A QUE PONTO CHEGAMOS!

Carlos Novaes, 18 de dezembro de 2015

 

Como Delcídio ainda não disse nada que nos conduza a uma crise política real, a “crise” política fajuta, à qual dei por encerrada semanas atrás, se apresenta como um pesadelo que ganhou vida e teima em nos assombrar. Isso ocorre não porque seus motivos sejam reais, mas precisamente porque eles são fajutos: como a reforma ministerial esgotou parte das motivações espúrias em torno das quais os atores da “crise” se organizavam, os seus personagens centrais, qual espantalhos, juntam-se aos carrapatos, agarram-se às suas fantasias pessoais e, com a ajuda da grande mídia convencional, exploram no limite da irresponsabilidade os poderes podres de que ainda dispõem. Os personagens com fantasias pessoais mais infladas são Cunha, Temer e Aécio — são eles que vorazmente se atiram a todo pretexto que possa prolongar artificialmente uma “crise” já esgotada e, assim, contrariam até mesmo as chamadas “forças do mercado”, que há muito entenderam que o melhor é ficar com Dilma num governo do p-MDB. Detalhemos isso.

Encurralado pelas evidências que pesam contra si, Eduardo Cunha, ciente de que não tem escapatória, numa ação solitária resolveu deixar como herança aos seus sucessores o maior estrago que puder em duas pontas: contra Dilma, a quem vê, com razão, como sua maior inimiga institucional, e contra a Constituição, na qual enxerga, com não menos razão, um obstáculo à prevalência de seus interesses e de sua visão de mundo. Perdidas todas as esperanças que nutria, Cunha fez da admissibilidade do impeachment uma ponte para o passado pré-constituinte: a balbúrdia de um processo como este serve de cortina de fumaça para novas investidas legiferantes dos reacionários, assim como tem ocorrido ao longo de todo 2015, ano em que, à sombra da “crise”, avançaram projetos danosos à imperfeita democracia brasileira, como já vimos aqui.

Temos acompanhado a movimentação de Temer, que sonha em mudar do Jaburu para o Planalto. Por razões históricas, que exploramos aqui, o obstáculo principal à concretização desse sonho é o próprio p-MDB, partido cujo precário equilíbrio interno depende de que ninguém ali detenha um poder incontrastável (por isso jamais se decidiram realmente por uma candidatura presidencial própria). Cunha decidiu pelo impeachment não para favorecer Temer, mas porque essa foi a cartada que lhe restou para prolongar seu próprio jogo, que sabe estar a terminar e para o qual, portanto, ficou indiferente o sucesso de Temer. A decisão pessoal de Cunha contrariou os principais caciques do partido que, alinhados com o governo que Dilma lhes entregou na reforma ministerial, não veem vantagem alguma numa presidência Temer, que certamente lhes diminuiria o poder. Esses caciques estão fundamentalmente no Senado, liderados por Renan, e no Rio de Janeiro, chefiados por Jorge Picciani, pai do líder peemedebista ioiô, Leonardo Picciani, ambos contando com o lastro do governador Pezão, que está muito bem acertado com Dilma.

A reação desses caciques contra a carta ridícula de Temer e contra a inábil ação dele na destituição do líder partidário na Câmara deixou mais uma vez claro que não interessa ao p-MDB governamental e governista a saída de Dilma (o que mais é preciso?!?): o p-MDB que manda é o que estiver alinhado com o mercado e com o governo (por isso, isolaram-se Cunha e Temer). O vice só recebeu apoio da mídia convencional mais néscia, que ainda supõe poder tudo e, consequentemente, não sabe interpretar os sinais da realidade: estamparam a imagem de Temer em suas primeiras páginas justo na hora em que da “alternativa Temer” já não restava nem a pose antiquada. Não há, portanto, nenhuma grande conspiração oligárquica contra Dilma. Ela própria é a fiadora fantoche de uma ordem oligárquica, membro que é de um partido que se burocratizou e oligarquizou há mais de vinte anos, o PT, como discuti aqui. Toda a briga não é nem ideológica, nem programática, mas pelo poder que permite fazer dinheiro, o que nos leva a Aécio.

