UM DOMINGO PARA NÃO ESQUECER – 3 DE 6

O lulopetismo como cadáver

Carlos Novaes, 25 de abril de 2016

Para quem enxerga a desigualdade como o problema central a entravar a consolidação da democracia e o desenvolvimento do Brasil, o lulopetismo vagueia insepulto não é de hoje, pois ele só chegou à presidência da República depois de ter abandonado a luta contra a desigualdade, tornando-se sócio do bloco de poder articulado pelo Real justamente em torno do pacto de que os ricos não podem perder e os pobres só podem melhorar em uma de duas circunstâncias: quando todos ganham, ou quando se pode impor perdas às camadas médias para que os pobres ganhem. Ora, se os ricos nada devolvem do até aqui acumulado, e se logram manter as engrenagens de concentração de renda e riqueza que lhes permite essa acumulação, não se altera o modelo concentrador e se continua a sonegar a todo o sistema uma energia que ganha formas improdutivas, como o entesouramento, o desperdício ou o luxo. Nas raras oportunidades em que é possível fazer políticas para que todos ganhem não há luta contra a desigualdade porque não há empenho para estreitar o fosso que separa ricos e pobres e os arrancos para adiante terão sempre o desenho do voo do jacu; já quando as camadas médias perdem para que os pobres ganhem não há luta contra a desigualdade, mas mero remanejamento dos sofrimentos entre os não-ricos, sem alteração da estrutura que gera e organiza esses sofrimentos.

O período de poder do lulopetismo foi caracterizado pela obediência à clausula pétrea do pacto (a de que os ricos não podem perder) e, em decorrência disso, pelo deslocamento descendente de uma para outra das cláusulas subsidiárias dele, conforme as oportunidades do cenário internacional passaram de propícias a adversas: sob Lula, como o cenário internacional era favorável, depois de um ajuste ortodoxo inicial, os ricos “ganharam dinheiro como nunca antes” e o resto da pirâmide social melhorou junto, com grande ênfase nos ganhos dos muito pobres (ganhos estes erroneamente vistos como queda da desigualdade); sob Dilma, num primeiro momento, mantiveram-se os ganhos dos ricos, enquanto as camadas médias tiveram sua qualidade de vida diminuída para que os pobres não sofressem todo o impacto dos ventos estrangeiros, que se haviam feito desfavoráveis; num segundo momento, diminuíram os ganhos dos ricos, enquanto as camadas médias passavam a dividir perdas com os pobres; finalmente, em sua fase terminal, o governo Dilma levou à estagnação os ganhos dos ricos, acompanhada do sucateamento da qualidade de vida das camadas médias (via deterioração dos equipamentos e serviços públicos) e da regressão dos ganhos que os mais pobres julgavam ter incorporado, mas que revelaram toda a sua insustentabilidade, conjunto que não decorre senão da obediência ao pacto que o havia enjambrado, combinada com uma gestão incompetente dos desdobramentos fiscais adversos. Não foi à toa, portanto, que o PT perdeu apoio nas camadas médias que lhe eram favoráveis e enfureceu aqueles segmentos dela que já lhe eram hostis.

O que fez do lulopetismo insepulto um Judas a ser malhado em procissão, impedindo-o de continuar a ter sucesso fingindo vivo o compromisso há muito abandonado com a luta contra a desigualdade, foram os sofrimentos acima e os desdobramentos da operação Lava Jato – sem ela, a farsa “reformista” do lulopetismo ainda poderia lhe permitir empurrar os problemas com a barriga. Finalmente ficou claro, porém, que o PT, tanto quanto o resto do sistema político, vinha operando com base na corrupção. A corrupção resulta da determinação dos de cima em manter a desigualdade como estrutura de proveitos (reforçando-a nos acertos corruptos em que o mercado combina previamente os ganhos de cada um dos supostos concorrentes em torno de contratos fraudulentos com o Estado), e se espraia no impulso dos de baixo para escapar dos efeitos negativos da desigualdade (evitando os custos de enfrentá-la).

Ou seja, diante de um Estado faccioso, saído de uma sociedade extremamente desigual, os de baixo tem na corrupção um dispositivo para driblar perdas; os de cima promovem a corrupção para assegurar ganhos  — no dia-a-dia de uma tal sociedade, há uns que incorrem na corrupção por pequenas benesses, que podem ser obtidas de forma individual (escapar a uma multa de trânsito) ou coletiva (tirar vantagem do exercício de mandato sindical); enquanto outros articulam pela corrupção grandes fraudes, que darão tão mais certo quanto melhor combinarem, via contratos fraudulentos entre o Estado e o mercado, o ganho individual dos operadores com as conquistas coletivas ilícitas das organizações envolvidas (lucro para as empresas; poder e dinheiro para os partidos e seus mandatários — campanhas são financiadas com parte desses dinheiros).

