O 1º DE MAIO DO ESTADO DE DIREITO AUTORITÁRIO

Carlos Novaes, 02 de maio de 2024

A autointitulada esquerda não para de dar bandeira da sua cegueira diante do que se passa na política brasileira: Lula reclamou do exíguo público na efeméride do primeiro de maio promovida pelas facções que se dizem voltadas aos interesses dos trabalhadores, e ainda atribuiu o fiasco a uma suposta divulgação ruim do evento. Veja bem, leitor: desde que tomou posse Lula vem fazendo (em linha com seu governo de “conciliação nacional”) eventos para os quais convida ao palco facções contrárias aos trabalhadores e, até, corruptos notórios, para os quais exige o respeito dos otários “de esquerda” que ainda o prestigiam, censurando qualquer manifestação de combatividade do público como falta de educação! Aí, depois dessa pedagogia desmobilizadora, própria da sua “liderança” “deixa comigo”, vem estranhar e não entende o porquê de os trabalhadores não terem comparecido ao 1º de Maio das facções, no qual ele aproveitou para, mais uma vez, enaltecer Alckmin! Lula pensa que pode virar Perón, com plateia cativa , numerosa e obediente — felizmente, no Brasil não há chance de isso dar certo!

TUDO PODE ESTAR MAIS CLARO DO QUE PARECE

Carlos Novaes, 29 de março de 2024

Com acréscimo às 19:40h em Fica o Registro

Faz tempo que nada publico neste blog. Ocupado em outras tarefas, deixei que os tentáculos da conjuntura se desenvolvessem até que fatos políticos relevantes voltassem a me motivar. Falo em tentáculos porque quem acompanha este blog sabe onde localizo o corpo do polvo em que as facções estatais se juntam: o Estado de Direito Autoritário – EDA. Tratarei a seguir do “golpe” de 8 de janeiro e do caso Marielle.

A natureza blefadora das tentativas de golpe de Bolsonaro foi discutida neste blog várias vezes, especialmente aqui e no dia 06 de janeiro, dois dias antes da arruaça (o leitor me ajudaria a mostrar o que penso se lesse estes dois artigos mais antigos, bem como se assistisse a este vídeo no canal Lavoura Política). Sempre deixei claro que embora Bolsonaro sonhasse com um golpe, que parte da sua base “autorizasse” um golpe, que militares aliados deles falassem num golpe, esse golpe era inviável, sobretudo (mas não apenas) em razão da preferência da maioria da sociedade brasileira pela democracia.

Todo o material recente sobre o que aconteceu no segundo semestre de 2022: minutas para malogradas medidas presidenciais golpistas; o general Heleno suplicando em reunião no Planalto por um golpe antes da eleição presidencial, pois depois seria impossível; as trocas de lamúrias entre golpistas, inconformados com a não adesão de chefes militares ao almejado golpe; tudo isso, e outros detalhes conexos, mostra que jamais houve possibilidade de golpe. A arruaça de 8 de janeiro saiu desse semestre anterior de frustrações acumuladas, em que os golpistas de palácio sentiam a inviabilidade de suas pretensões mas, irracionalmente inconformados, continuaram a se alimentar das ilusões com que inflavam a atmosfera conspiratória em que deliravam os golpistas acampados — esse tráfico de ilusões recíprocas é que levou à insânia e, dela, à baderna.

Veja bem, leitor, havia golpistas no palácio, havia golpistas na rua, houve uma arruaça promovida por golpistas da rua e assistida por golpistas de palácio (PM do DF e GSI da presidência sob Lula), mas não houve tentativa de golpe. A compreensão de que não houve tentativa real de golpe, não obstante houvesse golpistas, não é só minha, mas de duas maiorias esmagadoras dos brasileiros com mais de 16 anos de idade: em pesquisa DataFolha divulgada hoje, para 65% o 8 de janeiro foi vandalismo, não tentativa de golpe; não obstante, para outros 63%, os golpistas não devem ser anistiados seja da arruaça, no caso dos golpistas da rua, seja da conspiração contra o Estado de Direito, no caso dos golpistas de palácio e de alguns dos participantes da arruaça.

Quer dizer, mesmo com meses de alarido da mídia, do governo, das facções majoritárias atuando no STF, e da nossa autointitulada esquerda defensora da ordem vigente, martelando o golpe supostamente tentado, e mesmo com os bolsonaristas alardeando mais uma anistia indevida, expressiva maioria da população acima de 16 anos não se deixou enganar e persevera em sua orientação auspiciosa: preferência pela democracia e sentimento antissistema. Quem reunir essas duas preferências num projeto de transformação com base no combate à desigualdade construirá uma nova maioria para lutar por um Estado de Direito Democrático.