Inconformado com uma derrota por tão poucos votos que pode até ser atribuída a erros de campanha, e vendo na junção da crise econômica com a Lava Jato uma oportunidade, Aécio fez do impeachment uma “causa”, para a qual valeu sacrificar até mesmo o verniz programático com o qual se vendia ao eleitorado: tem negado apoio a Dilma até ali onde ela propõe o que ele próprio dizia entender como acertado, membros que são do mesmo pacto. Tivessem os tucanos agido com o mínimo de responsabilidade, a “crise” política não teria prosperado e a crise econômica não teria chegado ao ponto em que chegou. Tanto é assim que o rebaixamento do Brasil nas famigeradas agências internacionais se dá, fundamentalmente, em razão da incerteza política (ou seja, a “crise”) e não propriamente pelas dificuldades econômicas. Aécio já tinha posto a viola no saco, mas oportunista e aventureiro que é, sem liames firmes com o establishment, voltou à trilha golpista assim que Cunha tomou sua decisão solitária e optou pela admissibilidade do impeachment. Essa retomada é tão arbitrária e tão extravagante diante do que já se havia “decidido”, que mesmo os trouxas dispostos a ir às ruas pelo impedimento de Dilma se mostram agora bem menos numerosos.

Em suma, a “crise” se prolonga porque a política profissional brasileira se tornou tão autônoma, tão desgarrada da sociedade, que personagens bizarros e solitários como Cunha, Temer e Aécio podem tumultuar a ordem conservadora que, não obstante, se mantém em marcha para nos fazer conhecer uma nova versão da piora da desigualdade. Mas, se é assim, poderia o leitor perguntar: por que alinhar-se contra o impeachment de Dilma? A resposta é simples: porque o impedimento dela, além de levar ao poder gente da pior qualidade (e que terá no desastre Dilma todas as desculpas para nos impor as piores “soluções), também franquia uma avenida tanto contra a Constituição, que garante nossa liberdade e sustenta direitos que nos querem arrancar, quanto contra a ação saneadora desse Judiciário capaz de pôr em movimento uma Lava Jato. Em política, quando se é minoria, a realidade quase sempre impõe a trincheira.

11 pensou em “A QUE PONTO CHEGAMOS!

  1. Osvaldo Soares

    Mestre Carlos Novaes, onde está o senhor? Gostaria de ver comentários a respeito dos últimos acontecimentos

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  2. eder

    Olá Novaes, dificil no meio de tanta fumaça enxergar algo que nao seja fumaça. Seus textos me ajudam nesses momentos. Delcidio começa a falar, lava jato bate na porta do lula. No meio de tanta fumaça, gostaria que vc ligasse seu ventilador analitico. Obrigado e saudades do seu texto elegante e charmoso

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  3. Murilo

    Novaes, você que sempre escreve longos textos foi sucinto demais na explicação do porquê ser contra o impeachment

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    1. Carlos Novaes

      Bem, nos tais “longo textos”, ao longo do intervalo março-dezembro de 2015, trato extensamente de porque ser contra o impeachment… Recomendo a leitura de pelo menos dois deles: FORA DILMA É BOLA FORA e LINCHAMENTO.

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    1. Carlos Novaes

      O grosso do material deste Blog se destina a mostrar quão impertinente e improdutiva é essa expectativa em torno da presidência da República!
      Enquanto não varrermos os políticos profissionais dos legislativos não haverá solução nova e boa para os executivos, pois o que controla o circuito nefasto da nossa ordem política é o legislativo.

      Essa “crise” política fajuta logrou passar por crise real e nos consumiu todo um ano de nossas vidas precisamente porque ainda não se entendeu que o principal problema não é a presidência, mas o Congresso, cheio de ladrões!
      Eles fabricaram uma crise porque pretendem duas coisas: se safar da Lava Jato e transferir para o executivo a crise de representação em que o país se arrasta há décadas.

      Uma nova e boa alternativa para a presidência será DECORRÊNCIA, não causa de uma NOVA POLÍTICA. A trajetória recente de Marina Silva mostra muito bem como o velho engole a novidade precária e frágil. Enfrentar o establishment é tarefa árdua, para mais de uma geração, e requer compromisso e persistência contra a desigualdade.

      Leia TRANSFORMAÇÃO E REPRESENTAÇÃO e outros textos conexos.

      Novaes

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      1. thiago

        Entendi, mas tenho outra dúvida, e os partidos, eles também não têm uma série de “rotinas” ou barreiras que acabam dificultando aqueles novos filiados que pretendem tentar se candidatar para algum cargo eletivo? Enfim, por serem muito burocratizados, cheios de cisões internas ou com “lideranças” que ficam anos nos cargos, isso tudo não dificulta a entrada de novos quadros e o surgimento de novas ideias? Não é necessário pensar também sobre o funcionamento interno dos partidos? A transformação interna do PT durante a década de 90, não é sintomático a respeito disso?

