CRÍTICA DA CRÍTICA QUASE CRÍTICA

Carlos Novaes, 30 de janeiro de 2018

 

No intuito de alimentar a conversa de todos nós, examino nas próximas linhas alguns aspectos de artigo recentemente publicado na Folha de S.Paulo, no qual o prof. da FGV Conrado Hübner Mendes faz uma valiosa crítica do Supremo Tribunal Federal-STF. Naturalmente, não pretendo que este texto possa dispensar o leitor de ter lido o artigo que critico.

A crítica de Hübner Mendes é valiosa tanto por exibir de maneira organizada o desserviço mais recente do STF a uma democracia almejada, quanto por deixar ver em seus desvãos o desserviço desse tipo de crítica quando se pensa em localizar o foco real dos nossos problemas, única tarefa que realmente importa no âmbito de uma crise como a nossa. Embora tenha apontado mazelas reais na prática recente do STF, o professor sucumbiu às limitações do chamado institucionalismo, e justo na hora em que esse tipo de abordagem, a institucionalista, mostra toda a sua banguela analítica precisamente porque está desafiada por uma crise que ultrapassa o seu ferramental. Sigamos a passo.

Depois de fazer perguntas que iluminam todo o espectro da conduta malsã do STF no curso da crise, Hübner Mendes arremata o conjunto dizendo:

“A lista de perguntas poderia seguir, mas já basta para notar o que importa: as respostas terão menos relação com o direito e com a Constituição do que com inclinações políticas, fidelidades corporativistas, afinidades afetivas e autointeresse. O fio narrativo, portanto, pede a arte de um romancista, não a análise de um jurista. Ao se prestar a folhetim político, o STF abdica de seu papel constitucional e ataca o projeto de democracia.”

Quem está familiarizado com a visada crítica deste blog não pode deixar de localizar nesse rol de “inclinações”, “fidelidades”, “afinidades” e “autointeresse” da citação acima o que venho chamando de “exercício faccioso dos poderes institucionais”, modo de operar que entendo caracterizar não apenas o STF, mas o Estado de Direito Autoritário em seu conjunto. É precisamente porque, assim como outros, não enxerga a crise como uma crise do Estado que nosso autor se sente desamparado e se socorre no ferramental do romancista: passa a “inventar” um problema institucional, isto é, a limitar nela mesma os problemas de uma das instituições do Estado em crise de legitimação.

Não é de surpreender que uma abordagem dessas — depois de insinuar, e não fazer, uma crítica do lugar propriamente constitucional do STF – passe a se esconder das dificuldades do tema sob o tapete do que chamou de “desarranjo procedimental”(!), e, claro, acabe por se refugiar em tão rebuscados quanto frágeis reproches à conduta individual dos magistrados ora togados no STF, como se as figuras que atualmente compõem a nossa mais alta Côrte fossem significativamente mais baixas do que as de colegiados anteriores (ok, ok, concedo que Gilmar Mendes e Tófoli talvez sejam, mesmo, pontos fora de qualquer linha sinuosa que persiga o bem comum – ainda assim, a atual desenvoltura deles, longe de ser o exercício de meras características pessoais, é sintoma não apenas da crise do Estado, mas também da degradação que já estava presente em suas respectivas nomeações).

Ao classificar como “lotérica” a forma de atuação interna do STF o autor joga fora todos os liames que essa atuação guarda com a dinâmica externa que constitui a crise, dinâmica esta que nada tem de lotérica, pois está firmemente ancorada em “inclinações”, “fidelidades”, “afinidades” e “autointeresse” que desde sempre constituem a matéria do exercício faccioso dos poderes institucionais e, mais recentemente, estão a servir de combustível à luta aberta entre facções que escancarou a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário no Brasil. Hübner Mendes precisa se dar conta de que a “imprevisibilidade” que caracteriza o STF não decorre de uma falta de ética, rito ou decoro nele próprio (embora faltem), ou da dificuldade de prever o que este ou aquele magistrado vai preferir (pelo contrário, são previsíveis até demais!), a imprevisibilidade é ali derivada, no sentido de que depende do jogo extramuros, no qual estão implicadas as facções do Legislativo e do Executivo, em aliança com o chamado Mercado.

Em suma, o que há de imprevisível no jogo miúdo do STF não decorre de ele ter se fechado em si mesmo, se feito concha de suas próprias mazelas; pelo contrário, sua imprevisibilidade na ação miúda permite antecipar o mal a esperar no agregado e advém de sua conexão porosa com o jogo malsão da luta entre facções que se fazem e refazem segundo as oportunidades que os agentes enxergam na crise, em cuja busca levam o país à breca.

