O QUE APRENDER DOS ASSASSINATOS DE MARIELLE E ANDERSON? — 2 DE 2

Carlos Novaes, 17 de março de 2018

Mas o trágico assassinato de Marielle e Anderson também tem se prestado a mistificações do chamado “outro lado” – tem gente que vai acordando para a enormidade da encrenca em que estamos metidos, mas resiste a enxergar que se trata de uma crise de legitimação do Estado de direito. E resiste porque tendo vaidosamente se convencido de que o resultado da luta contra a ditadura paisano-militar (para estes vaidosos, apenas militar) foi a conquista de um Estado democrático de direito, acha que dizer ilegítimo esse Estado de direito seria dizer ilegítima a democracia em que, a duras penas, temos sobrevivido.

Ora, se fizermos a distinção que proponho entre Estado de Direito Autoritário e Estado de Direito Democrático, e entendermos, pelas razões expostas numa série de posts iniciada aqui, que, na verdade, o que construímos depois da ditadura paisano-militar foi um Estado de Direito Autoritário, então já não teremos porque recusar enxergar na crise uma crise de legitimação do Estado de direito que nos infelicita. Naturalmente, para esse reconhecimento teremos de, como já desenvolvi aqui, encarar toda a extensão da nossa derrota, que no curso de trinta anos se fez lenta, gradual e segura e na qual PT e PSDB têm papel central, como também argumentei longamente aqui.

Como não poderia deixar de ser, nesse acordar precipitado alguns passam de um polo ao outro, e, então, sem sequer se ocuparem do caráter do Estado brasileiro, vão logo entregando os pontos no que diz respeito à democracia. De fato, já há quem veja no assassinato de Marielle o fim da democracia que imaginava consolidada num Estado democrático de direito. É provável que a nota patética insuperável dessa chorumela venha a ser o artigo do professor André Singer publicado na Folha de S.Paulo de hoje, no qual ele, depois de pomposamente intitular seu mimimi de “O fracasso da democracia”, vai, sem aviso, discorrer sobre “o fracasso da minha geração” – mas justo ele, que, não faz muito tempo, depois de deixar a condição de porta-voz da presidência da República, e em busca de justificação para as próprias escolhas coniventes, “teorizou” sobre a era Lula como governos na marcha de um claudicante “reformismo fraco” no rumo do socialismo?!?!

O professor vai ter de rever muita coisa, não é não? Afinal, depois de buscar salvação individual para os próprios erros num socialismo fantástico, agora se vê aloprado a invocar uma presumida derrota geracional para revestir de teoria política confusões individuais não menos fantásticas (fale por você!). Que os mortos enterrem seus mortos, pois o professor André Singer precisa entender que o seu PT é vítima interna recentíssima do Estado de Direito Autoritário que reforçou com sua adesão e que, agora, em crise de legitimação, se apresenta conflagrado numa luta de facções de que Marielle e Anderson são vítimas externas antiguíssimas.

Numa linha bem diferente de Singer, mas também equivocadamente, o respeitável prof. Vladimir Safatli escreveu ontem, na mesma Folha de S.Paulo, que:

“Não é difícil imaginar o que deve acontecer depois desse crime: nada, absolutamente nada. Pois ele não é uma exceção. Ele é o modo normal de funcionamento do governo brasileiro. […] O que vemos agora é apenas a consolidação de uma estrutura de fato. Um país comandado por uma casta de indiciados e criminosos que se apoia em poder militar anabolizado e em poder policial descontrolado que há muito se degradou à condição de setor organizado do banditismo nacional. […] esse não é um crime isolado, nem será o último. […] Pois esse país é, antes de qualquer coisa, uma forma de violência.”

Na fusão que fiz acima de trechos do artigo de Safatli se pode ver, creio, o que pode ser chamado propriamente de essencial: para o autor, governo e país estão fundidos na mesma forma, a forma da violência. Não creio que se possa ir muito longe com esse tipo de abordagem, pois ela passa por cima do que realmente importa: o caráter autoritário do nosso Estado de direito, que abriga um governo golpista e submete uma sociedade inerte, mas não se confunde com nenhum dos dois nem, principalmente, reúne os dois.

Por isso mesmo, ao contrário do que diz Safatli, não estamos diante da “consolidação de uma estrutura de fato”; é justo o contrário: os assassinatos (que se deram no bojo de uma luta de facções estatais) e a reação a eles (que se dá em meio a um processo de alarme e, oxalá, de esclarecimento na sociedade), são evidências de que estamos diante de uma crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, que é o oposto da consolidação do que quer que seja! Naturalmente, como já salientei aqui e em muitos outros posts deste blog, podemos assistir, como desdobramento dessa crise de legitimação, a uma regressão a formas ainda mais autoritárias, mas não há evidência de que essa situação já se tenha configurado.

Ainda na linha das elaborações pouco esclarecedoras, embora motivadas por uma justa e louvável indignação com os assassinatos de Marielle e Anderson, oportuno comentar artigo de Vinicius Torres Freire, também publicado na Folha de ontem. Segundo ele,

“Até por haver indícios, é difícil de acreditar que representantes do crime institucional não tenham chegado a postos mais altos nos três Poderes. Depois de dominarem territórios e corromperem ou cooptarem parte das polícias, começam a ocupar partes do comando do Estado; contam com tropas e terroristas.”

