DESIGUALDADE, MUDANCISMO E VOTO — 3 de 4

Falsa polarização, pseudo luta de classes e pemedebismo como tautologia

Carlos Novaes, 27 de novembro de 2014

Em artigo publicado neste Blog no dia seguinte à eleição, em 27 de outubro, afirmei que na polarização eleitoral havida, o que não fora fumaça se revelaria espuma, pois o acirramento que dividira as classes sociais de cima a baixo não era para valer, sendo ridículo pretender invocar a luta de classes para explicar o resultado. Tempos depois, a revista Piauí de novembro trouxe o artigo do Marcos Nobre já mencionado no post anterior desta série, no qual ele afirma que “a polarização voltou” e segundo um acirramento que é para valer, pois assentado na luta de classes.

O caráter inconciliável de nossas opiniões ganha força se o leitor considerar que enquanto ele supõe que o papel atual do PMDB na política oficial brasileira se definiu no curso dos anos 1980 na forma de uma dinâmica parlamentar, depois generalizada como pemedebismo para o sistema político enquanto tal; para mim, o lugar atual do p-MDB na política brasileira está dado desde 1965 e não segundo uma dinâmica parlamentar, mas segundo a combinação de uma interdição vinda de cima com uma vigorosa e tenaz inserção eleitoral enraizada embaixo, numa dinâmica política que sempre esteve ligada ao âmago da sociedade brasileira, bem como conectada ao processo de formação e espraiamento de uma cultura midiática conservadora, como pretendo ter demonstrado nos dois primeiros artigos desta série.

Nas linhas que se seguem vou tentar articular de modo profícuo esse conjunto de temas e entro na matéria retomando o final do artigo imediatamente anterior: como o Brasil e o chamado mundo desenvolvido tem apresentado traços de família cada vez mais nítidos, parece clara a impertinência de comparações com base no rosário de déficits do nosso “atraso” em face a um suposto mundo “adiantado”. Já não há lugar para idéias como a de uma “luta de classes à brasileira”, especialmente quando ela vem apresentada  com uma capitis diminutio do tipo “foi a luta de classes que o país conseguiu produzir”, como diz Marcos Nobre no artigo mencionado.

Ao tentar dar alguma rosca ao parafuso sem rosca que é o seu pemedebismo, nosso autor voltou para a ferramentaria da revolução industrial e de lá saiu sem a reforma política a que de início aludira (menos mal!), mas, em troca, trouxe uma luta de classes em toda a sua imperfeição tropical e, por isso mesmo, polidamente anexou, a um convite para entrarmos na platéia do telecatch que é a polarização PT-PSDB, um pedido de desculpas pelo nosso atraso diante do mundo clássico da verdadeira luta de classes (que já não se vê em parte alguma).

Quem leu com atenção o artigo, porém, não pode ter deixado de perceber que o autor nos pede mais do que aceitar essa esquisita “luta de classes à brasileira” — ele pretende que a aceitemos sem sequer nos apresentar as classes que estariam em luta. O máximo que nos concede é: ou uma, e só uma, das cinco “classes sociais” do Instituto de Pesquisas DataFolha, parte de um aparato técnico interessante, mas construído para segmentar amostras de pesquisas de opinião e que não pode servir de dublê a uma teoria de classes voltada à missão impossível de resgatar a luta de classes (ceteris paribus); ou um certo “rochedo lulista”, formulação saída da sopa rala oferecida por André Singer nessa pequena calamidade intelectual, não obstante possa ser acadêmica à brasileira, que é o seu livro sobre um presumido lulismo, “conceito” inconsistente, entre outras razões, porque depende de um realinhamento eleitoral que postula, mas não existiu, como já demonstrei aqui. De sorte que, salvo melhor juízo, Nobre nos apresenta uma limitação sua (não conseguiu identificar as classes) como se fosse uma limitação da realidade (o Brasil seria atrasado e faria a luta de classes imperfeita que seu atraso deixa fazer).

