A LAVA JATO E A “GOVERNABILIDADE” — 2 DE 2

Carlos Novaes, 18 de junho de 2016 – 21:00h

Embora haja não pequena confusão nos usos dados ao termo, há tempos ficou estabelecido entre nós que “governabilidade” é o nome de algo que o Executivo tem ou não tem no exercício do governo, a depender da relação que mantenha com o Legislativo respectivo. No caso da gestão federal, essa lógica supõe que a governabilidade depende das relações do governo com a representação assentada na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Em uma série de seis artigos recentes, iniciada aqui, discuti aspectos estruturais das relações Executivo e Legislativo, apontando que herdamos da ditadura paisano-militar uma fratura estrutural entre estes dois poderes da República. Nesses termos, uma vez obedecidos os parâmetros estruturais da nossa democracia eleitoral engatada a um Estado de Direito Autoritário, a chamada governabilidade seria, no limite, inalcançável, uma vez que esses parâmetros dão, por sua vez, forma a um modelo político insustentável, condenado ao improviso e à incerteza, porque centrado na manutenção de uma desigualdade que inviabiliza o país.

Ter essas ponderações em mente, especialmente no contexto da Lava Jato, é fundamental para que observemos com discernimento as dificuldades de Temer para governar. Essas dificuldades tem uma dimensão estrutural e uma outra, conjuntural. A dimensão estrutural das dificuldades que Temer enfrenta é a mesma que desafiou todos os presidentes do período pós ditadura: um Legislativo depositário de rotinas antigas, e majoritariamente comprometido com a manutenção da desigualdade, se choca com um Executivo não menos comprometido com a manutenção da desigualdade, mas acossado pela vontade de mudança da sociedade, via democracia eleitoral. Enquanto não há marola, a governabilidade lastreada na desigualdade não enfrenta desafio maior do que dar alguma coisa aos de baixo e satisfazer o apetite dos envolvidos no exercício faccioso dos poderes institucionais e, com isso, nossa democracia parece funcionar segundo um jogo institucional maduro entre poderes (foi assim, com senões, sob FHC e Lula).

Mas quando as trincas do modelo afloram, o Legislativo, aferrado a suas rotinas, transfere para o Executivo, na forma da não-governabilidade, os problemas advindos do desencanto popular com os desmandos e erros de que ele também é responsável (casos de Sarney e, logo-logo, Temer) — o desenlace mais extremo dessa engenhoca é o impeachment (foi assim com Collor e com Dilma). Enquanto o Legislativo não for arrancado por nós do seu apego à rotina de representar a si mesmo em obediência aos interesses dos de cima não haverá Executivo capaz de governar sem ter de prestar vassalagem a essa rotina, comprometendo com isso suas promessas de mudanças favoráveis à maioria, por mais limitadas que elas sejam. Nessa rotina está alojada a corrupção, que é o azeite da engrenagem.

A essa dimensão estrutural Temer vê somar-se uma dimensão conjuntural especialmente desfavorável à chamada “governabilidade” porque, embora sua investidura no cargo, através da derrubada de Dilma por uma contundente maioria do Legislativo, aparente ter posto fim à polarização Legislativo X Executivo, ela, na verdade, pôs fim (e a nu) apenas ao que havia de fajuto nessa polarização, pois, em suas roupas conjunturais,  essa polarização era apenas uma pantomima pela qual os agentes, ao culparem Dilma, pretenderam salvar a si mesmos de abismarem-se na fratura política do modelo que vinham compartilhando com ela: a crise de representação que atinge o Legislativo e que veio à tona com a Lava Jato e seus desdobramentos.

Temer é herdeiro da diferença conjuntural entre Collor e Dilma: no caso Collor o lulopetismo e o PSDB ainda estavam fora do bloco de poder que ruiu com o malogro do plano Collor, ao passo que o caso Dilma se dá numa conjuntura em que ruiu o bloco de poder instituído pelo Real, ao qual o lulopetismo aderiu em 2002, como já analisei aqui e aqui. Assim, se, em tempos idos, a queda do presidente Collor abriu terreno para a polarização entre os então “mudancistas” e os então “transformadores” (PSDBxPT), dando sobrevida vicária ao modelo da transição “lenta, gradual e segura”, como detalhei aqui; hoje, a queda da presidente Dilma se abre para o abismo, uma vez que o modelo se esgotou sem que a sociedade tenha engendrado uma alternativa.

