A BESTA ATOLOU-SE. E AGORA?

Carlos Novaes, 04 de maio de 2020

Nos últimos dias da campanha presidencial de 2018, o debate sobre uma possível vitória de Bolsonaro trouxe variado leque de análises por parte daqueles que não desejavam a vitória do candidato defensor da tortura. Houve quem visse na vitória do ex-tenente reformado o apocalipse; houve quem visse nela a certeza de sofrimentos adicionais aos mais fracos; e houve um grupo influente de cientistas políticos, juristas, filósofos e intelectuais que não via no candidato uma ameaça maior, ora enaltecendo a “solidez das nossas instituições democráticas” (ou a “robustez da nossa democracia, consolidada num Estado democrático de direito”); ora festejando a emergência desejável da violência na luta política, uma força que até então teria ficado oculta e, agora, poderia ser melhor combatida.

Diante do governo de Bolsonaro, mesmo quem jamais ouviu falar do nosso Estado de Direito Autoritário conflagrado numa luta de facções e em crise de legitimação tem evidências suficientes para avaliar seja o acerto das apostas na “solidez das nossas instituições”, seja a sabedoria daquela celebração da “emergência política do que até então estivera oculto”…

De minha parte, embora convencido de que não havia “solidez democrática” alguma, embora certo dos danos terríveis que a vitória de Bolsonaro traria aos mais fracos, e embora temesse as forças destrutivas que essa vitória por certo ensejaria, declaro jamais ter imaginado que uma presidência dele pudesse se mostrar tão danosa, e que o combate a ele fosse escancarar nessa monta a natureza facciosa do nosso Estado de Direito Autoritário.

Isso posto, e a julgar pelo que vem via mídia convencional e via redes sociais, o que daquele debate antigo ainda reclama discussão é o apocalipse, desfecho que agora recebeu tintas de verossimilhança com a emergência do circo de horrores do coronavírus.

Há apocalipse por toda parte, para todos os gostos: da celebração bíblica à crítica erudita; da abordagem alarmista à análise artística; da psicologia à filosofia. Será que é de Bolsonaro que vem a ameça do Apocalipse?

Longe de mim não ver que os danos em curso sejam tremendos, ou negar que o cenário possa sugerir o apocalipse – afinal, a exemplo de outros tempos, em outras terras, há uma besta-fera como coreógrafo. Mas gostaria de compartilhar a percepção de que a besta atolou-se, embora ainda vá provocar danos. É que para Bolsonaro e sua horda de convictos, a crise do coronavírus se tornou uma antecipação da campanha da reeleição, que só deveria se dar em 2022. E eles estão perdendo. Vem daí essa ferocidade que a muitos aparece como se fosse a marcha-forçada de um danoso avanço atribulado. Não há esse avanço, leitor. É atoleiro com alarido de campanha. Permitam-me desenvolver essa ideia com algum detalhe.

Desde antes da eleição de 2018, Bolsonaro dava declarações que traduziam sua volúpia pelo poder, dizendo coisas do tipo “não aceitarei nada que não seja a minha vitória”. Para arregimentar e movimentar gente ele sempre dependeu da tração máxima desses dois afetos: num pólo, a simulação da certeza de que já dispunha do poder, dado pelo eleitor, que permite “fazer e acontecer”; de outro, a divulgação de uma suposta ameaça espúria do “sistema” à vigência desse poder. Tanto que, mesmo tendo ganhado a eleição, sempre insistiu que havia sido vítima de fraude, com o que, ademais, ainda fingia nada conceder ao “sistema” (ao qual, aliás, volta, agora abraçando-o no que tem de mais pernicioso).

Essa tração veio sendo aumentada no curso do mandato: tudo é vituperado como obstáculo espúrio ao governo eleito pelo povo. O que dá verossimilhança a essa reiteração cavilosa é o nosso Estado de Direito Autoritário; afinal, suas facções continuam a se movimentar e rearranjar para manter vantagens e privilégios, o que leva ao choque inevitável entre seus interesses mais imediatos e os interesses dos recém-chegados ao Executivo federal pelas patas do Bolsonaro – exatamente como se deu com Lula e o PT em sua primeira vitória, até que todos se acertaram num equilíbrio que não perdurou porque no segundo governo Dilma a incongruência entre desigualdade extrema e esse Estado de Direito Autoritário levou a mais uma “crise” entre facções do Executivo e do Legislativo, crise na qual a não menos facciosa LavaJato deu ocasião à sublevação do baixo-clero congressual, circunstâncias que discuti na época. Voltemos.

Essa polarização fajuta entre um Bolsonaro faccioso e as facções estabelecidas do Estado de Direito Autoritário veio se arrastando desde a posse até o coronavírus: Bolsonaro açulou incessantemente sua bases, veio satisfazendo aos muito ricos (agrotóxicos, previdência, liberação para danos ambientais), sacrificou ou simplesmente abandonou aos mais fracos (salário mínimo, terras indígenas), e mantinha desavenças convenientes com parte da imprensa e do sistema político, tendo o cuidado de, nele, não contrariar diretamente os interesses dos altos hierarcas de carreira no funcionalismo público (amplamente preservados na tal “reforma da previdência”).