Lamentavelmente, a única luta que ele próprio conseguiu identificar se dá dentro de uma mesma classe, cindida ao meio, segundo as pesquisas do mesmo instituto. Ora, mas se a “classe média intermediária” do DataFolha se dividiu ao meio (como, mutatis mutandis, todas as outras), cada metade indo em direções “opostas” na polarização que o autor enxerga na disputa presidencial, não parece muito produtivo insistir que estamos diante de uma classe, a menos que encaremos uma das metades (ou a ambas) como alienada de seus próprios interesses de classe, aspecto que o autor não enfrentou, pois se limitou a nos contar o que supõe sejam os elaborados cálculos mentais utilitários que a turma fez. Se, como eu, o leitor entender que a polarização havida é fajuta, pois PT e PSDB são vetores de um mesmo projeto de mudança incremental conservadora, a classe cindida do Marcos Nobre não nos é útil porque nem está em luta propriamente de classes, nem se presta a explicar o porque de cada metade ter escolhido um dos vetores da disputa.

Na citação abaixo reúno trechos diferentes do artigo de Nobre para facilitar a discussão do que suponho ser a inconsistência central da sua análise e apontar o quanto essa inconsistência deriva do emprego circular do tal pemedebismo (o que, é claro, não exime o leitor de ir ao texto integral):

“Essa é a luta de classes que o país conseguiu produzir. Junho de 2013 foi o marco inaugural dessa fase. [§]. Assim como em junho de 2013, ao longo de 2014 muita gente se espantou com a virulência dos ataques e das defesas das diferentes posições. […]. A virulência da disputa social ainda não arranjou o sistema político no sentido das ruas […]. Em sistema político pemedebizado, a polarização quer dizer simplesmente que a disputa pelo cargo de síndico é para valer e não só para constar […]. O PMDB…fortaleceu sua posição [no] sistema político pemedebizado. […]. …[A] volta da polarização para a eleição de síndico pode não significar nada além de um novo impulso e de uma nova máscara para a geleia geral do pemedebismo.”

Nobre moldou uma luta de classes que curiosamente não se presta a contrastar o sistema político, mas adere a ele. O problema é que, para poder funcionar, esse arranjo analítico, além de tornar supérflua a luta de classes cuja volta celebrou, tem de transformar a  virulência das ruas numa fantástica busca comum pela não-mudança. A razão disso tudo é o fato de Nobre ter comprado o discurso oficial de que o pacto diminuiu a desigualdade (na verdade, melhorou a situação dos de baixo) sem acarretar perdas a ninguém, o que o empurra a atribuir ao voto de todo mundo motivações conservadoras segundo elaborado cálculo utilitarista — é por isso que sua “classe média intermediária”, pedra angular do artigo, vem dividida entre a metade que votou em Aécio pelo “congelamento da grade de classes” e a outra metade que foi de Dilma para “consolidar a posição recém-alcançada” — ou seja, espantosamente, num país sabidamente insatisfeito, ninguém teria buscado a mudança.

Segundo a implausível “dialética” dessa polarização à brasileira, a classe fundamental do processo se dividiu acirradamente no voto apenas para se manter unida no mesmo propósito: que tudo fique como está. Ora, uma luta de classes que se dá na esquizofrenia da mesma classe, com as duas metades brigando irreconciliavelmente não para alcançar objetivos díspares, mas objetivando o mesmo resultado, isto é, congelar a realidade, uma luta de classes assim é, não por acaso, a própria definição do pemedebismo, raciocínio circular com o qual nosso autor solda a sociedade com o sistema político, não havendo entre os dois hemisférios nenhuma contradição a resolver. É uma pena que essa maneira de enxergar antes desmancha do que constrói seja a luta de classes, seja a polarização real pretendida pelo autor: tudo gira em falso.

Ao se render ao discurso legitimador do pacto, que torna a sociedade refém de suas próprias limitações (do pacto e da análise), Nobre fica impedido de atinar para a circularidade em que se enredou e, então, termina seu artigo especulando hipoteticamente que a “polarização para a eleição de síndico pode não significar nada além de um novo impulso e de uma nova máscara para a geleia geral do pemedebismo”…. Ora, não é que “pode não significar”; o artigo depende de que a polarização apontada coincida com o pemedebismo presumido, pois de antemão ninguém quer mudança senão para que tudo fique como está. Em outras palavras, o autor não viu, mas ele próprio já fez acontecer o que teme que possa vir a acontecer.

