DILMA JÁ NÃO FAZ DIFERENÇA

Carlos Novaes, 13 de setembro de 2015

 

Venho insistindo que a crise econômica é real e a “crise” política, fajuta, entendimento que é o oposto da imensa maioria dos comentadores, que têm nutrido a desorientação quase geral propagando dois equívocos: o de que o país precisa de um “novo bloco de poder”, ou seja, a “crise” política seria real; e o de que a crise econômica comanda essa “crise” política encarada como real. A plausibilidade de ambos os equívocos decorre de uma mesma paixão, manipulada cuidadosa e milimetricamente pela razão cínica que fervilha na nuvem compartilhada por profissionais e operadores simbólicos da nossa política profissional: a paixão de que o culpado pelos nossos problemas tem nome e sobrenome, Dilma Roussef. Antes de enfrentarmos a relação entre as duas chamadas crises e o papel da infausta Dilma nela, convém recapitular esta decisiva semana que passou: aberta com o artigo de FHC no domingo passado, no qual nosso dublê de sociólogo “teorizou” sobre a suposta necessidade de um novo “bloco de poder”, a semana foi coerentemente encerrada com a notícia da ida de Temer para a Rússia, viagem a ser feita com pose e entourage de chefe de estado (nem em sonhos eu poderia pedir ilustração mais fiel às minhas reflexões! –*). Mediando esses dois extremos que se tocam, tivemos ainda, nesta semana:
1. a reunião em que o p-MDB repactuou suas disputas internas com a decisão de negar a Dilma tudo o que tiraria o país desse inferno, mas que deverá mais adiante ser concedido para a glória “salvadora” de um governo Temer, “demonstrando-se”, assim, que a culpada exclusiva do desgoverno era mesmo Dilma, inflando as certezas dos idiotas, que em seu júbilo estarão cegos para os sofrimentos do povo pobre;
2. o rebaixamento da nota econômica do Brasil, por uma dessas agências internacionais que avaliavam como boa a situação daqueles que quebraram o mundo em 2008 (a esse respeito, o comportamento de certos “analistas” tem sido repulsivo, especialmente à luz do que escreveram naquela altura);
3. a formalização, pela PF, de que não há provas formais de envolvimento do Lula na Lava Jato (incautos acham que essa notícia da PF foi contra Lula, caindo no despiste da recomendação de que ele precisaria ser ouvido…, recomendação que o desgasta, é verdade, mas traz, a contrapelo, a absolvição dele!); e, finalmente,
4. a ida desse desgastado e aliviado Lula para a oposição, se antecipando lá da Argentina a um governo que pode sair do “novo” bloco de poder sugerido pelo pouco imaginativo FHC, se Dilma cair.

Diante desse “acerto” geral e de suas consequências para 2018, Dilma se tornou irrelevante e sua queda quase que só depende de um pretexto jurídico, para o qual Hélio Bicudo forneceu o amparo da sua autoridade, num rompimento cabal com o lulopetismo, rompimento este cujos prós e contras Bicudo ruminou por longos vinte e dois anos… — ninguém pode dizer que esta não tenha sido uma decisão maturada, não é não? **. Voltemos às duas crises.

A ideia de que a “crise” política decorre da crise econômica, de que a segunda explica a primeira, teve aceitação fácil por duas razões: primeiro, porque um certo marxismo de manual se tornou a ferramenta mental básica dos leitores de jornal, digam-se eles de esquerda, ou não; segundo, porque o desmanche do pacto do Real se impõe, de fato, como desarranjo para o sistema político que o operava. Não obstante essa derrocada do pacto — em torno do qual os condôminos PT e PSDB se digladiavam (sem motivo outro senão a mera e simples disputa pelos rentáveis postos de poder) — implique um desarranjo na ordem política profissional que nele se sustentava, não há razão para derivarmos dela, da derrocada, a “crise” política em que os profissionais e seus analistas pretendem nos fazer acreditar que o país submergiu. É que o motor da “crise” fajuta é a Lava Jato, não a economia. Não fosse a Lava Jato, nem os tão condenados erros de Dilma seriam tão condenados, nem a “calamitosa” situação econômica seria tão calamitosa aos olhos de quem faz o alarido do fim do mundo. Tudo se arranjaria de modo a procrastinar as consequências políticas da situação econômica adversa, numa fuga para a frente em que os mesmos atores profissionais de sempre buscariam ganhar tempo para mais um acerto como aquele que o Real instituiu e ao qual o lulopetismo aderiu formalmente em 2002. Em outras palavras, não fosse a Lava Jato, a erosão do pacto do Real não ficaria tão clara como ficou e os atores comprometidos politicamente com a manutenção da nossa desigualdade (governo e oposição) teriam tempo para engendrar, com calma, um outro arranjo, uma vez que a sociedade brasileira, embora pareça muito engajada, está inerme, pois desprovida de vetor político que lhe permita sair da crise com um viés transformador, traída e embrulhada que foi pela política dos profissionais e de líderes que aspiram chegar lá.

