PROGRAMA DE MARINA NÃO ENFRENTA A DESIGUALDADE

Carlos Novaes, 23 de setembro de 2014

É lugar-comum tecnicamente estabelecido que o Brasil está entre os países mais desiguais do mundo, isto é, em nossa sociedade a concentração da renda em favor dos mais ricos é muito acentuada. Um estudo que acaba de ser publicado traz evidências novas, desanimadoras e desafiadoras sobre essa situação: são novas porque resultam do exame detalhado das declarações de renda individual entregues à Receita Federal, indo além das estimativas feitas com base em pesquisas domiciliares;  são desanimadoras porque indicam que “é provável que a queda da desigualdade nesse período [2006-2012], identificada nas pesquisas domiciliares, não tenha ocorrido ou tenha sido muito inferior ao que é comumente medido”; e desafiadoras porque não podem deixar de impor sentimento de tarefa a quem está voltado para uma sociedade menos desigual.

Portanto, nenhum projeto de transformação da vida brasileira orientado para a justiça social pode deixar de trazer propostas para enfrentar o problema da desigualdade. Outrossim, numa ordem social em que os 5% mais ricos ficam com praticamente metade da renda total, como mostra o estudo mencionado e cuja íntegra pode ser obtida aqui, quem almeja uma transformação não pode enfrentar o problema com base na dicotomia “incluído-excluído”, uma vez que uma concentração de riqueza dessa monta numa sociedade populosa e complexa como a brasileira só pode resultar de um modo interessadamente desfavorável de inclusão da grande maioria, não da sua “exclusão”. Essa inclusão subalterna está contraposta à inclusão da minoria muito rica, e a ela serve. As vantagens auferidas por esta são simétricas às penas desnecessárias que infelicitam aquela, sendo que as medidas adotadas para corrigir o problema tem se limitado a fazer rearranjos entre os de baixo, como se a desigualdade relevante fosse a que se registra entre eles — não é à toa que o incremento é mínimo ou quase nenhum.

Por matizados que sejam os de baixo, não há “excluídos”, pois todos tem seu papel e dão sua contribuição para que os muito ricos do Brasil vivam uma vida cujos luxo e desperdício dependem do esforço e da penúria dos demais. Em outras palavras, não há um Brasil que funciona, para onde deveríamos transferir os “excluídos”, que estariam num Brasil que não funciona (a Belíndia dos tucanos), pois o funcionamento favorável ao conforto perdulário dos de cima seria impossível sem a vida sofrida dos de baixo, de que ele depende; o que há é um Brasil arranjado para funcionar de modo a que uma pequena minoria fique com o grosso da riqueza produzida pela maioria, arranjo esse no qual todos estão incluídos, o que muda é o papel que cada um desempenha na peça.

O programa de governo de Marina fala em combater a “exclusão” e menciona a desigualdade 36 vezes, sendo 17 no singular e 19 no plural, plural esse que já não ajuda a agarrar o problema, pois vem diluído em vários capítulos do programa de governo. Sob o título enfrentar o fato de que a desigualdade atrasa o desenvolvimento e o crescimento da economia” — título que, ao engatar o combate à desigualdade na engrenagem produtiva da mesma desigualdade, irá se revelar um aceno contemporizador aos de cima –, o programa declara que

“A coligação Unidos pelo Brasil considera a construção de uma sociedade mais justa como tarefa essencial ao país. Por isso, é natural que incorpore em seus compromissos econômicos alguns objetivos claros de melhoria na distribuição de renda que deverão pautar todas as suas ações ao longo do governo.” (grifos meus)

A preocupação com a suscetibilidade dos ricos fica clara se compararmos as linhas acima com uma redação que dissesse o que interessa de maneira enxuta e direta:

“A coligação Unidos pelo Brasil considera a construção de uma sociedade mais justa tarefa essencial. Por isso, incorpora em seus compromissos econômicos o objetivo claro de melhorar a distribuição de renda, objetivo que deverá pautar todas as ações do governo.”

