspectivas para que nosso povo pudesse se informar em prol de uma alternativa melhor no curso dos próximos anos, o que poderia incluir uma segmentação mais clara na lógica da rua.

Quanto à luta de classes, se Marx tivesse se ocupado dela com a atenção que deu ao monumental O Capital, o mais provável é que já a tivéssemos abandonado pelo menos logo depois da Primeira Guerra Mundial e da consolidação do poder totalitário na Rússia, eventos correlatos que compuseram o féretro da viabilidade do que quer que se tenha entendido como luta de classes. Tendo sido uma auspiciosa proposta de ação política plausível no curso do século que vai dos primeiros levantes ludistas de massa (1811) até a votação dos créditos de guerra pela social-democracia alemã (1914) — ação nacionalista que liberou sem contraste o chauvinismo alemão que resultou em Hitler e selou antecipadamente o malogro do empuxo internacional da revolução russa — , a luta de classes jamais foi um dado de realidade independente da vontade consciente dos atores políticos, por mais que equivocadamente se tenha buscado ver nela um motor autônomo da história, como que numa contraposição simétrica à não menos mítica mão invisível do mercado, ambas afilhadas daquela célebre toupeira espírita de Shakespeare, que levou Hamlet a dizer do muito que há em céu e terra além do que pode supor a filosofia. A manivela da luta de classes depende de escolhas subjetivas lastreadas em modos de vida historicamente dados e, assim, nem mesmo uma impressora 3D dará conta de trazê-la de volta. Deixemos a diversidade da lógica da rua em paz — faremos muito se conseguirmos construir um objetivo comum que não seja encarado como uma substituição arbitrária e contraproducente de objetivos singulares.

Mas se a solução do nosso problema não está contemplada no inventário de temas da Reforma Política, nem pode ser encontrada pela via da luta de classes, o que propor para orientar a lógica da rua no sentido de uma transformação contra a desigualdade?

 

NOTAS CURTAS

– Dilma não tem escolha: ou derrota Eduardo Cunha ou será derrotada por ele. Por isso, se vierem a apresenta-lo na presidência da Câmara como resultado de qualquer coisa que se assemelhe a um acerto, podemos dar tudo por perdido – mesmo.

– A força de Cunha no PMDB abre a oportunidade de rachar esse partido em favor do que há de melhor no pacto incrementalista do Plano Real: PT, PSDB e uma boa parte do PMDB no comando de um jogo que não precisa anular as disputas entre eles, mas livra o país de retrocessos cada dia mais plausíveis, abrindo espaço para uma regulamentação cada vez menos reacionária da Constituição de 1988.

O PALÁCIO E A RUA — 2 de 4

Carlos Novaes, 08 de novembro de 2014

 

Desde sempre entre nós, exceto pelas exceções que deixo ao leitor conceder, a lógica de palácio aferrada à desigualdade rege não apenas o grosso da ação estatal institucional organizada (legislativo, executivo e judiciário), mas também a ação de entes da sociedade que se organizam especularmente ao estado, tais como partidos e sindicatos. Em outras palavras, a memória da desigualdade é tão renitente — reificada e reiterada em bens e procedimentos — que mesmo a maioria daqueles que se juntam para combatê-la logo é arrastada à conclusão de que bom mesmo é conviver com ela enquanto livra a si mesmo das suas consequências mais duras, sendo a domesticação pelo enriquecimento dos hierarcas da burocracia petista (partidária e sindical) o exemplo mais cabal (e também por isso tão odiado) dessa força centrífuga da concentração da riqueza no país. A bem da clareza, diga-se que aquilo que os adversários do PT chamam de “aparelhamento do estado” pelo petismo nada mais é do que a ocupação legítima de cargos que seus antecessores e eles próprios criaram e vinham ocupando até a troca da guarda ocorrida nas eleições de 2002 — o defeito do petismo não foi ocupar esses cargos, mas ter se acomodado à ordem que os criou e garante. Tampouco tem cabimento pretender que o lulopetismo seja um bolivarismo, como Samy Adghirni deixou claro.

Uma vez que se entenda o lugar central de nossa desigualdade secular como conceito e prática que tanto informa a lógica da rua como articula a lógica de palácio, fica claro o equívoco de quem supõe ter encontrado o início desta lógica em 1979(!), bem como de reduzi-la à deformação estendida da prática fisiológica intra muros de um partido, como faz Marcos Nobre com seu pemedebismo, o qual, como resultado direto da sua limitação heurística, só pôde originalmente resultar na aspiração por uma Reforma Política — ou seja, a uma deformação por assim dizer parlamentar correspondeu uma solução restrita ao cretinismo parlamentar. O melhor exemplo da inocuidade das soluções saídas de abordagens desse tipo é provavelmente a proposta de financiamento público de campanhas eleitorais. Tudo se passa como se o problema da corrupção fosse o financiamento eleitoral pelas empresas, isto é, como se os vínculos fossem entre o dinheiro dos empresários para as campanhas dos políticos e os contratos de obras e serviços dos políticos vencedores para empresários. Em outras palavras, como se a questão fosse a retribuição do político pela ajuda recebida. Se fosse isso seria errado, mas ficaria barato. Não. O problema da corrupção está em que não se trata de mera retribuição contábil, mas de sustentar um modelo garantidor de enriquecimento desigual permanente combinado ao enriquecimento conjunto através do uso do poder político para desvio privado de recursos públicos que deveriam servir à coletividade.

É por isso que todos eles querem o (e nada de bom para nós há no) tal financiamento público de campanhas eleitorais: distraem insatisfeitos incautos com uma mudança em que não acreditam, enquanto asseguram um dinheiro extra, do tesouro (o nosso, claro!), para as despesas de varejo que sempre atormentam os caciques acossados por áulicos ávidos, e poderão continuar não apenas com as práticas do caixa2 (que já são proibidas — por que mudaria?!?), mas também com os atos de corrupção pós-eleitoral, que nada tem de eleitorais, e pelos quais se faz o grosso do dinheiro. Essa rotina é conhecida por quem quer que, mesmo em um pequeno município do interior, já tenha passado por uma Câmara de Vereadores e espetado um caminhão alugado na prefeitura em nome de um laranja para, em troca, não perturbar a vida do prefeito nem da empreiteira que ganhou a licitação dirigida para essa ou aquela obra — tudo na cara do ministério público local. Mas voltemos ao leito central.

Numa situação como a brasileira — em que a desigualdade se mantém precisamente porque seu combate é negado por um pacto perene regido por uma lógica de palácio cada vez mais cara, sendo o arranjo da vez o Plano Real, segundo o qual se deixa contentes tanto aos muito pobres quanto aos muito ricos, e administra-se como der o blocão intermediário –, numa ordem assim propícia a gerar sofrimento e contradição, a lógica da rua envolve e (des)orienta a todos os segmentos sociais, sejam os muito pobres, os neopobres, as classes médias, os ricos ou os muito ricos. Cada qual está insatisfeito a seu modo, pois, como disse Tolstoi, todas as famílias felizes se parecem, as infelizes o são cada uma à sua maneira: os muito pobres, embora se mostrem felizes porque o pouco que receberam com o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida é mais do que tudo o que jamais haviam recebido, e quase abarca o que a desgraça em que viviam lhes permitia sonhar (a relatividade ilusória da felicidade joga aqui o seu papel), esses pobres, ainda assim, não podem deixar de estar insatisfeitos com a vida que levam e, sobretudo, deploram a vida que hão de continuar a levar. Os neopobres foram parcialmente contentados porque graças ao incremento do salário mínimo e à redução do desemprego julgam ter firmado o pé na lama (antes escorregavam), mas prudentemente temem recuos e querem muito mais, claro. As classes médias mostram toda a sua diversidade ora com os reconhecimentos que a solidariedade impõe, ora com a fúria de quem se vê espremido numa situação urbana cada dia mais hostil ao gozo do que pode haver de bom na vida, ora ainda com o regozijo de quem alcançou esse ou aquele bem de consumo durável. Os ricos sofrem com a desigualdade porque também vivem na área urbana degradada, e mais: estão tendo de conviver cada vez mais com quem é pobre — sofrem porque estão a ver semelhantes por toda parte. Parte dos muito ricos (os menos muito ricos dentre eles) sofre pelas mesmas razões dos ricos e, ainda, porque começa a temer que a movimentação da tigrada venha a avançar sobre sua riqueza e o modo de acumula-la, enquanto protesta contra o preço que paga pela segurança precária.

O resultado é que, mesmo sem o saber, e por razões até opostas, quase todo mundo está farto do divórcio entre a lógica do palácio e a lógica da rua. Há uma anseio nem sempre consciente por um fluxo concatenador entre palácio e rua, e é a frustração desse anseio, ou a busca dele, que se reflete nas manifestações públicas centradas na reivindicação de serviços públicos, no protesto contra a corrupção, na exigência por infraestrutura e na demanda por mais segurança. Mas essa rua não é de mão única: a maioria demanda do palácio serviços públicos para si, enquanto uma minoria vê esses serviços como dispositivos atenuadores de conflitos; a maioria protesta contra a corrupção palaciana porque vê nela o desvio do dinheiro que deveria atende-la, enquanto uma minoria protesta contra renúncias ou desembolsos exorbitantes que vem tendo de fazer a um palácio que lhe parece insaciável (não vê que os custos correspondem ao tamanho da encrenca); a maioria exige infraestrutura ciente de que vai partilhá-la, ao passo que uma minoria vê na infraestrutura a via para evitar a convivência; a maioria faz a demanda por segurança na condição de vítima tanto dos bandidos quanto da ordem policial truculenta; já uma minoria entende por segurança uma polícia ainda mais truculenta na defesa da ordem que infelicita a maioria.

Foram as energias dessas contradições que a eleição de 2014 dissipou na forma de desorientações várias: PT e PSDB geraram a vacuidade de acerbas paixões contrárias impertinentes; um governador de polícia truculenta, e imprevidente a ponto de deixar faltar água, foi reeleito em primeiro turno no estado mais rico e “informado” do país; uma ambientalista outrora igualitarista faz sucesso (declinante, é verdade) apresentando projetos reacionários ao gosto de rentistas e oligarcas em dimensões centrais da vida em comum: desigualdade, economia e política, pedras rombudas que se receberem pelo voto a argamassa de uma moral comportamental conservadora poderão assumir a forma de um muro sólido contra a mudança; um stalinista de carteirinha recebeu apoio popular contra dinastia putrefata apregoando choque de capitalismo (acho que assisti a pré-montagem desse filme); conurbações que um ano antes viveram protestos de rua aplaudidos por toda a gente acabaram por escolher para representá-las políticos profissionais ainda mais sintonizados com o que pareciam querer combater, incongruência que mostra os limites efetivos da dispersão da rua quando confrontada com a ação organizada de agentes eleitorais pré-políticos que manjaram a lógica de palácio  — situação que alarga o abismo entre o palácio e a rua. Em suma, sem a orientação de um vetor político voltado à transformação plausível, a insatisfação é generalizada mas não é partilhada, pois as pessoas estão indo às ruas para acabar descobrindo que a raiva não é a mesma. O resultado é mudancismo, estado gelatinoso propício à embromação, como veremos.

O PALÁCIO E A RUA — 1 de 4

Carlos Novaes, 07 de novembro de 2014

 

Em toda parte a ordem política democrática é marcada por algum contraste entre a lógica do palácio e a lógica da rua. A primeira rege o mundo dos hierarcas de estado e dos políticos profissionais de carreira; a segunda se manifesta na sociedade. O que determina a intensidade do contraste entre elas é o quanto e a quais dos anseios da rua o palácio corresponde. Se o contraste entre as duas lógicas existe em toda parte, no Brasil ele assume contornos dramáticos porque nossa ordem política está marcada pela exigência de garantir a manutenção de uma desigualdade cujo sofrimento não tem semelhança com o de nenhuma outra democracia de massas. Veja leitor que nossa democracia está assentada não na missão de gerar algum equilíbrio, por precário que fosse, mas na exigência inédita de garantir pela via eleitoral um desequilíbrio visto como inaceitável pela maioria dos observadores informados, e vivido como intolerável pela imensa maioria dos que estão submetidos a ele. Nossa desigualdade é intocável. Essa exigência vem sendo cumprida, com custos crescentes, desde a escravidão, e nossas grandes crises políticas se deram em contextos em que os beneficiários desse arranjo reagiram contra alterações que sugeriam uma ordem política que se desobrigasse dela, sendo o golpe paisano-militar de 1964 o exemplo mais recente de reação frontal à possibilidade de uma concatenação entre o palácio e a rua que ao invés de propiciar, enfrentasse a desigualdade.

A nossa desigualdade, até por esse ineditismo implausível, é desde sempre a realidade mais desafiadora e o conceito mais central para articular diagnóstico e alternativa para o Brasil. Sua vigência secular anacrônica na oitava economia do mundo e num país com mais de 200 milhões de habitantes acabou, porém, por intrigar quem se ocupa com algo mais do que idiossincrasias locais. Observadores estrangeiros da crescente desigualdade mundial estão sendo levados a ver que o mundo mais e mais vai se parecendo com o Brasil, o que não deixa de ser uma maneira de realizar a profecia de que sempre fomos o país do futuro… Ao reunir à imagem de alternativa ambiental ambígua o exemplo da sua mazela social, nossa experiência nacional vem ganhando importância internacional enquanto laboratório a céu aberto sobre até onde se pode chegar com a combinação interdependente entre, de um lado, devastação pródiga de recursos ambientais abundantes (mas finitos) e desigualdade extrema e, de outro lado, sistema eleitoral honesto e com voto obrigatório aberto de todos os cidadãos.

Essa disjuntiva pode ser encontrada no atual debate político interno não de qualquer país periférico, mas nos Estados Unidos, centro ordenador da desigualdade mundial, que vai sendo empurrado a enxergar que a desigualdade não é algo que se possa apenas impor aos outros, pois sua lógica cobra uma contrapartida local. Talvez a melhor maneira de ilustrar a situação americana de um modo que ajude a entender o que está em jogo no Brasil (e vice versa) seja reunir os custos ambientais tremendos da autosuficiência americana em petróleo, que logo poderá ser obtida com a extração de óleo e gás de xisto, tanto com a recente manifestação de ninguém menos que a presidente do FED, o Banco Central americano, Janet Yellen, sobre a crescente desigualdade no país, quanto com as não menos recentes medidas para atrapalhar e desestimular a participação eleitoral dos pobres e das minorias nos estados em que a experiência da escravidão foi mais renitente  — benefícios estabilizadores do voto facultativo…

Segundo Yellen, “as desigualdades voltaram a se aprofundar durante a reativação econômica, enquanto que o mercado financeiro se recuperou”, resultado que não é de admirar quando se sabe que por mais acarinhado que seja, ao invés de orientá-los a reforçar a capacidade produtiva, o “espírito animal” dos capitalistas americanos tem se voltado para investimentos especulativos, inclusive em países emergentes, onde os juros são convidativos. Se as projeções quanto ao rendimento da extração de petróleo e gás de xisto de confirmarem, porém, é provável que a diminuição acentuada dos custos de energia leve a uma retomada nos investimentos produtivos, o que poderá diminuir as perdas no mundo do trabalho, mas pressionará negativamente o meio ambiente, pois embora menos poluente do que o carvão, esse incremento da atividade se somará ao fato de que o gás só pode ser extraído com enormes custos para a quantidade e, sobretudo, qualidade da água disponível. Enquanto isso, estados controlados pelos republicanos — a quem nenhum dado de realidade faz abandonar a quimera de que o enriquecimento tão desonerado quanto possível de uma minoria estimularia o crescimento, favorecendo a queda do desemprego e a melhora de vida dos pobres — desativaram postos de votação em que seria de antecipar um engajamento dos mais pobres em desfavor de seus candidatos — é que lá as autoridades locais tem a prerrogativa de ditar boa parte das regras eleitorais de cada pleito, incluindo número de urnas e locais de votação. Ou seja, no limite, a solução é não deixar os pobres votarem, tal como recentemente declarou o dirigente chinês em Hong Kong, CY Leung. Mas falemos do Brasil, onde não à toa vem ganhando corpo a ideia de acabar com a obrigatoriedade do voto.

Como aqui a tarefa do palácio é garantir a desigualdade, na maior parte do tempo nossos políticos estão de costas para a sociedade, e os dois circuitos só se encontram nas eleições, ocasião em que se dá o simulacro democrático, laço cuja frouxidão vem disfarçada no engajamento cívico do cidadão, engajamento no qual, à medida que o divórcio entre as duas lógicas aumenta, a credulidade cada vez mais cede a vez à raiva epidérmica, raiva essa que, por sua vez, também desvia o eleitor da crítica à ordem enquanto tal e o atola em porfias vãs que nutrem o conjunto malsão. O melhor exemplo dessa desorientação tensa é a pseudo radicalidade do embate entre PT e PSDB, que não passam de vetores de um mesmo projeto, como acabam de dar prova as semelhanças entre os primeiros movimentos da Dilma rediviva e as promessas “impopulares” do Aécio semimorto, estado de coisas que só surpreende analistas soterrados em reflexões autojustificadoras de suas próprias ilusões (sejam elas lulistas ou tucanocráticas) e transforma em trouxas todos esses esbravejadores que fazem das redes sociais plataforma virtual para troca de insultos (peço desculpas antecipadas pelo trouxas).

