MONTADOS NA (SUA) GRANA PARA A REELEIÇÃO

Carlos Novaes, 11 de agosto de 2018

A Folha de S.Paulo publicou nesse final de tarde uma matéria muito reveladora sobre o uso do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral pelos partidos políticos. Quem acompanha este blog sabe que defendo o fim dos dois fundos, pois garantir dinheiro do contribuinte para as traficâncias dos políticos profissionais é um verdadeiro nó contra a mudança: eles usam o nosso dinheiro para continuarem a manter partidos tão fortes quanto fajutos e para alcançarem mandatos contra nós.

Mas passemos adiante. O que há de mais interessante na matéria é a poupança do Fundo Partidário que os partidos do Centrão fizeram para gastar na eleição. Como eles não têm projeto ou atividade mais importante do que as próprias reeleições, guardaram o dinheiro para o que lhes interessa. Vão somar ao Fundo Eleitoral mais de 80 milhões de reais.

Note bem, leitor: esse apego à reeleição vem desde os tempos da ditadura paisano-militar, pois a ditadura não impediu a continuação da escolha dos deputados pelo voto. Pelo contrário, a manutenção da rotina eleitoral profissional para a Câmara no curso de toda a ditadura foi o fundamento principal para a transição lenta, gradual e segura: a Arena (depois PDS/PFL, DEM) e o p-MDB — com suas respectivas sublegendas (facções internas que disputavam eleições para prefeito umas contra as outras) — tudo fizeram para projetar Nova República adentro as práticas eleitorais, os interesses e as prerrogativas de mando que os caracterizavam desde sempre: eles vieram para a democracia com a boca tão torta quanto era na ditadura (sobre esse legado paisano nefasto, além de já ter escrito aqui em mais de um texto, também dei um depoimento detalhado, que está no YouTube).

Logo, não é, como diz um cientista político na matéria, que o Centrão poupou recursos e está de olho na reeleição para a Câmara porque

“é a vaga na Câmara que vai definir a distribuição futura dos recursos. O fundo partidário é decidido lá, o fundo eleitoral, também, e o tempo de TV é distribuído lá [conforme o número de deputados]. Não querem saber de governar, de ganhar Executivo.”

Não. Pensar assim é típico de quem analisa a política tentando entrar na cabeça dos políticos e, pior, levando a sério o que os políticos dizem! O fato de o fundo partidário, o fundo eleitoral e o tempo de TV serem decididos na Câmara; bem como o fato de esses partidos não fazerem questão nenhuma de ganhar diretamente o Executivo, são decorrência de eles terem mantido a estrutura e as práticas (a forma de atuar) que já tinham na ditadura: não podiam disputar o Executivo e, por isso, se especializaram em se reelegerem para, na miúda, fazerem as traficâncias graúdas. Foi assim que a ditadura selecionou sempre os piores: se acomodavam ao arbítrio, abriam mão de pensar o país, de propor saídas para os sofrimentos do povo, e cuidavam só do próprio vidão, que os mandatos na Câmara já proporcionavam – trouxeram tudo isso para a Nova República.

Peço a sua licença para ser didático no limiar da deselegância: o recentíssimo Fundo Eleitoral, que é de 2017, é um privilégio que eles somaram a uma outra novidade menos recente, o Fundo Partidário. Essas novidades não poderiam explicar um comportamento que vem desde a ditadura! É o contrário: essas novidades apareceram do jeito que apareceram, foram aprovadas do modo como o foram, precisamente porque o jogo na Câmara é velho como o diabo! São apenas decorrências de um apego à Câmara que vem de longe, pois foi ali que eles aprenderam a ser como são. Em suma: não fazer questão de disputar o Executivo, de governar diretamente, é uma preferência muito anterior, e não pode ser vista como consequência do apego que os profissionais de carreira têm por privilégios que mais recentemente garantiram a si mesmos na Câmara.

Por que é tão importante entender isso e não inverter algo tão básico em ciência como a relação causa-efeito, como fez o desorientado “cientista” político da USP?

Porque sem entender esse esquema a gente deixa escapar o fundamental e, aí, acaba comprando outras bobagens desses cientistas políticos que pensam a governabilidade como um jogo de mercado entre um presidente imperial e uma Câmara com partidos fracos. É justo o contrário, leitor: a presidência é fraca e os partidos são fortíssimos, arrancando do presidente tudo o que dele precisam. Não é que os partidos sejam programatica ou ideologicamente fortes, claro que não. Eles são fortes enquanto máquinas facciosas apegadas aos próprios interesses. O presidente só é “forte” enquanto existem duas condições:

  1. O que o presidente consegue “dar” é suficiente para receber maiorias na Câmara
  2. A sociedade se mantém dócil apesar dos sofrimentos que essa ordem malsã impõe à maioria de nós.

