PAÍS EMPATADO, NÃO DIVIDIDO

Carlos Novaes, 16 de outubro de 2014

 

Os debates realizados pela BAND e pelo UOL-SBT entre Dilma e Aécio mostraram os dois empenhados em questionar a credibilidade um do outro, não em contrastar propostas ou, muito menos, projetos para o país. É “mentiroso e mentirosa” prá cá; “desinformada e desinformado” prá lá, e tudo se passa como se houvesse um rol indiscutível tanto de problemas como de idéias para resolvê-los, cabendo ao eleitor não a tarefa de ajudar a pensar um outro país, mas apenas decidir pelo nome mais adequado para conduzir um estado de coisas que estaria dado e é encarado por ambos da mesma maneira.

Note leitor que não estou dizendo que eles não fizeram propostas. Sim, eles as fizeram, e são as mesmas faz vinte anos! Eles divergem apenas em dois aspectos, divergências que nascem do fato de que fingem acreditar no que querem que você acredite, isto é, que as forças que representam são alternativa real uma à outra. Primeiro, não conseguem se entender sobre o que um deve ao outro no legado comum, quando está óbvio que desde 1994 o país assiste a implantação de um mesmo projeto: o pacto incrementalista conservador iniciado com o Real, que já discuti aqui, no qual estão incluídas todas as políticas sociais compensatórias de que ambos falam, bem como todo o silêncio comum sobre os imensos ganhos que se continua a garantir aos muito ricos  — pólos de uma mistificação que deixa de fora a terrível situação urbana, delegada a prefeitos e governadores a quem o modelo mistificador sonega os recursos que permitiriam (se eles o quisessem…) enfrentar os problemas que as camadas médias partilham com os mais pobres, embora sem enxergar neles o único aliado com que elas poderiam contar.

Segundo, Aécio e Dilma brigam mesmo é na opinião que tem sobre qual dos dois é o mais indicado para continuar a tocar esse projeto comum. Por isso, o Bolsa Família de uma não passa de desdobramento das políticas do outro (“nasceu comigo”, diz um; “mas eu fiz um montão”, diz a outra); o combate à inflação do primeiro foi mais vistoso do que o da outra (“a minha era de 960%”; “ah, mas a minha vem sem desemprego grandão”);  o BNDES de um haverá de ser mais transparente do que o da outra (o que difere é a concepção da vitrine, não a política); o currículo e a carga horária das escolas técnicas de um são melhores do que os da outra, que, aliás, teria apenas copiado programas estaduais do primeiro [discutir a escolha de adaptar (mal) nossa juventude às exigências do capital, nem pensar]. Agora, o mais emblemático da mesmice é que o governo Lula de um é igualzinho ao governo Lula da outra, sendo que Aécio se apresenta, então, como um continuador mais confiável do que Dilma para o legado Lula! Enfim, a coisa toda é tão parelha que cada um joga sobre o outro a lama que ambos merecem: para a Petrobras de uma, há o Metrô do outro; para a Abreu Lima de uma, há o Sivan do outro;  para o porto em Cuba de uma há os ônibus para Cuba do outro; cabendo a ambos a glória mútua do respectivo Mensalão. Eles empatam e o Brasil segue empatado.

Nessa ordem de idéias, não faz nenhum sentido encarar os 51% de Aécio e os 49% de Dilma como evidência de que o país está dividido. Mais tolo ainda é dizer que o vencedor governará um país dividido. Dividido ele estaria se esses números refletissem a adesão a dois projetos, a duas visões de Brasil, a duas maneiras diferentes de mobilizar a memória em prol de um desenho alternativo de futuro. Não há nada em jogo senão o síndico e, por isso, depois da eleição cada um de nós voltará à rotina da qual não chegou a sair porque não foi chamado a nenhuma tarefa nova. Os números das pesquisas retratam não uma polarização, mas a ausência dela. Como não há nada grande e firme obrigando a uma escolha que realmente mobilize corações e mentes — limitação que frustra a ânsia por mudança partilhada pela imensa maioria (75%!!) –, as pessoas que não foram diretamente beneficiadas em sua miséria justificam sua escolha dando vazão a motivações epidérmicas, simpatias ou raivas pessoais, preconceitos geográficos ou de condição social (onde há quem pretenda ver luta de classes!), empregando, quando muito, raciocínios parciais truncados, voltados não a ajuizar a realidade de modo escrupuloso, mas a justificar para si mesmos uma opção que, no fundo, reconhecem não cobrir sua própria vontade de dizer e fazer diferente. Dilma e Aécio dividem igualmente a frustração de 95% dos brasileiros. Os outros 5% vão muito bem, obrigado, pois seus interesses foram defendidos pelas três principais candidaturas.

Oportuno observar que as pesquisas mais recentes trazem exatamente os mesmos números (51 X 49) dos levantamentos realizados na entrada do segundo turno. Ou seja, as campanhas de TV, os apoios recebidos e o debate não alteraram em nada o cenário, uma vez que a ausência de uma verdadeira alternativa no primeiro turno ensejou a que o segundo, desde logo, fosse apenas e tão somente o resultado inercial do que se passou no primeiro, vale dizer, ao eleitor não foi necessário fazer nenhum esforço para escolha nova. Não é por outra razão que os eleitores que foram de Marina no primeiro turno fizeram a sua escolha sem precisar conhecer os termos com que a candidata enfeitaria o apoio a Aécio que de antemão anunciara, no melhor estilo “velha política” (não obstante o enorme escrúpulo de dizer ao seu partido, a Rede, que o faria em termos pessoais – Ah, então tá!), uma operação cujo desenho anedótico não poderá ficar de fora da próxima edição do febeapá1. Para que o empate fique ainda mais claro, o DataFolha mostra que para cada eleitor que acolhe a indicação feita por Marina (não obstante não tenha precisado dela para se decidir), há um outro que repudia candidato apoiado por ela, isto é, tudo somado, no final da operação o apoio de Marina é irrelevante, irrelevância que é o resultado do que a candidata (des)construiu nessa campanha, como já pude discutir ampla e fundamentadamente aqui (ou aqui, aqui, aqui), e uma outra maneira de apresentar a frustração ante a ausência de um projeto de transformação, cuja oportunidade eleitoral foi um cavalo que ao passar encilhado nos deixou num empate2 que Chico Mendes repudiaria.

