REFORMA CONTRA MUDANÇA

Carlos Novaes, maio de 2009

 

Avaliemos a reforma política que acaba de ser anunciada, tendo em mente que numa democracia o bom sistema eleitoral e partidário é aquele cuja desejável estabilidade de coordenação institucional que favorece seja amiga da alternância de poder em toda a cadeia e se harmonize com a participação do cidadão interessado. Por isso mesmo, toda reforma em favor de mais controle no topo do sistema deve ser avaliada tanto segundo este precise ou não de facilitadores para a construção de maiorias, quanto se ele padece ou carece de participação cidadã  — em outra chave, se ele está aberto demais ou fechado demais à mudança. Quem já está acomodado nos postos de mando tem inclinação por buscar mais recursos de coordenação, em geral inibindo as minorias e reduzindo os espaços propícios à intervenção do cidadão, agentes cuja atividade é vista, no limite, como perturbadora daquela que é tida como a ordem natural das coisas. No pólo oposto, minorias que aspiram poder institucional tendem a lutar contra as pretensões de quem manda mobilizando a participação cidadã pela mudança. Olhada desse ângulo, toda reforma política numa democracia deve ser observada tanto segundo facilite ou evite a prevalência de maiorias facciosas, quanto segundo repila ou propicie o engajamento dos cidadãos.

É voz corrente que a política brasileira precisa de mudanças. Os descalabros mais recentes, sem serem os piores, deitaram combustível à fogueira que vem acesa de décadas, sempre produzindo muito calor e pouca luz, de modo que é muito difícil ao eleitor discernir qual é, afinal, o bom caminho de mudança. Mas como fogueira que incendeia jornais também pode assar batatas, eis que as lideranças dos maiores partidos engendram uma satisfação ao alarido mudancista propondo mais uma vez uma reforma política que, despida da retórica que a embala, se faz em prol de mais controle no topo do sistema, partindo tanto de que ele precisa de mecanismos adicionais para permitir construir maiorias, quanto de que ele se desempenhará melhor se restringir e até abrir mão do engajamento do cidadão. Deu-se o paradoxo: a uma sociedade que clama por mudança se oferece uma reforma política que, se aprovada, resultaria em mais inibição à mudança.

Examinemos o que se propõe: voto em listas partidárias fechadas e financiamento público de campanhas eleitorais. As duas propostas vão na mesma direção: aumentam a capacidade de construir maiorias estáveis e restringem ou eliminam a participação do cidadão  — um sistema menos permeável à mudança, portanto. Pelo voto em listas o eleitor vota em partidos, não em indivíduos. A idéia é enfraquecer os indivíduos candidatos e, sobretudo, os que vierem a ser eleitos, em prol do fortalecimento dos atuais coordenadores da vontade partidária e, então, lograr a construção de maiorias de rotina. O eleitor veria restringida sua participação porque sua vontade de mudança teria de se exercer sobre o resultado do trato digestivo das burocracias partidárias e já não poderia contar com a força rompedora do indivíduo criador. Pelo financiamento público o Tesouro Nacional destinaria dinheiro público aos partidos, em troca de ficarem proibidas as contribuições privadas, sejam individuais, sejam coletivas ou empresariais. Se tudo corresse como se declara pretender, se fortaleceriam as atuais direções partidárias pela centralização dos dinheiros de campanha, extinguindo o poder de captação legal dos indivíduos candidatos e eliminando a participação cidadã no financiamento.

Tudo se passa como se o problema político-institucional mais urgente a resolver fosse essa alegada dificuldade para dar coordenação ao sistema e, para isso, o remédio seria conter ainda mais a liberdade dos indivíduos portadores da novidade, sejam eles candidatos, representantes eleitos ou eleitores. Será?

O sistema político brasileiro vem recebendo propostas e medidas de mudanças para melhor faz trinta anos. Exibidas no quadro abaixo, elas podem ser observadas segundo tenham sido benéficas ou prejudiciais à busca da democracia e conforme facilitem ou dificultem a coordenação.