A ação liderada pelo juiz Sergio Moro se impôs como uma variável não controlada e colocou o sistema político profissional em polvorosa, ao mesmo tempo em que forneceu a munição apropriada (e merecida) para o abate oportunista (sempre o é) do lulopetismo, condômino incômodo, que não sabia se comportar na piscina e insistia em ocupar as áreas de festa e, ainda por cima, com churrasco e pagode… Em outras palavras: com a Lava Jato, não só o PSDB, na oposição, viu a oportunidade de suplantar o PT, como também os chefes do p-MDB (Renans e Temers), na situação, fiéis da balança no pacto que “polarizava” PT e PSDB, se viram apanhados num fogo cruzado, e precisaram de tempo para resolver o melhor a fazer diante da junção adversa de estarem na condição de governo num momento em que seria melhor estar na oposição e, por isso mesmo, tendo de enfrentar uma dissidência interna (Cunha), que viu antes deles a oportunidade que se abrira. A solução foi ganhar tempo, e esse tempo foi o martírio remanchado da frágil e incapaz Dilma, para o qual foram mobilizadas multidões religiosas de inocentes úteis, convidadas a inundaram ruas e praças do país para mais uma realização exemplar do rito sacrificial de que o mito primordial de Abraão se fez feixe: o que não falta é gente implacável, seja nas ruas, seja nas redes sociais. E tudo para cortar a cabeça errada!

Em síntese, o martírio de Dilma teve duas manobras e um lançaço final: primeiro, atribuiu-se a ela a crise econômica; segundo, negou-se a ela todos os instrumentos para combater essa mesma crise, operação na qual se transformou o Orçamento da União em peça econômica, quando ele é, e sempre foi, a expressão contábil de um arranjo político. Quando Dilma, acertadamente, pediu a CPMF para fechar o rombo, negaram; em seguida, quando ela escancarou a patranha enviando ao Congresso um orçamento com déficit, foi imediatamente acusada de se recusar a governar, quando são eles que a tem impedido de fazê-lo! Emparedada, recebeu o lançaço final, na forma de dois recados enviados por Lula desde o outro lado do rio da Prata: primeiro, ele sacramentou o abandono da “defesa” do ajuste de Dilma (ao qual de início apoiava porque ainda apostava suas chances de 2018 numa recuperação econômica sob Dilma) e voltou a envergar a casaca surrada de defensor dos pobres; segundo, acalmou o establishiment ao indicar que sua ida às ruas será para ganhar força para 2018, e não para desestabilizar o “novo” governo do condomínio e, muito menos, para pôr em risco a hegemonia (ou seja, Lula mostrou que não vai abandonar o bloco de poder ao qual aderiu em 2002: o bloco é o mesmo, apenas muda, talvez momentaneamente, o protagonista de turno).

Sem Lula, sem o PT, sem os empresários, sem discernimento para entender onde está metida, sem laços com o eleitorado e cheia de pedras técnicas pelo caminho, onde Dilma encontrará apoio para prosseguir? E a que, e a quem, serviria essa continuação, uma vez que seu governo já acaba de ser totalmente sarneyzado e, nem assim, o p-MDB se satisfez, pois seu racha parece requerer um passo adicional?

E ainda haverá quem atribuirá a queda de Dilma ao “colapso” da economia, supostamente provocado por ela… A incapacidade dela não teria forças para tanto.

