MUITO BARULHO POR NADA — FALÁCIAS

Carlos Novaes, 27 de outubro de 2014

 

É raro que a explicação para o resultado de uma eleição caiba tão bem na frase “fulano ganhou porque teve mais votos”, pois a diferença entre Dilma e Aécio foi de meros 3,459963 milhão de votos, em cerca de 113 milhões de votantes. Não obstante, não faltam nos jornais de hoje, bem como nos maiores portais de Internet, explicações de entendidos para a vitória de Dilma e/ou a derrota de Aécio, quando qualquer pessoa ajuizada enxerga a impertinência de se abordar o resultado segundo vitorioso  e/ou derrotado. Afinal, se irrisórios 1,729983 eleitores tivessem deixado Dilma para sufragar Aécio, teria sido ele o vencedor, margem que desautoriza qualquer “análise” segundo os parâmetros mais conhecidos e cobre de ridículo autores de elucubrações empoadas, notadamente as que tem por base a noção de “classe”.

Não há que falar em vitória ou derrota segundo “classe” se os dois contendores receberam votações significativas de todo o espectro da pirâmide, mormente nos estados em que o eleitor vive em grandes cidades, é mais escolarizado e tem emprego formal, ou seja, vive como assalariado numa inserção de classe urbana atravessada pela controvérsia da informação. Alguém só pode dizer o disparate de que Dilma ganhou graças à classe tal, ou que Aécio perdeu porque não seduziu aquela outra, se passar por cima do fato de que a outra metade da mesma classe teve comportamento que o mesmo observador tem de ver como oposto ao da primeira metade… Explicações de corte regional tampouco fazem sentido, pois mesmo ali onde houve diferença grande em favor de Dilma, a variável que explica não é propriamente a localização geográfica do eleitor, mas a presença da assistência social direta do governo, que gera vínculos propriamente governistas — ou seja, se Aécio tivesse ganho e continuasse essa assistência social, dentro de quatro anos ele disputaria a reeleição com vantagem sobre o adversário nessas mesmas regiões.

Sequer a polarização boboca de “continuidade” versus “mudança” explica o resultado, pois há muita gente que votou em Aécio porque acreditou que ele continuaria os programas sociais e as obras de infra-estrutura em andamento; assim como Dilma recebeu votos de quem acreditou que ela vai fazer mudanças na direção em que os mudancistas fariam, como por exemplo a diminuição da carga tributária ou a relação mais estreita com os outros entes federativos para melhorar isso ou aquilo. Denúncias de corrupção tampouco podem sustentar explicações, pois a vitória coube justamente à candidatura atingida mais diretamente pelos escândalos mais recentes, ainda que, ao fim e ao cabo, nem mesmo a hipótese de que o resultado seria outro se a eleição se desse não no dia 26 passado, mas no próximo dia 30, pode ser afastada com convicção. Em suma, o resultado tem ares de um jogo de dados contra o relógio.

Mas se o resultado numérico apertado não oferece material para sua própria explicação, essa falta de explicação precisa ser decifrada; e o que a decifra explica também os altos e baixos de uma campanha aparentemente vertiginosa: a semelhança entre as duas candidaturas. Elas criaram falsas divisões, abismos de superfície, para, ao final, empatarem o jogo, apartando meio-a-meio o eleitorado, precisamente porque são vetores paralelos equivalentes de um mesmo projeto, o projeto de ser governo para ocupar os postos de mando e, de posse deles, defender os próprios interesses e, aos trancos e barrancos, tocar o que resta do pacto gradualista conservador instituído pelo Real.

Os eleitores foram apartados, não polarizados — e é por isso que em duas semanas ninguém mais vai se importar com o resultado, sendo outra grande bobagem toda essa conversa na mídia em torno da ideia de “unir um país cindido” — o que nem seria desejável, aliás. Não houve cisão real nessa rixa em que o que não foi fumaça revelar-se-á espuma, ainda que não se deva desconsiderar os ressentimentos permanentes, lastro antigo das raivas e antipatias que usando a eleição como pretexto trouxeram à luz aquilo que ficava intramuros e agora aflora nas redes sociais. A internet construiu uma nuvem de neo-intimidade que tem permitido ver as pessoas por dentro…exposição que, felizmente, vai encorajando-as a exibir-se nas ruas quase como são. Aliás, esse estado de coisas permite esclarecer outra falácia, a das “amizades rompidas”, pois elas se romperam não pela opção por Dilma ou Aécio, mas pelos motivos e pelas formas em que se deram essas escolhas: houve gente que descobriu que a pessoa amiga era outra… o que é outra maneira de iluminar a falta de diferença entre as duas candidaturas.