Na desigualdade, como se sabe, ao sofrimento de maiorias corresponde, na outra ponta, a entrega do luxo à minoria. Não é de surpreender, pois, que uma desigualdade como a brasileira exiba na vitrine radicais de butique, enquanto PT e PSDB — que pelo menos desde 2002 estão de acordo em promover a diminuição gradualíssima da pobreza sem ferir a riqueza privada acumulada, nem alterar os mecanismos que permitem essa acumulação — se dão ao luxo da divisão, ao invés de somarem esforços para levar logo até o fim a lógica encrencada dessa alternativa inatual que representam e, assim, dar ao país a oportunidade de finalmente encarar os seus problemas estruturais, que não derivam nem da pobreza, como querem nos fazer crer esses espertalhões que a usam como zumbi de piranha, nem do excesso de estado, como propagam os acariciadores do “espírito animal” do mercado. A desigualdade é a base para a lógica do palácio e para a lógica da rua. A do palácio é “financiada” pela, tem por base a, riqueza extrema dos de cima, a quem o modelo de acumulação nutre; e a da rua reflete tanto os sofrimentos da imensa maioria que ficou por baixo, a quem a desigualdade desampara, quanto, em situações de crise, os temores da minoria dos de cima, desassossegada quando a ação dos de baixo toma ares de desafio ao status quo — é esse encontro na crise que está a brotar nas ruas feito capim, a servir de pasto ao alarido de certa mídia em torno da suposta “insatisfação generalizada contra o PT”, como se o PSDB não tivesse parte no imbróglio.

MUITO BARULHO POR NADA — FALÁCIAS

Carlos Novaes, 27 de outubro de 2014

 

É raro que a explicação para o resultado de uma eleição caiba tão bem na frase “fulano ganhou porque teve mais votos”, pois a diferença entre Dilma e Aécio foi de meros 3,459963 milhão de votos, em cerca de 113 milhões de votantes. Não obstante, não faltam nos jornais de hoje, bem como nos maiores portais de Internet, explicações de entendidos para a vitória de Dilma e/ou a derrota de Aécio, quando qualquer pessoa ajuizada enxerga a impertinência de se abordar o resultado segundo vitorioso  e/ou derrotado. Afinal, se irrisórios 1,729983 eleitores tivessem deixado Dilma para sufragar Aécio, teria sido ele o vencedor, margem que desautoriza qualquer “análise” segundo os parâmetros mais conhecidos e cobre de ridículo autores de elucubrações empoadas, notadamente as que tem por base a noção de “classe”.

Não há que falar em vitória ou derrota segundo “classe” se os dois contendores receberam votações significativas de todo o espectro da pirâmide, mormente nos estados em que o eleitor vive em grandes cidades, é mais escolarizado e tem emprego formal, ou seja, vive como assalariado numa inserção de classe urbana atravessada pela controvérsia da informação. Alguém só pode dizer o disparate de que Dilma ganhou graças à classe tal, ou que Aécio perdeu porque não seduziu aquela outra, se passar por cima do fato de que a outra metade da mesma classe teve comportamento que o mesmo observador tem de ver como oposto ao da primeira metade… Explicações de corte regional tampouco fazem sentido, pois mesmo ali onde houve diferença grande em favor de Dilma, a variável que explica não é propriamente a localização geográfica do eleitor, mas a presença da assistência social direta do governo, que gera vínculos propriamente governistas — ou seja, se Aécio tivesse ganho e continuasse essa assistência social, dentro de quatro anos ele disputaria a reeleição com vantagem sobre o adversário nessas mesmas regiões.

Sequer a polarização boboca de “continuidade” versus “mudança” explica o resultado, pois há muita gente que votou em Aécio porque acreditou que ele continuaria os programas sociais e as obras de infra-estrutura em andamento; assim como Dilma recebeu votos de quem acreditou que ela vai fazer mudanças na direção em que os mudancistas fariam, como por exemplo a diminuição da carga tributária ou a relação mais estreita com os outros entes federativos para melhorar isso ou aquilo. Denúncias de corrupção tampouco podem sustentar explicações, pois a vitória coube justamente à candidatura atingida mais diretamente pelos escândalos mais recentes, ainda que, ao fim e ao cabo, nem mesmo a hipótese de que o resultado seria outro se a eleição se desse não no dia 26 passado, mas no próximo dia 30, pode ser afastada com convicção. Em suma, o resultado tem ares de um jogo de dados contra o relógio.

Mas se o resultado numérico apertado não oferece material para sua própria explicação, essa falta de explicação precisa ser decifrada; e o que a decifra explica também os altos e baixos de uma campanha aparentemente vertiginosa: a semelhança entre as duas candidaturas. Elas criaram falsas divisões, abismos de superfície, para, ao final, empatarem o jogo, apartando meio-a-meio o eleitorado, precisamente porque são vetores paralelos equivalentes de um mesmo projeto, o projeto de ser governo para ocupar os postos de mando e, de posse deles, defender os próprios interesses e, aos trancos e barrancos, tocar o que resta do pacto gradualista conservador instituído pelo Real.

Os eleitores foram apartados, não polarizados — e é por isso que em duas semanas ninguém mais vai se importar com o resultado, sendo outra grande bobagem toda essa conversa na mídia em torno da ideia de “unir um país cindido” — o que nem seria desejável, aliás. Não houve cisão real nessa rixa em que o que não foi fumaça revelar-se-á espuma, ainda que não se deva desconsiderar os ressentimentos permanentes, lastro antigo das raivas e antipatias que usando a eleição como pretexto trouxeram à luz aquilo que ficava intramuros e agora aflora nas redes sociais. A internet construiu uma nuvem de neo-intimidade que tem permitido ver as pessoas por dentro…exposição que, felizmente, vai encorajando-as a exibir-se nas ruas quase como são. Aliás, esse estado de coisas permite esclarecer outra falácia, a das “amizades rompidas”, pois elas se romperam não pela opção por Dilma ou Aécio, mas pelos motivos e pelas formas em que se deram essas escolhas: houve gente que descobriu que a pessoa amiga era outra… o que é outra maneira de iluminar a falta de diferença entre as duas candidaturas.

Tudo somado, Dilma continua presidente para governar um Brasil igualzinho ao Brasil de antes. Ela terá com o Congresso dos representantes profissionais as mesmas dificuldades que Aécio teria, sendo que até os articuladores dessas dificuldades serão os mesmos que azucrinaram, azucrinam e azucrinarão a vida de quem lhes pareça vantajoso azucrinar: essa é a razão de ser da vida política deles — e assim será enquanto nós não pusermos fim à representação como profissão. É para esconder as marcas nas cartas desse baralho sovado que a esperteza de alguns e a ignorância de muitos inundam a mídia com a falácia da Reforma Política.

Neste BLOG há vários posts em que eu explico que uma reforma política não será boa se: a maioria dos parlamentares de moto próprio concordar com ela (espontaneamente eles só instituirão regras novas que não os prejudiquem); se as virtudes que ela almeja dependerem do comportamento virtuoso dos políticos profissionais; se o que ela pretender corrigir for a conduta do eleitor (como é o caso de todas as propostas de mudança no modelo eleitoral para escolha de representantes — o nosso modelo de lista aberta, com voto individual e de legenda, é ótimo, o que não presta é a rotinização pela reeleição do representante); se eles arrancarem mais dinheiro público para si (com o chamado financiamento público de campanhas); se eles instituírem mandatos de representação ainda mais longos para si mesmos (o que os deixará mais distantes da sociedade); se eles embolarem todas as eleições na mesma data (aumentando a dificuldade de ajuizamento partilhado/conversado do que está em jogo e facilitando a vida dos marketeiros).

Enfim, quase nada aconteceu e abre-se um novo período de falácias e empulhações que só dará vez a uma real e necessária divisão na sociedade brasileira quando as ruas voltarem a se agitar — desde que os manifestantes tenham aprendido com os erros das agitações anteriores. Pois é.

 

NOTAS

Eduardo Cunha, um político profissional objetivo, diz que o PMDB não trocará convicções por cargos. Tá certo, as convicções deles SÃO os cargos! Seria como trocar seis por meia dúzia…

Há quem tenha votado para livrar a Fazenda do Armínio Fraga, mas se a Dilma nomear para o cargo um presidente do Bradesco ou assemelhado…

A primeira prova de que nada aconteceu – o Lobão já declarou que aquela história de ir embora do Brasil não é bem assim…

 

 

IGUALMENTE COMPROMETIDOS

Carlos Novaes, 25 de outubro de 2014

Tão certo como no fim haverá um vencedor, toda eleição também tem uma espécie de estrada real para a vitória. Mas é cada vez mais raro que o vencedor seja aquele que percorreu essa estrada. Vitórias eleitorais são cada vez mais resultado de uma marcha pelas trilhas manjadas do gosto médio. Só que esse gosto médio não está no eleitor de antemão, como se fosse ele o medíocre por definição. Não. O eleitor é empurrado ao gosto médio pelas campanhas, que não vão além daquele cardápio básico que não ultrapassa os limites do que os políticos, cada vez mais avessos ao risco, julgam rentável.  Dilma e Aécio não ficaram parecidos no final; eles são iguais desde sempre. Supostas “análises” enfatizam uma presumida tendência do eleitor ao centro para explicar a mesmice que, não obstante, querem acreditar que não existe, razão esquizofrênica ignorante do fato simples de que não há exercício de gosto alternativo possível àquele a quem se ofereceu apenas sal e açúcar: a única opção é fazer o soro da sobrevivência, com as variações se restringindo à dosagem de um e outro dos dois limitados ingredientes.

Mesmo sendo o último evento da campanha, o debate de ontem na Globo permitiu que se enxergasse essa assimetria entre demanda da sociedade e oferta dos políticos. Tomemos como exemplo a pergunta da economista, que entende estar desempregada em razão de uma barreira imposta pelo mercado às pessoas maduras. Dilma e Aécio pareceram não ter ouvido a pergunta, pois ambos usaram a angústia da economista desempregada para falar ou de cursos do SENAI (a eleitora tem curso superior!), ou da necessidade de o país crescer (como se a economista não soubesse). Em suma, ela pedia um projeto que enfrentasse a questão de uma alternativa para os mais velhos trabalharem, se dizendo preparada para isso e, por isso mesmo, apontando uma incongruência no mercado de trabalho, que, ao mesmo tempo, reclama de falta de mão-de-obra qualificada e dispensa mão-de-obra qualificada. Naturalmente, os cursinhos de marketing intensivos das campanhas não permitem ter resposta para uma “novidade” dessas e, então, o que se viu foi candidata e candidato exibindo a reunião de falta de sensibilidade com limitação de repertório.

A estrada real para a vitória nessa eleição provavelmente esteve desenhada pela aspiração popular por uma transformação, mas faltou quem a propusesse. Prisioneiros do cabo de guerra do pacto incrementalista conservador instituído pelo Real, Dilma e Aécio não tinham sequer como elevar os olhos da corda a que se agarram para, então, buscar outros caminhos: ambos pregaram a mudança, mas um prometendo fazer exatamente o que o outro afiançava que faria.

Já Marina fez como o caminhante noturno de Schopenhauer: tomando por um rio caudaloso a estrada clara que divisou à sua frente, evitou-a escrupulosamente, contente por vez ou outra no curso da noite divisá-la ao longe, assegurando-se de que ia segura, enquanto ao evitá-la não fazia mais do que distanciar-se do próprio passado, regozijando-se por seguir o caminho lamacento em que lentamente escorregou para a irrelevância. Foi uma grande perda, com um legado danosamente compatível, que é essa nefasta reforma contra a mudança, pela qual a burocracia da representação profissional se assenhoreia ainda mais do mando político: prorrogação de mandatos para alcançar uma coincidência de calendário eleitoral com eleições somente a cada cindo longos anos — difícil imaginar algo mais perverso como resultado de junho de 2013. Colocar-se contra essa proposta vai acabar dando ao PT alguma bandeira para empunhar.

Vença quem vencer, nenhum de nós poderá dizer que não foi bem informado sobre a presidente ou o presidente que teremos: arrastará atrás de si esquemas de corrupção pesada,  continuará o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida e a recuperação “responsável” do valor do salário mínimo, contrapartidas da não menos continuísta política de assegurar aos rentistas a intocabilidade dos seus patrimônios e do modelo que assegura a sua multiplicação, e sem nada alterar no projeto crescimentista que estimula o endividamento familiar para o consumo de bens fabricados como se os recursos do planeta não fossem finitos, e celebra um agronegócio baseado na depredação ambiental pelo desmatamento e no uso intensivo de pesticidas e agrotóxicos. Ou seja, a desigualdade e o caráter insustentável do esquemão vão seguir firmes, tendo como pano de fundo a ideia de que o sucesso, individual (por certo), depende fundamentalmente ou da bem-aventurança do berço ou do exercício obstinado da falta de escrúpulos — quando não de ambos. Prisioneiras dessa carapaça de interesses, as energias da nossa gente continuarão a ser gastas na mera reprodução de uma vida sofrida ou sofrível em nossas cidades tristes, condenada a inventar alguma alegria no simples fato de deixar para trás mais uma eleição em que as propagandas eleitorais permitiram ver parte do muito que poderia ser feito não fosse o que é desviado para satisfazer aos interesses imediatos e estratégicos de quem pagou a produção das belas imagens.

A POLÍTICA ENTRE A MEMÓRIA E O FLUXO

(tentativa de resposta à pergunta de um amigo sobre o valor da troca pela troca, quando o eleitor não se reconhece em nenhuma das candidaturas disponíveis)

Carlos Novaes, 25 de setembro de 2014

 

Permitam-me começar com uma pequena história que, não por coincidência, dá colorido cotidiano à pergunta mencionada acima. Há poucos dias, ouvi do sempre combativo e comunicativo jornaleiro da banca que frequento (todos nós conhecemos um, o que em si já daria uma crônica…), a observação enfática de que “moço, a única coisa que a gente pode fazer é trocar; trocar um pelo outro, tirá um, e buta o outro; é só!”. Note, leitor, que nosso inconformado personagem está dizendo mais do que pretende a teoria democrática refinada, segundo a qual a democracia vale não porque ela nos possibilite fazer a escolha do que nos parece melhor, mas antes porque ela nos permite remover o que nos parece ruim — não, dizia eu, o nosso semelhante da esquina vai além: com seu musical sotaque baiano ele nos diz que, como os políticos, um pelo outro, são todos igualmente ruins, só o que nos resta é trocar, jogando assim alguma areia na rotina deles, para, num misto de aspiração e vingança, quem sabe, obter casualmente alguma conquista do fato de as engrenagens deles terem lá as suas encrencas.

Depois de assistir a essa acabrunhante campanha eleitoral, imagino que só os muito implicados no processo, seja por interesse, seja por ideologia, ainda possam reunir forças para contestar o nosso amigo. Mas, se não há convicção para corrigi-lo, há por certo motivação para discutir a questão, a ver se chegamos a um patamar menos macegoso, de onde, talvez, possamos divisar alternativa. Seguindo a pista dada por nosso teórico (e não há ironia aqui), comecemos por observar que a base da democracia é mesmo a ideia de troca: assim como o mercado valoriza o fluxo da troca das mercadorias, das quais o jornal diário é uma das formas manufaturadas mais fugazes, o regime político que corresponde ao mercado se funda, e afunda, no fluxo que troca gestores e representantes, ainda que, em tese, o gestor seja menos volátil do que o representante. Digo menos volátil porque, entendendo a ação política institucional como uma tensão entre memória e fluxo (uma tensão entre o que se conserva e o que se muda), sou levado a ver que quem está no exercício de um mandato executivo está mais comprometido com a memória do que um representante legislativo, uma vez que este, mais que aquele, deve responder mais prontamente ao fluxo da dinâmica social, às mudanças de preferências, humores, valores e interesses que toda sociedade aberta exibe. Em outras palavras, enquanto, em tese, repito, o executivo lida com as rotinas do fazer, e sempre herde algo que estava a ser feito, o legislador se dedica a um ouvir e a um dizer, estando sempre mais colado à possibilidade da mudança. Sendo didático ao nível da deselegância, o que quero dizer é que uma ponte em construção carrega uma memória que não pode ser ignorada pelo gestor sucessor no executivo, enquanto que a aspiração pela criminalização da homofobia deriva de um fluxo de mudança que tem de poder encontrar representante no plano legislativo.