 

TIPO

MUDANÇA

Efeito sobre a Democracia

Impacto sobre a Coordenação

Devolução de prerrogativas ao eleitor

Eleição direta para governador

Foram benéficas para a democracia, pois se tratava de ultrapassar a “estabilidade” da ditadura militar.

Dificultaram a coordenação e a estabilidade, pois aumentaram as preferências em presença.

Eleição para prefeitos das capitais e outras cidades “especiais”

Extinção da figura do Senador Eleito pelo voto indireto

Eleição direta para Presidente

MUDANÇAS EM PROL DO PLURALISMO

Retorno da liberdade partidária. Fim do bipartidarismo

Foram benéficas para a democracia, sobretudo porque reintroduziram prerrogativas das minorias.

Dificultaram a coordenação e a estabilidade, pois foram mudanças que ampliaram as vozes e os interesses em presença.

Propaganda Eleitoral Gratuita

INCREMENTO E DIVERSIFICAÇÃO DO COLÉGIO ELEITORAL

Voto do Analfabeto

Foram benéficas para a democracia porque o alijamento anterior dos contingentes agregados era contraditório com a presença que já tinham na cena pública política.

Dificultaram a coordenação e a estabilidade, pois trouxeram para o circuito dos votos válidos contingentes novos de preferência.

Voto aos 16 anos

Urna Eletrônica

MAIS ROBUSTEZ À REPRESENTAÇÃO

Dois Turnos

Foram benéficas para a democracia porque contiveram o individualismo exacerbado sem sufocar minorias, dando mais consistência à representação.

Facilitaram a coordenação e estabilidade do sistema, fortalecendo a representação, aumentando a previsibilidade e/ou contendo, na justa medida, a propensão individual à novidade.

Prazo mínimo para Filiação Partidária do candidato

Prazo mínimo de Domicílio Eleitoral

Voto nas Legendas-Listas Partidárias

Cláusula de Barreira

Fidelidade Partidária

Instituto da Reeleição Limitada a UMA

 Se fiscalizada, não prejudica a democracia.

Proibição de Coligações partidárias em disputas proporcionais

Seria benéfica porque não se deve partir de que o eleitor está informado.

Será inócua para a coordenação porque hoje ela não vincula o pós-eleitoral.

 

O quadro é cristalino e mostra a marcha equilibrada dos esforços institucionalizantes que vimos fazendo. Vale notar que a última mudança, a da fidelidade, não por acaso teve de vir via Judiciário, pois o sistema político dera sinais de que esgotara sua capacidade de fazer de forma autônoma as mudanças boas. Tudo indica que o mesmo se dará com a ainda irresolvida proibição das coligações partidárias em eleições proporcionais (deputados e vereadores). Esse esgotamento para a mudança boa reflete não a insuficiência de instrumentos de coordenação, mas, muito ao contrário, a oligarquização precoce do poder Legislativo, que, mais e mais constrangido pela hipertrofia do poder Executivo, se vê impelido a buscar meios de melhor se apresentar em bloco e encontra a resistência desconfiada dos indivíduos interessados submetidos, que temem as conseqüências de dar ainda mais poder aos “chefes”. É nessa linha de atrito que se põem as duas mudanças dessa reforma política.