Embora faça o juízo correto de que

“Por não conseguir encarnar o papel de árbitro, o tribunal tornou-se partícipe da crise. Já não é mais visto como aplicador equidistante do direito, mas como adversário ou parceiro de atores políticos diversos.”

Nosso autor, prisioneiro do institucionalismo, chega à conclusão errada de que o STF

“Não foi vítima da conjuntura, mas da própria inépcia.”

Mas não há inépcia alguma, ali! Pelo contrário, a azáfama esperta é incessante – e majoritariamente contra nós, mesmo quando atinge inimigos do bem comum – o que não deixa de mostrar que não é, mesmo, o caso se encarar como amigo o inimigo do meu inimigo. Permitam-me dar um exemplo que me está a divertir: Gilmar Mendes vinha dando sinais enfáticos de que a decisão de prisão em segunda instância deveria ser revista. Entretanto, Lula acaba de ser condenado em segunda instância. Que tipo de cálculo Gilmar será levado a fazer? Vai manter a disposição de rever essa modalidade de prisão, beneficiando Lula e, de certa forma, o arranjo mais amplo do establishment, para o qual talvez Lula ainda seja visto como uma peça útil; ou, pelo contrário, vai rever sua preferência e facilitar a prisão de Lula, antigo desafeto, agora descartável? Note leitor que para mim não há qualquer dúvida sobre a preferência maior de Gilmar pelo establishment, o que é imprevisível é o resultado do cálculo faccioso que orientará a preferência miúda dele.

Seja como for, e tal como já foi dito aqui e aqui acerca de a Constituição ter se tornado ela mesma elemento da crise, não da solução dela, Hübner Mendes nos permite dizer que a luta entre facções nos levou a uma situação em que, como ele diz, se

“Criou uma espécie de zona franca da Constituição, onde reina a discricionariedade de conjuntura e onde o Estado de Direito [Democrático] não chega.”

Acrescento esse “Democrático” porque está clara a vigência de um Estado de Direito, cujo caráter Autoritário vem desde sempre, em sua atuação contra a sociedade, e que foi agora  escancarada pela luta de facções no âmbito do próprio Estado, luta esta que é um aspecto do que explicita sua crise de legitimação, que aparece também na descrença, na raiva e no ressentimento da sociedade contra as instituições desse mesmo Estado.

Parece claro que a solução não virá nem de mágicas saídas de um engajamento inercial nas eleições de 2018, nem de denúncias do (ou apelos ao) próprio STF. Afinal, como salientado aquiaqui e aqui em julho e outubro passados:

– No Supremo Tribunal Federal-STF (judicação), fala-se em rever a validade legal de gravações realizadas por participantes da conversa gravada – mais uma tentativa de obstruir a apuração e invalidar provas já obtidas de casos de corrupção, a começar pelo de Temer. O “argumento” é o de que o STF tem, agora, composição diferente da de 2009, quando seus juízes decidiram validar essas gravações. Ora, um entendimento desses é mais pernicioso do que “ouvir a voz rouca das ruas”, e faz o STF passar de Corte Suprema a Corte Arbitrária dos indivíduos que a compõem; afinal, a se tornar aceitável que a cada composição se reveja a jurisprudência, a memória constitucional do país ficará precisamente ao sabor do humor das facções a que seus membros pertencem, cuja lógica daninha venho analisando neste blog!

— Qualquer estudante de direito sabe que não há crime sem vítima. Logo, não pode haver crime contra o “Estado democrático de direito”, pois a sociedade brasileira não conta com um. Aliás, estivéssemos sob um Estado de Direito Democrático, jamais estaríamos a ver uma desordem dessas, saída precisamente das entranhas do Estado que nos foi legado pela ditadura paisano-militar. Em outras palavras, o Estado brasileiro não conta com mecanismos para debelar essa crise precisamente porque ele não é democrático, precisamente porque os agentes do Estado, divididos em facções, não respeitam a Constituição – e não a respeitam porque simplesmente não podem respeitá-la, uma vez que respeitá-la significaria a derrota da própria facção que o fizer, fragilizando-se na luta contra as outras. É por isso que são ridículos todos os graves apelos e salamaleques a reclamar na mídia convencional o respeito à Constituição. Ela foi rasgada e precisamos de outra – menos para termos outra Constituição, embora dela precisemos, e mais para passarmos por um novo processo constituinte, do qual necessitamos desesperadamente.

— A implosão engaiolada fez da luta de facções o método para arbitrar perdas e ganhos no jogo bruto pelo poder de Estado, um jogo do qual a Constituição é uma peça, não a regra, podendo ser suprimida ou devolvida ao tabuleiro segundo o andamento do jogo; agora já não dá para sustentar que havíamos construído um Estado democrático de direito.

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