Para incautos ou espertalhões a investidura de Temer pode ser defendida como tendo posto fim tanto à fratura estrutural quanto à conjuntural entre Executivo e Legislativo, afinal, diriam eles, Temer está a conduzir um governo de braços dados com a representação congressual… Entretanto, o que solda essa harmonia precária não é uma convergência pela mudança, que teria levado ambos os poderes a abandonarem a velha rotina; pelo contrário, o governo golpista de Temer promove a fusão dos dois poderes através do calor da velhacaria empenhada em escapar das consequências republicanas da Lava Jato e a enjambrar um modo novo de operar os mesmos interesses e segundo a mesma rotina. Foi a isso que o tarimbado Delfim Netto celebrou na Folha como um “hábil parlamentarismo de ocasião”, monstrengo institucional voltado a obter, através de uma maioria facciosa, o “ajuste fiscal” necessário a mais uma volta no parafuso da desigualdade, agora contando com a “lei Dilma” contra o terrorismo. Tem tudo para dar errado, mas, como sempre, infelizmente pode, mesmo, dar certo.

A manobra deles tem tudo para dar errado porque, em meio a uma crise econômica, o que chamamos de Lava Jato vem tornando cada vez mais difícil aos profissionais da política escamotear a crise  de representação, que é a expressão terminal do aspecto político da crise do modelo “seguro” que reuniu desigualdade extrema com democracia eleitoral, sob um Estado de Direito autoritário. Essa crise de representação é antiga, mas veio sendo encoberta com as esperanças suscitadas pelas saídas econômicas com que o modelo veio se reinventando: planos Cruzado, Collor e Real, mais o “desenvolvimentismo” do lulopetismo. Cada uma dessas “saídas” foi protagonizada pela vanguarda da vez, tendo como voz dissonante um ou mais dos opositores da ocasião, conjunto que dava a ideia de que se marchava adiante. Com Dilma passamos a marchar no pátio e com a queda dela ficou claro que não há, mesmo, para onde marchar: querendo se separar, p-MDB e PT se reencontraram na ruína, o p-MDB como a vanguarda da ruína e o PT como a ruína da vanguarda.

Conclusão 2: se já não há para onde marchar, temos de dispersar (a eles e a nós), ganhar a rua, para encontrar outro(s) ponto(s) de convergência. Como já defendi aqui, temos de arrancar novas eleições federais (presidente, senadores e deputados),  nas quais não mais reelegeríamos ninguém para o Legislativo. Essas eleições seriam realizadas junto com a eleição municipal deste ano, instituindo-se um novo calendário eleitoral para o país. Continuaríamos com este formato ótimo de mandatos de quatro anos com eleições a cada dois anos, o que nos permite manter a representação sob vara curta, mas com as eleições estaduais, já em 2018, separadas das eleições federais e municipais, que passariam a se dar juntas a partir de 2016.

Mas a manobra deles pode dar certo porque, infelizmente, mesmo com a maioria da sociedade muito descontente, não é tão fácil assim quebrar o arco de interesses que reúne os grandes do mercado, os agentes públicos afeitos ao exercício faccioso dos poderes institucionais e os conglomerados de mídia voltados à veiculação de temas e valores que servem à manutenção da ordem que nos infelicita. Especialista na arte de tergiversar, esse pessoal não deve ser subestimado, como o comprova a enorme volta que foi capaz de dar até cooptar, usar, submeter e descartar o lulopetismo, perda de que a sociedade brasileira levará muito tempo para se recuperar, pois ela se dá num contexto que obriga a quem se opõe ao status quo a jogar a criança fora junto com a água do banho e a assistir o adversário avançar em meio a zombaria merecida, e merecida porque a credulidade é um defeito, mesmo que se concorde com Marx, que a julgava o defeito mais tolerável do ser humano.

Conclusão 3: a “Lava Jato” nos abriu a oportunidade rara de nos fazermos menos crédulos na ordem política dos profissionais e tomarmos para nós mesmos a tarefa de construir um novo sistema político, mas para isso precisamos nos engajar num movimento de desobediência civil, negando-lhes a nossa governabilidade.

 

 

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