DE VOLTA AO COLÉGIO ELEITORAL — COMO NÃO DESPERDIÇAR A TRANSIÇÃO? — 3 DE 3

Carlos Novaes, 27 de maio de 2017 — 23:31

Foi dito no início do artigo anterior que nossa crise é crônica. Entender este aspecto da crise pode nos ajudar a pensar alternativas para a transição. Nossa crise é crônica porque no decurso do tempo ela, a cada vez, coleciona tanto o que foi escamoteado na “transição” da crise precedente, quanto o que foi necessário engendrar institucionalmente para acomodar as contradições do que fora acumulado até então – não é por outra razão que estamos a ter a impressão de que esta é uma crise de extensão e profundidade jamais vistas no Brasil.

Essa característica de herdar sem resolver é o desenho do nosso pendor para a acomodação, não para a transição. Para transitar é preciso resolver os problemas, não fingir que eles não existem. Os crimes que hoje se cometem impunemente contra os índios estão diretamente ligados àqueles que foram cometidos no passado e ficaram sem punição; ninguém ignora que a situação de pobreza e violência em que está imersa a imensa maioria da população brasileira afrodescendente resulta do fim acomodatício da escravidão, que não criou obrigações para os senhores nem previu reparação para os escravos; nossos atuais problemas no campo são filhos diretos da grilagem de terras, protegida, quando não promovida, pelo Estado no curso de décadas; chegamos por muitas vias a essa vida urbana precária, sendo a principal delas o descaso com o espaço público e com os equipamentos públicos, como é próprio da ordem política que considera o público como “coisa para pobre”, deixando toda excelência para a chamada iniciativa privada.

Talvez seja proveitoso, nesse limiar de mais uma transição, buscar orientação na chamada Justiça de Transição, sobre a qual o leitor encontrará informação preliminar segura, aqui. Muito resumidamente, trata-se de um arcabouço conceitual que visa oferecer instrumentos para que um Estado de Direito que suceda regimes autoritários possa fazer justiça aos injustiçados pelo arbítrio. Para o nosso caso atual, quando se trata de superar pela transição uma crise crônica, entendo que a ênfase deve estar nas noções de memória e transformação, não nas de anistia e reparação. De fato, diante de uma crise cujos sofrimentos e injustiças vão tão longe quanto a memória se recuse a recalcar, não parece apropriado falar em reparação, seja pela distância no tempo, seja pela magnitude dos danos sofridos colecionados: não teríamos pernas para reparar. Por outro lado, precisamente porque para transitar é preciso lembrar, não esquecer, não cabe falar em anistia, especialmente quando os anistiados seriam criminosos sobre cuja conduta não pairam dúvidas de que se destinava a obter vantagens pessoais pelo desvio fraudulento de recursos públicos. Não é por acaso que já se fale no Congresso numa anistia…

Quando se pensa nos problemas a enfrentar com ajuda do ferramental da Justiça de Transição em prol da construção de uma maioria social, não parece haver ponto mais sensível na nevralgia da injustiça social saída da desigualdade do que a questão da Segurança. Trata-se de uma área que não poderá ficar de fora no rol das reformas necessárias à transição para um Estado de Direito Democrático. Vivemos uma guerra interna. Ela se arrasta há tempos, devora vidas e recursos públicos numa magnitude desumana e irracional, e não permite registro nem de vencidos, nem de vencedores. É um moto-contínuo sem sentido. Na linha de frente dessa guerra se antagonizam segmentos do nosso povo pobre, uma parte fardada, outra parte esfarrapada. Nossos policiais militares são treinados com recursos públicos sob maus-tratos, levam uma vida estressante e mal remunerada, tudo para garantirem uma ordem que maltrata aqueles a quem deveriam defender – o prêmio que recebem é a proteção da hierarquia para as ilegalidades cometidas pela minoria deles. A população pobre das periferias recebe dos bandidos, na forma de benefícios privados, compensação parcial pelo muito que deixa de receber do Estado em serviços e equipamentos públicos. Como alcançar coesão social para o bem comum numa situação dessas?

Assim como no âmbito da representação política o dispositivo paisano (o p-MDB) que nos foi legado pela ditadura paisano-militar vem sendo desmontado (embora não possamos antecipar a extensão do desmonte), uma transformação na área da Segurança Pública vai precisar desmontar o dispositivo militar que também nos foi legado pelo regime autoritário. Ao incluir a Segurança Pública entre as reformas a serem discutidas na transição, teremos de começar por dar outro desenho à luta pelos Direitos Humanos, incluindo resolutamente a defesa dos direitos dos policiais ao treinamento justo e à remuneração digna, condições básicas para a sua desmilitarização, desvencilhando-os de cadeias de comando remotas e aproximando-os da sociedade pela subordinação ao poder local.

