HADDAD JÁ ESTÁ NO SEGUNDO TURNO?

Carlos Novaes, 26 de agosto de 2018

Vai se alastrando pelas redações e pelas campanhas a ideia precipitada de que Haddad já estaria no segundo turno, sendo a outra vaga disputada entre Bolsonaro e os demais. Essa precipitação decorre, sobretudo, de análises erradas sobre o crescimento de Lula nas pesquisas – o que se diz por aí pode ser resumido assim: “mesmo preso, Lula tem conseguido crescer nas pesquisas e já tem percentuais equivalentes aos de eleições que venceu”. Chega a dar preguiça.

Ao acharem que a força de Lula está tolhida pela cadeia, esses analistas ficam a fantasiar sobre o que o ex-metalúrgico não faria se estivesse solto… e, por isso, imaginam que essa força irá desaguar como um jorro de cântaro sobre Haddad. A premissa é falsa, e a conclusão, incerta.

Antes de enfrentarmos a pergunta do título, há que responder uma outra: por que Lula cresceu?

Lula cresceu não apesar de estar preso; Lula cresceu porque está preso. Isso faz toda diferença, especialmente quando se pensa em “transferência de votos”.

Lula cresceu porque vão se alastrando tanto o entendimento de que ele foi vítima de uma injustiça, quanto, sobretudo, o sentimento de que ele é a vítima solitária de uma ilegitimidade.

Primeiro, mais e mais pessoas vieram se convencendo do óbvio: o processo que pôs Lula na cadeia é uma fraude — eis a injustiça.

Porém, mais significativo é o fato de que o arbítrio seletivo, faccioso, sobre Lula o tornou a vítima solitária e, por isso, mais visível, do facciosismo que ele próprio praticou no Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação — eis a ilegitimidade.

Nesse desenho, Lula figura como vítima da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, não como um personagem que aderiu a esse Estado e cujas escolhas e práticas foram decisivas para precipitá-lo na crise atual. Na verdade, Lula e o PT foram derrotados numa das batalhas da guerra de facções estatais em curso, e lutam para dar o troco. Isso nada tem que ver com compromisso com os pobres, que entram na história como exército eleitoral de reserva.

Nada de suas escolhas e práticas nefastas tem aparecido na campanha, ou nos debates. Lula se beneficia triplamente da própria ausência: só aparece como vítima; não tem como ser questionado pelos adversários e, por isso mesmo, vem sendo poupado pela covardia oportunista desses mesmos adversários, todos querendo ficar bem com o eleitorado que lhe é fiel enquanto robustecem a narrativa esperta do ex-presidente, fazendo dele o beneficiário de uma bolha de intenções de voto. Uma pantomima digna dessa crise de legitimação sem vetor promissor.

Essas circunstâncias tiraram do foco de parte da opinião pública o que houve de criminoso nos governos de Lula, e vêm permitindo que ele e seu PT alardeiem um suposto compromisso contra a desigualdade e, de maneira ainda mais fraudulenta, uma disposição de enfrentar elites a quem, até recentemente, Lula se gabava de ter levado a ganhar dinheiro como nunca antes neste país.

Como não há debate esclarecedor, como a crise não dá trégua, como Lula é vítima e como não se produziu alternativa crível, declarar voto num Lula que não será candidato virou, para muitos (num paradoxo aparente), uma forma de protesto contra uma eleição em que não se apresentam saídas para as duas urgências do Brasil atual: a urgência social e a urgência por ordem. Troquemos isso em miúdos.

Embora não identifiquem analiticamente a crise de legitimação em que está mergulhado o Estado que os infelicita, aqueles que sofrem na pele o exercício faccioso dos poderes institucionais se vêem, todo o tempo, impelidos a dar o troco: se não para superar a crise de legitimação (uma crise que não enxergam), ao menos contra aqueles a quem dirigem sua revolta surda, uma revolta que tem tons de ressentimento.

Daí Lula e Bolsonaro estarem desde o início liderando as pesquisas: numa eleição em que a sofrida maioria da sociedade está desorientada pela extensão da ruína social e institucional em que se vê e, em razão dessa desorientação, não conseguiu forjar/encontrar uma saída, Lula, o “campeão” do social, se beneficia do sentimento anti-elite (embora ele tenha abandonado a luta contra a desigualdade e se associado às elites); e Bolsonaro, o “campeão” da ordem, se beneficia do sentimento anti-sistema (embora ele seja parte do que há de mais primitivo no sistema, sua truculência).

Como, por razões óbvias, Lula e seu PT não podem se engajar na luta anti-corrupção, estão impedidos de se apresentarem contra o sistema; já Bolsonaro, como um “anticomunista” e “liberal” recém-convertido, não pode se apresentar como anti-elite, não pode ter discurso social, e fica confinado ao discurso da ordem.

A prova maior de que a maioria da sociedade sucumbiu à desorientação provocada pela crise é o fato de os dois candidatos mais bem posicionados na disputa para a presidência da República serem aqueles que não podem reunir programaticamente as duas qualidades subjacentes à preferência da maioria: pró-social e anti-sistema. Mais uma vez, nossa desorientação desembocou na preferência nacional: uma polarização fajuta!!

Sendo assim, as possibilidades de Haddad ser beneficiado por uma enxurrada desses “votos” da bolha de Lula diminuem bastante, afinal, o eleitor terá de passar a um nível adicional de desorientação: escolher um preposto que, na figura do relativamente desconhecido Haddad, receberá, com toda justiça, toda a crítica represada contra Lula.

É também por isso que Lula arrasta sua pseudo-candidatura e Haddad não parece muito empenhado em ir aos debates — sabem que suas chances estão todas no risco de disputar o primeiro turno de supetão, com o mínimo de esclarecimento e confronto com a realidade.

Se houvesse um segundo turno Haddad X Bolsonaro teríamos a fajutice das fajutices: uma polarização entre duas marionetes*. Logo saberemos.

* Desenvolvi aqui a ideia de que Bolsonaro é um caso único de político que, ao invés de fazer das massas marionete, se fez ele próprio a marionete delas — daí ficar indo e vindo nos posicionamentos. O caso de Haddad não requer explicação, ainda que hajam detalhes aqui e aqui.

2 pensou em “HADDAD JÁ ESTÁ NO SEGUNDO TURNO?

  1. Carlos Alberto Vieira Mendes

    Não seria o momento de se fazer análise crítica sobre a superestrutura funcional?

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    1. Carlos Novaes

      A “superestrutura funcional” de que você fala são os funcionários públicos nas três esferas do Estado, municipal, estadual e federal. Tenho procurado mostrar aqui que nosso Estado de Direito Autoritário está contraposto aos interesses da maioria da sociedade. Ele herdou dispositivos da ditadura paisano-militar, bem como uma estrutura funcional que só faz acumular distorções, pois ela encontra no exercício faccioso dos poderes institucionais as traficâncias por meio das quais defende seus privilégios, a começar pelos previdenciários, que são projeção de seus privilégios remuneratórios na ativa.

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