O que preparou o lulopetismo para o abandono da luta contra a desigualdade foi sua adesão à corrupção, tanto como método para alcançar o poder, quanto meio de os envolvidos ganharem dinheiro, práticas que passaram a dar forma ao PT desde a conquista das primeiras prefeituras, vistas como unidades de negócios. A primeira evidência pública de que esse realismo nocivo se instalara no cerne do partido é o embate havido, já em 1989, entre o governo honesto de Luiza Erundina na prefeitura do município de São Paulo e a primeira campanha de Lula à presidência da República, no famoso caso Lubeca, quando se pretendeu obter daquela empresa dinheiro para a campanha presidencial em troca de contrapartidas saídas de contratos na prefeitura, operação que a prefeita Erundina, uma vez informada, barrou. Tempos depois, no curso das chamadas “Caravanas” para a campanha presidencial de 1994, mais uma vez veio à luz o que havia de obscuro nas práticas do PT, dessa vez na prefeitura de São José dos Campos, quando o então secretário da fazenda municipal, Paulo de Tarso Vencesllau, não aceitou e trouxe a público manobras em torno do dinheiro público e o mercado das consultorias, o que lhe custou o cargo e, em seguida, a expulsão do PT. Mais adiante, às vésperas de alcançar a tão perseguida vitória presidencial, em 2002, esse realismo nocivo exibiu sua face macabra no episódio da morte do ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel, mesmo que se acredite, como é plausível, que os líderes do PT não tiveram vinculação com o assassinato, que se deu, não obstante, em circunstâncias de disputas de dinheiro e poder empresarial (o mercado do transporte urbano intra-municipal) de que maiorais do PT não podem se pretender isentos.

Tendo sucumbido à corrupção, o PT tornou-se parceiro dos muito ricos e, assim, não tinha como perseverar na luta contra a desigualdade, enveredando pelas práticas que desviam de seus objetivos iniciais quase todo agrupamento de ação coletiva que os de baixo logram reunir para enfrentar situações de desigualdade extrema, como tratei, por exemplo, aqui e aqui. Para esconder sua condição de cadáver, o lulopetismo apostou suas fichas na polarização com os tucanos e, para dar verossimilhança à farsa, diante de qualquer dificuldade mais séria voltava a empunhar bandeiras que, abandonadas há tempos, já não sabe sequer fazer tremular: essa incongruência recebeu forma de símbolo terminal nos fraudulentos discursos proferidos por Lula no âmago dessa crise – deu vergonha ouvi-lo.

Os tucanos, por sua vez, para esconder a ilegitimidade de sua pressa de voltar ao poder, apresentam-se como defensores de uma democracia supostamente consolidada contra um “esquerdismo” petista que sabem tão de araque quanto seu social-liberalismo, ao mesmo tempo em que ficam a oscilar entre o uso de ora um, ora outro dos dispositivos mais violentos legados pela ditadura paisano-militar ao Estado de Direito, indo de rasgar a Constituição (como nesse golpe paisano contra o mandato de Dilma) ao emprego violento das PMs sob seu comando (como faz Alckmin em SP, afeiçoado que é deste legado propriamente militar da ditadura).

Na verdade, o PT tomou do PSDB o protagonismo do pacto que os tucanos haviam posto de pé e, diante da ruína inexorável desse pacto (afinal, a desigualdade brasileira é insustentável) sob circunstâncias em que uma sociedade contraproducentemente conservadora ainda não engendrou uma alternativa para ir adiante, ambas as forças fazem uma da outra o espantalho a combater, enquanto acabam por abrir caminho para o p-MDB, que está sempre a andar para trás, embora tenha o cuidado esperto de deixar pegadas como se estivesse avançando: isso é que é a vanguarda da ruína.

A funcionalidade do lulopetismo como cadáver está em depois de ter se prestado a legitimar o Estado de Direito Autoritário que garante a desigualdade, acabar por servir de fantasma à desmoralização das bandeiras políticas voltadas a superá-lo, fragilizando-as ante a um anti-comunismo boçal: isso é que é a ruína da vanguarda.

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