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        1. Carlos Novaes

          Evite fazer perguntas que já foram respondidas no Blog. Não vou ficar a escrever a mesma coisa mais de uma vez.
          De toda maneira, já que estou aqui, lá vai um pouco de didatismo:

          Os partidos são reflexo, não origem, do problema da reeleição infinita para o legislativo. Não há cacique partidário sem mandato parlamentar de décadas! Ao remover esses caras do legislativo, ao retirar deles os postos de poder, ao acabar com a política como profissão, os partidos seriam arrastados a grandes mudanças. Tudo mudaria. Se a cada quatro anos mudássemos TODOS os legisladores, não haveria rotina burocrática para impedir mudanças com motivação forte. Leia meu post sobre partidos e representação.
          O funcionamento interno dos partidos é assunto de cada partido, não há que legislar sobre isso. O PT se burocratizou e oligarquizou porque escolheu mimetizar o Estado e as práticas de rotina para sua conquista. Essa escolha derivou do sucesso eleitoral: quem tinha voto (e se mantinha no poder mandato após mandato – exatamente como os outros partidos todos, claro!) foi enrijecendo seu poder de mando, interno externo. Não haverá dias melhores sm o fim da reeleição para os legislativos.

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          1. thiago

            Por ser novo no blog e ainda não ter lido todos os textos é que eu fiz essa indagação, mas de qualquer forma, desculpe-me pela pergunta ser repetida e obrigado pela atenção e a resposta esclarecedora.

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      2. Ricardo feldman

        Novaes, precisamos saber a hora de recolhermos as baterias. Vc está ficando um sujeito ultrapassado .
        Precisamos de renovação, vai curtir Itajai.

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      3. Dorival Alexandre Alves

        Comecei minha vida política com princípios e ideais, semelhantes aos de vocês que lutam hoje por um futuro de esperança para o Brasil.
        Fui militante de esquerda, liderei muitos movimentos e momentos importantes contra um modelo político que estava em dissonância com o que eu considerava ético, justo e moral.
        Admito que despertei na população um desejo de mudança e ruptura com um modo de governar disfuncional. Eu consegui articular e liderar de forma coesa um grupo de amigos patriotas, idealistas, inconformados e com brilho no olho ao vislumbrar um novo futuro, uma transformação radical.
        Naquele momento, talvez não houvesse realmente “..uma viva alma mais honesta…”. O único ideal que eu tinha era implantar um sistema mais justo, mais digno, menos elitista, mais democrático…realmente havia pureza e verdade no que eu pretendia.
        Ao longo dos anos fui “ludibriado” por novos integrantes no grupo: mentira, corrupção, dinheiro fácil, poder, chantagem, quadrilha, perseguição, coerção…
        Deixei de pensar no “povo”, pessoas que há décadas foram minhas únicas motivações. Por elas eu fui preso, fui exilado, fui torturado…
        Finalmente cheguei ao poder e tinha formado um paredão fictício, no qual ficavam expostos à população os mesmos princípios e valores que preguei por tantos anos. Não passava de uma vitrine. O paredão verdadeiro, poucos o viam, pois era o responsável por manter o governo de poder que instalei.
        Consegui conquistas para o povo, mas verdadeiramente o meu objetivo era garantir votos. Não mais o igualitarismo e a dignidade. Coloquei dinheiro fácil em suas mãos e os comprei. Coloquei muitos nas universidades, mas com o cuidado de não torná-los esclarecidos. Pessoas mais esclarecidas e críticas fariam questionamentos que não conseguiria responder. Quero quantidade na educação e não qualidade.
        Admito ainda, que me preocupei em compor um modelo em que a grande maioria da massa política do país estivesse envolvida e representada. Isso garantiria o silêncio e uma “rede de verdades” para que ninguém fosse prejudicado. Um caindo, ocorreria o efeito dominó.
        Não menos importante, me orgulho de ser um dos poucos líderes que deflagrou uma crise econômica jamais vista nas últimas décadas. Maqueei por anos que os números estavam favoráveis e crescentes, estando o país na remada certa. De fato estavam, pois muitos amigos ganharam, inclusive eu. Tinha consciência que em algum momento o buraco ia ficar evidente, mas não dei a devida importância.
        Hoje, eu e meus amigos, inclusive minha companheira, a quem eu ajudei a dar continuidade ao nosso projeto no governo, atuante ativa na idealização e operacionalização do mesmo, não podemos “ressuscitar-nos”.
        Já mentimos tanto que não podemos falar a verdade agora.
        Coagimos tanto que não permitimos ser coagidos.
        Controlamos tudo e todos que agora não podemos ser democráticos, não podemos dar autonomia, não podemos dar voz.
        Incitamos tanto a discórdia entre classes e grupos, que hoje não podemos permitir que estejam juntos e unidos por uma única causa e luta.
        Pois é “companheiros”, um pacto de anos que vai para o resto de nossas vidas. Em detrimento dele, tive que colocar como moeda de troca “o povo” e “o Brasil”.

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