Tudo somado, Dilma continua presidente para governar um Brasil igualzinho ao Brasil de antes. Ela terá com o Congresso dos representantes profissionais as mesmas dificuldades que Aécio teria, sendo que até os articuladores dessas dificuldades serão os mesmos que azucrinaram, azucrinam e azucrinarão a vida de quem lhes pareça vantajoso azucrinar: essa é a razão de ser da vida política deles — e assim será enquanto nós não pusermos fim à representação como profissão. É para esconder as marcas nas cartas desse baralho sovado que a esperteza de alguns e a ignorância de muitos inundam a mídia com a falácia da Reforma Política.

Neste BLOG há vários posts em que eu explico que uma reforma política não será boa se: a maioria dos parlamentares de moto próprio concordar com ela (espontaneamente eles só instituirão regras novas que não os prejudiquem); se as virtudes que ela almeja dependerem do comportamento virtuoso dos políticos profissionais; se o que ela pretender corrigir for a conduta do eleitor (como é o caso de todas as propostas de mudança no modelo eleitoral para escolha de representantes — o nosso modelo de lista aberta, com voto individual e de legenda, é ótimo, o que não presta é a rotinização pela reeleição do representante); se eles arrancarem mais dinheiro público para si (com o chamado financiamento público de campanhas); se eles instituírem mandatos de representação ainda mais longos para si mesmos (o que os deixará mais distantes da sociedade); se eles embolarem todas as eleições na mesma data (aumentando a dificuldade de ajuizamento partilhado/conversado do que está em jogo e facilitando a vida dos marketeiros).

Enfim, quase nada aconteceu e abre-se um novo período de falácias e empulhações que só dará vez a uma real e necessária divisão na sociedade brasileira quando as ruas voltarem a se agitar — desde que os manifestantes tenham aprendido com os erros das agitações anteriores. Pois é.

 

NOTAS

Eduardo Cunha, um político profissional objetivo, diz que o PMDB não trocará convicções por cargos. Tá certo, as convicções deles SÃO os cargos! Seria como trocar seis por meia dúzia…

Há quem tenha votado para livrar a Fazenda do Armínio Fraga, mas se a Dilma nomear para o cargo um presidente do Bradesco ou assemelhado…

A primeira prova de que nada aconteceu – o Lobão já declarou que aquela história de ir embora do Brasil não é bem assim…

 

 

3 pensou em “MUITO BARULHO POR NADA — FALÁCIAS

  1. Anderson Thadeu

    Novaes, como podem ser vetores do mesmo projeto (PT e PSDB) se o tratamento dado pela mídia tradicional aos seus partidários é oposto? Considero tímidos, embora de necessidade indiscutível, programas como o Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida e a ampliação das vagas e mudança nas políticas de ingresso no Ensino Superior, que no meu entender foram as principais políticas conduzidas pelo PT e que o diferenciam dos demais partidos. Embora tímidos, acredito terem sido suficientes para fazer as múmias do Brasil elitista colonial saírem dos porões e destilarem seu veneno regado, principalmente, à preconceito, discriminação e incitação do ódio.
    O meu desgosto com o PT nasceu, floresceu e alcança raízes profundas quando percebi que faziam, quando chegaram ao poder, diferentemente do que pregavam enquanto oposição, o mesmo fazer político dos já acostumados ao poder…Lula tinha o povo ao seu lado, um índice de aprovação elevadíssimo para os padrões históricos e, mesmo assim, foi capaz de perder a possibilidade de fazer as reformas que o país necessita. As reformas daquela ocasião são as mesmas que pleiteiam hoje, com a diferença de que a eleita não acumula aprovação tão grande como aquela, é reportada por um mídia que não conhece as atribuições de uma mídia e que depende do apoio de uma bancada ainda mais escusa que a anterior, visto que cresceu a bancada da bala, ruralista, fundamentalista e, por quê não dizer, oportunista.
    Concordo com você sobre a necessidade de voltarmos a atenção para o legislativo e impedir seu apego eterno (reeleição) ao poder. Como eles não farão isso, concordo novamente: cabe ao povo redescobrir o caminho das ruas.
    Eu sugeriria algo mais: o que mais me espantou, e espanta, nessas eleições e em toda discussão que permeia a sociedade brasileira, é a falta de ( e interesse por) informação, conhecimento histórico e senso crítico, além da falta de vontade ao ouvir e dialogar.
    Não enxergo um futuro promissor…Já me vejo daqui a quatro anos em meio a toda essa esquizofrênica confusão novamente, talvez com ares piores.

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  2. Rodrigo

    Mas que as falácias e as empulhações tenham vida curta no debate político brasileiro. São os meus votos.

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  3. Heber

    No final eu ri alto!

    A primeira prova de que nada aconteceu – o Lobão já declarou que aquela história de ir embora do Brasil não é bem assim…

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