Àquela redação melindrosa corresponde a ausência de qualquer medida econômica voltada a “melhorar a distribuição de renda”, desafio que é evitado todo o tempo, como nesse parágrafo, síntese do serpentear escamoteador que caracteriza o programa de governo da coligação do PSB nessa matéria:

“Políticas sociais normalmente melhoram a distribuição de renda. A expansão de programas como o Bolsa Família ou o Benefício de Prestação Continuada elevam os ganhos dos mais pobres e, consequentemente, ajudam a repartir melhor a riqueza. A maior parte dos programas de inclusão social, quando gera resultados sensíveis, tende a resultar em um pouco mais de equidade. Os programas de habitação popular, de melhorias na educação e mesmo de saúde pública também têm impacto relevante. Ou seja, os objetivos da distribuição de renda, ao longo de nosso governo, deverão estar presentes em diversas políticas sociais.” (grifos meus)

O sinuoso parágrafo acima é um primor de tergiversação, pois logo depois de insinuar que a elevação de ganhos dos mais pobres tem como resultado corriqueiro melhoria na distribuição de renda — um raciocínio manhoso, pois sabe-se que ao sabor da “normalidade” o incremento é residual, não sendo raro que a distribuição de renda piore mesmo quando aumentam os ganhos dos mais pobres –, temos uma sucessão lépida de frases que contornam uma característica básica da nossa ordem socioeconômica: a concentração de renda convive muito bem com (e até agradece) políticas assistenciais e/ou compensatórias. Assim, depois de anunciar “compromissos econômicos” no combate à desigualdade gerada pela má distribuição da renda, o programa escorrega para “diversas políticas sociais” que não implicam combate algum à mesma concentração de renda. A vaguidão do palavrório é de tal ordem que no final se fala em “objetivos da distribuição de renda”, quando ela, a tal distribuição, é que era o objetivo inicial, acerca do qual se silenciou.

Dai por diante, sentindo-se liberado de dar maiores explicações, o programa vai falar em desigualdade regional, desigualdade educacional, desigualdade urbano-rural, desigualdade homem-mulher, desigualdade federativa, desigualdade étnica, etc numa profusão de “desigualdades” que não deveriam ter sua importância empregada como biombo encobridor do aspecto central do problema: a concentração da renda. Mas é isso o que ocorre, pois não há uma única proposta destinada a desarmar o dispositivo central dessa desigualdade: a ordem garantidora da acumulação infinita de riqueza, que nada cobra aos muito ricos por estarem muito ricos. Quando solicitada a dar explicações sobre sua “reforma tributária”, Marina deixou de fora qualquer alteração substancial no Imposto de Renda, rejeitou a taxação às grandes fortunas e não tratou de qualquer alteração no direito de herança.

Na mesma linha, o aumento de gastos que será exigido pelas suas boas propostas para a educação e a saúde não vem acompanhado de nenhuma fonte nova de receita, tudo sendo colocado na conta de uma gestão mais eficaz dos recursos existentes, o que não deixa de ser curioso quando se tem em mente que a candidata censura sua principal adversária por se limitar a uma visão “gerencial” dos problemas, por oposição à sua, que seria “estratégica”…Deixo ao leitor decidir pela gerente preferida para a nossa desigualdade.

Lido com a atenção que a história de Marina inspira, o programa de governo que ela defende mostra-se uma proposta conservadora no tratamento à desigualdade, pois não há nele uma única alternativa ao status quo: trata-se de uma adesão ao modelo de políticas sociais compensatórias que tangeu o PT a uma acomodação oportunista aos ganhos político-eleitorais arrancados aos de baixo e às vantagens que advém de ter caído nas boas-graças dos de cima. Essa perversa conexão de gratidões cruzadas é o benefício recolhido por quem abre mão de enfrentar a tão daninha quanto inaceitável desigualdade brasileira: os muito pobres ficam gratos em razão do cálculo ditado pela coleira da necessidade; e os muito ricos agradecem porque calculam o quão necessária tornou-se-lhes nossa esquerda de coleira.