1 – acrônimo de Festival de Besteiras que Assola este País — publicação dos anos 1960, na qual Sergio Porto fazia jornalismo ferino inócuo contra a política convencional.

2 –  prática de luta dos seringueiros na defesa de suas terras contra ruralistas poderosos. Vale notar a sabedoria triste do nome “empate”: em razão da enorme assimetria entre as forças envolvidas, o máximo que se poderia alcançar ao risco da própria morte era um empate. Nossa tarefa é reunir forças para sair disso.

 

7 pensou em “PAÍS EMPATADO, NÃO DIVIDIDO

  1. Cristiane Dias

    É um empate muito lamentável, lamentável no sentido de lastimoso mesmo, triste e deplorável. As eleições sempre surgem na minha mente representadas pela seguinte charge: Um garçon, com uma bandeja na altura de seu ombro, vindo até nossa mesa e nos oferecendo o frango ou a galinha. Tenho a opção de comer e deixar descer goela abaixo a indigesta sugestão que me foi despejada, ou recusar as duas e morrer de fome.
    Este jogo de “quem acusa mais” e ganha quem estiver com a língua mais afiada , torna-se cada dia mais esfaldado. É a briga dos marketeiros, porque, realmente no quesito propostas, projetos e mudanças, o que presenciamos está bem distante do que os candidatos nos propõe. O melhor marketing leva e “fatura” nesta competição.
    Excelente sua colocação da mesmice :” Aécio se apresenta, então, como um continuador mais confiável do que Dilma para o legado Lula!”
    O que mais me preocupa é o reflexo deste cenário todo na sociedade. Como desconstruir o “cada um de nós voltará à rotina da qual não chegou a sair porque não foi chamado a nenhuma tarefa nova” ? É possível, um dia a sociedade se mobilizar “intelectualmente” e não no “oba oba da suposta rave que muita gente ao meu lado confunidiu estar nas manifestações de junho”, qual o caminho para a sociedade começar a praticar a política além do voto?
    Todas estas dúvidas me preoucupam, porque ao mesmo tempo a que a utopia nos faz continuar a caminhada, este cenário deplorável de “mais do mesmo” é totalmente desmotivador, desesperançoso e lamentavelmente lamentável.

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    1. Novaes

      Talvez, repito, talvez, seja pedir demais que a sociedade pratique “a política além do voto”. As pessoas já são muito ocupadas e não devemos buscar a solução com exigências que de antemão sabemos que não poderão ser atendidas. Há muito o que fazer pelo voto, mas falta valorizar o voto. O cidadão o valoriza, mas o modelo da reeleição infinita para o legislativo a tudo conspurca. Por isso, proponho um movimento para acabar com a representação profissional. Veja meu texto “Só quatro Já” e outros neste blog. Ninguém poderá ser por mais de quatro anos representante, nem no mesmo, nem em outro cargo legislativo. É o fim da carreira de político. Essa minha proposta, que é antiga, nada tem que ver com esse abaixo-assinado anti-política que roda o tal facebook.

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  2. José Karl

    Na verdade o que me assusta ainda mais, é a oposição que teremos após esta eleição, pois se tudo está empatado até aqui, depois receio que será bem difetente. Pois a oposição do outro, com todo esse empate de idéias ou falta delas, acredito não ficará mais deitado em berço esplêndido, ao passo que a oposição da outra já bastante conhecida, vai dar pano para manga, e assim sendo este empate mostrará a sua divisão e uma divisão de revanchismo, totalmente prejudicial ao Brasil.

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  3. Rodrigo

    Novaes como cientista político é sinal de vida inteligente. Eu mesmo falava em país dividido, aprendi muito com a presente análise.

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  4. Julio César Silva

    As diferenças são muito menores do que se gostaria, mas existem. Se ambos os partidos atendessem da mesma maneira os interesses dos 5% e nenhum deles representasse nenhuma ameaça, qual seria o motivo de tamanho esforço para que seja eleito um e não o outro, o motivo do bombardeio midiático dos últimos anos, o motivo da festa das petroleiras estrangeiras com a possibilidade de vitória da oposição etc? Nenhum dos dois se propõe a alterar o projeto, mas não está em jogo só a gerência dele, mas também a direção para a qual vai se tentar fazer ele andar.

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  5. Renato Domingues Diniz

    Verdade que realmente há empate. Muito embate também! O ideal dos dois candidatos é justamente, um ou o outro tentar desconstruir o oponente dizendo quem é o apto e quem é o apto. Então, não resta nada de propostas e plano de governo, só perspicácia de raposa para atacar a pacata galinha. Entretanto, ambos são raposas= empate. Empate no embate que pode sim fazer o eleitor até se desestimular a votar ou mesmo votar nulo. O que vai restar é a convicção do eleitor. Vota-se em Dilma se quer um governo aparentemente mais social. Vota-se em Aécio se se quer se livrar do governo que aí está e que algo com uma toque mais liberal. Mesmo assim, é tão difícil enxergar isso nos debates entre eles…

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