BOLSONARO DEVE SER DERROTADO; NÃO DERRUBADO, MAS… — 2 DE 2

Carlos Novaes, 19 de setembro de 2021

Depois da análise do que se passaria no dia 7, e do que se passou ali e nos dias imediatamente subsequentes, vimos no artigo anterior que Bolsonaro não é uma ameaça pelo que diz contra a democracia, mas, sim, pelo que seu autoritarismo faz amparado no “de direito” do Estado de Direito Autoritário. Esse conjunto de análises está amparado no que venho dizendo pelo menos desde antes das eleições de 2018, período no qual tenho tentado fundamentar uma leitura da realidade política brasileira totalmente diferente, e até oposta, em conteúdo e forma, do que tem sido o padrão das análises com assento na mídia convencional.

Hoje, o caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo traz um artigo de André Singer, professor de Ciência Política na USP. O artigo é, em forma e conteúdo, um retrato de corpo inteiro do ponto de vista que tenho combatido. A crítica abaixo, por sua vez, contraria o usual em forma e conteúdo: na forma, trata-se de não aceitar a interdição ao debate que impera no meio acadêmico brasileiro, onde todos citam todos e ninguém critica ninguém. No conteúdo, trata-se de uma vez mais mostrar a inconsistência do onipresente “frentismo“.

Não seria descabido se o leitor fosse ao texto de Singer antes de prosseguir na leitura desta crítica.

A forma sugere que o conteúdo foi provado

Na forma, o artigo de Singer reproduz o padrão médio do que tem sido publicado pelos intelectualistas na mídia: mistura o jeitão informado do intelectual com a ligeireza jornalística, trazendo citações precariamente harmonizadas entre si e com a realidade que se propõe a analisar. Talvez a melhor prova dessa afoiteza seja a pergunta que Singer fez, e não respondeu, a respeito do uso que deu a um texto de Leon Trotsky.

Depois de conceder que a situação brasileira é muito diferente daquela que o revolucionário russo tinha em mente quando produziu sua análise, Singer pergunta: “Por que, então, lembrar texto nonagenário, escrito em um dos piores invernos europeus?” Desafio qualquer um a encontrar resposta a essa pergunta no texto de Singer. Pelo contrário, ele vai fugir da resposta insistindo na forma: fazer citações de autores que pensaram situações alheias e alhures, como se as correspondências entre as realidades estivessem dadas, fossem óbvias (depois de, claro, ter colocado a vacina de que as aproximações devem ser feitas “cum grano salis”…). E insiste na forma, como se ela pudesse legitimar o conteúdo que ainda precisaria ser demonstrado.

Venho dizendo que Bolsonaro é um imbecil que chegou à presidência da República com delírios de ditador e se encontra em profunda desorientação porque esbarrou na sólida preferência da maioria de nós pela democracia, e na cerrada barreira das facções que manejam o Estado de Direito Autoritário. Para Singer, porém, Bolsonaro parece perfeitamente orientado. Para nosso autor, a semelhança das situações de Brasil (2021) e Alemanha (193?) pode ser vista na “técnica utilizada por Bolsonaro para iludir os demais atores em cena”. Singer invoca Stefan Zweig, ali onde o escritor diz do “método hitleriano”:

“Uma dose de cada vez, e depois de cada dose uma pequena pausa. Sempre só um comprimido e depois esperar um pouco para verificar se não era forte demais, se a consciência do mundo tolerava essa dose.

Ora, já vimos, antes do dia 7, que Bolsonaro não está progredindo por doses, está recuando por coices, precisamente porque a realidade brasileira repele vivamente o que ele pretende (tudo oposto ao que o “método hitleriano” encontrou na sociedade alemã, afundada na crise depois da Primeira Guerra). Mas Singer não desanima, e mantém a forma.

Depois de fazer uma menção ligeira a Hannah Arendt, ao que parece para dar um ingênuo pito de advertência à burguesia brasileira (essa sempre tão sonhada aliada), Singer busca amparo na ideia do “autoritarismo furtivo”, de Adam Przeworski, descrito como “um processo ‘devagar e sempre’, em que a erosão, conduzida por governantes eleitos, ocorre bastante por dentro das leis e é cheia de vaivéns” — bem… gostaria muito que alguém me mostrasse o que há de “furtivo” e de “devagar e sempre” na ação de Bolsonaro. Como vimos no artigo anterior, a ação danosa dele é escancarada e não se faz contra as franquias democráticas, contra as quais ele tem se limitado a vociferar em recuo, ao contrário do que sugere Singer, quando fala do uso “furtivo” de “brechas disponíveis para restringir a liberdade de expressão” (é justo o contrário: Bolsonaro quer a mais ampla “liberdade de expressão” porque abriga nela as suas provocações).