São atitudes que permitiam a Bolsonaro passar a idéia de que vinha cumprindo o que prometera: não desgarrava das suas bases e fazia a sinalização permanente de que não iria contrariar nenhum interesse graúdo, salvo aqueles que se chocam claramente com os elementos centrais para o açulamento das suas hordas: a parte demonizada das facções estatais e da imprensa.

A emergência do coronavírus desarranjou essa pantomima porque o combate ao vírus exige providências contínuas na mão contrária aos itens mais vistosos do rol ideológico em que Bolsonaro e sua horda se aferraram de um modo que nem aos muito ricos contempla – a besta começou a girar em falso.

Habituados a se orientarem pelo melhor da ciência estabelecida para garantir ganhos e a preservação da riqueza já amealhada, os muito ricos entenderam o potencial danoso, e até ruinoso, da pandemia e se adaptaram prontamente à nova realidade.

Aqui a ignorância cobrou seu preço a Bolsonaro: seu despreparo o mantém conectado ao núcleo duro da base da qual é marionete, mas contraria frontalmente os interesses daqueles que são lastro fundamental e horizonte último do seu exercício de poder: os muito ricos.

Ao não acompanhar os muito ricos na adesão ao combate-padrão a uma pandemia mundial de desdobramentos imprevisíveis, Bolsonaro isolou-se e viu reduzir-se o apoio de que dispunha, aprisionando a si e a seu governo num tribunal de desempenho antecipado, previsto só lá para a campanha de 2022. Esse ambiente de avaliação geral, instaurado pela incompetência do próprio Bolsonaro, levou seus apoiadores menos ignorantes a ir tirando o time, ainda que ainda vejam como seu o projeto do facínora (é essa reticência que estão vivendo os muito ricos e parte das classes médias). Por outro lado, e por isso mesmo, o próprio Bolsonaro foi arrastado a antecipar o que faria só em 2022: açular novamente suas bases contra o “sistema”, ameaçando a todos com o “poder do povo”, blefando contar com o apoio das FFAA.

É uma verdadeira campanha eleitoral em situação de crise, mas não tem como dar certo, pois:

1. Não há eleição presidencial em curso, o que deixa Bolsonaro sem meta para onde canalizar a energia mobilizada;

2. Bolsonaro não conta com o apoio das FFAA para uma medida de força que satisfizesse pela outra ponta sua horda, que é minoritária na sociedade, – os militares não têm porquê se deixarem arrastar para o derramamento aberto de sangue, fazendo-se apêndice do que há de pior na PM (as milícias), só para manter Bolsonaro na presidência da República (especialmente quando o vice desse Estado de Direito Autoritário que os atende é um general);

3. Sabedor de que não tem apoio dos militares para salvar seu governo pelo rompimento do Estado de direito via aprofundamento autoritário, Bolsonaro voltou-se contraditoriamente para as forças de sustentação tradicional de governos avariados: o Centrão. Essa virada, por si só, (i) deixa clara a falta de sustentação militar, (ii) expõe a fragilidade de que Bolsonaro não tem para onde correr, e (iii) o desmoraliza diante de franjas da sua horda que haviam suportado a deserção de Moro.

Não tendo nem dispositivo militar (ditadura), nem método democrático (eleição), pelos quais poderia desaguar a energia mobilizada na falaciosa arregimentação em curso, Bolsonaro condenou à frustração sua última franja de seguidores que, depois de terem absorvido todos os golpes, irão se dar conta de que sua marionete passou para as mãos de quem parecia a encarnação do inimigo, afinal, o Centrão (de onde Bolsonaro saiu) fora apresentado como a encarnação demoníaca do “sistema” ao qual o mesmo Bolsonaro alegava combater…

Enquanto isso, o faccioso Lula, em tudo procurando uma brecha para a sua redenção, vem a público para martelar a naturalização dos seus crimes e do ambiente em que eles se deram: dá declaração condenando o STF pela suspensão da nomeação explicitamente facciosa de Bolsonaro para a polícia federal, e concede entrevista ao silente jornalismo amigo para nos insultar com uma defesa truculenta e autoritária (parece com quem?) do toma lá dá cá que muito apropriadamente dá ares de família ao seu governo e ao de Bolsonaro, mas não autoriza sua pretensão de semelhança com os governos de Merkel e Macron, criticáveis por outras razões.

Não parece difícil perceber que nosso maior desafio já não é Bolsonaro, ainda que ele ainda vá provocar muito dano. Nosso maior desafio é enfrentar o imprevisível coronavírus construindo uma alternativa democrática à luta contra a desigualdade sem voltarmos a apostar nas facções do Estado de Direito Autoritário que nos conduziram até esse pântano onde Bolsonaro atolou. É a falta de clareza para construir essa alternativa que pode abrir caminho para o apocalipse.