Notas:

– * Em artigo que enviei a amigos e publiquei, em 2009, no site do chamado Movimento Marina Silva (é, leitor, a vida de quem tem esperanças é dura — mas advirto que logo adiante rompi com os auto-intitulados coordenadores do site, por escrito e publicamente), no tal artigo, entre outras coisas, eu disse que:

Esse arranjo, a um só tempo autoritário e popular, tem levado alguns críticos a dizer que Lula repete Putin, o todo poderoso ex-presidente da Rússia. Embora a história política das duas sociedades se preste cada vez mais a comparações iluminadoras (escravidão até a segunda metade do século XIX, tentativa autocrática para sair do atraso, populismo presidencialista, oligarquização política corrupta, etc), Putin impôs Medvedev com duas diferenças fundamentais: primeiro, a condição explícita de que o próprio Putin continuaria em cena, e em primeiro plano, agora na figura de primeiro-ministro fortalecido com poderes subtraídos da presidência; segundo, uma maioria governista quase pétrea, sem contraste, no legislativo russo. Ou seja, como já não vai estar lá, Lula arma para o Brasil experimento ainda mais precário do ponto de vista da rotina institucional: se entregar a faixa presidencial a quem deseja, Lula abrirá a caixa de Pandora onde espremeu o PMDB e a burocracia petista – que vêm aceitando a compressão da mola e a tudo suportam no antegozo de que o dia de amanhã lhes pertence – mergulhando o país num vórtice que engolirá o próprio Lula.

O fato de que, seis anos depois, o erro que engoliu Lula fique estampado nessa ida majestática de Temer à terra onde Putin ainda reina soberano, e reina pelas razões que sumariei no parágrafo citado acima e, ainda por cima, a despeito de a Rússia estar há tempos na mesma condição precária de “grau de investimento” para a qual o Brasil sob Dilma acaba de ser rebaixado; são aspectos que desenham uma ilustração tão irônica quanto precisa do que foi antevisto, reunindo à materialização do desarranjo anunciado o que há de fajutice nela.

– ** Não entendeu? Explico: Hélio Bicudo foi figura central na comissão de ética do PT que, em 1993, examinou as denúncias de corrupção feitas contra Lula pelo digno e corajoso Paulo de Tarso Venceslau, então secretário na prefeitura petista de São José dos Campos-SP. Naquela altura, ficou claro para qualquer um que não tivesse nascido ontem que o caso Lubeca, de 1989, não fora isolado. Não obstante o incrível depoimento de Lula à comissão (por si mesmo uma peça muuuiiito instrutiva), e as evidências de que Paulo de Tarso não mentia, o denunciante acabou expulso do PT, numa decisão política ao arrepio das evidências “jurídicas” a que chegara a comissão, onde também estava assentado o hoje ministro Eduardo Cardozo, o mesmo que havia se indisposto com Lula no caso Lubeca, pois Cardozo era secretário da prefeita Erundina, em 1989, quando ela barrou aquela maracutaia. Pois bem, assim como em 1993 Hélio Bicudo se aquietou na conveniência política e ficou no PT mesmo atropelado como jurisconsulto e diante de uma injustiça flagrante, tendo até sido candidato pelo partido depois que estava mais do que claro que o PT se transformara numa máquina de tomar poder para fazer dinheiro (sem participação de Bicudo nos malfeitos, fique bem claro), também agora ele adere à conveniência política do “fora Dilma”, que se dá ao arrepio da técnica jurídica, pois não há, até aqui, nenhuma evidência de que a presidente tenha cometido crime.

– Fica o Registro:

— Eduardo Cunha está numa situação difícil, da qual depende, em algum grau, a sorte de Dilma: se ele tocar o impeachment na Câmara, abrindo caminho para um governo Temer, o novo presidente poderá usar seu poder para esmaga-lo, valendo-se, é claro, da Lava Jato. Por outro lado, se Cunha embarreirar o impeachment para segurar a fúria de Temer contra si, corre o risco de contrariar  seus parceiros de profissão, parte deles ansiando por mais acesso ao butim fornecido pelo executivo. De modo que a sarneyzação do governo Dilma pode pender para realavancar Cunha, mas sem trair completamente Temer, virando ela própria o fiel da balança da disputa interna do p-MDB. É um cenário pouco provável, mas não impossível, dada a desmoralização de PSDB e PT. Seja como for, a essa altura já não há vantagem política na permanência de Dilma para quem se mantém na luta contra a desigualdade — vamos assistir ao desenrolar dos acontecimentos que, assim, serão, de fato, meros acontecimentos.