Fica o Registro:

– Se antes das delações dos donos da Friboi se tinha como certa a vitória de Temer na decisão do TSE sobre a chapa Dilma-Temer, agora já se cogita um alinhamento diferente dos mesmos juízes, não obstante a questão jurídica seja também a mesma. Eis outra evidência de que estamos ao sabor de maiorias facciosas ocasionais, a variar segundo os desdobramentos da crise.

– O pedido de Temer para que seu processo saia das mãos de Fachin mostra que há uma tentativa de redesenhar o próprio teatro de operações da Lava Jato. Pretende-se que por Lava Jato se entenda apenas a investigação da corrupção na Petrobrás, quando está mais do que claro que aspectos técnicos já foram superados pela organicidade política que todo o jogo da corrupção está a evidenciar.

– Em mais uma demonstração do alinhamento político que a condição de réu na Lava Jato prevê e obriga, Lula ataca os delatores da Friboi, no que ajuda Temer em seus esforços para safar-se via desqualificação dos indefensáveis, mas úteis, colaboradores do MP.

– As declarações corajosas do Ministro Luís Roberto Barroso, do STF, sobre as tentativas facciosas de levar o Supremo a desfazer o que vem dando certo no teatro de operações da Lava Jato alimentam a esperança de que, talvez, haja uma chance de alcançarmos uma transição para um patamar superior de civilização. Além de afinadas com a preferência pela transformação que, apesar da inércia, se pode sentir na sociedade brasileira, as posições do Ministro — contra pôr em revisão os acordos de delação, e sobre a prisão de réus condenados em segunda instância – nada têm de facciosas, pois refletem um entendimento do funcionamento institucional compatível com a almejada vigência de um Estado de Direito Democrático.

Acréscimo em 28/05, às 08:41:

– O prof. José Murilo de Carvalho, em artigo na Folha de S.Paulo de hoje, atribui “a instabilidade de nossos governantes no poder à incapacidade de processar a entrada tardia do povo na política.” Concordo, mas, como disse aqui, entendo que o problema está na contradição fundamental entre, de um lado, esta expansão do eleitorado popular e, de outro, a manutenção da desigualdade, com a expansão da parafernália institucional conexa necessária ao equilíbrio instável dessa contradição — daí a corrupção. Não é uma coincidência que se aloje na contradição mencionada a polarização entre Legislativo-representação e Executivo-gestão, fase última da instabilidade de que trata o prof. J. M. de Carvalho em seu instrutivo artigo e da qual tratei detalhadamente há cerca de um ano, aqui e, ainda mais, aqui.

 

3 pensou em “DE VOLTA AO COLÉGIO ELEITORAL — COMO NÃO DESPERDIÇAR A TRANSIÇÃO? — 3 DE 3

  1. Eder

    Novaes, quais paises tem democracia de alta intensidade como vc propoe? As vezes acho que certos paises ditos ditatoriais sao mais democraticos do que os que se autointitulam democracias liberais. É possivel pensar em outras formas de democracias? Ou a unica forma de vida defensavel é a vida sob uma pseudodemocracia liberal, pluripartidaria mas com uma ideia unica: dinheiro e poder

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  2. thiago

    Novaes, por que não eleições gerais, como você propôs ano passado? Constituinte não é um risco muito grande de desmontar o pouco que temos sob a incerteza de construir algo que pode ser pior, já que não temos forças políticas como outrora foram PT e PSDB?

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    1. Carlos Novaes

      Tiago, minha proposta de eleições gerais no ano passado foi a quente, no auge de uma efervescência que ainda podia colocar alguém na rua — e teríamos eleições. Eu estava mais agitando do que propondo — e aprendendo… Agora, tirando uma parte do lulopetismo, não há clima para chamar às ruas, a crise se rotinizou. Quem irá arrancar do Congresso uma eleição antecipada das cadeiras congressuais? Então, prefiro ter tempo para ver o que se passa com a queda de Temer. Quanto à Constituição, ela já vai sendo desfigurada aos pouquinhos. Em breve já não teremos o que julgávamos que tínhamos. Então, vamos abrir o leque e propor uma nova discussão geral — com o risco de perder, claro. “Viver é muito perigoso, mas o que a vida pede da gente é coragem” -JGR.

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