UM VOTO PARA PRESERVAR MEIOS DE CONTESTAR O ELEITO

Carlos Novaes, 04 de outubro de 2018

 

Por mais incerta que seja a situação eleitoral, salvo acontecimento extraordinário, que não está no horizonte, haverá segundo turno para a escolha do próximo presidente da República, e ele será disputado entre Haddad e Bolsonaro — e isso porque essas duas candidaturas polarizaram de vez a disputa e concentraram as incertezas na contraposição das suas respectivas rejeições. Trata-se de escolher o mal menor; vai ganhar não o preferido, mas o que for menos rejeitado.

Do ponto de vista do eleitor médio, o Brasil tem duas urgências: a urgência social e a urgência por ordem, urgências que se materializam na revolta contra a desigualdade e na revolta contra o sistema, como tentei desenhar nos quatro artigos de série recente, iniciada aqui. Nessas revoltas, os desafios principais são, pelo lado social, emprego, saúde e educação; pelo lado da ordem, a bandidagem de Estado, especialmente a corrupção, e a bandidagem de rua, especialmente o tráfico de drogas e armas.

Como nenhuma candidatura apresentou alternativa crível para enfrentar esse conjunto de problemas, a disputa se cristalizou numa polarização contraproducente entre o social e a ordem: um lado se apresenta como o campeão do social, o outro se diz o campeão da ordem, sendo que:

  • Bolsonaro não oferece nenhuma perspectiva para a urgência social, antes pelo contrário, dá seguidas indicações de que um governo seu levará o Brasil a regredir nessa matéria, a menos que se acredite que um ultra-liberalismo que não deu certo em país nenhum do mundo vá criar no Brasil os empregos que nossa gente precisa ou sirva de garantia para a continuidade dos programas compensatórios existentes ou mesmo para direitos trabalhistas há muito conquistados, com 130 salário, adicional de férias e outros.
  • Haddad não oferece nenhuma perspectiva para a urgência por ordem, pois, pelo lado da bandidagem de Estado, embora seja pessoalmente honrado, está vinculado a governos que, de um lado, organizaram e deixaram que se organizassem sofisticados esquemas de corrupção e, por outro lado, foram governos muito afeitos à acomodação com os privilégios dos hierarcas do serviço público; já pelo lado da bandidagem de rua, os governos petistas não oferecem precedente no enfrentamento do problema.

As limitações acima explicam parte da rejeição de cada um dos dois candidatos, mas se colocarmos uma contra a outra não temos como decidir.

Passemos à avaliação da consistência e desejabilidade do que Haddad e Bolsonaro oferecem ali onde são tidos, por seus mais ferrenhos defensores, como campeões:

  • Haddad é apresentado como campeão no social, o que não é verdade, pois embora o lulopetismo tenha uma marca na geração de empregos e na aplicação de medidas compensatórias, não foram políticas nem sustentáveis nem duradouras porque, além de outros erros, deixaram de fora o essencial: a estrutura tributária, da qual depende o enfrentamento da desigualdade. Entretanto, mesmo sob essas limitações severas, não chega a ser indesejável que um eventual governo seu mantenha o que já existe, desde que não ameace as franquias democráticas que nos permitirão contestá-lo e lutar por outras alternativas, a começar pela inadiável batalha da Previdência.
  • Bolsonaro apresenta propostas para alcançar a ordem que não são consistentes porque nem há razão para supor que sua associação com o que há de pior no Congresso (bancadas BBB e Centrão) vá patrocinar o combate ao banditismo de Estado, aos privilégios dos hierarcas do serviço público e aos abusos das facções policiais violentas; nem se pode considerar que sua proposta de armar o cidadão possa resultar num efetivo combate ao banditismo de rua. Ademais, e sobretudo, o que Bolsonaro propõe como ideário de ordem, cravejado de preconceitos e desconsideração contra quem pensa, age e vive diferente, não é desejável porque só pode ser alcançado suprimindo total ou parcialmente as franquias democráticas com que a maioria da sociedade brasileira ainda conta para trocar ideias, se manifestar, se organizar e agir contra a desigualdade e a desordem, que vão estar na ordem do dia no debate sobre a inadiável reforma da Previdência.

A polarização Haddad-Bolsonaro se dá com base nas rejeições deles porque ela esconde uma outra, da qual nem todos estão conscientes, mas que ganha forma num plebiscito em que todos iremos votar: ou o representante de forças facciosas que puseram as franquias democráticas a serviço de obter poder para defender principalmente os seus próprios interesses; ou o representante de forças que pretendem diminuir ou suprimir as franquias democráticas para garantirem um exercício ainda mais faccioso dos poderes institucionais, a começar pelo voto livre, que dizem fraudado se não lhes der a vitória.

Entre Haddad e Bolsonaro, o mal menor é Haddad.

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