9 pensou em “DILMA JÁ NÃO FAZ DIFERENÇA

  1. FRANCISCO ELIO

    NOVAES,no que refere-se ao fim da reeleição no legislativo,isso acabaria com os caciques políticos dos partidos e teríamos uma renovação sistemática do congresso,no entanto,o meu receio é referente a capacidade de renovação dos partidos,essa renovação não se daria para eleger figuras como DATENA,TIRIRICA,RUSSOMANO figuras que atraem votos????????????

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    1. Carlos Novaes

      Francisco, pense.

      Com a restrição de mandatos exclusivos de quatro anos, o estoque dessas figuras acabaria logo…
      Por que tantos pontos de interrogação, se basta um?

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  2. thiago

    Existe alguma experiência,recente ou não, em alguma democracia, que já pratica, e com êxito, o fim da reeleição para o legislativo? E por que essa lógica não funcionaria para o executivo?Por exemplo, em diversos municípios,principalmente os pequenos, um prefeito prepara o sucessor, e tudo fica restrito,muitas vezes, a ulguma(s) oligarquia(s), o que fazer?

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    1. Carlos Novaes

      Que eu saiba, não. Nos países mais importantes, sem dúvida, não.

      Executivo e Legislativo são completamente diferentes. São vistos em bloco precisamente porque se encara a política como profissão, como carreira. Mas não é. O Executivo é gestão, não representação. Há, no executivo, projetos e obras de maturação mais longa e, por isso, entendo que até dois mandatos de quatro anos se justificam, desde que o titular nunca mais possa voltar àquele cargo executivo (podendo, entretanto, pleitear outros).

      Do modo como você o colocou, o problema aparece como insolúvel, afinal, com ou sem reeleição, um prefeito pode, sempre, “preparar” o sucessor… Bem, isso é a política quando pensada segundo ação coletiva com base em partidos, há uma busca de sequência, de encadeamento. O que precisamos é criar dificuldades para a rotinização do mal. Mas não há garantia absoluta contra ele.

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  3. FRANCISCO ELIO

    Novaes,sobre o fim da reeleição para o legislativo,seria uma forma da esquerda dar passos dentro da ordem estabelecida para viabilizar politicamente demandas como reforma agrária e taxação das grandes fortunas???mas mesmo acabando com a reeleição o politico não poderia eleger um sucessor para atender os seus interesses???Essa poderia ser uma bandeira que poderia unir a esquerda e trazer boa parte da população que foi contaminada pelo sentimento anti petismo para se unir ao um projeto de combate a desigualdade????e por fim,o SR acha que junho de 2013 e as manifestações do pessoal de verde amarelo dialogam com o esgotamento do modelo petista de governo,de pacificação social ou é preciso fazer uma distinção???

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    1. Carlos Novaes

      Francisco, pense.

      Com o fim da reeleição, em poucos anos esse político que poderia fazer a sucessor já não existiria, pois cada um terá apenas quatro anos de mandato, sem meios para construir uma máquina sucessória.

      Não misturo a luta contra a desigualdade com o fim da reeleição. São coisas diferentes, embora me pareça que êxitos na luta contra a desigualdade dependam de se acabar com a reeleição no legislativo e de se dar fim à carreira de político.

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  4. thiago

    “Seja como for, a essa altura já não há vantagem política na permanência de Dilma para quem se mantém na luta contra a desigualdade”, mas se Dilma sair , aqueles que entram não farão pior do que ela por meio de uma política econômica ainda mais dura?

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    1. Carlos Novaes

      Era o que eu supunha, mas o governo Dilma já foi totalmente sarneyzado e já não há margem para ela exercer esse papel mitigador que antes supus. Seja como for, continuo contra o afastamento dela até que haja evidência criminal para o impedimento.

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