CRISE DE LEGITIMAÇÃO E ELEIÇÃO PRESIDENCIAL – 2 DE 4

ESSA COZINHA NOS PREPAROU UM PRATO-FEITO INDIGESTO

Carlos Novaes, 29 de setembro de 2018

[com acréscimo às 19:25h, em Fica o Registro]

No artigo anterior vimos a origem do Estado de Direito Autoritário que infelicita o Brasil, bem como mostramos que, ao não enxergar que está a viver a crise de legitimação dele, a maioria da sociedade brasileira se deixou levar para uma falsa polarização entre suas duas legítimas urgências máximas: a urgência social (revolta contra a desigualdade) e a urgência por ordem (revolta anti-sistema).

Essa polarização é falsa por duas razões fundamentais:

  1. a urgência social só é urgência porque a desigualdade não atinge desfavoravelmente apenas aos mais pobres, antes emperra toda a estrutura social em que os pobres e as camadas médias têm seu potencial criador represado numa ordem que privilegia os ricos e impede todos os demais de serem recompensados pelo que poderiam realizar;
  2. não haverá ordem se a desigualdade não for enfrentada em benefício dos pobres e das camadas médias; e não haverá solução social eficaz e duradoura se ela não for consolidada numa nova ordem, contraposta ao sistema atual.

Como a raiz da formação das preferências eleitorais da atual campanha presidencial é essa polarização falsa entre o social e a ordem, a disputa eleitoral também foi orientada para uma falsa polarização: aqueles cujas motivações estão mais orientadas para a urgência social acabaram por dar preferência à candidatura de Haddad; aqueles que se orientam preferencialmente pela urgência por ordem acabaram por dar preferência à candidatura de Bolsonaro.

Além de oriunda de uma polarização falsa, essa polarização que opõe Haddad a Bolsonaro é falsa por outras três razões subsidiárias:

  1. Bolsonaro, além de pessoalmente desqualificado para a tarefa presidencial, está em contradição intrínseca com as duas urgências: com a social porque está associado a quem acha que “social” é sinônimo de coisa para “pobre vagabundo”, sem sequer suspeitar das complexidades que associam a desigualdade aos entraves ao desenvolvimento do país; com a ordem ele está em contradição por dois motivos: (a) por achar que vai enfrentar a bandidagem de rua-violência apenas com repressão, sem equacionar a desigualdade; (b) por usar a bandidagem estatal-corrupção, que é parte da ilegitimidade do sistema, como pretexto para voltar a uma ordem ilegítima, o Estado ditatorial.
  2. Haddad, embora pessoalmente qualificado para a tarefa presidencial, não tem legitimidade para se propor a enfrentar as duas urgências: no caso da ordem porque está na condição de representante de uma das forças políticas que protagonizaram a desordem promovida pela bandidagem estatal-corrupção, quadro que piora com o fato de que ele resistiu a toda e qualquer forma de autocrítica; no caso da social ele não tem legitimidade por duas razões: (a) por pertencer à força política que, chegando ao governo, se acomodou aos interesses dos ricos, limitando os ganhos dos pobres à máxima de que “os ricos não podem perder”, levando aqueles ganhos a serem vistos como perda pelas camadas médias; (b) por pertencer à força política que, embora tenha governado o país pelo voto por um período de longevidade inédita, não fez do combate à desigualdade uma política voltada a uma nova ordem.
  3. Em razão dessas fragilidades mencionadas, nem Bolsonaro, nem Haddad podem ser uma resposta à crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, o que faz a polarização entre eles ser falsa outra vez: Bolsonaro não é resposta à crise de legitimação do Estado de direito porque ele representa o fim de quaisquer Estado de direito, defensor que é do Estado ditatorial; Haddad não é resposta à crise de legitimação do Estado de direito porque ele não se cansa de defender esse Estado de direito, essa forma estatal, na adesão à qual Lula e seu PT acabaram por se somar à luta das facções estatais que nos trouxe a essa crise de legitimação, uma crise que eles querem usar, facciosamente, para voltar a desfrutar de hegemonia para o exercício faccioso dos poderes institucionais, uma hegemonia da qual foram removidos pelo golpe do impeachment — tanto são facciosos que já estão mais uma vez aliados aos mesmos golpistas!

Como não é de surpreender, o acúmulo intercruzado dessas fajutices descritas nos itens 1, 2, 3, 4 e 5 acima vem demarcando a irracionalidade crescente do processo eleitoral, que se encaminha para dar ao primeiro turno um desfecho inédito: as motivações emocionais para o voto predominarão sobre as motivações racionais (as características de cada uma dessas motivações, bem como as diferenças entre elas foram explicadas aqui).

Toda essa insânia foi eleitoralmente bem sucedida porque a maioria da sociedade não produziu em sua dinâmica propriamente política uma alternativa eleitoral que reunisse as suas duas urgências numa perspectiva de superação da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, como ficou evidente na indigência política, programática e comportamental das outras candidaturas presidenciais, que não merecem que nos ocupemos delas mais do que já nos ocupamos.

Como toda insânia tem uma contrapartida racional, e como a eleição se mostrou infensa a toda forma de razão emancipatória, a racionalidade está a se apresentar pela outra ponta, e de maneira bifurcada: primeiro, na descrença quase generalizada de que a eleição vá abrir caminho para o país encontrar uma saída; segundo, na disposição antidemocrática dos que só reconhecem o resultado da eleição como bom e alvissareiro se ele trouxer como vencedor o seu candidato (claro!).

Ambas são formas perversas da razão e alimentam uma à outra: a descrença é perversa porque é inerte, não se dá ao trabalho de compreender e tirar consequências do impasse que antevê; a disposição antidemocrática é perversa porque faz uso das franquias democráticas para voltar ao Estado ditatorial cujos resquícios alimentaram toda essa insânia. Elas reforçam uma à outra porque ambas apontam para a escuridão.

Como ninguém apresentou uma alternativa transformadora para o país, não há como se ver representado nesse primeiro turno, pois no primeiro turno a gente escolhe o que nos parece o melhor — não só não há em quem votar no primeiro turno, como temos que expressar na urna todo o nosso repúdio a esse processo espúrio.

O resultado eleitoral do primeiro turno, e seus desdobramentos propriamente  político-sociais no meio da rua, nos levarão à decisão do que fazer no segundo turno, que não será outra eleição (até porque estamos a repetir, e pelas mesmas razões, só que piorado, o resultado do primeiro turno de 2014), mas outra realidade, meeeesmo.

Fica o Registro:

  • Os atos públicos convocados pelo movimento EleNão, que nesse momento se espalham por cidades brasileiras e estrangeiras, com destaque para as maravilhas que acontecem em São Paulo e no Rio, dão testemunho do que poderia ser feito se nos voltássemos não apenas contra Bolsonaro e a regressão ditatorial de que ele é marionete, mas também contra esse Estado de Direito Autoritário que há trinta anos nos sufoca — vamos ver o que vai acontecer na passagem do primeiro para o segundo turno e/ou depois que tiver ficado clara a derrota de Bolsonaro, pois ainda é possível que ele não vá ao segundo turno.
  • É interessante observar o contraste entre essa mobilização e os métodos antidemocráticos dos apoiadores de Bolsonaro, que insistem em ameaçar e agredir quem pensa diferente — eles simplesmente não se dão conta de que seus métodos alertaram milhões para os riscos a que estamos expostos.
  • Quem ainda tinha alguma dúvida acerca de o quão libertária é a transversalidade do movimento feminista…

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