Nessa ordem de idéias, há algo de muito errado num sistema político que empurre à mudança no plano executivo e crie dificuldades à mudança no plano legislativo. Não obstante, é exatamente dessa forma perversa que funcionam esses poderes, aqui no Brasil e na maior parte do chamado mundo democrático ocidental. E eles funcionam assim porque, embora danosa ao bem estar das sociedades, essa ordem é ideal para a rentável vida em estufa que a chamada classe política criou para si mesma: a possibilidade de reeleição infinita nos legislativos (fonte da profissionalização danosa, que degrada todo o sistema político), mantendo as cobiçadas cadeiras do executivo (cobiçadas por serem ordenadoras de despesas, além de bem menos numerosas) sempre submetidas à ciranda entre eles (fonte do fôlego curto do planejamento, da ausência de visão de longo prazo). Aliás, é à preservação dessa ordem malsã, nessa ou naquela versão, que se prestam as propostas de voto em lista, coincidência de calendário eleitoral com mandatos de cinco anos(!), sistema distrital, financiamento público de campanhas eleitorais, fim da reeleição para o executivo, adoção do parlamentarismo, cláusulas de barreira, sendo comum a todas o silêncio sobre a aberração que é o sujeito poder se perpetuar mandato após mandato nos legislativos.

Retomemos a tensão memória-fluxo. Ao permitir a reeleição dos representantes legislativos, a legislação eleitoral dá ênfase na memória ali onde o eleitor deveria ser estimulado a escolher diante do fluxo e, em contrapartida, ao empurrar o executivo à mudança ela impõe o fluxo ali onde o eleitor poderia valorizar a memória. No primeiro arranjo, o eleitor é desobrigado de pensar em mudança justamente ao escolher o seu representante, que, em tese, está se propondo a ficar no lugar dele, e mais, exatamente ali onde é mais difícil fiscalizar a ação do político. Ou seja, protegido pela pouca visibilidade dos cargos legislativos e favorecido pela inércia que caracteriza a espécie humana, o mal representante que tenha aprendido as manhas da condição de político profissional pode se perpetuar no poder sem jamais representar coisa alguma senão os próprios interesses. É nesse apego aos próprios interesses que repousa a memória indevida, ali onde deveria predominar o fluxo: o político profissional cria rotinas (ou seja, memórias hostis à mudança) para, a um só tempo, se perpetuar no poder e beneficiar aqueles que o financiam. Multiplicada em larga escala, essa prática política arrasta as instâncias de representação (Congresso, Assembléias estaduais e Câmaras municipais) ao conservadorismo, a se constituírem em verdadeiras casamatas contra a mudança, quando elas deveriam ser o estuário do que de mudança há na sociedade — ao contrário do que dizem os incautos, nossos legislativos não são “um retrato” da nossa sociedade precisamente porque eles são mais conservadores do que ela, empenhados que estão em conservar memórias que ela já ultrapassou em seu fluxo permanente, ainda que, às vezes, o fluxo se dê na forma de marés, quando a sociedade entende que precisa recuperar memória indevidamente deixada para trás, movimento no qual o recuperado não deixa de trazer elementos do que foi vivido depois — quem volta para buscar refaz o caminho e altera o buscado, pois a memória é plástica.

Por outro lado, no segundo arranjo, quando proíbe qualquer reeleição no executivo, a legislação impede o eleitor de poder escolher entre a memória e o fluxo exatamente ali onde poderia fazer sentido conservar (em razão da própria dinâmica do fazer), e logo numa atividade em que ele tem mais elementos para avaliar o desempenho do gestor, cuja ação está, por definição, referida a todos e não a uma parte dos eleitores, como é o caso de um representante. Bem mais visível do que a ação de representar, o fazer do gestor se presta ao escrutínio do eleitor em geral e, assim, trata-se de contradição flagrante que, na escolha para a recondução ou não de um gestor (executivo), se sonegue ao eleitor a confiança que se deposita nele para a escolha do representante (legislativo), função esta para a qual é muito menos provável que ele tenha informação para (e queira) exercer uma judicação detida. Em outras palavras, para acabar com a reeleição para o executivo se diz que nela o eleitor é manipulado; mas não se diz de manipulação do mesmíssimo eleitor quando se trata da reeleição infinita para o legislativo, cargo para o qual é muito mais fácil iludir o eleitor, escondendo malfeitos.

Na realidade, e como não poderia deixar de ser, é bem o contrário do que se diz: as realizações ou erros de um prefeito, por exemplo, deixam uma memória (acabada ou em andamento), que oferece elementos ao eleitor para decidir entre a conservação e a mudança, sendo de coibir apenas a reeleição salteada que, aliás, tem permitido fazer do governo de São Paulo um poleiro de tucanos, precisamente porque essa reeleição infinita disfarçada permite a cristalização de rotinas (memórias) profissionais para a obtenção de blocos seguidos de mandatos de gestão. Em contrapartida, ao acabar com a reeleição para o legislativo, estaríamos levando o eleitor a escolher desatado das rotinas e da inércia, tornando as instituições de representação muito mais ligadas no fluxo, muito mais abertas a representar a mudança havida na sociedade, livrando-as da memória nefasta cristalizada no jogo de interesses e vantagens que, pela sua própria natureza corrupta, não se dá sob os olhos do eleitor, por mais vigilante que ele seja. Se é certo que sociedades mudam devagar, e é, mais uma razão para que nem se possa desperdiçar de recolher, nas instâncias de representação, toda mudança havida nelas; nem negligenciar o fato de que elas parecem mudar ainda mais devagar do que realmente mudam porque suas instâncias de representação se apresentam indevidamente agarradas ao que ficou para trás.

Naturalmente, é certo que mesmo assim haverá negociatas, mas não creio que se possa dizer que um modelo sem reeleição legislativa é mais propício à bandalheira do que o atual. Quanto aos “bons” representantes que serão perdidos, duas palavras: primeiro, a ideia de que eles são bons em si mesmos já é, em si, conservadora, pois bom é o representante atado ao fluxo, isto é, a virtude não está nele, mas na própria “coisa” representada; segundo, e por isso mesmo, se aquilo que ele, o bom, representa, conserva sua força na sociedade, ela se encarregará de encontrar um sucessor capaz de dizer de novo, e com eficácia, o que precisa ser dito nas instâncias que foram libertas da memória dos interesses aquadrilhados. Nesse último caso, isto é, quando a sociedade por assim dizer reconduz a “coisa” representada, o que haverá de se dar na maior parte do tempo, mas com outro representante, tem-se a memória virtuosa, que garante a continuidade do que é bom segundo o que é visto como propício ao fluxo social: vozes novas dizem a “mesma coisa” de modo diferente, o que, em si, significa alcançar o ideal de ter o fluxo dentro da memória, e vice-versa — até porque, memória sem fluxo seria imobilismo e fluxo sem memória seria delírio, situações nas quais a política é impossível.

Essa valorização invertida da memória e do fluxo na ação política institucional encontra desenho próprio em cada país, sendo mais nociva ali onde a desigualdade é grande, simplesmente porque quanto maior a desigualdade, mais embrutecida se encontra a maioria, uma vez que está prisioneira da luta brava pela sobrevivência, situação duplamente propícia à autonomia da ação política que a dinâmica das reeleições legislativas já favorece (autonomia entendida como desligamento da realidade material em que labuta o povo): de um lado, a penúria material não deixa tempo para o auto-aperfeiçoamento, consumindo na luta frequentemente inglória por uma vida melhor toda a energia disponível, nada restando para a ilustração, que é o vestíbulo da contestação; segundo, escapar individualmente das consequências da desigualdade torna-se um aprendizado de primeira hora a todo aquele que, apesar de tudo, levanta a cabeça, situação que desvirtua todo esforço de ação coletiva bem sucedida dos de baixo, pois eles logo descobrem as vantagens que podem auferir para si mesmos do fato de terem se juntado para lutarem pelo bem comum — eis o terreno propício à cooptação, que é um mecanismo muito eficaz para mudar fluxo (movimento) virtuoso em memória (burocracia) viciosa (foi aí que o PT naufragou) .

Se o resultado da soma das reeleições infinitas com a desigualdade configura um quadro especialmente propício a arranjos de estufa, dentro da qual os profissionais da política abandonam diferenças programáticas a que, de resto, jamais foram apegados, em favor dos negócios que a proximidade parlamentar proporciona (partilham o butim da memória, em lugar de responderem às demandas do fluxo), se é assim, dizia eu, então não há dificuldade para entender porque num país continental e populoso como o Brasil se encontra, a um só tempo, uma das ordens políticas mais corruptas e uma das sociedades mais desiguais do mundo. Ao invés de ser um retrato da nossa sociedade, nossa ordem política corrupta é um retrato da nossa desigualdade, mais exatamente daquela face dela que é capaz de se fazer traduzir em força política, vale dizer, a nossa ordem política corrupta é um retrato da nossa elite, não do nosso povo, que infelizmente ainda não encontrou um caminho para tirar forças da desigualdade a que está submetido sem ter de assistir logo adiante a degradação de seus próprios líderes. Naturalmente, não chega a ser um caminho incluir os mártires populares da luta contra a desigualdade entre os membros da elite contra a qual essa mesma luta tem sido feita, como fez Marina no Jornal Nacional, onde invocou a memória do incontrastável Chico Mendes (cujo compromisso com os de baixo lhe custou a própria vida) para defender alguém cuja disposição de ajudar os pobres acaba ali onde se constata que os pobres só serão menos pobres se os muito ricos forem desapetrechados dos instrumentos que lhes permitem amealhar tanta riqueza.

Feito esse apanhado geral, vejamos a troca pela troca no Brasil das eleições de 2014, para o legislativo e para o executivo. Como já defendi em outro lugar, e em razão mesmo da argumentação exposta acima, entendo que o melhor seria o povo brasileiro promover uma troca geral nos legislativos, votando apenas em quem jamais desfrutou (esse é o termo) de qualquer mandato parlamentar. Não vejo como uma aposta no fluxo virtuoso, que escangalharia mecanismos de reprodução de poder há muito estabelecidos e, por si mesma, geraria aprendizados novos a serem aplicados em uma próxima eleição, aprendizados esses que acabariam por levar a trocas cada vez mais informadas no futuro, não vejo como essa opção poderia trazer mais dano à nossa vida em comum do que o apego aos portadores de uma memória cujas rotinas só podem nos trazer mais do que sempre tivemos.

No caso dos executivos, se o eleitor não se reconhece em nenhuma das candidaturas existentes, a troca pela troca deve ser encarada como uma opção de ordem prática de caráter circunstancial, e não geral. Ou seja, há que se examinar caso e caso, escrutinar as memórias em questão e, então, definir com base no princípio de que se deve escolher o menos pior. Um critério para definir o menos pior pode ser antecipar a magnitude da pressão que a sociedade teria de fazer para lograr que o gestor atuasse na direção que parece mais adequada ao observador. Se ainda assim a dúvida persistir, e se houver certeza de que uma troca não vai nos colocar ainda mais longe do que almejamos, talvez o melhor seja fazer como recomendou nosso amigo jornaleiro, ainda que sem nenhum sentimento de vingança: trocar só para obrigá-los a se mexerem e, quem sabe, colher algum resultado positivo inesperado — nas palavras do amigo que me fez a pergunta “quebrar alguns vícios [memória] e criar a necessidade de reinventar [fluxo] os equilíbrios e acordos políticos”.

Evidentemente, as coisas se complicam se o observador incluir no cálculo a expectativa de provocar uma revolta, quando então talvez fizesse sentido escolher o pior. Como sou de opinião que revoluções são o colapso da política, eventos de fluxo desataviado que devem ser apoiados justamente porque são um sofrimento adicional ali onde o sofrimento se tornou insuportável e, por isso mesmo, entenda que uma revolução é uma desorganização da memória de tal envergadura e profundidade que não pode ser provocada (do contrário não seria revolução, mas mera troca de uma memória falida por uma outra, pré-fabricada — quem o tentou gerou monstros), esta opção de escolher o pior para arriscar alcançar o melhor está descartada para mim, até porque ninguém pode garantir que a pior memória vá desabrochar num fluxo alvissareiro.

MEMÓRIA POLÍTICA, não SUPERMERCADO ELEITORAL

Carlos Novaes, 16 de setembro de 2014

A cada eleição é a mesma ladainha: há sempre um engenheiro eleitoral para nos avisar de que nosso modelo de lista aberta para a eleição de deputados e vereadores tortura o eleitor com milhares de candidatos e o melhor seria algum modelo de voto distrital, para reduzir a oferta e tornar mais racional a escolha. Ainda que nem sempre invoque a “ciência”, é invariável que a ideia salvadora venha acompanhada de algum número bombástico, como a soma dos candidatos a deputado estadual, uma lista sempre na casa dos milhares.

Felizmente, a escolha periódica de um candidato ao legislativo não segue o mesmo padrão que a escolha rotineira de um artigo de consumo no supermercado. A decisão eleitoral se dá num ambiente de debate que reclama a memória que o eleitor partilha com os que lhe estão próximos, enquanto a escolha no supermercado é muito mais propriamente solitária, com praticamente nenhuma interferência do outro. Em outras palavras, ao invés de ir à gôndola/lista de candidatos para então escolher um de seus itens, o eleitor procura (e é procurado) dentro de uma cesta de opções da qual grande parte da oferta já foi excluída por antecipação segundo critérios e/ou combinações de preferências tais como simpatias/antipatias de ordem geral (partido, ideologia), apegos territoriais (candidatos da região/local), elementos de opinião (temas, causas, bandeiras) ou mesmo idiossincrasias do eleitor (benefício recebido, parentesco). Por isso mesmo, o papel desempenhado pela propaganda na eleição é muito diferente do papel dela no estímulo ao consumo, o que frequentemente é desconhecido pelos marketeiros. A caricatura de um indivíduo eleitor desafiado a diligentemente escolher um nome em uma lista com milhares de opções só se aplica sobre inexistentes idiotas vivendo fora do mundo.

Não é por outra razão que não tem cabimento dizer que o eleitor não tem memória. Não só ele a tem, como está submetido a ela quando escolhe. Quem afirma o contrário geralmente “prova” a sua tese com o fato de que o eleitor não costuma se lembrar de a quem deu o voto para deputado na última eleição, “evidência” conexa à do número bombástico da lista, e tão rala quanto. Esse “não lembrar” ocorre precisamente porque ele é irrelevante para a “memória eleitoral”. O eleitor que se decide por um candidato o faz segundo vetores que pouco se alteram ao longo da vida e, mesmo quando eventualmente há alteração drástica (ganhou na loteria), ela é neutralizada pelo grande número de vetores invariantes ou de mudança muito incremental, como, por exemplo: gênero, escolaridade, ascendência, local de moradia, renda familiar, cor preferida, valores morais, raça, ocupação, etc. A escolha de um candidato a representante deriva, resulta, da situação social do eleitor, na qual ele vive e partilha vetores como os mencionados.

É essa situação a portadora da memória do voto do eleitor, não a sua cabeça individual, que economiza energia se dispensando de lembrar o que o mundo circundante memoriza para ela. A cada eleição, à medida que o dia da eleição se aproxima, as trocas inter pares se intensificam e, então, o eleitor faz uma escolha segundo uma alocação propriamente política do que é levado a rememorar de suas próprias preferências, cuja formação é coletiva. Por isso, as preferências em formação, isto é, a escolha atual de em quem votar para presidente, deputados, senador, etc dependem, e muito, das preferências havidas, mesmo para quem faz a sua estréia como eleitor. Qualquer um que estude grandes massas de dados eleitorais observa as regularidades que essa escolha coletiva realizada com base na memória impõe. Aliás, não é por outra razão que a mudança política em uma sociedade se faz de maneira lenta, incremental, raramente se configurando situações de transformação e, ainda menos, de revolução – esta última só ocorre quando precisamente a quase totalidade dos vetores que induziam ao apego à ordem desabam. Ou seja, revoluções são eventos em que o fluxo supera a memória e, por isso, é corriqueiro que quem esteja nelas envolvido invoque figuras e eventos do passado, quase sempre de forma que se apresenta caricatural – não há parâmetro a que se agarrar em meio ao desmanche.

Enxergar como uma das virtudes do modelo distrital o fato de ele corrigir o problema do excesso de opções está duplamente errado: primeiro, porque, como vimos, a lista enorme não configura um problema; segundo, porque a redução do número de opções encerraria justamente o problema de reduzir artificialmente o espectro de opções, empurrando a representação para um empobrecimento prévio, antes mesmo de o eleitor fazer escolhas que por si mesmas estreitarão a aquarela do que será representado, como não poderia deixar de ser, já que representar é “estar no lugar de”.

O modelo distrital sacrifica a liberdade de escolha do eleitor para dar aos chefes partidários elementos adicionais de controle político, permitindo a eles escolher um candidato em cada distrito, com as outras consequências nefastas que já discuti aqui. Em outras palavras, desconfiemos de todas essas invencionices destinadas a “facilitar” a vida do eleitor – em geral, elas facilitam a vida dos políticos profissionais, que sempre aspiram diminuir a incerteza de que cada eleitor é um portador em potencial.

