Carlos Novaes, junho de 2011
(Em razão de debate no Jornal da Cultura – TV Cultura de SP)
Neste texto quero ponderar o seguinte:
I. O uso que JÁ se faz da bicicleta como meio de transporte na RMSP não chega a ser relevante para entender, dimensionar e conceber alternativas para o problema de ganhar fluxo e conforto no transporte metropolitano – é relativamente irrisório o uso da bicicleta como meio de transporte entre nós;
II. A explicação para essa irrelevância na RMSP não é a falta de ciclovias, mas a própria bicicleta, o que ela exige do usuário;
III. Alterar essa situação na direção de aumentar a presença da bicicleta na cena urbana como meio de transporte não é adequado quando se tem em mente tornar menos atravancado e sofrido o deslocamento diário de milhões de pessoas na RMSP;
IV. O uso da bicicleta nas vias de tráfego principais, destinadas aos veículos automotores, é parte do problema, não da solução para a falta de fluxo e conforto no deslocamento diário de milhões de pessoas pela RMSP;
V. Toda essa irrelevância ciclística ganhou destaque desproporcional no debate público em razão da afeição de parte considerável da classe média por saídas fantasiosas dos problemas.
I. O uso atual, que JÁ se faz, da bicicleta como meio de transporte na RMSP é irrelevante para pensá-la como alternativa pública
- Os usuários de bicicleta representam apenas 0,8% das viagens diárias realizadas pela população da RMSP;
- Além de pouco significativas como alternativa de transporte, essas poucas viagens estão concentradas em áreas da periferia, principalmente em idas para o trabalho em trajetos curtos, sem o emprego da indumentária e dos equipamentos adequados. Um exemplo entre outros são os empregados em atividades industriais, pois as indústrias (diferentemente dos serviços) não foram instaladas nos centros urbanos, mas nas periferias, em razão dos custos das grandes áreas que suas plantas ocupam;
- Não é de surpreender que 27% dos usuários de bicicleta digam: o que os leva à prática é o fato de o transporte público ser caro, passar lotado e/ou estar mal planejado onde moram. Vale dizer: trocariam de bom grado a bicicleta pelo ônibus, se tivessem mais dinheiro ou se ele fosse menos desconfortável;
- Outros 57%, desses que fazem menos de 1% das viagens diárias na RMSP, justificam o uso da bicicleta pelo trajeto curto – logo, se fosse mais longo, também optariam (27+57=84%!) pelo veículo automotor, conclusão nada trabalhosa de tirar, pois
II. Da perspectiva individual do trafegante na RMSP, esse uso irrisório da bicicleta como meio de transporte está ligado aos seguintes aspectos:
5. Bicicleta é um meio de transporte MUITO cansativo na RMSP: relevo (aclives de todo gênero), clima e grandes distâncias entre trabalho e casa. Antes de mais nada, essas características exigem um preparo físico que a maioria das pessoas não têm. Mesmo se fossem oportunas, ciclovias não mudariam esses fatos.
5.1. O cansaço fica mais relevante se levarmos em conta que:
a. é necessário voltar para casa depois de um dia inteiro de trabalho;
b. na bicicleta, a responsabilidade pelo bom transcurso é do usuário (stress, concentração ao longo de todo o trajeto, etc);
c. a volta para casa se dá ao crepúsculo, ou mesmo quando já é noite fechada, o que põe exigências adicionais de atenção, implica em faróis na cara e traz ainda mais riscos, mesmo se houvessem ciclovias, que são impróprias por outras razões, como veremos.
