DESORIENTAÇÃO FAVORECE O PROTOFASCISMO

Carlos Novaes, 05 de abril de 2018

[com acréscimo às 22:56]

Em longa sessão que varou a madrugada de ontem para hoje, o Supremo Tribunal Federal-STF pôs a nu, minuto a minuto, a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. Não pode haver expressão maior de crise num Estado de direito do que uma controvérsia aberta acerca de direito constitucional básico ser driblada, de forma facciosa e precária, em favor de uma interpretação da Constituição que, a um só tempo, aponta para um Estado de Direito Democrático, mas traz embutida a plausibilidade da sua reversão no futuro próximo, reforçando seus adversários.

Deixem-me tentar explicar o parágrafo acima:

O direito constitucional básico em questão é o direito à presunção de inocência. O que está a dividir o STF é, em suma, se este direito está sendo ferido quando se permite mandar à prisão réu condenado que ainda pode recorrer a instâncias superiores. No caso específico, a discussão se deu sobre o caso de Lula, condenado facciosamente no caso do triplex em primeira e em segunda instâncias.

Talvez a análise fique mais clara se eu disser de cara a minha posição sobre as duas coisas:

  1. Sobre a matéria de fundo: sou favorável à prisão com base em condenação de segunda instância, única maneira de impedir que os criminosos que têm dinheiro escapem da prisão pelo uso infindável dos recursos legais disponíveis. Reconheço que a Constituição atual parece vedar essa modalidade de prisão, mas entendo que numa crise de legitimação a própria Constituição se faz terreno de disputa.
  2. Sobre a prisão de Lula: embora tenha claro que Lula sabia e participou da corrupção em seus governos, entendo que no caso do triplex ele foi condenado sem provas, numa operação facciosa que reforça o Estado de Direito Autoritário. Apoiá-la é contraproducente para quem almeja um Estado de Direito Democrático.

Nesta madrugada e nas horas que a antecederam, esses conflitos avançaram mais um anel no vórtice da crise de legitimação e, portanto, tornaram-na ainda mais clara e aguda, pois nesse anel mais estreito se adensou o que já era ambíguo, irresolvido e incerto. Dividido na matéria em duas facções, isto é, em duas formações provisórias e circunstanciais, que se juntam por afinidade e propósitos comuns temporários, o Supremo nos ofereceu uma narrativa do que se passa no Estado de Direito Autoritário brasileiro na forma de um complexo reality show (atenção, leitor: estou a falar do que se passa no Estado, não na sociedade).

De um lado, temos a facção que reuniu os transformadores, dos quais a aliada mais incerta é a ministra Rosa Weber, sendo o aliado mais circunstancial Alexandre de Morais. Do outro lado está a facção do establishment, da qual o membro mais circunstancial é Toffoli. Weber é aliada incerta porque diz ter sobre a matéria de fundo entendimento doutrinário contrário aos outros membros de sua facção, não sendo certo o que fará na hora em que a questão voltar a voto em um futuro próximo; Morais é aliado circunstancial porque sua filiação extra-Tribunal é protofascista e nada garante para onde ele penderá num futuro mais distante e/ou se entre os ameaçados de prisão vier a estar um Alckmin; Toffoli é membro circunstancial porque na sua filiação extra-Tribunal ele é lulopetista, o que o faz adversário dos outros membros da sua facção atual no plano da disputa mais geral pela hegemonia no poder de Estado hoje sem hegemonia.

O embate acima, embora tenha se revelado central, é apenas parte da disputa mais geral que está a se dar entre as facções estatais. Se é verdade que os homens fazem a sua história sob condições que não puderam escolher, torna-se ainda mais difícil manejar os cordões quando há conflagração de interesses e não se tem uma visão do conjunto, que permitiria ajuizar direito o sentido de cada escolha nova que se está a fazer. É em razão dessa cegueira para ter uma visão de conjunto que os atores exibem desorientações várias nas escolhas que fazem a cada laçada da espiral da crise.

