SÃO OS CARRAPATOS, LEITOR!

Carlos Novaes, 08 de outubro de 2015

Embora jamais tenha apoiado e, muito menos, defendido a governança Dilma, tendo mesmo feito, desde antes da sua investidura, a crítica da escolha e do lançamento do seu nome para a presidência — entre outras coisas porque sempre a vi desprovida de recursos, meios e talentos para enfrentar crises que me pareciam inevitáveis em razão do arranjo entre duas máquinas ávidas e de poucos escrúpulos como são o PT e o p-MDB –, mesmo tendo sempre estado, como estou, na oposição, eu dizia, não posso deixar de reconhecer que por grandes que tenham sido os erros da presidente (e o foram), eles formam uma pequena parte da explicação para essa junção adversa de “crise” política com crise econômica que estamos vivendo, afinal, enquanto a crise econômica resulta da erosão do pacto do Real e vai requerer mais do que um ajuste aecista ou dilmista para ser superada; a “crise” política é uma decorrência da reunião da Lava Jato com as exigências de rearranjo político que a erosão do Real impõe. De modo que boa parte das dificuldades que as pessoas de bem — isto é, aquelas que ainda preferem ajuizar antes de julgar — encontram para entender afinal o que se passa vêm da quase unanimidade da mídia em fazer de Dilma bode expiatório. (O que se está a dizer aqui tem larga tangência com o que diz, em lúcido e irônico artigo na Folha de S. Paulo de hoje, o professor Rogério Cezar De Cerqueira Leite).

Os exemplos são vários: os mesmos analistas que apontaram a proposta da volta da CPMF como um tiro de Dilma no próprio pé fazem agora o alarido triunfal em torno do que supõem ter sido mais um “erro político monumental” da presidente: o gesto de arguir a suspeição de Augusto Nardes, o mais do que suspeito relator do processo que “examinou” as contas do governo passado no TCU. No caso da CPMF, o que eles recomendariam que ela fizesse, se é certo que qualquer governo terá de recorrer a algum aumento da carga tributária para enfrentar a crise fiscal? Que o homem da rua esbraveje contra o “aumento dos impostos” é natural, mas que gente com espaço de mídia para formar opinião se limite a insuflar a ira desinformada dos passantes é simplesmente indecente. No caso de Nardes, por que o escândalo ao ver a presidente a enfrentá-lo no campo da luta política aberta, se escandalosa é a atuação do próprio Nardes que, atirando longe a “liturgia do cargo”, enfeitou-se com uma tão repentina quanto canhestra ira cívica e fez-se apregoador da má governança de Dilma,  depois de calado durante anos ante muitos outros truques contábeis e, talvez, coisa pior?

Se a presidente tenta governar e agir como presidente, acusam-na de voluntarismo, se ouve aliados e aceita conselhos, dizem-na incapaz de tomar as próprias decisões; se tenta manter os mais altos cargos da administração pública a salvo da cobiça dos políticos profissionais, apontam sua inabilidade no trato com o Congresso, mas se negocia com o Congresso nos termos baixos em que ele próprio exige, é ridicularizada como um fraca que cedeu à fisiologia; se busca se apartar e dar combate às ambições de figuras nocivas como Eduardo Cunha, sua tática é  apontada como inábil, se transpõe questões menores e chama o mesmo Cunha para entendimentos institucionais, grita-se um suposto oportunismo seu. Depois de martelarem que a “governabilidade” requer que Dilma alcance uma maioria pétrea (o que, além de bobagem, é anti-democrático – v. Madison, no capítulo X de O Federalista), censuram-na por buscar essa quimera. Qual Dilma querem, afinal!?! Na verdade, desde o começo da “crise” a situação de Dilma não muda: apanha porque está sem chapéu e, se põe o chapéu, apanha porque está com ele. No formato preguiçoso e fácil que esse pessoal deu ao comentário e à crítica da complexa situação política brasileira, tudo é culpa da presidente e, assim, nada do que ela faça poderá dar certo, o que, por sua vez, impõe a conclusão típica das manadas: Dilma tem de sair para que o sol volte a brilhar!

