FACCIOSISMO FEZ DE LULA UM PRESO POLÍTICO

Carlos Novaes, 08 de julho de 2018

[Com acréscimos em 09/07 e em 10/07, em Fica o Registro]

Como já dito, detalhado e explicado: embora não tenha nenhuma simpatia política por Lula, entendo que a condenação que o levou à prisão foi exarada sem provas. A prisão dele foi uma decorrência não do funcionamento da Justiça, mas do fato de que Lula chefia uma facção estatal que foi desalojada da condição de protagonista no exercício faccioso dos poderes institucionais pela ação convergente das facções concorrentes no âmbito desse teatro de operações em que a Lava Jato se transformou faz tempo. Por isso mesmo, todo o esforço de Lula e dos lulopetistas que sabem o que estão fazendo está voltado não para transformar o Brasil, mas para voltarem à condição de protagonistas no exercício do mando em nosso Estado de Direito Autoritário, como ficou claro nas circunstâncias em que se deu a prisão do petista, discutidas aqui e aqui.

Diante desse esforço do lulopetismo, as facções adversárias têm reações diferentes, conforme tenham mais ou menos razões para temer que Lula tenha êxito. As facções mais orientadas pelos interesses eleitorais tucanos atuam de modo a manter Lula na prisão, temendo mais os prejuízos eleitorais de uma volta dele ao cenário do que os prejuízos evidentes infligidos ao país por uma prisão assim arbitrária. As facções que sabem poder compor eleitoralmente com Lula, nas quais o p-MDB tem papel articulador, têm dado sinais crescentes, embora não unânimes, de que aceitariam um rearranjo em torno do petista.

Girando para além do eixo propriamente eleitoral, braços mais ajuizados das facções estatais estão cientes não apenas de que a eleição programada, tenha o resultado que tenha, não resolverá a crise de legitimação do Estado, mas também de que a situação de Lula fragiliza ainda mais o exercício faccioso dos poderes institucionais. E isso por duas razões: primeiro, Lula preso mantém na ordem do dia a exigência de que outros implicados também sejam presos, o que impede a reestabilização do arranjo mais geral; segundo, a força do prestígio de Lula, revigorada pela prisão sem provas, torna impossível simular para a sociedade, sem a participação do petista, que a crise de legitimação do Estado foi superada.

Em outras palavras, para os facciosos que querem manter o status quo e têm juízo o impeachment deu tão errado que o ideal, agora, seria poder voltar à situação pré-eleitoral de 2014: tentar a sorte optando por se alinhar contra ou ao lado de Lula, buscando os arranjos de poder que a escolha implicar (tal como teria sido possível se Lula tivesse assumido a Casa Civil sob Dilma). São essas circunstâncias complexas e os cálculos não menos complexos delas decorrentes que explicam sejam as decisões em série da maioria facciosa da segunda turma do STF, determinada a tamponar as vias transformadoras que foram abertas contra o autoritarismo do Estado de direito brasileiro; sejam as movimentações dos militares, que não estão dispostos a “matar os 30 mil” do Bolsonaro para manter vantagens que podem conservar se repavimentarem as pontes com Lula; seja a concatenação facciosa escancarada entre Fachin, TRF-4 e Moro, que insistem em manter um programa máximo unilateral que torna uma piada de mau gosto o que quer que se possa entender com uma causa republicana.

A movimentação ocorrida neste domingo em torno do habeas corpus de Lula deve ser examinada à luz do entendimento exposto acima. A frenética concatenação entre Moro e o TRF-4 escancara uma articulação facciosa que já fora possível perceber quando Fachin recebeu celeremente do mesmo TRF-4, como que por encomenda, a decisão que lhe permitiu evitar a votação de um pedido de soltura de Lula na mesma segunda Turma. Como a decisão de soltar Lula também foi facciosa, a conflagração das facções estatais atingiu um ponto que torna ridículo que alguém ainda fale em Estado democrático de direito, como fazem as facções em disputa, cada uma reivindicando sua própria causa como um resgate ou afirmação dessa quimera.

Como quer que você se alinhe, leitor, o fato é que hoje Lula obteve um triunfo inegável: viu explicitar-se para o observador recalcitrante a sua condição de preso político. A crise de legitimação só faz crescer, o que apequena a eleição e deixa cada vez mais clara a fraqueza dos candidatos à presidência.

Em 09/07 — Fica o Registro:

  • O tom predominante do que hoje aparece na mídia sobre esse episódio do habeas corpus do Lula é o de que houve falha jurídica, trapalhada, palhaçada, atropelo de hierarquia, bizarrice, partidarismo jurídico e por aí vai:  puro escapismo de quem não vê ou finge não ver a gravidade do que se passa no Estado brasileiro. Todas essas “análises” tem em comum o fato de se concentrarem improdutivamente na conduta particular dos personagens envolvidos (e, até, no caráter deles!), como se a enormidade do que se passa pudesse ser explicada pelas escolhas desses indivíduos, como se fosse possível não estabelecer conexão direta entre esse episódio e todas as outras decisões mais recentes no STF pró e contra Lula e outros réus e suspeitos da Lava Jato, ou mesmo as mais recentes decisões pestilentas do Congresso sobre agrotóxicos, ou ainda a manutenção de vantagens estatais para facções estatais, como o auxílio-moradia aos juízes — a crise também é crise de legitimação ali onde as facções enxergam oportunidades, leitor. Enfim, olhados em seu conjunto, esses embates nada têm de personalizados e deixam claro que está a ficar a cada dia mais aguda a guerra de facções no curso da crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário — como já foi dito há tempos, só na rua o Brasil tomará o rumo de um Estado de Direito Democrático.
  • 10/07 — Mais claro, nem por encomenda: a imprensa traz hoje relato detalhado de como deputados do PT, inclusive à revelia da defesa técnica de Lula, agiram para exibir deliberadamente a guerra de facções estatais em que se movem os lulopetistas e seus adversários, justificando inteiramente o texto publicado aqui quando Lula se entregou sem se fazer prender: Lula dobrou sua aposta na guerra de facções. Tal como as outras facções, os lulopetistas tentam manejar a opinião pública que já é, e que pode vir a ser, favorável à causa deles não para tirá-la da inércia, mas apenas para aumentar-lhes o cacife tanto na guerra faccional em si quanto nessa eleição ridícula, voltada a simular a superação da crise de legitimação que engolfou a todas as facções. Como é próprio de situações assim agônicas, em que a marca dos protagonistas é a cegueira para o abismo em cuja borda estão a dançar, essas facções estatais não param de ver oportunidades ali onde abrem portas para o caos: as facções no Judiciário (judicação) querem incorporar o auxílio-moradia aos salários; as facções nos presídios (violação) se mostram mais sangrentas do que nunca em sua própria luta por hegemonia; as facções no Executivo (gestão) prevaricam na selva e na cidade em troca de vantagens imediatas, pouco se lixando para o futuro (em que já estarão mortos); e as facções no Congresso (representação) têm aprovado toda sorte de legislação retrógrada e nociva, ao mesmo tempo em que se redistribuem entre as candidaturas presidenciais, garantindo interlocutores seguros por toda parte para, naturalmente, voltarem a se acertar depois das eleições no intuito de mostrar quem manda ao novo presidente da “República”, que docemente constrangido aceitará a canga — a menos que a maioria da sociedade se mexa.

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