5.2. As pessoas não usam bicicleta como meio de transporte porque para a maioria de milhões esse método de transporte é desproporcionalmente trabalhoso, muito diferente de quando o objetivo do ciclista não é o transporte, mas o próprio pedalar (lazer, esporte), eis porque:
d. o ciclista deve fazer uso de equipamentos especiais: proteções de articulações, capacete, óculos, além de roupa e calçado adequados ao pedalar, mormente para grandes distâncias. Quando a idéia é pedalar por pedalar, tudo bem, pois o destino final será, quase sempre, o mesmo do início, e o ciclista não precisará RETIRAR seus equipamentos e roupas no meio do trajeto. Ora, quem se dirigir ao trabalho de bicicleta terá de RETIRAR e GUARDAR seus equipamentos, e ao final de um dia de faina, se remontar para enfrentar o trajeto de volta – simples, não?;
e. para pedalar até o trabalho, muitos ciclistas precisariam levar seu calçado e uma muda de roupa, pois não poderia trabalhar com a indumentária de ciclista, pelo menos na imensa maioria dos casos. Mesmo que usasse bicicleta com bagageiro (em desuso) e acomodasse ali, diariamente, uma bolsa adequada, onde passaria a roupa a ferro? – Naturalmente, o ciclista de lazer e esporte não tem esse problema, pois só vai tirar a roupa na volta – e ainda há a chuva, reinante na RMSP;
f. pedalar longas distâncias (mormente com subidas e descidas) não apenas cansa, mas leva o ciclista a suar. Não é difícil constatar a diferença entre pedalar para se exercitar e pedalar como transporte: no primeiro caso o destino do pedalante é o chuveiro e um merecido descanso; no segundo caso, o destino do pedalante é o ambiente de trabalho, onde ele terá de trabalhar por 08 horas (ou mais!) e onde não há chuveiro;
g. seja ou não o leitor sensível à realidade feminina, concorde ou não com certos traços dela, temos todos de reconhecer que fazer uso de bicicleta como meio de transporte é especialmente complicado para a maioria das mulheres. Elas não vão de bicicleta em razão de: maquiagem, roupa, sapato, cabelo, higiene, bagageiro limitado, ausência de infra-estrutura decente no local de trabalho, etc (a menos que o leitor tenha em mente alterar hábitos e preferências culturais arraigadas com base na propaganda do uso benéfico da bicicleta…);
h. ou seja, essas dificuldades (e os 84% mais acima) explicam porque não é razoável supor que haja uma demanda reprimida considerável por melhores condições para o uso da bicicleta como meio de transporte na RMSP;
i. em suma, nada do que se disse até aqui mudaria se houvesse as indevidamente reclamadas ciclovias nas grandes vias da RMSP. Ou seja, os custos dessas ciclovias não se justificam quando se tem em mente essa demanda pequena para o transporte cotidiano por bicicleta.
6. Bicicleta é um meio de transporte MUITO perigoso na RMSP, perigo que resulta também da conduta criminosa, imprudente e, especialmente, imperita e distraída dos motoristas de veículos automotores, somada à condição particularmente frágil do ciclista, que não passa de um pedestre ainda mais tolhido em suas possibilidades de autodefesa. Esmiucemos isso.
Para o que nos ocupa aqui, parece produtivo classificar a conduta indevida dos motoristas de veículos automotores em: criminosa, imprudente, imperita e distraída. A ação da imensa maioria de nós, que dirigimos, pode ser descrita por alguma dessas rubricas:
a. criminosos: são os motoristas que assumem o risco de danos graves a outrem para obter fluxo indevido – avançam sinais, invadem faixas de pedestres, trafegam em velocidade superior à permitida;
b. imprudentes: são os motoristas que andam no limite, em busca de ganhos permanentes de fluxo: colam na traseira de quem vai à frente, mudam de faixa repentinamente (achando que basta dar seta);
c. imperitos: são os motoristas desprovidos da perícia necessária à condução de um veículo automotor, ainda que munidos da CNH;
d. distraídos: são os motoristas que não alocam ao ato de dirigir a concentração devida.
Pois bem, empregar bicicleta como meio de transporte na RMSP faz do ciclista vítima potencial de TODOS esses tipos de motoristas, e não apenas dos dois primeiros tipos. Dizendo de outro modo: diariamente ocorrem na RMSP centenas de acidentes entre motoristas dos dois últimos tipos e nós nem ficamos sabendo, a imprensa não chega a noticiar, pois as coisas se resolvem no local e/ou segundo entendimentos entre os motoristas imperitos/distraídos. E por que não noticia, se são, de longe, os acidentes de tipo mais numeroso? Pela simples razão de que lata batendo em lata, de leve, amassa, mas não faz vítima. É um aborrecimento, mas a vida segue. TUDO muda de figura se a batida de leve se dá não contra a lata de outro, mas contra o corpo de outro. Ou seja, a multiplicação dos ciclistas levaria necessariamente à multiplicação das tragédias, pois não se trata apenas (nem principalmente) de crime e imprudência, mas de imperícia e distração, muito mais frequentes e muito mais difíceis de coibir e educar. É nesse contexto que afirmo: o ciclista que se põe a andar em meio aos veículos automotores, nas grandes vias da RMSP, apoiado na idéia de que tem um direito, é um insensato, pois está voluntariamente arriscando a própria vida. É mais uma forma estúpida de exercer um direito. Outros exemplos dessa mesma estupidez com base num direito que torna vítima o próprio interessado:
– comprar uma arma
– fumar
– entrar no mar em ressaca
No caso da arma, o dano a si mesmo só aparece se e quando a arma for utilizada, sem que possa haver dúvidas de que quanto mais as pessoas se armarem, mais tiros e violência vai haver.