Ora, como venho dizendo aqui desde o primeiro artigo sobre essa conjuntura adversa, não é preciso ser um gênio para perceber que a saída de Dilma é uma falsa saída para a nossa situação. Por mais limitada que seja a nossa presidente, ruim com ela, pior sem ela, até porque não há sequer suspeita razoável que nos leve a supor que ela não mereça hoje a qualificação que sempre mereceu: Dilma é uma pessoa honrada. Se você, leitor, acha isso pouco, me aponte outro político relevante na linha de sucessão que possa sequer se aproximar da reputação de Dilma nesse quesito. Se você, leitor, acha que eu estou a me abandonar ao moralismo, me diga onde mais, em meio à insânia e às espertezas correntes, agarrar um fio de razão para defender essa ordem Constitucional que, não obstante defeituosa, nos ampara contra alternativas que só poderiam trazer mais sofrimento àqueles que não podem sequer sonhar com um naco de mando nesse país desigual.

É nesse ambiente repelente — em que a condição de mulher da presidente joga um papel que ainda terá de ser avaliado, pois o desrespeito escarnecedor de que ela é alvo de há muito deixou para trás a fronteira do mau gosto e está além da boçalidade pura e simples, o que mostra como o despreparo para avaliar uma situação complexa atiça à tona ressentimentos profundos — é nesse ambiente, eu dizia, em que a esperteza de alguns alimenta, e se vale, da insânia de muitos, que se perde aspectos essenciais da dinâmica em curso:

– Eduardo Cunha não é um aliado do impeachment de Dilma, como pensam 11 de cada 10 analistas da mídia convencional, junto com os tucanos e os coxinhas que o vinham celebrando como companheiro. Trouxas! A Cunha não interessa Temer na presidência, pois isso selaria o fim das suas ambições no p-MDB (e, até, fora dele), um partido que só se mantém se não houver alguém com poder interno incontrastável, o que já não seria o caso se Temer virasse presidente da República. É por isso que Cunha protela e arquiva pedidos de impedimento de Dilma, num jogo muito calculado, que a operação Lava Jato está a dificultar.

– Como Cunha joga afinado com Gilmar Mendes  — como deveria ter ficado claro a qualquer um que tenha prestado atenção na disputa em torno do financiamento empresarial de campanhas eleitorais, quando Cunha recorreu a Mendes e este deu início a uma campanha contra a própria decisão do Supremo — o mesmo Cunha aguarda, agora, os lances do mesmo Gilmar Mendes em torno de mais esse ineditismo institucional, dessa vez no TSE: reabrir as contas já aprovadas da campanha de Dilma-Temer em 2014. Sim, leitor, só a solução de um impedimento duplo interessa a Cunha, pois então ele assumiria a presidência da República (!!!), não para desfrutar do novo cargo, mas sim para exercer todo o poder presidencial sobre a eleição presidencial que presidiria. Ele não quer alguns meses na presidência, ele quer decidir os próximos anos de nossas vidas. Olhe-se para a agenda atual da Câmara, que, não obstante a “crise” (na qual eles vêem uma oportunidade, leitor), não pára de produzir iniciativas de retrocesso, e se terá uma ideia do que sairia da interinidade presidencial desse maléfico Pádua*.

– As esperanças de Aécio em conseguir melar as eleições de 2014 estão, portanto, depositadas na dupla Cunha-Mendes, fato que explica porque a bancada tucana não toma qualquer iniciativa contra Cunha, mesmo com as evidências suíças. Como a desmoralização do PSDB já é estratosférica, eles vem dando declarações cuidadosas nos últimos dias, muito embora não parem de insultar Dilma, contra quem nada conseguiram provar até agora.

São essas movimentações menores, mas cheias de potência numa situação delicada como a nossa (além de devidamente ampliadas pela cegueira da mídia ao que realmente importa), que explicam a desenvoltura de atores mais miúdos ainda, pois numa situação em que periquito se farta de milho, até os vermes se assanham: a miudeza pestilenta do Congresso está a ver na situação uma oportunidade para levar mais algum e, assim, descumpre os acordos feitos por seus “líderes”, pressionando por mais fisiologismo. Ou seja, depois de passarmos de um governo com fisiologismo para um fisiologismo que governa, estamos agora a chegar ao desgoverno do fisiologismo.

Resumo da opereta que se promete trágica: quando pareceu que depois de um tempo em que o rabo abanou o cachorro o estrato mais graúdo da ordem que nos infelicita tinha se acertado em torno de uma governança mínima com um governo do p-MDB, tendo o aniquilado PT como coadjuvante, a situação volta a ficar confusa porque os carrapatos profissionais resolveram ferroar o rabo do cachorro!

* – Personagem secundário, esperto e inofensivo, do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis.

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