De novo, o defeito está em não enxergar o Estado conflagrado numa luta de facções. Tudo se passa como se houvessem instituições hígidas, num Estado legítimo, no qual agentes do mal “começam a ocupar partes do comando”… Ora, a gravidade da situação já escancarou que estamos muito além desse ponto de “começo” – estamos em plena crise de legitimação, e as facções estão a medir forças, sabedoras de que não há hegemonia estatal que as possa conter. Estão em busca de uma nova hegemonia.

Nessa linha de ideias, não vejo diferença estrutural  (veja bem, leitor, estrutural) nenhuma entre a busca pelo controle da distribuição de gás numa favela pelas milícias policiais e a busca pelo controle da boca de fumo que paga propina à polícia civil para funcionar na mesma favela; ou entre a expropriação de apartamentos do Minha Casa Minha Vida por milícias e/ou traficantes e a briga facciosa do Judiciário pela manutenção, contra nós, desse imoral auxílio-moradia; ou entre o indulto natalino de Temer ao arrepio do bom direito (pelo qual ele mandou recado aos parceiros já apanhados na Lava Jato, inclusive a Lula) e a reformulação inconstitucional desse mesmo indulto pelo ministro Barroso do STF (pela qual ele mandou recado populista à opinião pública revoltada).

Finalmente, parece útil comentar o informado artigo de Bruno Carazza, também na Folha de ontem, também escrito em reação aos assassinatos de Marielle e Anderson. Depois de nos apresentar como epígrafe do seu artigo essa fala do capitão Nascimento, personagem do filme Tropa de Elite-2:

“O sistema é muito maior do que eu pensava.
Não é à toa que os traficantes, os policiais e os milicianos
matam tanta gente nas favelas.
Não é à toa que existem favelas.
Não é à toa que acontece tanto escândalo em Brasília.
E que entra governo, sai governo, a corrupção continua.
Pra mudar as coisas, vai demorar muito tempo.
O sistema é foda.
Ainda vai morrer muito inocente.”

Depois da epígrafe acima, Carazza traz um arrazoado tão bem informado quanto moralmente bem posicionado sobre Marielle, mas tudo para concluir que o brutal assassinato dela:

“É como se fosse um recado para o cidadão de bem que aos poucos volta a se interessar pela política: tome cuidado, o sistema aqui é bruto.”

Ou seja, mais uma vez se apresenta uma leitura que supõe um Sistema operando inteiriço sobre tudo e todos, capaz de mandar recado unificado. Infelizmente, trata-se da mesma perspectiva ficcional limitadíssima, e conspiratória, do pobre capitão Nascimento, um agente, por definição, desprovido de uma visão de conjunto. Ignora-se, assim, a luta de facções que, precisamente, impede a vigência de qualquer Sistema, pois ela se dá nas entranhas mesmas do Estado de Direito Autoritário em disputa.

A nossa desgraça, leitor, é precisamente a ausência de qualquer princípio ordenador, uma situação que está a exigir de cada um de nós um engajamento lúcido na busca de uma solução, que terá de ser inovadora. Não haverá novidade se não pensarmos diferente, se não buscarmos saídas diferentes, para além dessa polarização fajuta em torno de estéreis ideologias inatuais, que sequer são realmente defendidas por seus arautos: uma direita liberal que diz defender o livre mercado, mas chafurda na corrupção de modo a obter lucros enquanto hipocritamente instrumentaliza o Estado contra a concorrência que seria a consagração do livre mercado “idealizado” por ela; e uma burocracia autointitulada de esquerda que reforçou as estruturas corruptas do Estado e nada fez contra a desigualdade, mas fica a se pavonear como herdeira de uma controvertida tradição socialista.

Nessa busca pela novidade, aquilo de que não podemos abrir mão é justamente das franquias democráticas já conquistadas, estando as eleições de 2018 no centro articulador delas, cuja campanha será uma oportunidade para fazermos a conversa sobre a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, na perspectiva de, a partir das eleições, iniciarmos a construção institucional de um Estado de Direito Democrático, que permitirá consolidarmos a democracia.

Num ânimo desses, quase desnecessário dizer que na disputa para os Executivos-gestão (presidente da República e governadores) deveremos não apenas repudiar a direita Boçalnara, mas negar o voto a qualquer candidato do PT, do PSDB ou dos dispositivos paisanos da ditadura de que eles se valeram em sua polarização fajuta (p-MDB e DEM). No tocante aos Legislativos-representação (Congresso e Assembleias), trata-se não apenas de seguir a orientação anterior, mas sobretudo de promover uma profunda e abrangente renovação, sem a recondução nem mesmo de quem quer que seja reputado como bom, como já argumentei aqui.

5 pensou em “O QUE APRENDER DOS ASSASSINATOS DE MARIELLE E ANDERSON? — 2 DE 2

    1. Carlos Novaes

      Melina, se você ler os meus textos que estão em hiperlink nesse post que você comentou terá uma boa ideia do conjunto — pode, também, ler os posts que aparecerem em hiperlink nesses que estão em hiperlink…, num processo que dá acesso ao conjunto do que tenho publicado…

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    2. Carlos Novaes

      Ah! Minha denominação é Estado de Direito Autoritário, não Estado autoritário de direito…

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  1. Maisa Raele

    Seus artigos são sempre muito esclarecedores e impecáveis. Vivemos tempos muito difíceis e até bastante confusos, e seus textos, adornados de fina acuidade, muito nos auxiliam a compreender melhor toda essa esparrela em que estamos metidos.

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