Tudo fica bem mais simples de entender se encararmos que junho de 2013 não foi um raio em céu azul, um acontecimento descolado de tudo, mas um movimento de descontentes também saído das perdas impostas a essa “classe média intermediária” (os “vinte centavos”, a corrupção e tudo o mais, lembram?) pelo pacto incrementalista conservador partilhado por Dilma e Aécio: ao incrementar a vida dos muito pobres conservando para os muito ricos os mecanismos pelos quais eles auferem e acumulam toda a sua riqueza, o pacto aumentou o sofrimento das camadas médias, que vem pagando o pato com a degradação da qualidade de vida nos maiores centros urbanos, perdas que o aumento do poder de consumo não chega a compensar.

Como não há luta de classes coisa nenhuma, mas mera polarização governo-oposição no âmbito de um conflito distributivo, os eleitores se dirigiram ao guichê que lhes pareceu mais propício à mudança, não à estagnação (quem quer estagnação é o p-MDB, o que boa parte dos eleitores ignora). A polarização que os dois finalistas motivaram nasce da desinformação e é falsa pela simples razão de que não há diferença entre os dois lados da disputa, que nada tem à oferecer senão a continuação, aos trancos e barrancos, do pacto a que se deixam amarrar.

Sem que se estabeleça quais são as classes em luta e, pelo menos em linhas gerais, o que elas tem como projeto, não há base para se falar em luta de classes e o que se tem é conflito distributivo, ou seja, conflito em torno do quanto cada um apropria da riqueza social produzida, mas sem realizar politicamente que a riqueza produzida é justamente social. Foi dessa maneira geral que tratei de “classes” em vários de meus textos neste Blog nesse intervalo entre agosto e novembro de 2014. Por exemplo, num post de 8 de novembro:

os muito pobres, embora se mostrem felizes porque o pouco que receberam com o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida é mais do que tudo o que jamais haviam recebido, e quase abarca o que a desgraça em que viviam lhes permitia sonhar (a relatividade ilusória da felicidade joga aqui o seu papel), esses pobres, ainda assim, não podem deixar de estar insatisfeitos com a vida que levam e, sobretudo, deploram a vida que hão de continuar a levar. Os neo-pobres foram parcialmente contentados porque graças ao incremento do salário mínimo e à redução do desemprego julgam ter firmado o pé na lama (antes escorregavam), mas prudentemente temem recuos e querem muito mais, claro. As classes médias mostram toda a sua diversidade ora com os reconhecimentos que a solidariedade impõe, ora com a fúria de quem se vê espremido numa situação urbana cada dia mais hostil ao gozo do que pode haver de bom na vida, ora ainda com o regozijo de quem alcançou esse ou aquele bem de consumo durável. Os ricos sofrem com a desigualdade porque também vivem na área urbana degradada, e mais: estão tendo de conviver cada vez mais com quem é pobre — sofrem porque estão a ver semelhantes por toda parte. Parte dos muito ricos (os menos muito ricos dentre eles) sofre pelas mesmas razões dos ricos e, ainda, porque começa a temer que a movimentação da tigrada venha a avançar sobre sua riqueza e o modo de acumula-la, enquanto protesta contra o preço que paga pela segurança precária.”

Naturalmente, uma descrição como essa, e outras que fiz antes, não me autoriza a falar em “luta de classes” precisamente porque essas classes não permitem, salvo melhor juízo, invocar espectros clássicos, saídos da história do internacionalismo proletário, raciocínio que, suponho, vale também para os países desenvolvidos em que o povo foi às ruas recentemente, como os mencionados no artigo anterior. Nas linhas a seguir tento explicar porque penso assim.

O potencial transformador das energias, frustrações, aprendizados e esperanças reunidos na luta internacionalista dos trabalhadores (a luta de classes) ao longo do século que vai dos primeiros levantes ludistas (1810) até a votação dos créditos de guerra pela social-democracia alemã (1914), só foi irremediavelmente vencido ao preço de duas guerras nacionalistas (e só chamadas mundiais, portanto, não exatamente porque abarcaram todo o mundo, mas porque foram realizadas pelo impulso do capital à acumulação contra o outro impulso realmente mundial em jogo, o do internacionalismo proletário) e pela consolidação concomitante, e não menos nacionalista, da nova autocracia saída da revolução russa, de 1917. Aliás, não foi à toa que enquanto Stalin desviava a energia revolucionária da Rússia para o socialismo num só país, Hitler tangia as energias utópicas frustradas na Alemanha para o nacional-socialismo: ambos se apoiavam perversamente nas energias da luta socialista, que recalcavam, para consolidar regressivas comunidades imaginadas em chave contraditoriamente “anticapitalista” – só mesmo via totalitarismo.

