ENTRE A FARSA E O DRAMA

Carlos Novaes, 01 de setembro de 2018

Desde a sua fundação o PT abrigou um contraste entre as preferências do carisma de Lula e as ambições da burocracia partidária, constatação que fundamentei há 25 anos, explorando suas contradições em análise que pode ser lida aqui.

O mundo girou, a Luzitana rodou, e esse contraste ganha contorno novo quando a decisão do TSE tira Lula da disputa presidencial e faz de Haddad o candidato do PT.

Tal como na escolha de Dilma para sucedê-lo quando a lei o impedia de concorrer a um terceiro mandato, também agora, quando novamente a lei o impede de concorrer a um terceiro mandato, Lula transpôs qualquer dinâmica propriamente partidária e empregou a força do carisma para impor ao PT um nome da sua preferência — com a repetição de um detalhe que mostra a orientação anti-máquina de Lula: na vez de Dilma, a escolha recaiu sobre alguém que só entrara no PT em 1992; na vez de Haddad, a escolha recaiu sobre alguém que fez toda a sua trajetória como minoria interna que se contrapunha à hegemonia da máquina.

Em 2009, Lula exerceu contra a máquina petista a desenvoltura que ganhara depois do mensalão; em 2018, Lula exerce contra o que restou do partido a desenvoltura que ganhou com os descaminhos facciosos do petrolão.

Em 2009, Lula ganhou desenvoltura porque o mensalão permitira que ele afastasse a sombra ambiciosa de José Dirceu, afirmação que para se entendida requer que se leia a análise que fiz aqui. Desde o mensalão o PT se tornou um mero instrumento dos desígnios políticos de Lula.

Em 2018, Lula manteve intacta sua desenvoltura contra a máquina porque enquanto o PT foi levado a um beco sem saída pela Lava Jato; Lula, titular do carisma e tendo recebido uma condenação sem provas (na qual o próprio juiz reconhece que não se estabeleceu relação jurídica do triplex com o petrolão), foi transformado em vítima pela mesma Lava Jato.

A vítima Lula é tudo o que a máquina petista tem e, para contrariedade dela, Lula ungiu Haddad, dando seguimento, numa antecipação de plano seu que começara a ficar claro quando impôs ao PT seu ex-ministro da Educação como candidato à prefeitura da capital paulista. Em suma, a prisão não levou Lula a mudar de método, nem o afastou de seu roteiro, apenas o obrigou a antecipar as coisas e Haddad se tornou sucessor mais cedo.

É mais que batida, eu mesmo já a empreguei, a sentença de que “a história se dá por assim dizer duas vezes, na primeira como tragédia, na segunda como farsa”. Dilma foi uma tragédia antecipada, como naquela altura sustentei aqui; mas não creio que o gênero de Haddad possa ser resolvido por antecipação: tem tudo para ser uma farsa, mas pode se revelar um drama tremendo.

Me vem à memória o filme chinês “Adeus, minha Concubina”, de Chen Kaige. Nele há uma triangulação amorosa que serve de metáfora para as assimetrias de gênero entre a farsa (o rei-Shitou_Xiaolou), a tragédia (a concubina-Douzi_Dieyi) e o drama (a prostituta-Juxian), que, por sua vez, projetam não menos metaforicamente os engajamentos e as ilusões (bem como a decorrência de ambos: os sofrimentos) do povo da China nos tempos em que o país foi submetido à guerra com o Japão, às ondas das revoluções lideradas por Mao e ao pragmatismo de Deng.

Não sendo o caso de explorar a riqueza dessas sobreposições, que o leitor mesmo já deve ter admirado nesse belíssimo filme, é bem o caso de registrar que o sentido mais alto do filme está em que, na vida real do homem comum, o drama é sempre o que se impõe depois da dança de véus entre a tragédia e a farsa.

O Brasil vive um tempo dramático, mas em lugar de revolução, é o vácuo que está à vista: nosso Estado de Direito Autoritário está em crise de legitimação, mas a maioria da sociedade não encontra meios de se fazer maioria na hora de produzir uma saída para as suas duas urgências fundamentais: a urgência social (emprego, saúde, educação) e a urgência por ordem (corrupção, banditismo convencional e abuso estatal). Não conseguimos encontrar um arranjo novo, em que a ordem esteja orientada para o combate à desigualdade e, por isso, estamos a contrapor o tema do “social” ao tema da “ordem”.

Se Haddad virar pó já no primeiro turno, terá prevalecido tudo o que há de farsa na candidatura dele. Se passar ao segundo, a farsa terá sido transposta, via carpintaria de telenovela, para dentro de um drama tremendo, que jogará o país num vórtice imprevisível.

Fica o Registro:

  • O ministro Facchin deu o voto favorável à candidatura de Lula que eu aventei fosse o voto do relator, o ministro Barroso que, mais uma vez, deu parecer formal contra Lula, mas ressalvando, de novo, que não estava a apreciar a sentença proferida por Moro e agravada pelo TRF-4 (como a indicar que discorda dela…).
  • Não há muito o que dizer, mas, atendendo a pedidos: nas entrevistas dos candidatos à Globo, a dupla do Jornal Nacional conseguiu a proeza de se mostrar mais despreparada do que os entrevistados — sequer tiveram competência para desempenhar o papel de algozes que equivocadamente escolheram. Bonner, sem agilidade para enfrentar o cinismo dos candidatos, tentou escapar ao próprio despreparo com uma postura particularmente impertinente: buscou sempre dar a última palavra para a conclusão de cada tema, como se os candidatos à presidência da República fossem jornalistas subordinados seus, como se alguém lhe tivesse dado o posto inexistente de “editor-chefe” da campanha presidencial — e nenhum dos candidatos o colocou no devido lugar; e isso por uma razão verdadeira: todos vivem no íntimo a evidência de que não estão à altura do desafio.

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