A candidatura de Marina não enfrenta o fato de que medidas compensatórias nunca vão passar disso mesmo, compensação, pois não transformam a ordem que gera a injustiça. E se é verdade que elas não devem ser repudiadas, pois o sofrimento é grande, não é menos verdade que elas não podem servir para encobrir o fato de que os estratos populares intermediários, que não são alvo dessas medidas compensatórias, não deixam de também seguir vítimas da desigualdade (arcando, inclusive, com as consequências dos custos de boa parte dos arranjos em favor dos mais pobres), uma vez que a concentração de renda nas mãos dos de cima não apenas limita a renda daqueles, mas, sobretudo, sonega a todo o sistema uma energia que, se liberada da reserva improdutiva desses muito ricos, colocaria a todos os demais em situação superior de produção e consumo, meta que reúne o máximo e o mínimo que se pode exigir de uma candidatura que se queira a um só tempo eleitoralmente competitiva e transformadora. Enfim, medidas para liberar essa energia é que indicariam um convite à transformação, e é uma pena constatar que não há indício disso no conservador programa social de Marina, que vem se juntar ao que de reacionário ela propõe em política.

 

[OBS.- Não comentei porque não assisti ao debate presidencial promovido pela CNBB. Só o que pude ver depois foi o trecho em que Luciana Genro mostra parte do que há de perverso na convergência PT-PSDB, numa fala notável pelo que exibiu de valentia, poder de síntese, pertinência e eloquência, encurralando Aécio. Como disse uma amiga minha, “perdeu, playboy!”]

2 pensou em “PROGRAMA DE MARINA NÃO ENFRENTA A DESIGUALDADE

  1. Rodrigo

    Então, se for eleita Marina Silva, como eu espero que aconteça, o governo dela será um governo, digamos, em disputa?

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    1. Carlos Novaes

      Rodrigo, sua pergunta é muito boa. Vou dar minha opinião sobre ela.
      Todo governo, especialmente quando instalado numa situação de Estado de Direito, é um território de disputa e um vetor em disputa. Suas decisões sempre são, em alguma medida, reflexo da ação na sociedade. Entretanto, os interesses e as preferências dos governantes tem peso determinante nos objetivos que serão perseguidos pelo governo e, por isso, é fundamental conhecê-los (e antecipá-los), para que cada um possa avaliar quanto esforço terá de fazer para que um determinado governo, com certo rol de inclinações e objetivos, coincida com, ou ao menos se aproxime das, suas próprias preferências (as do observador, digo). Assim, um observador com perspectivas transformadoras logo entenderá que um governo Aécio seria território hostil para suas preferências; um outro eleitor, digamos, fortemente voltado a valorizar a agricultura intensiva em agrotóxicos e concentrada em monoculturas, veria no sentido de um governo Eduardo Jorge, do Partido Verde um vetor muito desfavorável à disputa. Tenho me empenhado em antecipar o sentido de um possível governo Marina por duas razões: 1. entendo que uma terceira via política orientada pelo desafio ambiental é um vetor estrutural da ação política virtuosa para a espécie humana, e 2. vejo na história de Marina (nem tanto nos últimos tempos) qualidades que a credenciariam para protagonizar essa terceira via em disputas eleitorais no Brasil. Para entender o que Marina propõe, e ver o quanto esforço vou ter de fazer para que ela se aproxime do que acho bom, só disponho de três fontes: o que ela diz, de viva voz; o que ela subscreve (o programa de governo); e o que dizem, fazem e escrevem aqueles a quem ela se associa nessa empreitada. É esse material que tenho analisado e comentado no meu BLOG e, assim, vou formando uma opinião e, talvez, contribuindo para que outros formem a sua própria.

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