NA GUERRA DE FACÇÕES, QUEM ASSISTE, PERDE

Carlos Novaes, 08 de agosto de 2017

Nem por encomenda direta deste blog poderíamos ter dois exemplos mais claros da combinação perversa, contra nós, da guerra de facções no âmbito do Estado de Direito Autoritário, de um lado; e do exercício faccioso dos poderes institucionais, no âmbito também da chamada sociedade civil organizada, de outro: no lado do Estado, a entrevista do PGR, Rodrigo Janot; no lado da sociedade organizada, a notícia de que as Centrais Sindicais querem uma contribuição ainda maior no lugar do imposto sindical que lhes premia o peleguismo, faz décadas.

Quase ao mesmo tempo em que era mais uma vez atacado pelo insultador mor da República, Gilmar Mendes (o que, por si só, já é mais um exemplo da guerra aberta entre facções que tenho buscado caracterizar aqui), Janot concedia uma entrevista à Folha na qual deixou patente, em tiro certeiro, que há uma disputa de poder entre a PGR e a Polícia Federal, exemplificada no fato de que a PF só ataca as delações de que não participou.

Embora o tiro tenha sido certeiro, Janot ainda não enxergou tudo o que alvejou. É que não se trata da PF. Trata-se de uma crise de legitimidade do Estado, diante da qual todo agente estatal suficientemente poderoso entende poder fazer o que dá na telha para ampliar seu poder, e seus ganhos. Aliás, do lado da procuradoria, não há melhor exemplo recente de exercício faccioso dos poderes institucionais do que o descabido pleito por aumento real de salários que, mesmo sem crise, já seriam indecentemente altos. Ou seja, a força das facções está na fraqueza propriamente institucional do Estado, sua ilegitimidade de fundo, fraqueza essa que alimenta a desenvoltura com que se movem os agentes públicos, sejam polícias, técnicos, gerentes, etc.

O que explica a desenvoltura facciosa como resposta à crise de legitimação é a inércia da sociedade, que a tudo veio assistindo como se nada pudesse fazer e, agora, parece, assumiu definitivamente o papel de avestruz, tudo postergando para 2018, como se, por milagre, algo muito diferente pudesse acontecer quando lá chegar — sem que ela própria se tenha dado ao trabalho de sequer entender o fosso que há entre seus desejos e esperanças e a empenho real dos atores organizados em prol de seus próprios interesses, num exercício perverso de autonomia. A continuar assim, em 2018 o Brasil repetirá o que o eleitorado do Amazonas acaba de fazer: escolherá os mesmos.

Essa inércia também explica a desenvoltura não menos perniciosa da outra metade do Brasil organizado, a da sociedade civil: assim como os políticos profissionais, os procuradores, os policiais e os juízes, também do “nosso” lado os partidos políticos e os sindicalistas de todas as correntes farejam na nossa inércia diante da crise de legitimação — que a todos engolfa sem que a vejam — uma oportunidade para ampliar seus ganhos de poder e dinheiro. Enquanto os partidos articulam uma reforma eleitoral e de financiamento feita sob medida para que quem já lá está fique ainda mais inamovível e mais endinheirado; os sindicalistas querem fazer da perda do indecente imposto sindical uma oportunidade de arrancar manhosamente ainda mais dinheiro dos trabalhadores, ainda que todos finjam indignação com os efeitos da crise e simulem compaixão pelos que mais perdem com ela. A única diferença é que os políticos vão ao dinheiro do Tesouro, que sai do nosso bolso; enquanto os sindicalistas nos vão direto ao bolso.

Esses grandes agentes organizados estão a explorar ao máximo a fragilidade do poder Executivo (gestão), ora ocupado por um golpista tão corrupto que desonrou até o próprio golpe e está de joelhos diante de um Legislativo (representação) não menos corrupto do que ele, situação que os obrigou a escancarar o modo como sempre se deu a construção da chamada governabilidade no Brasil – e que vem sendo tratada na mídia convencional como demonstração de força, de habilidade profissional!  Ou seja, 99% das análises não param de pé, pois, a um só tempo, denunciam a imoralidade do conjunto, mas vêm nele não apenas as qualidades da eficácia, como ainda celebram o “bom funcionamento das instituições”! — como se essa suposta eficácia institucional não fosse justamente a materialização da crise de ilegitimidade que corrói todo o conjunto e, portanto, expressa, em último grau, a crise do Estado de Direito Autoritário.

Como esse Estado é o instrumento garantidor da desigualdade, aquela parte da sociedade organizada que reúne os maiores players do chamado Mercado (que só aparentemente estão do lado oposto ao dos sindicatos de trabalhadores) manobra para que o resultado final da crise seja ainda mais vantajoso para seus interesses, manejando o poder para fazer dinheiro. Para isso, faz da crise de legitimação do Estado, e da fragilidade do Executivo que a habita, instrumentos para alcançar as tais reformas impopulares, que irão aumentar a desigualdade. Na superfície, parece haver uma luta entre os organizados, há quem veja até luta de classes. Mas, na verdade, os sindicalistas pelegos e os partidos traidores mobilizam suas bases fajutamente, fazendo-as massa de manobra desfraldando contra o outro lado bandeiras que, na prática, já traíram, mas cujo tremular serve para encobrir o que realmente querem: poder e dinheiro, mesmo que tudo o mais fique até pior – cálculos que explicam o quase consenso que já existe contra a Lava Jato.

Tudo o que se disse acima quer dizer, ainda, o seguinte: é ridículo celebrar nos arranjos em curso o “bom funcionamento das instituições democráticas” que nos foram legadas pela Constituição de 1988, como fazem vários analistas muito prestigiados na mídia convencional. É justo o contrário: herdamos um Estado autoritário, com seus legados paisano e militar e, agora, depois de trinta anos, vivemos a agonia dele. Supor que, sem que a sociedade se mexa, se vá chegar, pela marcha dessa luta de facções, à consolidação democrática é sonhar os pesadelos da razão, pois o que está no horizonte é uma regressão autoritária, por via eleitoral, ou não.

Estado de Direito Democrático, só se a maioria da sociedade deixar as arquibancadas.

Fica o Registro:

– Já querem avacalhar o que proponho: está em discussão a limitação da reeleição para o Legislativo. Não. Temos que acabar com a reeleição, mesmo para cargos diferentes. Vou voltar ao tema em breve.

– O ministro do STF, Luis Roberto Barroso, se mostra mais um engenheiro eleitoral sem conhecimento do assunto: está a defender uma reforma política para pior, com voto distrital misto e semi-presidencialismo, entre outras bobagens.

– Em mais um exercício faccioso dos poderes institucionais contra o povo, o judiciário do Rio decidiu manter preso Rafael Braga, vítima de uma facciosa armação da polícia.

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