Marielle

Entre 15 e 20 de março de 2018 publiquei quatro artigos neste blog sobre o assassinato de Marielle e Anderson, já então discutindo como na morte deles se articulavam as facções estatais do Estado de Direito Autoritário-EDA. Como não poderia deixar de ser, o que vai aparecendo parcialmente como desfecho do caso mostra que a realidade foi além do que supúnhamos naquela altura: o próprio chefe da polícia civil articulou o crime e cuidou de encobri-lo.

A mídia convencional e as redes sociais padrão “defesa da democracia” estão pendurando o desfecho do caso de muitas maneiras, mas há uma perspectiva comum, da qual partilham até pessoas que se notabilizaram pela valentia com que enfrentaram a força dos criminosos: todos tratam essa força eleitoral e matadora dos irmãos Brazão como evidência de uma suposta “ausência do Estado” nas comunidades, abandonadas ao crime.

Ora, os Brazão, que mandaram matar Marielle, têm larga trajetória parlamentar, tanto estadual quanto federal, um deles foi eleito para o Tribunal de Contas com esmagadora maioria na Assembleia Legislativa do Rio, com muitos votos da autointitulada esquerda — não é também senão estatal a proteção que o deputado Brazão está a receber na Câmara Federal, com Lira se reunindo em seu favor com o não menos estatal Lewandowski (ex-STF); quem articulou o assassinato de Marielle e protegeu os cúmplices no crime foi nada menos do que um delegado, cuja carreira estatal bem-sucedida lhe permitiu chegar à chefe da Polícia Civil; quem nomeou o delegado para a Chefia foi um general do Exército; o matador de Marielle foi treinado como agente estatal pela PM e fez uso de munição de origem estatal para cometer os crimes.

Os mandantes, o articulador e o matador atuavam a partir de seus laços estatais e mantinham relações se não cordiais, ao menos de convivência conveniente com o crime organizado que, embora civil, é “organizado” desde dentro dos presídios estatais, onde seus chefes já encarcerados mantém seus poderes sobre o que se passa na rua pela compra da omissão, da ajuda e da cumplicidade de outros agentes estatais, como carcereiros, vigias e diretores de presídios. Tudo isso forma um claro conjunto faccioso, que não é senão estatal.

Em suma, os Brazão, as milícias, o crime organizado e a polícia corrupta que ditam a norma da vida infeliz das comunidades, enquanto distribuem migalhas para angariar poder pelo Brasil afora, não são resultado de uma suposta “ausência do Estado”, eles são a presença mesma do próprio Estado de Direito Autoritário, do qual também se serve, geralmente em outros poleiros (mas nem sempre…) a nossa não menos facciosa autointitulada esquerda, que espertamente o defende como se fosse um Estado democrático de direito.

Fica o Registro:

19:40h – Novos números da pesquisa DataFolha: perguntados se Bolsonaro tentou ou não “continuar presidente planejando um golpe”, 55% disseram que sim e 39% disseram que não. Veja bem, leitor, ao contrário do que diz a matéria que faz a “análise” dos números, a pergunta não foi se Bolsonaro tentou um golpe, mas sim se ele planejou um golpe. A maioria entende que Bolsonaro planejou um golpe porque soube fazer a diferença, embora a pergunta tenha algo de capcioso. Está claro que ao conspirar/planejar para abolir o Estado de Direito em favor de uma ditadura Bolsonaro cometeu crime contra o Estado de Direito. Parte dessa conspiração foram as sucessivas “tentativas” de golpe, que sempre acabaram sob a forma de blefe, uma vez que se tratavam de operações para incitar a ação de outros e/ou medir-lhes a disposição golpista. Bolsonaro planejou um golpe, mas não tentou realizá-lo porque nunca reuniu força suficiente. Note bem, leitor, planejar coletivamente um assassinato, sem entretanto chegar a atentar contra a vítima, não tipifica tentativa de homicídio, mas tipifica formação de quadrilha. Na mesma linha, planejar golpe contra o Estado de Direito não tipifica tentativa de golpe, mas tipifica conspiração contra o Estado de Direito.

FALCATRUAS DE BOLSONARO AJUDAM JOGO DE LULA

Carlos Novaes, 11 de agosto de 2023

É sugestivo acompanhar o alarido atual da nossa autointitulada esquerda, que em passado recente desdenhava como moralismo vulgar a justa indignação contra a corrupção grossa havida na Petrobrás sob responsabilidade de governos lulopetistas e, agora, faz esse escarcéu moralista com as falcatruas do bolsonarismo com joias, ajudando a encobrir o jogo das facções voltado a estabilizar a acomodação do Centrão no governo (ou a acomodação do governo ao Centrão).