DataFolha, IBOPE e temas conexos

Carlos Novaes, 12 de setembro de 2014

1. As novas pesquisas DataFolha e IBOPE configuram tendência de queda de Marina e subida de Dilma?

Não. Embora tenha recebido divulgação mais recente, a nova pesquisa IBOPE foi realizada entre 5 e 8 de setembro e, portanto, retrata situação anterior àquela que o DataFolha encontrou quando foi a campo, em 8 e 9 de setembro. Além de mais recentes, os números do DataFolha foram encontrados em pesquisa tecnicamente mais robusta, com mais de 10 mil entrevistados, contra pouco mais de 2 mil do IBOPE. Em suma, o IBOPE captou de modo impreciso situação anterior à que o DataFolha encontrou e, assim, o que temos de mais recente é uma situação estável de Dilma e Marina empatadas no primeiro e no segundo turnos.

2.  A estagnação de Marina resulta dos ataques feitos a ela por Dilma e Aécio?

Depois de um crescimento vertiginoso, que retratou o quanto era artificial a ausência de Marina como candidata a presidente, a adesão de eleitores novos depende do que ela tenha a oferecer a quem exige mais informação para mudar de posição. As interrogações tem de ser respondidas pelas propostas da candidata e, simultaneamente, pelo choque dessas propostas com as opiniões que o eleitor já tem e o tiroteio dos adversários. As informações estão sendo oferecidas no que a mídia divulga, no vale-tudo da propaganda eleitoral e, em menor medida, pelo acesso ao próprio programa de governo da candidata. Toda essa carga propriamente temática é muito recente e o mais provável é que ainda não tenha surtido efeito algum. Entretanto, sem pesquisas específicas e num intervalo de tempo tão curto, não é possível afirmar nada nesse terreno. É uma precipitação enxergar nos números novos um acerto da estratégia baixa do PT – o tiro pode ter saído pela culatra e provocar um crescimento de Marina. Mais adiante, saberemos.

3. Aécio ainda pode chegar ao segundo turno?

É quase impossível, pois Dilma e Marina estão muito firmes como os dois pólos da disputa. Para Dilma despencar a ponto de ceder a vaga a Aécio seria necessário encontrar uma relação muito clara dela com os desmandos na Petrobrás, por exemplo – e isso não parece plausível, pelo que apareceu até aqui. Por outro lado, Marina despencar é tão improvável quanto encontrar algo devastadoramente negativo para a reputação política dela. Dilma conta com o eleitorado governista e petista, e Marina chegou onde chegou pelo seu passado e por simbolizar a mudança num quadro em que os adversários estão fortemente marcados pela ideia de oferecer mais do mesmo. São situações que Aécio não pode mudar. A essa altura, os tucanos mais experientes já estão de olho em como negociar o apoio a Marina no segundo turno, e o mais assanhado deve ser o Serra, pois o compromisso eleitoral de Marina de ficar só quatro anos reacende nele a esperança de disputar em 2018, depois de ter sido ministro… Aliás, ambições presidenciais fazem com que uma vitória de Aécio não interesse nem a Alckmin nem a Serra.

4. Marina unificaria o PSDB nesse apoio a ela caso chegue ao segundo turno?

Impossível saber. Na sabatina do Globo, publicada hoje, Marina faz uma dura crítica ao governador Alckmin. O detalhe é digno de nota porque Alckmin está muito bem nas pesquisas e Marina ocupa o primeiro lugar em SP, vale dizer, há uma grande coincidência de eleitores entre eles. Ao demarcar com Alckmin nessa altura da campanha, Marina está dando um sinal corajoso sobre a  distância que quer manter do mais destacado político conservador do país. Talvez a ida de Marina para o segundo turno e, depois, uma eventual vitória, venham a arrastar o PSDB para uma escolha muito clara: uma opção de centro, livrando-se de sua ala mais conservadora, liderada por Alckmin, ou persistir nessa unidade pragmática que obriga tucanos progressistas a assistirem, calados, a atuação da PM que o governador de SP encoraja, simbolizada no seu inesquecível: “quem não reagiu, tá vivo”.

5. Nesse caso, pode-se dar como certo que o PT irá para a oposição a um eventual governo Marina?

Aquilo que muitos chamaram indevidamente de “aparelhismo” do PT foi apenas a consequência natural do resultado eleitoral, que levou ao poder uma força que nunca o havia ocupado e que chegava a ele com um dispositivo burocrático nacional preparado precisamente para ocupar o poder. O PT ocupou os cargos que o povo lhe conferiu e se esses cargos à disposição do vencedor são demasiado numerosos é outra discussão. Se Marina vencer, chegará ao poder sem um dispositivo partidário desse tipo e, assim, terá de fazer como fizeram todos antes de Lula: arregimentar muita gente fora dos partidos que a apoiam. Ora, a mim parece muito difícil que o ordem burocrática petista atual possa se dar ao luxo de se conduzir com Marina como o fez com Itamar Franco, quando recusou participação e isolou nomes como o de Luiza Erundina, que aceitou um ministério à revelia do partido. Naquela altura, o PT precisou apenas fazer o cálculo dos benefícios políticos de ficar de fora, pois sua escolha não iria desempregar ninguém. Agora, quando há tantas bocas a alimentar, ficar de fora impõe um custo tremendo. Além disso, como Marina insiste em ficar apenas quatro anos, Lula pode vir a sonhar em fazer de um governo Marina um mandato neo-petista tampão, que sirva de banho-maria para o tal lulismo. Ou seja, nessa matéria as coisas estão mais em aberto do que a eleição em si.

6. Então faz sentido Marina dizer que quer governar com PT e PSDB?

Para mim sempre fez sentido. O problema, agora, é a direção dessa alternativa. O custo da polarização de PT e PSDB é termos de aturar em posições de mando os remanescentes da ditadura que os dois lados tem de arregimentar para vencer um ao outro na disputa contraproducente: PMDB, DEM, Maluf e outros. Em tese, friso, em tese, a vantagem da dissolução dessa polarização por Marina é que, talvez, pudéssemos nos livrar do entulho autoritário e ver um governo federal dirigido pelas principais forças da redemocratização, o que, na impossibilidade de uma transformação, seria um ganho, mesmo com todas as suas limitações. Mas para isso seria necessário uma Marina resolutamente transformadora, força que seria modificada para um “progressismo” pelos aliados, mas ainda seria menos desanimadora do que a situação atual. Minha reticência está, hoje, no peso simbólico de Marina ter abandonado posições que defendia há até bem pouco tempo (revisão da lei de anistia, recusa aos transgênicos), no fato de ela ter adotado receitas ultra-liberais coerentes com aquele abandono simbólico, como a tal autonomia legal do Banco Central, no tratamento aguado que dá ao combate à desigualdade em seu programa de governo e ainda, e sobretudo, no fato de ela defender como a “reforma das reformas” uma reforma política inapelavelmente reacionária, como já esmiucei aqui. Com essas sinalizações conservadoras e essa reforma política reacionária, Marina vai deixando de ser um dínamo transformador e entrega (todos!) os pontos antes da hora. Nessa batida, ela vai se candidatar a repetir não o governo Itamar, mas o governo Sarney. Nesse caso, teríamos o fim da polarização PT-PSDB pelo pior caminho: ela teria ficado irrelevante porque o stablishment encontrou arranjo melhor.

Uma REFORMA POLÍTICA r e a c i o n á r i a

Carlos Novaes, 09 de setembro de 2014

Não é segredo que a sociedade brasileira quer mudança. Quando se pensa exclusivamente na política ali onde ela está sujeita ao voto do cidadão, a insatisfação é generalizada, embora o poder executivo se saia melhor do que o legislativo. Se olharmos para os números das pesquisas que avaliam presidente, governadores e prefeitos ao longo dos últimos anos veremos que a gestão da coisa pública é sopesada com critério pelo eleitor, pois o quadro varia muito, havendo tanto repúdio quanto exemplos positivos, em todas as instâncias executivas do sistema federativo. Do lado dos legislativos não há variação porque a repelência pela nossa representação é justificadamente absoluta: eles construíram um mundo à parte, baseado em suas próprias afinidades com as rotinas do poder e do dinheiro, afinidades que intensificam relações corporativas recíprocas ali onde seria de esperar divergência programática, situação que lhes permite receberem os votos para ficarem de costas para nós, paradoxo que tem sido apropriadamente descrito como uma crise de representação.

Os remédios para essa crise de representação são quase tão numerosos quanto os médicos que se apresentam à urgência, e já fiz em outros textos o escrutínio de algumas das propostas de reforma política que nos tem sido oferecidas, como pode ser lido aqui. Mas uma coisa é certa: uma crise de representação não pode ser enfrentada com remédios que aumentem a distância entre eleitor e eleito, pois medidas assim tornariam ainda mais confortável a vida dos nossos representantes infiéis, que são infiéis não só porque querem, mas também porque encontram mecanismos propícios para sê-lo.

Aparentemente afinado com esse cenário de crise e busca de alternativas, o Programa de Governo de Marina dá precedência ao tema da reforma política sobre todos os outros quando defende logo em seu primeiro capítulo que

“não basta substituir a representação pela participação simplesmente; trata-se de procurar uma articulação nova e profunda entre as duas coisas. Uma das causas profundas da crise de valores é a reprodução da velha política.[…] O primeiro passo de uma reforma implica exigir comportamento republicano de todos os agentes políticos e dos demais ocupantes de cargos públicos. […].Para deflagrar o processo de reforma política, vamos sugerir medidas iniciais que levarão à reconfiguração integral do sistema político e eleitoral do país. […]. A política precisa absorver a mensagem de reconectar eleitos e eleitores. […].Os canais existentes devem ser fortalecidos, mas novos instrumentos precisam ser desenvolvidos, mediante o uso de tecnologias da informação e comunicação, para que o cidadão participe mais ativamente das decisões.”

No que diz respeito à representação, parece claro que a candidata pretende “articulá-la” com a “participação” e “reconectar eleitos e eleitores”. Entretanto, quando conseguimos transpor o palavrório enfadonho do programa, encontramos propostas que renegam o que os autores alegavam pretender e, pior, são em tudo contrárias ao que queremos:

Coincidência geral das eleições  e mandatos de cinco anos: além de prorrogar mandatos de uns e outros, atropelando escolhas anteriores do eleitor, essa proposta é o oposto de mais participação e responsabilização: ela mais que dobra, estende de dois para cinco anos(!),  o tempo em que o voto do eleitor não pode interferir no andamento da representação (legislativo) e da gestão (executivo), ou seja, protege o sistema político dos juízos da sociedade, quando parecia pretender o contrário. A adoção de mandatos de cinco anos é mais do que nossos políticos corruptos poderiam sonhar, e desafio qualquer um a demonstrar como essa medida aproxima eleitor e eleito. Para glória dos marketeiros e mistificadores de plantão, a coincidência geral de mandatos engessa numa mesma campanha eleitoral o diversificado temário de todos os níveis e instâncias do sistema político cujos cargos são providos pelo voto popular, pondo dificuldades adicionais ao escrutínio do eleitor acerca da realidade, mas facilitando enormemente o trabalho de quem se dedica à fantasia.

Trata-se da proposta mais reacionária que poderia ser concebida, porque é uma reforma contra a mudança: dá a uma representação política repudiada a oportunidade confortável de aumentar sua autonomia em relação aos eleitores numa circunstância em que a base da crise é a autonomia já demasiado confortável de que desfrutam “nossos” representantes.

Fim da reeleição para os executivos: ao invés de propor o fim da reeleição salteada, que tem levado grupos políticos a se eternizarem no poder, como no governo de São Paulo colonizado pelos tucanos, Marina propõe dar cabo da reeleição como tal, duvidando do juízo do mesmo eleitor a quem diz querer dar mais participação… Não há nenhuma evidência de que mandatos de quatro anos com uma, e apenas uma, reeleição sejam um dano à boa gestão da coisa pública. Pelo contrário: em instâncias de gestão, em que não há propriamente representação, não há mal no eleitor poder reconduzir uma vez um governante bem avaliado, desde que ele seja impedido de disputar o mesmo cargo mais adiante. A reeleição no executivo pode ser benéfica porque na gestão da coisa pública os elementos de continuidade se sobrepõem aos elementos de mudança: diferentemente do representar o cidadão, em que as mudanças na sociedade devem ser mais prontamente traduzidas, o gerir a coisa pública é tarefa que arrasta memórias mais duráveis, pois são escolas em construção, rotinas de atendimento médico em implantação, investimentos em infraestrutura em andamento, etc.

Ou seja, pela natureza da atividade, na gestão há menos necessidade de supor ou decalcar a mudança no humor das ruas, como é mister na representação. Ademais, como o titular do executivo tem visibilidade sempre maior do que a do legislativo, seguir e avaliar o desempenho de um prefeito, por exemplo, é sempre menos trabalhoso do que vigiar um vereador, circunstância que torna menos inercial a recondução na gestão do que na representação. Um parlamentar nocivo é muito mais facilmente reeleito do que um gestor incompetente – até porque, além de menos visível, o parlamentar sempre pode ir pedir votos em outra freguesia. A reeleição que tem que acabar é a do legislativo, mas sobre essa transformação necessária o programa de Marina nada diz. Enfim, o fim da reeleição para gestores é uma proposta reacionária, pois não só não propõe mudar a representação (embora simule reconhecer sua crise), como reforça o modelo político defendido pelos políticos profissionais dessa mesma representação legislativa em crise, que almejam mais rotatividade nos cargos de gestão porque aspiram ver esses cargos mais livres para a ciranda das cadeiras que ambicionam.

Em outras palavras, quando juntamos coincidência geral de mandatos de cinco anos com o fim da reeleição para o executivo vemos o desenho de uma alteração especialmente reacionária, pois ela reage ao pouco que conquistamos nos últimos anos e consagra os interesses dos profissionais da representação nefasta: dá a eles mais tempo, mais cargos e mais recursos para o toma-lá-dá-cá que fundamenta sua existência.

Se Marina vier a ser eleita, não haverá nenhuma surpresa quando ela conseguir maioria legislativa absoluta para aprovar essas barbaridades, que configurarão não a mãe de todas as reformas, mas a pá de cal em qualquer transformação e a pedra fundamental para uma base parlamentar voltada a outros retrocessos, como a autonomia legal do Banco Central. Naturalmente, se a oportunidade nefasta se apresentar, as velhas raposas irão facilitar o caminho para o que lhes interessa enfeitando a prorrogação/extensão dos seus mandatos e o fim da benéfica possibilidade de reeleição com a embromação conhecida sobre mecanismos complementares de “participação tecnológica”, tudo com o beneplácito dos bancos.

Um sistema eleitoral em que os candidatos mais votados são os eleitos –  ou seja, o projeto de Marina quer acabar com o voto de legenda, regra eleitoral valiosa que nosso sistema eleitoral acertadamente adotou para fazer a combinação entre o voto em indivíduos e o voto nos partidos. É justamente essa combinação que torna impertinente e supérfluo qualquer outro modelo chamado de lista, como quer o PT, pois pelo nosso excelente modelo eleitoral o eleitor pode escolher entre o candidato individual e o programa partidário. Se nossos partidos não são programáticos, o remédio não está em retirar do eleitor a liberdade de votar neles (voto que ele tem dado com comedimento acertado).

Prudente registrar que a redação da proposta é tão econômica em detalhes que não dá para saber se não estaria embutida aí, além do fim do voto de legenda, uma porta secreta para a adoção de algum dos modelos do chamado voto distrital, no qual uma eleição majoritária permite ao mais votado levar tudo, sacrificando a representação das minorias e/ou do voto de opinião, que geralmente não são delimitáveis em distritos territoriais. Se for isso, teremos o pior dos mundos: eleições majoritárias gerais a cada cinco longos anos, com o massacre das minorias.

Permitir a inscrição de candidaturas avulsas – havendo exigências prévias de alguma representatividade, como o programa de Marina já ressalta, as candidaturas avulsas são um ganho para a riqueza da representação, e até para ajudarem a forçar os partidos à mudança. Mas salta aos olhos que essa proposta adequada de diversificação contraria as outras quatro, discutidas acima.

Propor mecanismos de transparência nas doações para campanhas eleitorais – bem, uma proposta vaga assim não permite avaliação. Mas vale à pena ressaltar a covardia do programa nesse ponto, pois esse é um dos temas centrais da nossa crise de representação. Certamente a vaguidão decorre de que não há unidade dentro da coligação sobre o tema, o que torna alarmante a clareza das primeiras propostas, pois é sinal de que a coligação está unida na reação.

Para além das propostas desastrosas, a reforma política do programa de Marina apresenta equívocos que o palavrório não esconde.