Fica o Registro:

  • Toffoli volta a explicitar divisões no STF: critica as decisões de Barroso e Moraes contra Bolsonaro, apontando-as como “ativismo judicial”, que não é senão outra denominação para a luta de facções em que o Estado de Direito Autoritário está conflagrado.
  • Peço ao leitor que releia, pacientemente, todo este artigo, de julho de 2017. Ele serve de preâmbulo para o que estamos vendo – resumo: enquanto se insiste em preservar esse Estado de Direito Autoritário como se fosse um Estado democrático de direito, a crise de legitimação veio engolfando, no curso de largo tempo, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, até uma solução eleitoral autoritária (Bolsonaro), agora com tensões à porta de quartel. O que mais será necessário para encararmos como perda de tempo e energia a defesa deste Estado de Direito Autoritário tão querido pelas facções?!

6 pensou em “A BESTA ATOLOU-SE. E AGORA?

  1. Eliane de Carvalho Araujo

    Olá!

    Assistia vc na TV Cultura no começo dos anos 2000 quando militava na esquerda revolucionaria e atuava na juventude. Vc foi um dos responsáveis pela minha primeira opção de escolha pelo curso de ciências políticas.
    Passados anos, hoje, eu com 35 anos, quis saber onde vc estava e me deparei com esse blog. Fico feliz que esteja ativo no debate.
    Imagino que não tenha sido nada fácil pra vc viver todo esse período. De qualquer modo, meu apelo é que vc entre no mundo do twitter, ao menos, para que possamos acompanhar seus pensamentos tão caros sobre os assustos da atualidade.
    Espero que em algum momento seu alerta de que vc nunca esteve no Facebook e Twitter seja retirado.
    Precisamos de vc!!

    Feito o convite, espero que passe muito bem seja lá qual for sua escolha.

    Bjos saudosos!

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  2. David Silva

    Prof. Carlos Novaes, quais autores (ciências humanas ou mesmo literatura), artigos (acadêmicos ou de jornais) que abordam/analisam o Brasil da ditadura paisano-militar pra cá o senhor acha relevantes e sugere a leitura? Quase todos defendem o atual Estado de Direito como se fosse democrático e como se nossa democracia, supostamente consolidada, variando entre aqueles que enxergam ameaça apenas quando o povo escolhe alguém identificado com um certo tipo de “extremismo” (à esquerda ou à direita) ou àqueles que não enxergam ameaça alguma porque nossas instituições são sólidas.

    Grande abraço e parabéns pelo brilhantismo de sua análise!

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    1. Carlos Novaes

      David, infelizmente, não conheço qualquer outra abordagem desse tipo para o tema. Criei e venho desenvolvendo essa linha de análise, que suponho explicar não apenas o que se passa no Brasil, mas também na Rússia e em vários países do chamado Leste Europeu, cujas sociedades, tal como a brasileira, fizeram a luta democrática contra a ditadura, mas não alcançaram um Estado de Direito Democrático — ficaram pelo meio do caminho, num Estado de Direito Autoritário. No Brasil, esse Estado está em crise de legitimação, mas a sociedade não consegue construir um vetor majoritário pelo Estado de Direito Democrático porque ainda não entendeu e se engajou na centralidade da luta contra a desigualdade de renda e riqueza. As classes médias estão divorciadas do povão. A autointitulada esquerda brasileira não é uma força da sociedade, é, antes, composta de facções estatais voltadas a contornar a desigualdade, não a enfrentá-la. Temos de transpor esses partidos num movimento contra esse Estado de direito ao qual essa autointitulada esquerda se agarrou para conter o ímpeto transformador da maioria da sociedade, ímpeto este que, em razão da falta de liderança clara, vaga desorientado, disperso, agarrando-se ora em falsos salvadores, ora em falsos mitos, ora em líderes menores, que não entendem a natureza da complexidade em que estamos metidos. Abraço

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  3. Fábio De Campos

    Prof. Novaes, alguns apontamentos para que esclareça por gentileza.
    Bolsonaro não se mostra um autoritário no campo institucional, pois o mesmo causa o esgarçamento das instituições republicanas. Dessa forma seu autoritarismo é de cunho pessoal e ideológico puramente?
    Com relação ao campo democrático não pode se ver ameaça, mesmo com ou sem apoio FFAA, pois o jogo político de insuflar o seu núcleo ideológico depende necessariamente de uma oposição ou mesmo atores políticos para culpar por sua falta de governança e incapacidade administrativa de seu governo?
    Por fim, vejo o governo Bolsonaro como uma força política de combate à esquerda, ou seja, um governo imbuído de um caráter missionário de extermínio, mas não pelo poder a ele instituído e através das instituições, mas pela luta ideológica que trava diuturnamente?
    Espero que comente sobre os tópicos.

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  4. Paulo Henrique de Sousa

    Boa tarde

    Prof. Carlos, pense em escrever um livro a partir de suas analises expostas no blog. Penso que seria um excelente instrumento para as pessoas que querem refletir e agir politicamente diante dessa situação toda.

    Grande abraço

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