Temer já está sozinho porque já não consegue “dar” e os profissionais da reeleição já estão de olho no próximo. Se deixarmos de lado as diferenças entre os dois, Dilma e Collor caíram porque o que podiam “dar” não compensava o prejuízo de mantê-los diante de uma opinião pública convulsionada.

Então, voltando: o Centrão economizou porque desde a ditadura obedece à mesma forma de fazer política: ter mandatos na Câmara não apenas pelos mundos e fundos dela, mas sobretudo para arrancar o que puder de um Executivo que está lá para “dar”. Na época da ditadura, eles não tinham poder para ameaçar o mandato do presidente-ditador; na transição fizeram o aprendizado de usar em proveito próprio a pressão da sociedade para constranger o presidente-ditador e, em seguida, tornar marionete o presidente-tampão; com a volta da escolha eleitoral direta, continuaram a não ter projeto para o país e a exercer a sua especialidade: pressionar o presidente eleito, vendendo caro o seu “apoio” ao projeto vitorioso nas urnas, sempre inviabilizando mudanças que atinjam seus interesses e os dos muito ricos, a quem defendem.

A democracia eleitoral foi vivida por eles como uma oportunidade, pois continuaram a agir como antes, só que agora diante de um presidente muito mais fraco – por isso já conseguiram derrubar dois, pois iludem a sociedade de que os problemas estão na presidência. Usam presidentes inadequados (por incompetência, roubo e/ou traição) como biombos para encobrir a si mesmos (sua incompetência, seus roubos, suas traições), ou como espantalhos, tangendo contra o Executivo a ira da sociedade (provocada por essas mazelas), quando, na verdade, nossos problemas fundamentais estão principalmente no Congresso, que é o coração da forma política herdada da ditadura e que moldou nosso Estado de Direito Autoritário, cuja atual crise de legitimação é uma decorrência dessas práticas.

Tendo sofrido com presidentes ditatoriais inamovíveis, a maioria da sociedade vem sendo manipulada, por políticos profissionais saídos dos mesmos esquemas que serviram aos ditadores, para se entregar, agora, à catarse de poder afastar um presidente de que não goste — e há quem nisso comemore a “robustez das nossas instituições democráticas”.

E há, ainda, quem diga que nossos problemas resultam de uma Constituição “parlamentarista” que, contraditoriamente, manteve o presidencialismo. Não. Nossos problemas são anteriores: eles decorrem de termos passado a escolher o presidente da República pelo voto direto, mas mantendo os dispositivos paisanos da ditadura no comando do Congresso — resultado: por mais mudancista que seja o presidente eleito pela maioria via democracia eleitoral, ele sempre fica à mercê da maioria congressual anti-mudança que nos foi legada pela ditadura, eleita e reeleita pelas rotinas a que nos abandonamos.

A verdadeira importância de mais essa eleição não está na escolha de mais um presidente (até porque a oferta de candidatos…), mas na oportunidade de não reeleger essa corja que está aboletada no Congresso. Há quem mostre números “provando” que temos tido renovação congressual. Isso é falso. Esses números mostram reposição de estoque, não renovação: é mais do mesmo, com a mesma validade, pois saídos das mesmas facções.

Fica o Registro:

– Fiquei estarrecido com o que vi no debate. Alckmin repetindo o figurino de todas as outras eleições, como se nada tivesse acontecido de 2013 para cá; Ciro até que tentou se apresentar à altura da situação, mas essa oferta Spam de “tiro seu nome do SPC” foi, como disse uma amiga minha, “uma saída a Silvio Santos” (e não por ser inexequível, mas pelo absurdo de fazer disso uma proposta presidencial); e Marina, sempre em apuros para gastar o tempo, respondia toda pergunta com uma descrição tão geral quanto óbvia do problema que lhe foi apresentado, sem qualquer indicação de como resolve-lo. Quanto aos demais…

– Com a ausência do PT no debate, a novela do Lula (uma engenhosa tentativa que depende de a maioria se abandonar à fantasia) começou a ser triturada pela realidade. Vai ficando claro que Lula foi longe demais na sua certeza da transferência de votos, e o PT passou a exibir ao público a sua tragédia: não tem para onde correr e, como é comum nessas situações, aferra-se na negação da única chance que ainda poderia existir porque a alternativa Haddad escancara que a máquina não é capaz de enfrentar a situação com base em si mesma.

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