BESTA EXPIATÓRIA E A BESTEIRA DA “GERINGONÇA” TUPINIQUIM

Carlos Novaes, 19 de maio de 2020

Com acréscimos às 15:30 h.

Nas últimas semanas, enquanto a mídia convencional estava atulhada de artigos apocalípticos, ora na pregação rebaixada pela união em defesa de um inexistente Estado de direito democrático, ora pregando a união dessa nossa autointitulada esquerda (a se agrupar e reagrupar em facções estatais), ora chegando ao extremo ridiculamente romântico de dar tudo por perdido, fiz neste blog tentativas para deixar claro que (i) vivemos a radicalização da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, situação que pede muita coisa, mas não uma “união nacional”; (ii) que a nossa autointitulada esquerda não tem condições (faz tempo!) de propor e dirigir uma saída transformadora, pois está facciosamente entranhada no Estado que precisa ser deixado para trás, e (iii) que, longe de estar na ofensiva, a besta, infectada pelo coronavírus, se atolara em uma campanha eleitoral antecipada, desorientação labiríntica cujo resultado seria a desmotivação de seus mais ferrenhos seguidores: nem golpe ditatorial, nem eleição presidencial, logo, os mobilizados em torno do mito ditatorial não terão para onde correr e acabarão por descobrir que sua marionete passou para as mãos do Centrão.

Pois bem, no domingo (17), como se obedecesse à coreografia antevista, a manifestação em frente ao Planalto foi um fiasco e a besta apareceu para, além de pedir que não mostrassem faixas antiinstitucionais, festejar a ausência de palavras de ordem contra o Congresso e enaltecer a democracia, mixórdia que só pode ter sido recebida com decepção pela horda. Recuo total, do qual o artigo do Mourão tinha sido uma senha. Sim, leitor, o artigo do Mourão deve ser lido ao contrário: ele pareceu radicalizar, mostrar aparente lealdade à condução governamental da besta, precisamente para poder, intramuros, deixar claro que no caminho do golpe de força o besta estará sozinho, as FFAA não irão com ele.

Esse recuo não se deve, está claro, à solidez das nossas instituições democráticas, nem a supostas convicções democráticas dos militares (embora existam, e muitos, militares democratas). O recuo se deve à impossibilidade de governar esse Brasil desigual como sempre foi, complexo como é, diversificado como se tornou, com base numa ditadura – diante de uma tentativa ditatorial, a resposta emergida da sociedade será não uma heróica guerrilha urbana, mas uma guerra civil. As FFAA não estão dispostas a fazer o serviço sangrento necessário para conter a fúria do “brasileiro cordial”, esse sim, um mito.

Nós, brasileiros, estamos fartos! O que nos falta é um projeto claro, com lideranças dignas do significado dessa palavra na vida contemporânea. A pandemia acelerou o processo, a tudo deu urgência, e, por isso mesmo, expõe a todos a fraqueza moral, política, emocional, intelectual e técnica daqueles que insistem em supor que o fato de terem sido candidatos a gerir este Estado de Direito Autoritário os credencia para nos liderar no curso da crise de legitimação desse mesmo Estado, crise que eles não enxergam, ocupados que estão em defender o Estado de direito que atende às suas facções – se enxergassem, seriam de pronto levados à constatação de que eles, enquanto facções e/ou partidos políticos, terão de sair da fila da frente quando se pensa num projeto de transformação dirigido à construção de um Estado de Direito Democrático.

Virou moda falar da bem-sucedida solução portuguesa, a “geringonça”, que uniu num centro reinventado (o centro é, sempre, uma invenção entre esquerda e direita) forças díspares que, juntas, relançaram a política de Portugal na direção de melhores dias para o seu povo. Quem pensa nesse tipo de saída está ignorando uma diferença fundamental entre Brasil e Portugal: o Estado de direito em Portugal é democrático e não está em crise de legitimação – as forças políticas estabelecidas tinham terreno seguro sobre o qual operar. Ora, no Brasil é tudo ao contrário: em plena crise de legitimação, uma geringonça brasileira (cuja oportunidade foi desperdiçada por PT e PSDB há mais de vinte anos) teria de juntar precisamente o que restou das forças que trocaram o enfrentamento da desigualdade pela acomodação das suas facções ao jogo corrupto no âmbito do Estado de Direito Autoritário em crise – ou seja, teria de juntar os ladrões da Petrobrás com os ladrões dos metrôs!; os ladrões dos anéis viários com os ladrões das usinas hidroelétricas!

Em sua vaguidão programática, infantilismo retórico e falta de compostura, a live com Ciro, Marina e Flávio Dino deixou claro que ainda não há uma alternativa. A escolha de um dos Tattos para candidato a prefeito de SP pelo PT, tendo sido enfrentado por um nome da confiança de Lula, mostra o quanto essa facção nefasta, o lulopetismo, não tem como desvencilhar-se do pior de si (e faz tempo!!). O fato de um Dória ter se transformado no líder do PSDB dispensa análise. A todos eles, o besta, em sua estupidez danosa e truculência repugnante, serve como a besta expiatória ideal – tudo se passa como se o problema fosse ele. Não é!!! O problema é o Estado de Direito Autoritário que essas forças construíram e querem proteger, pois elas dependem dele, moldado que foi para contentá-las e proteger os interesses dos muito ricos. Eles conduziram esse Estado até a essa crise de legitimação. Essa crise, saída das práticas políticas deles, desembocou na vitória eleitoral dessa besta, como mostrei aqui . Agora, mais uma vez, eles querem o impeachment. Fazer o impeachment da besta é ritual expiatório, catártico, para dar outra volta nesse parafuso sem rosca em que gira o carrossel político brasileiro.

Não estou cego para os crimes e para os danos trazidos pela besta. O risco de regressão democrática aumenta conforme mais se defende este Estado de Direito Autoritário contra a acertada percepção da maioria de que ele é ilegítimo. Se bem sucedido, o que é o mais provável, o ritual do impeachment nos levará (i) a Mourão, que dará muito mais coesão às forças autoritárias, e (ii) à legitimação deste Congresso, que não se furtará a dar sustentação ao mesmo Mourão!! — se mal sucedido, o impeachment poderá nos levar a uma guerra civil antes que tenhamos podido construir uma alternativa em prol do Estado de Direito Democrático.

A saída passa por criarmos um vetor de opinião pública que nos permita reunir as duas urgências do Brasil: a urgência por ordem e a urgência social, que discuti aqui e detalhei até desenhar, aqui. Para isso, precisamos de tempo, não de enfrentamento ritual através de mais um processo de impeachment.

2 pensou em “BESTA EXPIATÓRIA E A BESTEIRA DA “GERINGONÇA” TUPINIQUIM

  1. Rodrigo Imai

    Excelente artigo Novaes!

    Gostaria muito de ver o senhor num debate com o professor Marco Antônio Villa!

    Seria uma aula Magna a conversa entre um historiador e um cientista político.

    Faz muitos anos que acompanho o seu trabalho!
    Admiro muito você professor!

    Sem querer ser chato… Fica mais um apelo aqui…
    Faça um canal no YouTube e publique as suas análises!

    Um grande abraço!

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  2. Jelcy Corrêa Jr

    Pelo seu texto, estamos quase que em um beco sem saída, pois criar este vetor de opinião pública que reúna esta urgências me parece quase impossível, porém alcançável.

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