O QUE APRENDER DOS ASSASSINATOS DE MARIELLE E ANDERSON? — 1 DE 2

Carlos Novaes, 17 de março de 2018

Depois de escrever o artigo anterior no calor da hora, saído da tristeza, da raiva e da impotência que caracterizam a constatação de uma injustiça que sabemos não poder reparar, passei a tentar acompanhar tudo o que vem sendo dito na mídia sobre essa verdadeira tragédia, que reúne como vítimas diretas um homem branco comum (tão confusamente questionado em nossos dias) e uma mulher negra incomum (tão merecidamente valorizada em nossos dias).

Desde logo há que reconhecer o inextrincável vínculo material e simbólico entre os dois assassinatos. Vínculo este que vem sendo reconhecido por praticamente todos os segmentos de interessados que se debruçam sobre a tragédia, menos um. Não obstante a grande mídia, acordada pelos tiros para a gravidade da hora, venha dando extensa cobertura à personalidade das duas vítimas, há um segmento que, a pretexto de denunciar uma inexistente indiferença diante da morte de Anderson, não se cansa de negar a importância simbólica do assassinato de Marielle, esforço no qual já se empenharam o comandante da Polícia Militar do Paraná, uma desembargadora do Rio e todo gênero de desclassificados que empesteiam as redes sociais.

A desonestidade dessa gente é tão evidente quanto instrutiva: ela é evidente porque está a repetir uma mentira; ela é instrutiva porque mostra o medo deles diante do potencial do episódio para virar a maré em que eles julgam estar a surfar. O ponto de articulação dessa mentira instrutiva está na insistência deles em combinar a defesa jactanciosa da necessidade de tratar a todas as vítimas como iguais com a descaracterização de Marielle como alvo almejado. Essa manobra é insustentável, uma vez que, se de um lado, parecem valorizar, na figura de Anderson, todas as vítimas de assassinatos que desaparecem sem destaque e sem investigação; de outro lado, e ao mesmo tempo, porém, para desvalorizar Marielle, desdenham todas as mortes que fingiam valorizar classificando a jovem líder como “cadáver comum”, até a ser lamentado, mas, ainda assim, “comum”.

Ora, o que há de comum em Anderson em nada o desvaloriza. Pelo contrário, o assassinato dele, um dano material não almejado pelos assassinos, faz desse jovem pai de família o verdadeiro representante de todas as vítimas produzidas pelas chamadas “balas perdidas” nessa rotina da banalização do assassinato entre nós – diante da (des)ordem estabelecida, ele não passa de “mais um”, como amarga e sagazmente constatou sua jovem viúva.

O que há de incomum em Mariella em tudo a distingui. Ela era o alvo direto e simbólico dos assassinos, condição que faz dela a legítima representante de todos aqueles que, mesmo não seguindo a sua liderança, tem a aspiração de uma sociedade menos desigual, menos preconceituosa e menos violenta – uma sociedade na qual a vida humana tenha valor por si só, como um verdadeiro direito do homem.

É de notar que ao contrário desse segmento repelente que busca diminuir Marielle enquanto finge solidariedade para com outras vítimas, a moça da Maré se notabilizou, se tornou líder, se fez símbolo justamente porque denunciava a morte das ditas pessoas comuns, que são as principais vítimas da desigualdade, eliminadas não ao acaso, mas segundo uma lógica que agencia perversidades pessoais (elas próprias também fruto da desigualdade) em ações paramilitares para manter o povo pobre sob terror, num circuito interminável de misérias conexas que se engalfinham — sem atinar que o fazem em benefício da desordem que favorece os privilegiados no comando.

Denunciemos a execução de Marielle para manter viva a luta por ideias que, institucionalizadas, impedirão a rotina de assassinatos como o de Anderson.

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