No caso do ato de fumar, finalmente se entendeu que o dano a terceiro coincidia, em geral, com o dano a si mesmo e, assim, vem havendo restrição progressiva ao exercício do suicídio com cigarro – ainda que não se possa, nem deva, proibir o uso privado isolado do cigarro.
No caso do nadar no mar em ressaca, o dano a si mesmo só aparece quando se dá o afogamento…ocasião em que se irá provocar, inclusive, indevidas despesas públicas (fora desse cenário trágico, é uma discutível glória…)
Deixo ao leitor descrever a ramificação dos custos no caso dos acidentes com bicicletas, que iriam se multiplicar na exata medida em que mais ciclistas exercerem o seu direito – sendo certo que um ciclista no leito carroçável de uma grande avenida é tão impróprio quanto um pedestre que insistisse em andar entre os veículos automotores (e o cicilista solitário em movimento ocupa mais espaço do que um veículo utilitário, pois todos devem guardar dele 1,5 metros nas quatro direções. Ou seja, o ciclista em movimento no meio da via ocupa, no mínimo, 3,6mx4,8m da via pública!). É dessa semelhança que nasce a surpresa inconformada quando se vê um ciclista entre os carros (“o que ele faz aqui!!?”), e não necessariamente de uma suposta intolerância ou propensão criminosa dos motoristas, não obstante existam.
III. Da perspectiva do interesse coletivo dos que se deslocam na RMSP, o uso da bicicleta como meio de transporte é contraproducente
- A falta de áreas laterais livres, que permitissem a expansão do leito carroçável, na imensa maioria das vias da RMSP, exigiria ceder para as ciclovias áreas hoje destinadas aos veículos automotores, medida contraproducente porque:
1.1. imporia restrições ainda maiores ao fluxo dos veículos automotores, sem ganho efetivo, pois não tiraria motores fumegantes das ruas (como vimos, não há porque ter a esperança tola de que milhões de indivíduos irão optar pela bicicleta como meio de transporte na RMSP);
1.2. anularia o esforço que se deve fazer para retirar das ruas veículos automotores individuais. Não devemos trocar 6 por meia dúzia: tirar os carros, mas para pôr mais ônibus, não bicicletas. Ou seja, nas grandes vias, mais corredores para ônibus, não ciclovias;
1.3. imporia penalidades sem oferecer alternativa para quem se desloca com veículo individual automotor – criar ciclovia nas faixas em que hoje trafegam os carros é como impor rodízio, ou seja, uma mera negação – tiremos os carros, mas ofereçamos mais e melhores ônibus;
2. A idéia da bicicleta como meio de transporte complementar na RMSP, permitindo estacionamento para ela em estações do metrô, não é viável como solução de massas porque:
2.1. nossa malha de metrô é pequena e pouco ramificada: a distância entre local de moradia e/ou trabalho e uma estação de metrô é sempre grande para a maioria, o que traz de volta as observações sobre cansaço e trabalheira vistas mais acima;
2.2. nossa malha de metrô vem sendo construída sob as grandes avenidas, ou seja, chegar às estações de bicicleta exigiria pedalar em grandes avenidas, em meio aos veículos automotores.
Construir dezenas de quilômetros de ciclovias nas grandes vias da RMSP imporia gastos contraproducentes porque elas nem aumentariam o fluxo, nem melhorariam o conforto dos milhões de pessoas que se deslocam diariamente aqui.
IV. Bicicleta nas grandes vias da RMSP é parte do problema, não da solução
- A insistência em trafegar em bicicleta nas grandes vias da RMSP é insensata e gera problemas coletivos em nome de benefícios privados para poucos e, ademais, relativamente desconsideráveis;
- Exatamente por ser um pedestre ainda mais frágil, pois está limitado pela bicicleta (não pode saltar, recuar, etc) lugar de ciclista não é entre os veículos automotores;
- Para tentar dar alguma segurança ao ciclista, a lei adota medidas que o levam a ocupar mais espaço nas vias do que um carro comum: 0,5m de distância para o meio fio + 0,5m da própria bicicleta + 1,5m da exigência legal para os veículos automotores que passam pelo ciclista = 2,5 m. A lei tem de mudar e proibir o tráfego com bicicleta nas grandes vias metropolitanas, em SP.