Primeiro equívoco: ao constatar o óbvio, que a maioria da sociedade quer mudar nossa dinâmica política, o programa faz a correspondência errada entre querer mudar e querer participar. Não há evidência dessa suposta demanda reprimida por participação. Pelo contrário, as manifestações do ano passado mostraram quão poucos somos os que nos dispomos a participar e quão efêmero é esse nosso impulso. A demanda é por uma representação que responda aos representados, e essa correspondência não será alcançada nem pelas propostas de Marina, como vimos, nem pelo rogo aos políticos para que tenham vergonha na cara, ou pelo apelo para que venham fazer política cotidiana, sem remuneração, cidadãos cuja luta pela vida não deixa tempo sequer para ajudar o filho com as tarefas da escola.

Segundo equívoco: a essas ideias aduladoras de participação, o programa junta a proposta “muderna” (claro) de consultas diretas com base em recursos tecnológicos, como se consulta fosse o mesmo que a participação propalada (outra falácia). Mesmo que fossem a mesma coisa, consultas são eventos esporádicos não porque falte tecnologia para realizá-las, mas sobretudo porque uma consulta política numa democracia requer duas preliminares: que os perguntados conheçam o tema em questão e  que os perguntadores tenham legitimidade para fazer a pergunta, situação ótima rara de alcançar, cheia de meandros cabeludos. Em outras palavras, não cabe tratar a tecnologia como a solução para a “participação”, pois as complicações da consulta popular são muito anteriores ao ritual da consulta propriamente dito – não foi por outra razão que surgiu a representação, que significa “estar no lugar de”.

Um sistema de consulta direta empregado amiúde trará mais mistificação do que exibe a pior das representações: os perguntadores de plantão irão dirigir a “participação” via consulta, com todas as implicações da sociedade do espetáculo, que será chamada a votar em meio ao lufa-lufa diário, em verdadeiras gincanas de opinião. E se, pelo contrário, as consultas não forem amiúde (como é mais provável que ocorra), os profissionais da política continuarão a tomar a maioria das decisões, agora protegidos por mandatos de cinco anos.

Assim como os ruralistas aproveitaram a demanda efetiva por aperfeiçoamento do Código Florestal para acertar e aprovar intra muros uma reação à proteção ambiental no Brasil, a reforma de Marina permite aos profissionais da traficância política instrumentalizar a demanda por mudança numa proposta de reforma política que é o oposto da mudança.

CONTRA A REFORMA POLÍTICA DA TURMA DA “FICHA LIMPA”

Carlos Novaes, setembro de 2013

Depois da acertada e bem sucedida campanha da “ficha limpa”, destinada a corrigir os políticos, o mesmo pessoal vem, agora, com uma equivocada pretensão de corrigir o eleitor. Ou seja, não entenderam direito onde estão os nossos problemas. Nosso problema é a representação profissional, não a conduta do eleitor; nossos problemas começam depois do voto posto na urna, não antes.

Como não poderia deixar de ser, corrigir o eleitor significa tirar-lhe direitos. As ideias são tão velhas quanto nefastas: voto em partido e financiamento público de campanhas eleitorais. Ou seja, querem diminuir os poderes do eleitor para fazer mudanças, quando o que ele quer é mudança e, pior, nos dois casos se quer obrigar o eleitor a fazer o que ele tem preferido não fazer!

Nosso sistema eleitoral é tão bom que já prevê o voto em partido, através do voto livre e direto nas legendas partidárias: o chamado “voto de legenda”. Se apenas uma minoria de eleitores faz uso desse voto, não cabe ao engenheiro institucional inconformado querer obrigar a todos a fazê-lo — deve-se antes perguntar o por quê de a imensa maioria dos eleitores preferir votar em nomes, na democrática lista aberta. E a resposta é simples: os partidos não são atraentes e o eleitor entende que no voto de indivíduos para indivíduos há mais potencial de mudança.

Obrigar o eleitor a escolher partidos não atraentes não vai melhorar os partidos, vai tanger o eleitor a dar um enorme poder aos profissionais da política que já controlam os partidos, e que são os responsáveis por eles não serem atraentes. Em suma, a reforma da turma da “ficha limpa” quer dar força ao que não presta, ao invés de investir na liberdade de escolha do eleitor. Essa nova proposta é o sonho dos caciques: libera os políticos até de correr atrás do voto, pois torna possível que um partido tenha sucesso mesmo se seus políticos individuais não forem bem quistos!

O financiamento público de campanhas eleitorais vai dar mais dinheiro aos políticos profissionais, só que sem que eles tenham nem mesmo que pedir. Ou seja, a turma da “ficha limpa” quer garantir a eles o nosso dinheiro por cima da nossa vontade. Na verdade, o correto é exatamente o contrário: obrigá-los a correr atrás do voto e do dinheiro, ou seja, nada de voto garantido via partido e nada de dinheiro sem a decisão individual do eleitor.

Não há como aumentar o vínculo entre representante e representado se liberamos os políticos de pedir voto e dinheiro. Vamos manter o voto individual em indivíduos na lista aberta e estabelecer um teto de 100 mil reais para contribuições individuais e de empresas. Se fiscalizada com rigor, essa ordem legal provocaria uma grande mudança em nosso sistema político, ainda que não resolvesse o principal, que é a existência de profissionais da representação.

Quem duvida que o teto de 100 mil reais impeça o caixa2 tem toda razão: teto nenhum e modelo de financiamento algum vão impedir práticas ilícitas. Os malfeitos só serão impedidos com a aplicação efetiva das leis JÁ existentes. Basta que a Justiça Eleitoral dê menos atenção ao, e, sobretudo, gaste menos dinheiro com o, suspeitíssimo brinquedinho da urna eletrônica e seus conexos e passe a fazer com presteza e rigor o que é comezinho: fiscalizar eleições, validar fichas de filiação sem perseguição a ninguém, escrutinar o uso que os partidos dão ao dinheiro público que já recebem, etc.

(Para uma fundamentação mais detalhada desses pontos, leia, nesse Blog, os outros posts dessa categoria REFORMA POLÍTICA).

PESQUISA DA OAB DÁ CARNE A LOBO EM PELE DE CORDEIRO

Carlos Novaes, agosto de 2013 

Pesquisa IBOPE encomendada pela OAB mostra o que todos sabemos: as pessoas querem mudanças o mais rápido possível, sempre. No caso da reforma política, o cidadão quer a mudança valendo já para 2014 porque está insatisfeito e revoltado com nosso modelo de representação. Mas é justamente a urgência saída dessa insatisfação e dessa revolta que cria o ambiente ideal para os pescadores de águas turvas, que querem aproveitar o momento para alterar as regras do jogo em seu favor como se estivessem dando uma resposta efetiva à indignação que tomou as ruas do país.

Para valer em 2014, qualquer mudança tem de ser proposta, discutida e votada no Congresso em menos de dois meses. Não é preciso pensar muito para concluir que todo aquele que defende isso tem de considerar dispensável a participação popular no debate. Mais uma vez, tudo se passa nos moldes e sob o tacão da política dos profissionais no Brasil dos doutores: alguns sabem o que é bom e o povo atrapalha a ação eficaz e salvadora dos engenheiros institucionais. Na melhor das hipóteses, tem gente confundindo coleta de assinaturas inscientes com adesão informada ao que quer que seja.

O voto em listas partidárias fechadas vai diminuir o direito de mudar do cidadão e é uma traição à vontade de mudança.

As pessoas têm sido levadas a achar que o defeito do nosso sistema de representação está no fato de escolherem segundo candidaturas individuais, nas chamadas listas abertas. É natural que na ausência de debates elas não tenham podido refletir sobre tudo o que perdem ao não poderem mais escolher o nome da sua preferência. Além disso, a ausência de debate esconde o verdadeiro problema: a existência de políticos profissionais que podem se reeleger infinitamente para os legislativos.

O voto em lista fechada tira poder do eleitor e dá mais poder aos dirigentes dos partidos – quem ganha com a lista fechada é quem já manda no sistema político partidário brasileiro, não você, pois os profissionais da política ficam ainda mais fortes para evitar mudanças que ameacem esse seu domínio (com a tal lista o eleitor perde ou vê restringido o poder de interferir na composição individual do feixe de forças que constituí a representação política).

Se para o eleitor já é difícil cobrar e fiscalizar políticos individuais, imagine-se como não será difícil encontrá-los depois da eleição, se até na hora da escolha eles já estiverem escondidos na lista!?

A lista fechada não vai tornar mais programáticos os partidos, que, não obstante, são fortes. Imersos na mesma cultura política não programática em que vivemos, os partidos serão dirigidos pelos mesmos políticos não programáticos que conhecemos, com a mesma força tenaz que nos infelicita. Ou seja, a atuação política segundo programas (algo em desaparecimento em todo o mundo) não tem qualquer relação com o mecanismo segundo o qual o eleitor vota – basta olhar a política infeliz dos países em que se vota nos mais variados modelos de lista. Essa alegada relação aparece ora por ignorância, ora por oportunismo, para persuadir a opinião pública, pois o eleitor médio sonha com um mundo “mais programático”.

Dar o voto para uma lista de nomes não vai levar os nomes dessa lista a agirem segundo programa algum, eles vão continuar agindo exatamente como agem em seus mandatos atuais.

Há quem diga que as campanhas vão mudar para melhor, pois ao invés de pedir o voto para si, os candidatos devem convencer os eleitores a votar no partido deles. Essa crença é ilusória. Na verdade, os candidatos vão fazer o que sempre fizeram: vão imprimir propaganda com o seu retratinho e pedir ao eleitor “vota nessa lista aqui porque eu estou nela” – o resto fica igualzinho… Por que ele se daria ao trabalho de explicar e defender o partido se atualmente ele não faz isso?  Defender e explicar o que pensam os partidos não se obtém com mudança no modo de o eleitor votar, muito menos diminuindo seus graus de liberdade. Seria necessário, primeiro, que os partidos dos políticos profissionais tivessem o que dizer!

Areia nos olhos do cidadão

Carlos Novaes, maio de 2011

A pilastra do chamado “financiamento público” é pura areia e surpreende que os bem intencionados ainda não se tenham dado conta: tudo se passa como se as campanhas eleitorais fossem caras, corruptas e desiguais porque o dinheiro legal que entra nelas é privado, não público. Ora, o problema não é o dinheiro legal, escriturado, contabilizado, doado por empresas e por cidadãos, mas sim o dinheiro ilegal, o do caixa dois. Logo, proibir a doação legal  de empresas e indivíduos, substituindo esse dinheiro pelo dinheiro do tesouro, dos nossos impostos, é uma troca que, em si mesma, nada altera da realidade imposta pelo caixa dois: campanhas caras, corruptas e desiguais. Ou seja, defender que o financiamento público acaba com o caixa dois e com os problemas derivados dele é o mesmo que dizer que os crimes de assassinato vão acabar se substituirmos a lei que proíbe o cidadão de matar por outra que diga que só o agente público em serviço pode matar.

A falácia é tão flagrante que até um político sério como Tarso Genro, ao defender o financiamento público se vê na obrigação de acrescentar “desde que com fiscalização e punição rigorosas dos infratores”. Ora, a legislação atual já determina essa “fiscalização e punição rigorosas” e, não obstante, o caixa dois impera. Por que deveríamos acreditar em “fiscalização e punição rigorosas dos infratores” no cenário do financiamento público? Em suma, o financiamento público troca a origem do dinheiro legal (de privado, para público), mas nada pode contra o dinheiro ilegal, do caixa dois. Acabar com o caixa dois não depende de mudança na legislação eleitoral, depende de fazer valer os mecanismos institucionais que já existem!

A pilastra do chamado “voto em lista fechada” é a reunião, sem cimento, de quatro areias: a grossa, a média, a fina e a extrafina: a besteira grossa é a idéia de que os partidos políticos brasileiros são fracos; a besteira média está em imaginar que as dificuldades de obter maioria para a governança resultam do mecanismo pelo qual o eleitor escolhe, não do comportamento dos políticos posteriormente à escolha ajuizada do eleitor; a besteira fina é supor que é mais fácil controlar e cobrar agrupamentos impessoais de políticos do que políticos individuais; a besteira extrafina é supor que lista fechada torna as coisas “mais programáticas”.

Ser forte significa poder fazer valer seus interesses, se fazer ouvir, ser levado em conta. Que dúvida pode haver de que os partidos políticos brasileiros têm sido fortes para conseguir quase tudo o que lhes interessa, sobretudo poder, dinheiro e imunidade? Nas instituições em que se fazem representar, distribuem livremente os cargos de provimento disponíveis; quando algum dos seus é apanhado em maus feitos com dinheiro e benesses indevidas, fecham-se em torno deles numa defesa de matilha treinada, freqüentemente eficaz; a legislação lhes confere total autonomia nas lides internas – enfim, que a luz da razão nos proteja de dar ainda mais poder a eles!

As dificuldades de obter maioria para a governança decorrem do fato de que, sendo fortes, os partidos impõem seu preço para dar apoio aos governantes. Essa realidade nada deve ao fato de o eleitor votar em indivíduos, precisamente porque esses indivíduos estão submetidos à dinâmica dirigente dos partidos fortes antes descrita (eles são fortes precisamente porque podem submeter, premiar e proteger os seus indivíduos). O voto em lista fechada tira poder do eleitor e dá mais poder aos dirigentes dos partidos, sem tornar mais fácil a vida dos governantes que querem obter maiorias – quem ganha com a lista fechada é quem já manda no sistema político partidário, pois fica ainda mais forte para evitar mudanças que ameacem esse seu domínio (com a tal lista o eleitor perde o poder de interferir na composição individual do feixe de forças que constituí a representação política).

A que servem, então, o financiamento público e o voto em lista?

Há séculos os políticos se empenham numa tarefa animal: construírem para si mesmos o meio ambiente mais confortável possível. O diabo é que há um elemento hostil: tu, eleitor, a necessidade de obter o teu apoio e o teu voto, que são individuais. O pesadelo de todo político é o período eleitoral – depois disso, se eleito, ele pode ir em busca do céu na terra: se livrar da fonte de dissabores que, para ele, o eleitor representa. É do que eles estão tratando agora, antes de 2014, quando terão de fazer nova campanha para o Congresso… O financiamento público é mais uma medida para facilitar a vida dos políticos em seu almejado micro-clima, longe de nós, indivíduos cidadãos. No devaneio musical sob o tilintar das moedas em que dança o político profissional, esse “financiamento público” é como uma daquelas antigas e plácidas reservas aristocráticas de caça: torna coisa certa, favas contadas, o dinheiro para as despesas básicas da campanha eleitoral e, melhor, sem impedir a obtenção de recursos extras por baixo do pano. É quase o céu!

O que falta para alcançar definitivamente o sonhado mundinho à parte? Ah, depois de se livrar de ter de pedir a ti dinheiro legal para a campanha dele (vai arranca-lo através de um, digamos, imposto para campanhas políticas), só falta ao político escapar dos compromissos que advém de ter de pedir para si mesmo o teu voto. Para isso surgiu a idéia do “voto em lista fechada”. Como essa solução terminal encontrou resistência relevante na opinião pública, apareceu, claro, a mágica: o “voto misto”, com base no ardil de que, por definição, toda mistura resulta em coisa boa (“um pouco de bom de uma coisa e da outra, manja?”).

Essa é a origem da proposta de dois votos ao eleitor para a escolha deputados e vereadores: um na lista, um em indivíduos. Tirar do eleitor o direito de eleger indivíduos para a metade das vagas de representação significa amputar pela metade seu já diminuto poder de provocar alguma mudança.

Que mudanças seriam oportunas?

No financiamento das campanhas eleitorais, o caminho a ser seguido é o inverso do proposto: obrigar os políticos a buscarem apoio nos cidadãos, estabelecendo um teto para a contribuição individual/empresarial legal de, digamos, 100 mil reais. Se houver contra o caixa dois a fiscalização e a punição rigorosas que todos declaram defender, essa medida baratearia as campanhas de pronto, obrigando os políticos a um verdadeiro esforço de persuasão junto aos eleitores (aí, sim, com algum ganho “programático” para todo aquele que tem essa exigência). Ou seja: apoio individual para indivíduos candidatos, com os vínculos claros decorrentes, permitindo responsabilização posterior.

No sistema eleitoral, o ideal seria a adoção de três votos para deputados e vereadores, mas os três votos seriam dados em indivíduos, em listas abertas, como é hoje. Os vencedores sairiam da soma simples dos votos recebidos, não havendo hierarquia entre as três opções, que o eleitor deveria efetivar sempre em candidatos de mesmo partido. Em outro texto explico melhor essa ideia, acho.

Lista Fechada, Financiamento Público, Coligações e Candidaturas Avulsas

Carlos Novaes, maio de 2011 

Quando se identifica um problema, é de esperar que ao diagnóstico se sigam uma ou mais medidas de solução coerentes com a mudança almejada. Não menos trivial é supor que havendo mais de uma medida a ser tomada, elas sejam concebidas de modo a não contrariarem umas às outras.