A cegueira principal é não enxergar a crise de legitimação do Estado de Direito. É essa cegueira que levou os transformadores (Barroso, Fachin, Cármen Lúcia e, de certo modo, Fux) a não separarem os dois aspectos da matéria. Valendo-se do poder de presidente do Supremo, Cármen Lúcia, numa manobra facciosa, arranjou as coisas de modo a evitar voltar a deliberar sobre a matéria de fundo, para a qual teme já não ter maioria afinada com a transformação que pretende para o direto constitucional brasileiro — uma vez que Gilmar mudou de lado e Rosa Weber, embora venha reiterando a nova jurisprudência na prática, não parece, mesmo, ter mudado seu entendimento doutrinário sobre a matéria.

O problema é que ao conduzir as coisas desse modo os transformadores não se deram conta de que podem ter trocado uma vitória de Pirro por um reforço das facções opostas à transformação que pretendem. A vitória pode ter sido de Pirro porque mesmo que Cármen Lúcia consiga continuar a obstar uma nova deliberação da matéria de fundo, é certo que ela voltará a ser discutida quando Toffoli assumir a presidência do Supremo. Mais lá adiante, depois da eleição, sob nova presidência na República e no Supremo, nada garante que ainda se poderá contar com o voto de Morais e, ademais, poderá ser tarde para arriscar contar com uma alteração na preferência de Weber. O reforço das facções opostas à transformação se deu porque a confirmação dessa prisão de Lula chancela o que há de anti-democrático na Lava Jato e favorece o avanço eleitoral das facções pró-establishment.

Esse avanço eleitoral, aliás, embora se dê contra o lulopetismo, não garante que Lula venha a pagar pelos malfeitos que protagonizou, afinal, a polarização entre eles é para inglês ver e numa reacomodação política entre as facções estatais que conserve o Estado de Direito Autoritário haverá esforço comum para que nenhum deles fique na cadeia, como já deixam claro as movimentações de hoje no Executivo-gestão e no Legislativo-representação. Exemplo em miniatura dessa reacomodação propriamente estatal é justamente a facção que perdeu por 6×5 nessa madrugada.

Olhada dessa perspectiva, a situação mostra todo o absurdo de defender a Constituição atual em favor de Lula, como fazem a autointitulada esquerda e uma parte dos liberais, todos travestidos de defensores de um suposto Estado democrático de direito (e isso com o comandante do Exército dando voz, impunemente, ao golpismo existente em suas fileiras!), que se recusam a enxergar a guerra de facções e a crise de legitimação respectiva. Essa autointitulada esquerda se entrincheirou contra uma transformação jurídica benéfica na luta contra a desigualdade para insistir na defesa política de um líder que traiu as bandeiras e princípios que simulou defender, a começar pelo combate à desigualdade. Ali aonde não chegou a má fé interessada, a desorientação é total.

O fato de a decisão de ontem ter contemplado a facção militar já insurgida não deve se prestar a aumentar a desorientação. O apoio desses militares não é ao ímpeto transformador da Constituição que orienta os transformadores. Não. O que eles apoiam é a prisão de Lula, um personagem que eles preferem enxergar como representante de uma esquerda só existente na cabeça deles, obnubilação que reforça a mistificação geral que preside o aturdimento, a revolta e o recalque distribuídos pela maioria da sociedade – situação que favorece o avanço do protofascismo, a vertente política que sempre se beneficia do afloramento da estupidez, pois ser estúpido não requer, mesmo, nenhum esforço.

Acréscimo às 22:56:

  • A célere deliberação da prisão de Lula pelo TRF-4, assim como o pronto atendimento de Moro, escancaram o que há de anti-democrático na atuação facciosa dessas instâncias da Lava Jato. Lula está sendo tratado de um modo que favorece sua condição de líder a ser defendido contra uma ilegalidade perpetrada por um Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação. Uma prisão de Lula assim provocativa e traumática pode trazer a furo a falta de legitimidade do Estado e, nesse caso, não há porque descartar um abrangente movimento de alinhamento com Lula se ele resolver resistir à consumação dessa arbitrariedade, ainda que não se deva esquecer o papel que o próprio Lula desempenhou na construção desse estado de coisas.

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