Alguns dados sobre a fragilidade do ciclista de classe média padrão, que sai de casa paramentado como se fosse entrar num velódromo, mas o que faz é arriscar a vida nas grandes vias saturadas da RMSP, nas quais nenhum enfeite o levará a desenvolver uma velocidade média de sequer 10 km/h: com seu capacete vazado (ideal para a passagem do vento, mas que permite que uma ponta de vergalhão, uma quina de meio-fio mal alinhado, atinjam seu crânio); com sua bermuda colada ao corpo (ideal para comprimir os músculos do atleta e para facilitar a passagem do ar pelo velocista, mas inócua em caso de impactos); com braços e pernas nus (ideal para o suor escorrer ao vento, mas desprovidos de qualquer proteção em queda no asfalto abrasivo); com suas sapatilhas (ideais para pedalar, mas impróprias para proteger os pés, tão vulneráveis quanto os de um pedestre); com seus pneus sem pára-lamas (ideais para evitar o valor de arrasto, mas causa de trabalho redobrado para quem lava suas roupas). Assim fantasiado o ciclista de avenida é o próprio retrato da alienação: decorado para flanar, como se num velódromo sem competidores; mas recheado de apreensão, a se arrastar mal humorado por vias enfumaçadas.
V. Bicicleta: encanto e alienação
A bicicleta encanta. A imensa maioria de nós aprendeu a andar de bicicleta na infância. Quem esqueceu a emoção de receber a primeira bicicleta? E a alegria de andar nela, então! A primeira sensação de autonomia, de liberdade – depois das rodinhas laterais ficarem para trás, depois de nos livrarmos das mãos zelosas do adulto prestativo ou impaciente, era só o vento na cara e sua promessa de fluxo futuro pela vida aberta. Ah!, que imenso contraste com a vida adulta entulhada que levamos. Melhor era o mundo da bicicleta, claro! Daí para um mundo de bicicletas é só uma pedalada no dispositivo da fuga regressiva, engatilhado em nós qual um inseto, diria o poeta. Ainda mais se emprestarmos à fantasia improvisados argumentos ambientalmente corretos, tendo o cuidado de deixar de lado o esforço enorme que o pedalar diário para o trabalho, e sobretudo na volta dele, exigiria ao homem comum, engajado nos pedais e já não contando sequer com o consolo casual (quando o tem!) de uma janela de ônibus para se perder na azul distância, numa fuga, essa sim, de consequências individuais benfazejas. A bicicleta é lúdica, sugere romanticamente a recuperação, na vida urbana insalubre, de um tempo em que o trabalho e o corpo saudável estavam integrados. Ah! O que já não devemos à nostalgia insciente das durezas da vida rural.
São essas saudades cruzadas trafegando em via congestionada por frustrações que induzem ativistas bem intencionados a celebrar o uso da bicicleta como meio de transporte na obliterada malha urbana da RMSP, a qual esforço nenhum, por hercúleo que fosse, poderá transformar na plana, amena, rica e relativamente espaçosa Amsterdã, onde a solução antiga de outras interdições à alegria de viver livrou seu povo da infantilidade outra de encarar a posse de veículo automotor individual como simulacro de integração autônoma no fluxo da vida.
Libertos dos impulsos alienantes que a dureza local instila, não podemos deixar de ver que a vocação da bicicleta entre nós da RMSP é o lazer, o aprimoramento físico e a integração das gerações, havendo muito por fazer, muito pelo que lutar, para que tenhamos espaços adequados à realização mínima que seja dessa vocação. Em suma, para nós da RMSP bicicleta é principalmente brinquedo, e lugar de brinquedo é no playground, por mais espaçoso que venhamos a conseguir que ele seja. Nas áreas onde realmente houver ganho em tê-las como meio de transporte periférico, nada a opor que se tenha políticas para facilitar as coisas.
Quanto ao transporte de massas, pelas grandes vias, e na integração entre elas, gastemos nossas energias a lutar para que seja coletivo, confortável, farto e movido a eletricidade.