O propósito desse texto é mostrar, por um lado, que a Lista Fechada e o Financiamento Público de Campanha são medidas incoerentes com ao diagnóstico de que nossa representação política vai mal e, por outro, esclarecer que as propostas coerentes pela Proibição das Coligações Proporcionais e pela adoção da Candidatura Avulsa, livre de partido, são medidas contraditórias com a Lista Fechada.

A insatisfação com a nossa representação política encontra lastro final numa constatação simples: nossos representantes não nos representam. Ora porque estão distantes, ora porque não respeitam compromissos programáticos, ora porque se tornaram assalariados autointeressados de uma nova “classe”, a classe política, ora porque são ladrões, corruptos ou corruptores, ora porque são instrumentos de seus financiadores – sem prejuízo das combinações que se queira imaginar entre duas ou mais dessas mazelas.

A Lista Fechada retira do eleitor o instrumento da escolha individual nominal, transferindo às direções partidárias (sejam elas uma Executiva, um Diretório ou uma Convenção – instâncias essas comandadas por esses políticos que não nos representam) essa escolha dos indivíduos que irão nos representar (sim, tenhamos em mente, sempre, que o representante é um indivíduo). Salta aos olhos que não há correlação virtuosa entre desejo e medida, pois a Lista Fechada:

  1. VAI afastar ainda mais o eleitor do representante, VAI interpor um filtro (mais um!) entre o candidato e o eleitor, não cumprindo o desejo de acabar ou diminuir a distância entre um e outro;
  2. NÃO VAI tornar mais programática a atuação dos representantes, pois não há vínculo entre o “formato” lista fechada e compromisso programático. Cada candidato presente na lista vai pedir o voto, distribuir materiais, da mesma maneira como faz hoje: “EU estou nessa lista aqui, vote nela para ME eleger”. Não há fundamento nenhum na esperança de que com a Lista Fechada os partidos farão campanhas onde idéias e vínculos programáticos serão mais sólidos do que o são hoje – a coisa não passa por aí;
  3. VAI tornar ainda mais confortável a ação intramuros desses membros da “classe política”, que ficarão protegidos até mesmo da incerteza benéfica que o voto individual nas mãos do eleitor ainda instila no processo;
  4. VAI tornar, por isso mesmo, muitíssimo mais difícil a renovação política, pois novos valores não poderão surgir pelas mãos do eleitor (que não poderá votar em indivíduos), tendo que furar a pedreira das oligarquias partidárias, que resistirão tenazmente a dar lugar viável, ou mesmo qualquer lugar, na lista, aos novatos. Na mesma linha, VAI oferecer mais poder para quem já manda nos partidos submeter suas minorias, que hoje sobrevivem porque conseguem chegar ao eleitor por si mesmas e, na lista, serão deixados fora ou longe de uma posição viável;
  5. NÃO VAI ter qualquer incidência corretiva sobre a atuação corrupta, de um lado, porque não há correlação entre concentração de poder (na confecção da lista) e diminuição da corrupção (até pelo contrário, não é?); de outro lado, porque o indivíduo corrupto terá conduta corrupta tenha sido eleito pela Lista ou não;
  6. VAI tornar os indivíduos da lista ainda mais sujeitáveis à ação dos financiadores. De um lado, porque não terão os “seus” votos para contrapor às pressões; de outro, porque ficarão devendo a “alguém” da hierarquia partidária o seu lugar na lista (tenhamos em mente a pergunta sábia do velho Miguel Arraes: “pois sim, e quanto vai custar um bom lugar nessa lista?”);

Em suma, com a Lista Fechada se retira do cidadão uma ferramenta cujo único “defeito” é o de permitir a cada um fazer dela uso diferente do que gostaria o observador ao lado (são os inconformados com essa liberdade que gostam de encher a boca para dizer que o povo, ou parte dele, não sabe votar, como se o “saber votar” tivesse qualquer relação com uma verdade presumida). Em troca dessa amputação se oferecem quimeras regulatórias bem ao gosto daqueles que supõem que os nossos problemas nascem na hora do voto (no fundo, culpam o povo) e não se dão conta de que o ambiente do erro é aquele do depois do voto (está na prática dos políticos).

Embora seja de rir, não devemos apenas rir daqueles que combinam a Lista Fechada com Candidatura Avulsa. Essa reunião esdrúxula é muito instrutiva sobre a confusão a que foram levados aqueles que confundem os próprios desejos com reflexão detida acerca dos nossos problemas políticos. A Candidatura Avulsa aposta ainda mais no vínculo indivíduo eleitor-indivíduo eleito, retirando parcialmente do processo o filtro que o partido representa, oferecendo ao eleitor insatisfeito com o quadro partidário a possibilidade de apresentar(-se) candidato alternativo e/ou nele votar. Ou seja, a Candidatura Avulsa potencializa o voto nominal individual precisamente porque faz a leitura correta de que, de certa maneira, temos partidos de mais. Ora, a Lista Fechada parte do diagnóstico oposto, isto é, o de que temos partidos de menos e de que é imperioso conter o poder individual.

A oportuna proibição das Coligações Proporcionais visa principalmente impedir o que se convencionou descrever como “o voto do eleitor ser transferido para alguém em quem ele não tencionava votar”. Ora, o que é a Lista Fechada senão a consagração, em altíssimo grau, da transferência do voto do eleitor “para alguém em quem ele não tencionava votar”? Permitam-me ser didático: um candidato de “opinião”, minoritário em seu partido, digamos, contrário à posse de armas pelos cidadãos comuns, pede o voto ao eleitor dizendo o que propõe e indicando a Lista Fechada (na qual figura lá embaixo). Apurados os votos, os eleitos pela mesma lista são todos defensores do direito à posse de arma, e obtiveram êxito com votos não mensuráveis (a Lista engole tudo, coisa terrível) daqueles que eram contra esse direito e haviam votado do candidato que só não se elegeu porque estava em posição desfavorável na lista do partido em que é minoria. Pois bem, pululam tagarelas que defendem as duas coisas: fim das coligações com base no fim da “transferência espúria de votos” e voto em lista, que consagra essa mesma transferência espúria.

A desigualdade no poder econômico disponível é grave no cenário político brasileiro e, até certo ponto, não passa de reflexo da desigualdade brasileira como tal. É necessário corrigir o problema, ou seja, é necessário diminuir (se não dá para anular) a distância entre a campanha com mais recursos e a campanha com menos recursos, sempre que por recursos se entenda aquilo que o dinheiro permite contratar. Ao mesmo tempo, é necessário conceber uma alternativa de financiamento que não se contraponha ao que se pretende alcançar com a mudança no sistema eleitoral: aumentar o vínculo eleitor-eleito. O Financiamento Público de Campanha seria uma resposta adequada?

Desde logo parece pouco provável que liberar partidos e candidatos do esforço de persuasão inerente ao tentar obter do eleitor apoio para suas campanhas seja uma forma de aumentar os vínculos entre eles. Pelo contrário, o Financiamento Público vai oferecer às direções partidárias (essas ocupadas pelos mesmos políticos profissionais que hoje manejam o Fundo Partidário…e que seriam as organizadoras das Listas Fechadas respectivas) um solo firme e certo, longe da vontade e do escrutino do eleitor, a partir do qual comandariam a garrafaria de campanha, submetendo os seus comandados, as suas minorias, os seus dissidentes, que estariam proibidos de captar recursos em suas próprias redes de apoio. O pior dos mundos para quem quer mudanças!

Além de configurar esse arranjo contraproducente mencionado acima, o Financiamento Público – que sempre terá de guardar alguma proporcionalidade com a força eleitoral já recebida pelo partido (o PSOL não receberia tanto dinheiro quanto o PMDB) – não traria por si mesmo qualquer trava ao caixa2, uma vez que:

  1. o caixa2 resulta da combinação de ambição com certeza razoável de impunidade, variáveis que o financiamento público não atinge (e até pode robustecer) – para mudar isso é necessário fiscalizar e punir, coisa que poderia ser feita qualquer que fosse o sistema de financiamento das campanhas, se os políticos aprovassem leis e a destinação de recursos nessa direção…;
  2. as diferenças visíveis entre as campanhas sempre poderiam ser atribuídas às diferentes dotações de financiamento público, o que ajudaria a mascarar a desigualdade advinda do caixa2 mais bem sucedido.

Assim como a Lista Fechada, o Financiamento Público é o remédio errado. Precisamos aumentar o vínculo eleitor-eleito e para isso não há nada melhor do que obrigar o candidato/partido a pedir dinheiro ao eleitor individual, seja ele rico ou pobre. Essa seria a fonte legal central de recursos para as campanhas. Fiscalizada a sério, essa medida produziria uma imediata diminuição na distância do poder econômico entre campanhas, pois não há nada mais difícil do que tirar dinheiro dos indivíduos. A lei definiria para cada cargo em disputa seu próprio teto de captação.

Se o leitor considera essa medida inviável porque é impossível controlar o caixa2, que não deixe de considerar que essa impossibilidade não muda em nada com o chamado Financiamento Público de Campanhas. O caixa2 é doença de ordem policial (legislação e prática), não havendo remédio na farmácia do modelo eleitoral.

Em suma, a uma sociedade que clama por mudança em sua representação política se está a oferecer, com apoio infernal de inúmeros mudancistas bem intencionados, inovações que vão tornar os sistema político mais protegido da ação livre do eleitor, único a partir do qual se pode esperar algum impulso de mudança. Nesse ambiente de manipulação o que não falta é inocente útil.

Questionamentos que recebi em mensagens sobre o chamado Voto Distrital

Carlos Novaes, maio de 2011

Questionamento 1:  Com o voto distrital, a eleição vai ser descentralizada. Cada estado será divido em distritos com um número fixo de eleitores. Os partidos apresentam os candidatos por distrito. E quem receber mais votos ficará com a vaga. Assim, os eleitores terão um leque mais reduzido de candidatos a escolher.

Minha opinião: não há motivo consistente para preferir (ver alguma vantagem) que os eleitores tenham “um leque mais reduzido de candidatos a escolher”. Ao escolher um candidato, o eleitor não leva em conta uma lista com todos eles, tendo que passar pelo esforço exaustivo de avaliar a todos, ou mesmo quase todos. Toda escolha é feita segundo um juízo que, desde logo, exclui um grande número dos nomes ofertados. O eleitor escolhe segundo sua inserção social, familiar; segundo suas preferências políticas (por mais difusas ou “erradas” que sejam), segundo moradia, profissão; segundo parâmetros pessoais, enfim. Não se trata de uma entrada às cegas no supermercado eleitoral, tendo que percorrer todos os corredores, gôndolas e produtos. Não, o eleitor escolhe tendo uma rota e uma rotina pré-organizadas. Logo, não há nenhuma razão para achar interessante fechar o leque de opções. Pelo contrário, devemos sempre encarar como vantagem um leque amplo, trata-se de REPRESENTAR a sociedade.

Questionamento 2: Com um representante por distrito fica mais fácil para o eleitor fiscalizar o parlamentar. Hoje, o parlamentar não é fiscalizado, aliás, pelo sistema atual, a maioria dos eleitores não sabe em que deputado federal votou.

Minha opinião: essa suposição tem dois erros básicos:

1. mesmo que os distritos fossem pequenos, não há razão para supor que “fica mais fácil fiscalizar”. Se fosse assim, os vereadores de pequenas cidades seriam fiscalizados impiedosamente e, como resultado, teríamos Câmaras Municipais ideais em pequenos municípios. Pense-se, então, nos prefeitos: todos sabem quem é o prefeito de sua cidade, cuja atuação se dá segundo parâmetros muito mais claros para o eleitor do que aqueles que orientam os legisladores. Nem por isso os prefeitos são “fiscalizados”…

2. No caso do “distrital puro”, divididos em 513 distritos, os 150 milhões de eleitores brasileiros formarão distritos de quase 300 mil eleitores cada um. Logo, além de populosos, para serem formados, em sua grande maioria, os distritos eleitorais vão reunir dezenas (d e z e n a s) de municípios e milhares de quilômetros quadrados. Por que, então, supor “mais fácil para o eleitor fiscalizar”?

Quem diz isso não sabe do que está falando. Nunca se deu ao trabalho de simular distritos em todos os estados brasileiros.

Questionamento 3: No sistema distrital haverá o barateamento das campanhas, pois cada candidato só disputará voto em seu distrito, reduzindo os custos com viagens e gastos com material de propaganda.

Minha opinião: mais uma vez, hipóteses não demonstradas e erradas:

Não há porque contar com barateamento porque:

1. a maioria dos distritos, como vimos, reunirá muitos municípios (na verdade, os distritos serão maiores do que as atuais “regiões de campanha” dos candidatos a federal e estadual), com deslocamentos de centenas de quilômetros e tudo o mais;

2. em geral, uma eleição de prefeito é mais cara do que a de um deputado, precisamente porque o voto é majoritário (como no distrital): cada candidato tem de chegar, nesse caso, a todos os eleitores do distrito, e contra os outros candidatos.

Na verdade, essas hipóteses resultam do desconhecimento de que os candidatos não fazem campanha por todo o estado, querendo chegar a todos os eleitores. Não é assim. Na verdade, as campanhas são regionais.

Questionamento 4: Os deputados distritais não vão se transformar em vereadores de luxo, para só tratar de sua paróquia, porque o eleitor estará presente para cobrança. Hoje, pelo sistema atual, muitos parlamentares são mais estaduais do que federais, fisiologistas e estão no Parlamento por cabide de emprego ou para defender interesses particulares ou de grupos que representam.

Minha opinião: típico raciocinar com os próprios desejos. Afinal, por que supor que o eleitor “vai estar presente para cobrança”? E mais, porque o eleitor não gostaria de alguém que se comportasse como um “vereador de luxo”, se por vereador, se entende, aqui, aquele que defende interesses locais?

Questionamento 5: O sistema não prejudicará minorias. No Brasil não existem minorias permanentemente alijadas, como os sunitas, em alguns países árabes. Na prática, os candidatos de um distrito terão de buscar o apoio de todos os grupos de eleitores, se quiserem vencer.

Minha opinião: não se trata de “minorias”. Trata-se do “voto de opinião”, que pode, ou não, estar referido a minorias. Como a opinião não está limitada a um território, sendo como que transversal à geografia, o modelo distrital (ainda mais o puro), praticamente elimina o voto de opinião. Eleitores com a mesma opinião ficarão obrigatoriamente separados, pois pertencerão a distritos diferentes, tendo anulada a sua capacidade de “reunião virtual pelo voto”. Por exemplo: descriminalização do aborto; da maconha; adoção do ensino religioso nas escolas; da pena de morte, etc.

Questionamento 6: Não haverá dinastias locais eternizadas pelo poder econômico e político, como existe no sistema atual – José Sarney, Jáder Barbalho etc – em que o dinheiro faz a diferença para aqueles que precisam se deslocar em grandes territórios para disputar votos. Ao concentrarem a campanha em um distrito, os candidatos menos poderosos terão mais facilidade de chegar ao eleitor no corpo a corpo.

Minha opinião: argumento falso e desinformado. Falso porque supõe que o dinheiro e as famílias não iriam exercer sua mesma influência (até maior) nos distritos. Desinformado porque desconhece que a maioria dos distritos (fora das poucas grandes cidades) terá territórios enormes, não havendo esse “corpo a corpo” idealizado.

DEZ PERGUNTAS E RESPOSTAS SOBRE O VOTO DISTRITAL PROPOSTO PARA O BRASIL

 Carlos Novaes – março de 1999

1. O modelo proposto para o Brasil é basicamente o modelo alemão?

Não. Na Alemanha os distritos levam em conta o eleitorado do país e cada cidadão vale um voto. Na proposta defendida pelo Senador Sergio Machado e outros, os distritos seriam construídos com base no eleitorado dos estados e no seu atual número de representantes. Um deputado distrital da Bahia, por exemplo, estaria representando cerca de 412 mil eleitores. Um de São Paulo representaria 665 mil eleitores. Não obstante, eles teriam o mesmo valor na Câmara Federal. Na verdade, se aprovado, o novo modelo nos deixaria muito próximos da Bolívia em matéria de sistema eleitoral, país de voto distrital misto que incluiu, na sua adoção, distorções na representação dos cidadãos dos diferentes Departamentos.

2.  O chamado voto distrital misto iria  fortalecer os partidos?

Depende do que se entende por “fortalecer”. Se a idéia for dar consistência programática e/ou ideológica aos partidos, a resposta é não. Não há na experiência dos outros países razão para supor uma relação entre sistema eleitoral e a consistência programatico-ideológica dos partidos.

Se “fortalecer” significa dar mais poder aos atuais partidos brasileiros, a resposta é “em termos”. O voto distrital iria polarizar a disputa dentro do distrito e levaria ao fortalecimento dos que já são fortes, em prejuízo dos mais fracos.

Em suma, o modelo proposto beneficiaria os grandes partidos.

3. Com o voto distrital o eleito ficaria mais perto do eleitor, que disporia de maior poder de cobrança do que detém hoje, com o voto proporcional, e aumentaria seu interesse pela política?