Submetido aos nacionalismos, o europeu comum brutalizado, miseravelmente confinado na figuração de sujeito nacional ao mesmo tempo em que trazia a memória secular do fluxo de lutas que resultara no ativismo internacionalista, quando apóia o massacre de judeus e ciganos, o faz também porque, aos olhos dele, eles possuíam o que a derrota da luta de classes lhe havia negado: coesão sociocultural, propriedades e riqueza líquida alcançadas sem a necessidade de pátria e, no limite, contra ela. Tragada pela máquina de propaganda, essa combinação foi expelida para consumo simbólico, sendo processada como a representação monstruosa de tudo o que o internacionalismo proletário vencido prometera e não tinha entregue, arrastando os aderentes a expiar no fluxo frenético da “solução final” de Hitler o recalque das energias e esperanças de quase 150 anos de luta social viva — o estrago tinha que ser grande, pois visava sufocar uma grandiosa alternativa para a humanidade; por pouco clara que estivesse a maneira política de realizá-la, sem esquecer que o capital tampouco oferece uma, já que todas lhe servem.

Se foi assim, parece necessário reconhecer que a reconfiguração da ordem do capital ocorrida entre 1920 e 1950 foi a contrapartida cobrada aos capitalistas nacionais por todo o morticínio em ritmo industrial, destruição material e falsificação simbólica que haviam sido necessários para derrotar a luta de classes (sinônimo nesse texto de internacionalismo proletário), ou seja, as perdas de patrimônio, as transferências de riqueza e as concessões culturais em favor dos trabalhadores havidas naquele período em todas a principais economias nacionais do mundo compuseram o preço que o capital pagou por ter derrotado a luta de classes, e não a realização local de conquistas dessa luta, cujo resultado transformador só poderia ter sido internacional. Tanto é assim que, apartado definitivamente em nações, o mundo que emergiu ao término desse período de massacre zeloso, concertação social e engenho tecnológico foi o mundo de um tempo reconfigurado, no andamento do qual a luta de classes, uma proposta plausível entre 1810 e 1914, já não tinha lugar: tudo o que era sólido se desmanchara no ar e o capital herdara o mundo.

Por isso mesmo, desde 1950, com ênfase à partir dos 70, por mais que os indivíduos nacionais se organizem para preservar as “compensações de guerra” recebidas (o maio de 1968 e as lutas contra Thatcher foram o karaokê do canto de cisne entoado em uma primavera 120 anos antes), os capitalistas mundializados, com apoio nos seus Estados respectivos, vem recolhendo o resultado daquele misto de recuo e revés na retomada da concentração da riqueza privada, que só faz aumentar [sendo interessante observar que enquanto na Alemanha o colapso militar obrigou ao mea-culpa pelos seis milhões do Holocausto (como depois, na Argentina, o colapso da ditadura na derrota militar das Malvinas permitiu a prisão dos assassinos e torturadores) ; na Rússia, a implosão engaiolada do bunker soviético pela “KGB” (o p-MDB russo) vem impedindo o acerto de contas dos milhões de mortos no Gulag (tal como a Anistia da nossa transição impede a punição dos torturadores e dos empresários bandeirantes da OBAN)]; e a riqueza aumenta segundo mecanismos tais que os grandes problemas da ordem do capital estão a reclamar mais do que nunca uma solução mundial: lá atrás, a luta de classes foi uma saída mundial plausível, ainda que difícil; agora, em que a reestruturação industrial pela tecnologia, o peso predominante do setor de serviços e as variegadas inserções nacionais das camadas médias fizeram caducar a proposta da luta de classes, a saída tem de ser encontrada com outras formas de luta, momento tempestuoso em que não tem faltado novas regressões nacionalistas como refúgio avestruz ante o cada vez menos contornável caráter mundial do desafio. Dito isso, voltemos o foco para o Brasil.

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