As listas partidárias são desnecessárias porque ao punir com a perda do mandato aquele que troca de partido a lei já deu aos partidos instrumento que faltava (v. quadro acima), e que é suficiente, para dotar de solidez institucional as dinâmicas partidárias, que antes estavam à mercê de humores individuais, o que abria brecha para barganhas deletérias até mesmo da boa coordenação e permitia conduta fraudulenta para com o eleitor que votara no indivíduo imbuído de motivação partidária. As listas fechadas são desnecessária e inconvenientemente restritivas porque, em primeiro lugar, o sistema já dispõe do voto de legenda, que permite ao eleitor a escolha voluntária de um partido, se ele se der por satisfeito com um voto que já não é senão um voto na lista oferecida. Em segundo lugar, porque não há vantagem em retirar do eleitor, para ceder à liça das burocracias partidárias, o direito de votar em um nome da sua preferência, mormente depois do esforço ainda recente de lhe devolver essa prerrogativa, e na ausência de qualquer indício de que a vigência dela seja empecilho à boa ordem democrática. Em terceiro lugar, com a fidelidade, o candidato/eleito que receber a confiança pessoal do eleitor já está obrigado a buscar o entendimento no âmbito da ordem partidária, devendo a ela, portanto, um grau de obediência que só poderia ser aumentado pela supressão precisamente do elo representado pelo eleitor na cadeia. Ou seja, trocaríamos a escolha do eleitor por ainda mais poder para os dirigentes dos partidos submeterem seus liderados, facilitando o sufocamento de minorias internas que, não obstante, poderiam, pelas mãos do eleitor, se revelarem maiorias sociais.

O financiamento público de campanhas eleitorais é desnecessário e nocivo. Em primeiro lugar, porque o que falta ao sistema não é dinheiro. Em segundo lugar, porque conflita quer com as mudanças que buscaram devolver prerrogativas ao eleitor, quer com aquelas que buscaram incrementar e diversificar o colégio eleitoral brasileiro (v. quadro acima). Ou seja, querem nos fazer crer que será melhor para o sistema levá-lo a prescindir dos benefícios que a participação do cidadão a duras penas incorporado a ele traz ao contribuir financeiramente para o êxito da candidatura que apóia. O financiamento público sonegaria ao sistema um dos mais relevantes elementos para construir vínculos entre ele próprio, os candidatos e os eleitores, indo na rota contrária do que a democracia requer e contrariando a ampliação das possibilidades de contato, engajamento, captação e fiscalização que as novas mídias oferecem. Em terceiro lugar, ao impedir os candidatos de fazer captação de recursos a nova lei os deixa à mercê das preferências das direções partidárias, elas próprias resultado de disputas internas para construir maiorias, maiorias estas que receberiam do Tesouro um apoio que poderia facilitar sua transformação em maiorias facciosas, isto é, aquelas que atuam para suprimir as condições institucionais que permitiriam às minorias internas aspirar com realismo o lugar de maioria no futuro.

É até covardia, mas necessário, argumentar contra essa reforma invocando, ainda, o óbvio: a lei do dinheiro público não vai impedir a entrada pela janela dos dinheiros privados assim como a lei atual não impede o velho caixa dois. Nosso sistema precisa antes é do contrário: obrigar nossas elites partidárias a trabalharem para conquistar o apoio financeiro do cidadão. Ao ter de persuadi-lo, terão de criar mecanismos de participação e fiscalização, o que traria benefícios para todo o sistema. O dinheiro público só iria acomodá-las ainda mais, pois teriam garantido o básico sem oferecer garantias de que não buscariam o plus via caixa dois.

Tudo somado, essa reforma política despojaria nosso sistema de qualidades que já alcançou e não o dotaria de norma nova capaz de debelar problemas que ainda persistem, não obstante venha embrulhada numa retórica valorizadora de ideais e ornada de repulsas à corrupção. Nessa propaganda malsã, as listas fechadas nos dariam partidos ideológicos, mais puros, como se partidos assim fossem resultado da norma política que repele a participação e não da cultura política incorporadora que, ao longo do tempo, traduz e organiza diferenças reconhecidas na e pela sociedade. Propala-se ainda que o financiamento público acabaria com a corrupção e com a dependência aos donos do dinheiro, esquecendo-se que o dinheiro do caixa dois entra nas campanhas pelas mãos de oligarcas, os mesmos que controlam os partidos e suas campanhas, os mesmos que agora querem também uma dotação pública, com o nosso dinheiro.

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