Não. A maioria dos distritos seria bastante grande, com dezenas de municípios. A esperança, simpática, de um deputado que caminha, e é cobrado, nas ruas do seu distrito seria, na maioria dos casos, simplesmente frustrada. Mesmo em São Paulo, por exemplo, estado onde mais de 80% da população vive em áreas urbanas, haveriam distritos com mais de 50 mil km2 , com mais de 50 municípios. Em suma, na imensa maioria dos casos, o eleitor teria menos poder de cobrança do que detém hoje sobre o prefeito ou o vereador em que votou no seu próprio município.

Como o novo modelo diminuiria drasticamente o número de candidatos, pois cada partido lançaria uma lista com, no máximo, o número de cadeiras em disputa, parece difícil argumentar que diminuindo o número de pontos de contato ativos entre o eleitor e a campanha que discute as alternativas de rumo político para o país seriam incrementadas justamente as possibilidades de participação desse mesmo eleitor.

4. Com o voto distrital misto, em que o eleitor dispõe de dois votos (um na lista partidária e outro no candidato do distrito), haveria a alegada combinação virtuosa entre a preferência ideológica por este ou aquele partido e a orientação pragmática por este ou aquele interesse em jogo na disputa distrital?

Em tese, sim; na prática, não. Em tese, dispondo de dois votos, o eleitor poderia colocar um pé em cada canoa. Assim, poderia, por exemplo, votar na lista do PT e num candidato distrital do PFL. Ocorre que a experiência internacional demonstra que o voto majoritário, no distrito, “coloniza” o voto proporcional, na lista, porque os partidos põem também na lista os nomes que disputam nos distritos (em geral nomes fortes, que vem nas melhores posições da lista, para aumentar suas chances de eleição em caso de perderem a disputa distrital para o nome forte do outro partido, que, por sua vez, estará na lista daquele partido…). Em suma, o eleitor pragmaticamente orientado tenderia a votar no candidato do distrito por assim dizer duas vezes, no distrito e na lista.

Ademais, esse argumento dos dois votos complementares (pragmatismo e ideologia) é ilógico para quem defende que a reforma viria para fortalecer ideologicamente os partidos. As duas idéias estão erradas. Como já dito, iriam se fortalecer os partidos que já são fortes, e não porque teriam ficado mais ideológicos ou programáticos…

5. O voto distrital misto iria alterar para melhor a forma de os partidos recrutarem seus candidatos, acabando com a captação oportunista de pessoas “boas de voto” mas sem compromisso com o partido?

Não. Essa inclinação pelos “bons de voto” continuaria existindo. No caso da lista aparece uma diferença que prejudicaria o “bom de voto” mas não iria impedir os partidos de irem buscá-lo, pelo contrário: com pouca ou nenhuma força na máquina partidária, o “bom de voto” acabaria mal colocado na lista do partido e poderia deixar de ser eleito, mesmo tendo trazido muitos votos para ela. Mais uma vez, os homens fortes das máquinas partidárias, nem sempre os mais votados, é que seriam beneficiados pela mudança, pois, embora com limites desenhados pela luta interna, reservariam para si os melhores lugares da lista.

6.  O modelo distrital iria aumentar a coesão interna dos partidos?

Não. A briga pela vaga majoritária de um mesmo distrito criaria/explicitaria profundas clivagens internas, polarizando os filiados de um mesmo partido. No caso do candidato distrital, seria como as disputas internas para definir candidaturas a prefeito, governador e senador, também majoritárias. No caso das listas, a disputa pelos melhores lugares seria tremenda, com a desvantagem de que o eleitor não iria controlá-la com seu voto, como acontece hoje, quando os mais votados estão, por definição, nos melhores postos da lista, que é aberta.

7. O modelo distrital iria provocar pequenas mudanças, pois o eleitor já vota em distritos virtuais?

Pelo que vimos até aqui, as mudanças seriam enormes. Quanto ao argumento de o eleitor já votar “distritalmente”, não é verdade. Quem diz isso comete dois erros bastante primários:

a-      confunde distrito com reduto. Todo candidato tem um reduto eleitoral, que não configura distrito, tendo dimensões muito diferentes. Por exemplo, um deputado federal com forte votação em Araçatuba, populoso município do interior de SP,  tem ali o seu reduto, mas isso não configura voto distrital, pois Araçatuba terá de ser reunido a cerca de outros 40 municípios para configurar um distrito.

b-      deixa de levar em conta que os grandes municípios (basicamente as capitais dos estados) terão de ser subdivididos em mais de um distrito. No caso da cidade de São Paulo, por exemplo, serão 11 distritos. Assim, não faz sentido argumentar, como se tem visto, com a votação que esse ou aquele deputado obteve na capital paulista, pois ela não serve como parâmetro de concentração de voto. Na pratica, esse eleitorado do candidato forte na capital seria retalhado no novo modelo.

8.  O modelo distrital acabaria com a eleição tremendamente dispersa dos deputados, que atualmente acabam por não prestar contas aos seus eleitores? [argumento logicamente contraditório com o anterior, mas que também é usado pelos defensores do novo modelo proposto, que embaralham tudo]

Não, e por mais de uma razão:

Primeiro, não é verdade que o modelo predominante seja uma dispersão amalucada. Na verdade, praticamente todo candidato tem um reduto, ao qual, a seu modo, presta contas. Ter votos em muitos municípios não descaracteriza o fato de que os eleitores dos candidatos estão, nesta ou naquela medida, mais concentrados aqui e ali. Segundo, e por isso mesmo, no atual modelo os deputados lutam e prestam contas (com deficiências e incorreções que não vem ao caso discutir aqui) dos seus atos de uma maneira que nada faz supor menos própria do que a que seria obtida no novo modelo: o que faz o deputado quando luta para incluir no orçamento a autorização para uma obra na sua cidade-reduto e divulga isso para os seus eleitores? Faria coisa diferente eleito pelo modelo distrital? Ou, por outra, não é exatamente a institucionalização disso que se daria com o voto distrital?

9. Dando a possibilidade de dois votos, o novo modelo preservaria o voto de opinião?

Não. Voto de opinião não é apenas – nem principalmente — o voto em partido. Aliás, em todo o mundo decresce a capacidade de representação efetiva dos partidos. Eles estão, sabe-se, em decadência como instituição de representação da opinião. As clivagens de opinião têm crescentemente atravessado as organizações partidárias. Exemplos de temas que encontram ferrenhos defensores e adversários dentro de um mesmo partido: a legislação sobre o aborto, a união civil entre pessoas do mesmo sexo, a mudança na idade para responsabilidade penal,  a descriminalização de drogas, a censura aos meios de comunicação, a pena de morte, as compensações étnicas, o ensino religioso nas escolas públicas.

O modelo proposto restringiria muito a possibilidade de as opiniões controversas se expressarem na arena política. De um lado, o candidato pelo distrito seria pragmaticamente orientado a evitar esses temas (não será possível construir distritos tematicamente homogêneos ); de outro lado, na lista, o candidato com opiniões controvertidas poderia não ficar bem colocado nela e, “seus” votos, votos dados na lista pela sua opinião, seriam como que deslocados para outros. Hoje também existe essa transferência de votos, mas não há a possibilidade de um candidato transferir votos a quem teve menos votos do que ele e não se eleger, vendo o outro ser eleito.

Ademais, como vimos, o voto no distrito tende a colonizar toda a eleição, diminuindo as possibilidades de expressão do pensamento divergente mesmo nas pálidas chances da lista.

10. O modelo distrital poderia ser aprovado em tese, com os detalhes sendo discutidos depois?

Não, a menos que se queira enganar os votantes. O modelo tem de ser votado inteiro. Como vimos até aqui, os detalhes são fundamentais e empurram todo o sistema político para esse ou para aquele lado. Vejamos algumas questões preliminares não resolvidas, embora cruciais:

a-      a eleição no distrito seria em um ou dois turnos? Se em um turno só, um partido poderia fazer maioria na Câmara sem ter maioria de votos no país. Se em dois turnos, o sistema todo seria levado a uma extrema polarização, acabando por restarem apenas dois ou três partidos, altamente atritados.

b-      como compatibilizar os distritos para deputado federal e estadual? Um eleitor iria pertencer a dois distritos diferentes, a um para o caso federal e a outro para o estadual ? (nesse caso, a confusão não seria pequena, além de pôr sérios problemas para a concatenação da ação nos planos estadual e federal). Para os distritos coincidirem, seria necessário alterar o número de deputados de cada estado (federais ou estaduais), diminuindo uns, ou aumentando outros. Nesse caso, quem iria perder ou qual seria o custo (político e financeiro) da mudança?

c-      quem iria construir/desenhar os distritos, a Justiça Eleitoral (o TSE ou os TREs?),  uma comissão partidária (paritária?), segundo que critérios?

d-      municípios com eleitorado menor do que um distrito poderiam ter seus eleitores alocados em distritos diferentes? Ou os municípios seriam indivisíveis, salvo, claro, aqueles que comportassem mais de um distrito?

e-      qual seria o percentual de tolerância para desigualdades na magnitude eleitoral dos distritos?

f-       buscar-se-ia respeitar acidentes geográficos tais como rios, lagoas e serras na reunião de municípios para construção de um distrito? Por exemplo, embora no mapa pareçam vizinhos (geograficamente o são) os municípios paulistas de São Bernardo e Cubatão  não têm nenhuma relação na sua dinâmica política – há a serra do mar e muita floresta entre seus respectivos eleitores.

Sobre tudo isso e muito mais o modelo proposto silencia, apoiado na tese marota e frágil de que o modelo vai nos conduzir ao melhor dos mundos, vindo os “detalhes”(!) depois…

REFORMA CONTRA MUDANÇA

Carlos Novaes, maio de 2009

 

Avaliemos a reforma política que acaba de ser anunciada, tendo em mente que numa democracia o bom sistema eleitoral e partidário é aquele cuja desejável estabilidade de coordenação institucional que favorece seja amiga da alternância de poder em toda a cadeia e se harmonize com a participação do cidadão interessado. Por isso mesmo, toda reforma em favor de mais controle no topo do sistema deve ser avaliada tanto segundo este precise ou não de facilitadores para a construção de maiorias, quanto se ele padece ou carece de participação cidadã  — em outra chave, se ele está aberto demais ou fechado demais à mudança. Quem já está acomodado nos postos de mando tem inclinação por buscar mais recursos de coordenação, em geral inibindo as minorias e reduzindo os espaços propícios à intervenção do cidadão, agentes cuja atividade é vista, no limite, como perturbadora daquela que é tida como a ordem natural das coisas. No pólo oposto, minorias que aspiram poder institucional tendem a lutar contra as pretensões de quem manda mobilizando a participação cidadã pela mudança. Olhada desse ângulo, toda reforma política numa democracia deve ser observada tanto segundo facilite ou evite a prevalência de maiorias facciosas, quanto segundo repila ou propicie o engajamento dos cidadãos.

É voz corrente que a política brasileira precisa de mudanças. Os descalabros mais recentes, sem serem os piores, deitaram combustível à fogueira que vem acesa de décadas, sempre produzindo muito calor e pouca luz, de modo que é muito difícil ao eleitor discernir qual é, afinal, o bom caminho de mudança. Mas como fogueira que incendeia jornais também pode assar batatas, eis que as lideranças dos maiores partidos engendram uma satisfação ao alarido mudancista propondo mais uma vez uma reforma política que, despida da retórica que a embala, se faz em prol de mais controle no topo do sistema, partindo tanto de que ele precisa de mecanismos adicionais para permitir construir maiorias, quanto de que ele se desempenhará melhor se restringir e até abrir mão do engajamento do cidadão. Deu-se o paradoxo: a uma sociedade que clama por mudança se oferece uma reforma política que, se aprovada, resultaria em mais inibição à mudança.

Examinemos o que se propõe: voto em listas partidárias fechadas e financiamento público de campanhas eleitorais. As duas propostas vão na mesma direção: aumentam a capacidade de construir maiorias estáveis e restringem ou eliminam a participação do cidadão  — um sistema menos permeável à mudança, portanto. Pelo voto em listas o eleitor vota em partidos, não em indivíduos. A idéia é enfraquecer os indivíduos candidatos e, sobretudo, os que vierem a ser eleitos, em prol do fortalecimento dos atuais coordenadores da vontade partidária e, então, lograr a construção de maiorias de rotina. O eleitor veria restringida sua participação porque sua vontade de mudança teria de se exercer sobre o resultado do trato digestivo das burocracias partidárias e já não poderia contar com a força rompedora do indivíduo criador. Pelo financiamento público o Tesouro Nacional destinaria dinheiro público aos partidos, em troca de ficarem proibidas as contribuições privadas, sejam individuais, sejam coletivas ou empresariais. Se tudo corresse como se declara pretender, se fortaleceriam as atuais direções partidárias pela centralização dos dinheiros de campanha, extinguindo o poder de captação legal dos indivíduos candidatos e eliminando a participação cidadã no financiamento.

Tudo se passa como se o problema político-institucional mais urgente a resolver fosse essa alegada dificuldade para dar coordenação ao sistema e, para isso, o remédio seria conter ainda mais a liberdade dos indivíduos portadores da novidade, sejam eles candidatos, representantes eleitos ou eleitores. Será?

O sistema político brasileiro vem recebendo propostas e medidas de mudanças para melhor faz trinta anos. Exibidas no quadro abaixo, elas podem ser observadas segundo tenham sido benéficas ou prejudiciais à busca da democracia e conforme facilitem ou dificultem a coordenação.

 

TIPO

MUDANÇA

Efeito sobre a Democracia

Impacto sobre a Coordenação

Devolução de prerrogativas ao eleitor

Eleição direta para governador

Foram benéficas para a democracia, pois se tratava de ultrapassar a “estabilidade” da ditadura militar.

Dificultaram a coordenação e a estabilidade, pois aumentaram as preferências em presença.

Eleição para prefeitos das capitais e outras cidades “especiais”

Extinção da figura do Senador Eleito pelo voto indireto

Eleição direta para Presidente

MUDANÇAS EM PROL DO PLURALISMO

Retorno da liberdade partidária. Fim do bipartidarismo

Foram benéficas para a democracia, sobretudo porque reintroduziram prerrogativas das minorias.

Dificultaram a coordenação e a estabilidade, pois foram mudanças que ampliaram as vozes e os interesses em presença.

Propaganda Eleitoral Gratuita

INCREMENTO E DIVERSIFICAÇÃO DO COLÉGIO ELEITORAL

Voto do Analfabeto

Foram benéficas para a democracia porque o alijamento anterior dos contingentes agregados era contraditório com a presença que já tinham na cena pública política.

Dificultaram a coordenação e a estabilidade, pois trouxeram para o circuito dos votos válidos contingentes novos de preferência.

Voto aos 16 anos

Urna Eletrônica

MAIS ROBUSTEZ À REPRESENTAÇÃO

Dois Turnos

Foram benéficas para a democracia porque contiveram o individualismo exacerbado sem sufocar minorias, dando mais consistência à representação.

Facilitaram a coordenação e estabilidade do sistema, fortalecendo a representação, aumentando a previsibilidade e/ou contendo, na justa medida, a propensão individual à novidade.

Prazo mínimo para Filiação Partidária do candidato

Prazo mínimo de Domicílio Eleitoral

Voto nas Legendas-Listas Partidárias

Cláusula de Barreira

Fidelidade Partidária

Instituto da Reeleição Limitada a UMA

 Se fiscalizada, não prejudica a democracia.

Proibição de Coligações partidárias em disputas proporcionais

Seria benéfica porque não se deve partir de que o eleitor está informado.

Será inócua para a coordenação porque hoje ela não vincula o pós-eleitoral.

 

O quadro é cristalino e mostra a marcha equilibrada dos esforços institucionalizantes que vimos fazendo. Vale notar que a última mudança, a da fidelidade, não por acaso teve de vir via Judiciário, pois o sistema político dera sinais de que esgotara sua capacidade de fazer de forma autônoma as mudanças boas. Tudo indica que o mesmo se dará com a ainda irresolvida proibição das coligações partidárias em eleições proporcionais (deputados e vereadores). Esse esgotamento para a mudança boa reflete não a insuficiência de instrumentos de coordenação, mas, muito ao contrário, a oligarquização precoce do poder Legislativo, que, mais e mais constrangido pela hipertrofia do poder Executivo, se vê impelido a buscar meios de melhor se apresentar em bloco e encontra a resistência desconfiada dos indivíduos interessados submetidos, que temem as conseqüências de dar ainda mais poder aos “chefes”. É nessa linha de atrito que se põem as duas mudanças dessa reforma política.