Aliás, Singer invoca um filósofo para dar nome novo ao comportamento básico do bolsonarista militante: um provocador. Agora, o velho comportamento que conhecemos como provocação se chama trollagem, como se o fato de a provocação ser feita na internet autorizasse sua elevação a conceito — na citação abaixo, quem substituir troll por provocador e trollagem por provocação verá que a palavra nova não nos colocou um passo adiante do que já sabíamos. Diz Singer:

“O filósofo Rodrigo Nunes explicou […] como a alternative right, à qual Trump e Bolsonaro se aliaram, ‘descobriu as vantagens de assumir a posição de uma das figuras centrais da cultura contemporânea: o troll’. Para redigir este artigo, aprendi que ‘to troll’, na internet, é algo como jogar uma isca para pegar trouxas.

A chave para compreender a trollagem é que ela busca “introduzir ideias ‘polêmicas’ e ‘controversas’ no debate público de maneira irônica, humorística ou com certo distanciamento crítico, mantendo sempre a dúvida sobre o quanto ali é brincadeira ou para valer”, diz Nunes.

Para ilustrar os perigos da confusão entre “brincadeira” e “para valer” — aliás, uma ambiguidade típica das provocações, — Singer traz a invasão do Capitólio, nos EUA, por uma turba de arruaceiros seguidores de Trump:

Brincadeira ou tentativa golpista de verdade? Uma mistura fatal, pois, ocupado durante quatro horas, o Congresso dos Estados Unidos da América teve que ser defendido a tiros, custando cinco vidas.”

Antes de mais nada, note, leitor, como Singer faz duas trollagens nas linhas acima: numa, fica parecendo que as cinco vítimas foram decorrência de tiros disparados em defesa do Capitólio, quando a verdade é que uma única invasora foi vítima de tiro, sendo também ela a única que morreu no que ele diz, em outra trollagem, “defesa” do Capitólio (como se a instituição tivesse, mesmo, estado em risco). Quer dizer, não foi “de brincadeira”, nem “para valer”, pois embora os arruaceiros não estivessem brincando (e isso sempre esteve claro), tampouco a invasão foi “para valer” porque eles jamais tiveram qualquer chance contra a lei, e não há “confusão” alguma quanto a isso, tanto que pude antecipar aqui o cerne daqueles fatos.

Mutatis mutandis, aquele punhado da base paisana de Bolsonaro que queria invadir o STF no dia 7 também não estava brincado, mas tampouco houve qualquer chance de eles conseguirem fazê-lo. Aqueles pobres diabos não entenderam que o chefe, um provocador de garimpo, estava a blefar. Ademais, as provocações de Bolsonaro não estão a fortalecê-lo, mas a desgasta-lo. Ele não ganhou gente nova e teve aumentada a sua rejeição. A maioria já está farta deste imbecil também porque já entendeu que se trata de um imbecil!

Mas Singer insiste em nos prevenir contra a ameaça que Bolsonaro representaria para a democracia, e até recorre a um paralelo estapafúrdio com Mussolini, como se a marcha ascensional do bufão italiano rumo ao cargo de primeiro-ministro pudesse ser comparada à trajetória de tropeços e recuos do Malasartes brasileiro, já desgastado pela incompetência e desumanidade com que está a se conduzir na presidência da República.

Certo de que estamos à beira do abismo, tal como na Alemanha examinada por Trotsky, Singer apela para que façamos dos bolsonaristas uma “franja lunática e isolada” (como se já não o fossem!!), tarefa redundante para a qual repete ideia que Marcos Nobre apresentou tempos atrás, aparentemente também inspirada nas reflexões do pensador e revolucionário russo; só que Singer não quer defender unidade no segundo turno, como fez Nobre, ele quer unidade pelo impeachment de Bolsonaro e, coração generoso, se dispõe a buscar “pontos unificadores” entre “esquerda, centro e direita”… — pobre Trotsky, a quem só restaria dizer “vai indo que eu não vou”. Ademais, com a campanha eleitoral na rua, essa unidade não passa de fantasia.

Se Bolsonaro vier a sofrer impeachment, o que sequer está no horizonte, será porque a população foi levada a um sofrimento diante do qual qualquer “unidade” frentista conversada entre facções será irrelevante, afinal, embora não o “saiba” conscientemente, a maioria da sociedade percebe que está a viver as consequências do que nos governos tucanos e lulopetistas foi a adubação incessante (com o estrume da corrupção) de “pontos unificadores” entre “esquerda, centro e direita” — o que é uma outra forma de ver como Singer é mais um dos que estão agarrados às instituições do Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação.

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