As listas partidárias são desnecessárias porque ao punir com a perda do mandato aquele que troca de partido a lei já deu aos partidos instrumento que faltava (v. quadro acima), e que é suficiente, para dotar de solidez institucional as dinâmicas partidárias, que antes estavam à mercê de humores individuais, o que abria brecha para barganhas deletérias até mesmo da boa coordenação e permitia conduta fraudulenta para com o eleitor que votara no indivíduo imbuído de motivação partidária. As listas fechadas são desnecessária e inconvenientemente restritivas porque, em primeiro lugar, o sistema já dispõe do voto de legenda, que permite ao eleitor a escolha voluntária de um partido, se ele se der por satisfeito com um voto que já não é senão um voto na lista oferecida. Em segundo lugar, porque não há vantagem em retirar do eleitor, para ceder à liça das burocracias partidárias, o direito de votar em um nome da sua preferência, mormente depois do esforço ainda recente de lhe devolver essa prerrogativa, e na ausência de qualquer indício de que a vigência dela seja empecilho à boa ordem democrática. Em terceiro lugar, com a fidelidade, o candidato/eleito que receber a confiança pessoal do eleitor já está obrigado a buscar o entendimento no âmbito da ordem partidária, devendo a ela, portanto, um grau de obediência que só poderia ser aumentado pela supressão precisamente do elo representado pelo eleitor na cadeia. Ou seja, trocaríamos a escolha do eleitor por ainda mais poder para os dirigentes dos partidos submeterem seus liderados, facilitando o sufocamento de minorias internas que, não obstante, poderiam, pelas mãos do eleitor, se revelarem maiorias sociais.

O financiamento público de campanhas eleitorais é desnecessário e nocivo. Em primeiro lugar, porque o que falta ao sistema não é dinheiro. Em segundo lugar, porque conflita quer com as mudanças que buscaram devolver prerrogativas ao eleitor, quer com aquelas que buscaram incrementar e diversificar o colégio eleitoral brasileiro (v. quadro acima). Ou seja, querem nos fazer crer que será melhor para o sistema levá-lo a prescindir dos benefícios que a participação do cidadão a duras penas incorporado a ele traz ao contribuir financeiramente para o êxito da candidatura que apóia. O financiamento público sonegaria ao sistema um dos mais relevantes elementos para construir vínculos entre ele próprio, os candidatos e os eleitores, indo na rota contrária do que a democracia requer e contrariando a ampliação das possibilidades de contato, engajamento, captação e fiscalização que as novas mídias oferecem. Em terceiro lugar, ao impedir os candidatos de fazer captação de recursos a nova lei os deixa à mercê das preferências das direções partidárias, elas próprias resultado de disputas internas para construir maiorias, maiorias estas que receberiam do Tesouro um apoio que poderia facilitar sua transformação em maiorias facciosas, isto é, aquelas que atuam para suprimir as condições institucionais que permitiriam às minorias internas aspirar com realismo o lugar de maioria no futuro.

É até covardia, mas necessário, argumentar contra essa reforma invocando, ainda, o óbvio: a lei do dinheiro público não vai impedir a entrada pela janela dos dinheiros privados assim como a lei atual não impede o velho caixa dois. Nosso sistema precisa antes é do contrário: obrigar nossas elites partidárias a trabalharem para conquistar o apoio financeiro do cidadão. Ao ter de persuadi-lo, terão de criar mecanismos de participação e fiscalização, o que traria benefícios para todo o sistema. O dinheiro público só iria acomodá-las ainda mais, pois teriam garantido o básico sem oferecer garantias de que não buscariam o plus via caixa dois.

Tudo somado, essa reforma política despojaria nosso sistema de qualidades que já alcançou e não o dotaria de norma nova capaz de debelar problemas que ainda persistem, não obstante venha embrulhada numa retórica valorizadora de ideais e ornada de repulsas à corrupção. Nessa propaganda malsã, as listas fechadas nos dariam partidos ideológicos, mais puros, como se partidos assim fossem resultado da norma política que repele a participação e não da cultura política incorporadora que, ao longo do tempo, traduz e organiza diferenças reconhecidas na e pela sociedade. Propala-se ainda que o financiamento público acabaria com a corrupção e com a dependência aos donos do dinheiro, esquecendo-se que o dinheiro do caixa dois entra nas campanhas pelas mãos de oligarcas, os mesmos que controlam os partidos e suas campanhas, os mesmos que agora querem também uma dotação pública, com o nosso dinheiro.

MAIS PODER AO ELEITOR – eleitor e telespectador são a mesma pessoa

Carlos Novaes, Abril de 2011

O principal problema a enfrentar em nosso sistema político é sua autonomia. Ou seja, o mundo político, em que atuam os políticos, está como que desligado do “mundo da vida”, em que vive o povo. Essa separação permite, de um lado, que os males se acumulem a ponto de a corrupção virar rotina, e, de outro lado, essa autonomia empurra o cidadão para a indiferença e, em seguida, para a desesperança. Como voltar a conectar ação política institucional com o “mundo da vida”, através de uma verdadeira representação? Como extinguir, ou mitigar, a autonomia do mundo político?

Para começar, acabar com a possibilidade da reeleição para o legislativo. Com o fim da política como profissão teríamos a volta da política como representação. Representar é estar no lugar de, e para estar no lugar de é necessário ter ligação efetiva com os representados, atributo que se perde na rotinização da carreira política, facilitadora da corrupção, que leva o político a se concentrar nos próprios interesses. Ao ter de manter laços com a profissão de origem, que lhe provê a vida e para onde terá de voltar, o representante se vê obrigado a uma outra prática política.

A solução não está em esperar pelos políticos enquanto tal, pois eles estão impedidos até mesmo de enxergar o problema. A legenda básica do político médio será sempre: “preciso me reeleger e, se há problemas, corrijamos o comportamento do povo”. Ora, nossa aposta tem de ser no contrário. Apostar todas as fichas nos indivíduos que dão sentido ao povo, único e real protagonista do que quer que vejamos de bom em nossa história (mais recente ou ultra-remota que seja).

Não se pode crer em mudanças que, para darem certo, tenham de contar com o engajamento virtuoso dos que hoje têm uma conduta viciosa. Mudança é aquela que independa da “virtude” do político, e aposte no eleitor, pois um diagnóstico adequado dos males a serem superados em nosso sistema político é, em si mesmo, um combate às idéias desfavoráveis sobre o eleitor brasileiro. A maior parte dos argumentos em prol da mudança do modelo eleitoral é variação do velho “o povo não sabe votar” – logo, é preciso empurra-lo a votar de outro modo. O desafio é outro: são os políticos que têm de ser empurrados a uma outra prática, não o eleitor.

Mais de 20 anos debruçado sobre eleições e cerca de 15 anos de trabalho em televisão, medindo audiência, fazendo testes de programas, avaliando apresentadores, telenovelas, telejornais, minisséries e infantis, para TVs Comerciais,  Públicas e Governamentais, me permitem entender que além de serem a mesma pessoa, eleitor e telespectador são o mesmo sujeito de preferências, vale dizer, fazem suas escolhas sob formato de estrutura muito parecida.

De uma maneira geral, telespectadores e eleitores têm uma primeira preferência e, dela, seguem-se outras. Há um apresentador preferido, mas não significa que não haja um outro. Ou ainda, entre uma novela preferida e o telejornal em um dia de notícia quente, o telespectador terá de fazer uma escolha entre preferências. Com o eleitor se dá o mesmo.

Tal como na rotina do gosto do telespectador, o eleitor também tem uma preferência rotinizada, como se pode observar estudando em detalhes as preferências havidas (ou seja, os resultados de eleições passadas). A história escrita nas urnas mostra que levar a mudar o voto é tão difícil quanto levar a mudar de canal. No caso do eleitor, é difícil leva-lo a mudar porque ele ajuíza tanto a escolha, pondera tanto, que uma vez ela feita segue nela por muitas eleições – salvo acontecimentos extraordinários.  Há uma parcela minoritária mais aberta à mudança, ao experimento, e é ela que escreve as primeiras linhas de uma nova narrativa, que pode prosperar ou não. O voto em Marina Silva em 2010 foi dado por parte desse contingente, por exemplo.

Adotar o voto impessoal em Lista Fechada para eleger os nossos representantes não vai nos ajudar a diminuir a autonomia do mundo político, valorizando o “mundo da vida” porque:

  1. a lista fechada vai aumentar a concentração de poderes nas figuras que hoje estão na ponta da pirâmide da autonomia: os chefes partidários;
  2. a lista fechada vai retirar do eleitor justamente o vínculo entre representante e “mundo da vida”, isto é, o vínculo (mesmo vicário como é hoje) entre eleitor e candidato/eleito;
  3. a lista fechada vai retirar do eleitor o instrumento eleitoral que lhe resta para criar algum tipo de incerteza para esse sistema político oligarquizado.

O que fazer?

Proponho radicalizar o que já temos de melhor: o voto proporcional em lista aberta, que aposta todas as fichas no juízo do eleitor.

1. Cada eleitor teria não Um, mas três votos para Deputado e Vereador.

2. Teria de votar em nomes de um mesmo partido.

3. Os vencedores seriam os mais votados segundo a soma de TODOS os votos recebidos, não importando se o voto recebido foi o primeiro, o segundo ou o terceiro.

Razões para esse modelo alternativo:

1. O Eleitor, assim como o Telespectador tem uma primeira preferência e, então, seguem-se outras;

2. Em geral, segundo o público médio, a primeira preferência é a do mundo dos AFETOS, e resulta da inserção acrítica no mundo, com alto engajamento afetivo e baixo engajamento cognitivo;

3. As preferências seguintes distanciam-se dos afetos, e aproximam-se do balanço mais racional da interação;

4. É essa estrutura que permite explorar as diferenças e distâncias entre a TV que temos, a TV que queremos e a TV que deveríamos ter.

5. Pois bem, o eleitor poderia, democraticamente, dar o primeiro voto para a celebridade ou o ilusionista do momento – não há porque dar tudo por perdido nessa escolha;

6. O erro esta em dar a ele, ELEITOR, apenas UMA oportunidade de realizar suas preferências;

7. Os dois votos seguintes dariam a oportunidade de o eleitor estimular outras áreas do seu SER SOCIETAL, de equilibrar sua escolha, exercendo preferências que também tem e compartilha com qualquer um de nós;

8. Esse mecanismo poderia atenuar o “efeito celebridade”, obrigando o puxador de voto não só a afunilar o voto em si, mas, ao fazê-lo, dispersar sua vantagem pela concatenação não antecipável das segundas e terceiras preferências dos eleitores;

9) Trabalho com a hipótese adicional de que, em suas campanhas, os candidatos seriam levados a se apresentarem em trios, tão mais atraentes/rentáveis quão mais diversificados (celebridade+pensador+moralista), com semelhanças transversas como as que se tem, hoje, nas dobradinhas estadual-federal — que ora têm êxito, ora não o têm), num modelo que ajudaria a consolidar o partido (voto individual com feição de lista);

10) Além de tudo, esse arranjo tem a vantagem de dialogar com nossa cultura política, ao invés de pretender melhorá-la a golpes de martelo de engenheiros institucionais tão inconformados quanto apressados (quando não mal intencionados).

Se combinarmos a essa providência aquela que impede a reeleição para os legislativos, teremos dado um passo resoluto para diminuir a autonomia do mundo político, amarrando-o mais ao “mundo da vida”, que queremos ver realmente representado.

UMA AÇÃO PREVENTIVA DOS OLIGARCAS CONTRA INQUIETAÇÕES QUE SE ANUNCIAM

Carlos Novaes, maio de 2011 

Há um fio exposto na vida política brasileira: a distância entre o mundo dos políticos e o mundo da vida, onde estamos todos nós. A mazela mais sensível dessa exposição é a desigualdade, seguida da corrupção, pragas que a imensa maioria sente presentes e condena com um misto de indignação, impotência e resignação prática.

A ditadura, a inflação e a estagnação econômica (desemprego+miséria) – aspectos da desigualdade brasileira – encapavam precariamente esse fio, impedindo sua completa exposição, porque diante desses problemas, tendo de enfrenta-los na luta pela vida, o cidadão não podia se ocupar dessa distância e se limitava a registrá-la ao fundo, não sem raiva dela.

A sociedade brasileira lutou e, ao longo de décadas, foi eliminando, ou redefinindo de forma menos desfavorável para si, cada um desses problemas.

Na luta contra a ditadura houve ampla unidade.

Na luta contra a inflação houve uma unidade conflituosa.

Na luta contra a estagnação e a miséria extrema não houve polarização significativa, embora tenha havido caminhos cuja complementaridade não fôra antecipada (ao PROER de FHC se somou o BNDS do Lula, e por aí vai – não acho que deva me alongar sobre isso agora).

Pois bem, um dos resultados alcançados nos últimos 16 anos é o fato de que as queixas estão para mudar de patamar. Tendo mais bem equacionados os problemas de consumo de feijão e eletrodomésticos, o cidadão pode levantar a cabeça e descobrir outras fomes. Esse é o resultado das últimas conquistas da sociedade brasileira que todo democrata radical deve comemorar. Deixemos aos petistas os gritos de “eu te dei um prato de comida”, deixemos aos tucanos proclamarem “deves a mim o teu celular”. O que nos importa é que quem come feijão está mais forte, quem fala ao celular se comunica mais direta e abertamente.

Esse fortalecimento e essa disponibilidade para a comunicação potencializam a ação individual, a escolha individual. É do indivíduo que parte a disposição à mudança, mormente quando ele se agrega, o que é sempre mais auspicioso. Nosso sistema eleitoral de lista aberta, com possibilidade de voto numa lista fechada (o voto de legenda não é senão uma maneira perfeita de contemplar quem não vê necessidade de escolher um indivíduo e prefere chancelar um partido) é um sistema ótimo quando se tem em mente as possibilidades que ele dá para acolher, na política eleitoral, a maré de motivações novas que as mudanças sócio-econômicas estão a proporcionar a um eleitor que já pode começar a se ocupar do fio desencapado: os políticos estão lá, de costas para nós; nós estamos aqui, de frente para os problemas.

Poder votar num indivíduo, na lista aberta, é contar com a possibilidade de gerar um dínamo de mudança para além das fortificações oligárquicas construídas pelos profissionais da política. Mas eles são animais de matilha, farejam longe. A lista fechada é a manobra quase instintiva operada no intuito de conter o potencial de mudança dos novos tempos. Por ela, os oligarcas e suas máquinas asseguram ainda mais sua capacidade de antecipação, pois o instinto de todo ser apegado a rotinas é diminuir a incerteza. Com a lista fechada eles oferecem um prato feito a quem tem fomes variadas, sob o argumento de que com menos variedade o faminto tem menos trabalho para escolher!

Democratas incautos vêm caindo na armadilha seduzidos por um ou mais dos seguintes argumentos ou “constatações” fantasiosos:

1. a lista fechada fortalece os partidos (como se eles fossem fracos! – olhe à sua volta leitor, onde está a fraqueza deles, que tudo arrancam de nós, dos executivos e do judiciário?);

2. a lista fechada leva o eleitor a votar em programas (como se ela operasse o milagre de fazer surgir práticas programáticas ali onde vão estar os mesmos políticos a pedir o voto);

3. a lista fechada vai baratear as campanhas (confundindo custo de campanha com preço da vaga vitoriosa – este vai, por certo, aumentar!).

Do ponto de vista democrático, um dos resultados contraproducentes da lista fechada vai ser a diminuição dos pontos de contato do mundo político com o mundo da vida: menos candidatos, logo, menos motivações engajadas no período eleitoral. Ao contrário do que se pensa, aqueles candidatos “sem chances” são fundamentais no processo. O entusiasmo deles, por pequeno que seja (e, em geral, é grande, pois são quase sempre novatos) agrega interessados, amplia a superfície de contato do eleitor com a dinâmica eleitoral (mormente quando se tem o beneficio do voto obrigatório). Numa sociedade em mudança, essas motivações novas podem surpreender e é desse clima que surge, por exemplo, a idéia oportuna das candidaturas avulsas. Ora, a lista fechada vem na contramão de tudo isso, tornando ainda mais difícil mudar. Em suma, é uma reforma contra a mudança.

O nosso modelo atual, com a lista aberta e com voto de legenda, mais as candidaturas avulsas, oferece um arranjo que permite ao eleitor valorizar minorias partidárias, fortalecer direções partidárias já instaladas ou valorizar ações político-eleitorais independentes de partidos. Pois bem, já temos lista aberta com voto de legenda.  Só faltam as candidaturas avulsas. Se, além delas, obtivermos o fim da reeleição para os legislativos, teremos construído um solo fértil à mudança virtuosa de nossa representação política, inundando-a de mundo da vida, trazendo-a para perto de nós.

Um detalhe final: observe o leitor que os legisladores estão muito interessados em acabar não com a reeleição DELES, mas com a correta reeleição dos executivos. Não é esclarecedor? Eles querem acabar com a reeleição limitada benéfica para o mundo da vida, mas que é hostil ao mundo político profissional, pois a reeleição para os executivos limita a fluxo de cadeiras que cada um deles quer disponível para si mesmo, pois ficam pulando de galho em galho para não largar o osso.