A acomodação do Centrão ganhou rumo firme faz pouco mais de dois meses, com a bem-sucedida ação de advertência da PF contra alvos próximos a Arthur Lira em Alagoas (vista aqui, no último parágrafo), e se encerrou hoje, com Gilmar Mendes tomando a decisão monocrática (mas nada pessoal) de anular todo o inquérito que investigava aquela relação de Lira com a corrupção envolvendo dinheiro federal enviado ao seu estado. Olhada com cuidado, essa acomodação marca a fase final do longo looping das facções para retornar à situação pré-golpe contra Dilma, como já vimos até em vídeo.

Gilmar havia encaminhado a decisão do caso de Lira para o pleno do STF, mas, na última hora, apoiado na ensaiada recomendação da bolsonarista que ocupa o segundo posto da PGR, ele voltou atrás e decidiu pela anulação de todo o trabalho realizado pela PF — Gilmar deve ter feito as contas e concluído que seu protegido corria o risco de perder, pois, além do seu, só poderia contar como certos em favor de Lira os votos de Toffoli, Moraes e Zanin, que estão, por diferentes razões, mais diretamente afinados com o faccioso jogo Lula-Centrão. Mendonça e Cássio poderiam entender que para atrapalhar o jogo de Lula o melhor seria punir Lira. Barroso, Fachin, Weber e Carmen Lúcia provavelmente votariam contra a anulação das provas, e Fux é, nesse caso, uma incógnita.

Enquanto isso, e afinado com isso, Lula continua a jogar para a plateia, embora fique cada vez mais difícil, uma vez que a plateia está farta do sistema e as mágicas de Lula estão cada vez mais manjadas. Em discurso recente, ele realizou o malabarismo canhestro de se mostrar indignado com mais um assassinato de um jovem negro pela PM e, ao mesmo tempo, sob aplausos, isentar o governador do Rio e sua polícia de qualquer responsabilidade! — além de nada dizer contra os desmandos assassinos da PM da Bahia. Isso é parte do cerne populista do Estado de Direito Autoritário-EDA: se diz alinhado aos pobres e passa pano para o autoritarismo que os mantém sob terror.

Em outro discurso, dessa vez no lançamento do novo PAC, Lula foi mais longe do que jamais havia ido na defesa do status quo, no alinhamento com o sistema-EDA, no apequenamento da política, confinando-a aos acertos entre profissionais: primeiro, prescreveu à militância a mesma cordialidade hipócrita com que conduz suas negociatas políticas; segundo, mostrou-se preocupado com a reputação dos políticos corruptos (aos montes à sua volta na festa) e chamou de “denuncismo” a revelação diária das falcatruas que ocorrem Brasil afora; terceiro, mencionando Lira, declarou que “o Congresso não precisa do governo, mas o governo precisa do Congresso”, como se Lira não precisasse do dinheiro que cobra pelos votos que Lula mendiga — Lula prefere encobrir a realidade com uma fala despolitizada e desmobilizadora, repetindo mais uma vez “deixem comigo”. Isso também é parte do cerne do Estado de Direito Autoritário: defende a democracia como mero azeite politiqueiro para o jogo de facções que comanda o EDA.

No cenário internacional, o pessoal começa a dar sinais de enfado com o malabarismo retórico de Lula: em recente cimeira sul-americana em Belém do Pará, o presidente da Colômbia constrangeu Lula publicamente ao vetar a exploração de petróleo na Amazônia. Do outro lado do Atlântico, o presidente da Ucrânia desnudou o alinhamento do governo brasileiro com a Rússia, mostrando (como já vimos em Fica o Registro, há mais de dois meses) que Lula e Amorin repetem o discurso mentiroso de Putin.

Enfim, há cada vez menos estímulo para se gastar tempo com a fastidiosa e facciosa política brasileira.

GOVERNO LULA IMERSO EM DESORIENTAÇÃO — 2 DE 2

Aos 10 anos das manifestações de junho de 2013VEJA SÉRIE DE VÍDEOS NA PLAYLIST DO CANAL LAVOURA POLÍTICA, NO YOUTUBE

Carlos Novaes, 02 de junho de 2023

Com + acréscimos na seção Fica o Registro, às 15:00h e às 16:46h de 02/06

A desorientação de Lula, desenhada em suas linhas gerais no artigo anterior desta série, aparece com clareza nos detalhes práticos de sua atuação em quatro áreas fundamentais: (i) combate à desigualdade; (ii) transformação do Estado num Estado de Direito Democrático; (iii) enfrentamento da questão ambiental e da mudança climática; (iv) relações internacionais afinadas com os objetivos anteriores.

I.

Combater a desigualdade requer recuperar a capacidade do Estado de investir. Veja bem, leitor: investir, não meramente gastar em políticas compensatórias — quer dizer: ao invés de tratar apenas dos 50% mais pobres contra os 5% mais ricos, o governo tem de realizar obras anti-desigualdade que contemplem também interesses dos 45% que formam as classes médias. Liderada por Haddad, a área econômico-fazendária do governo, na busca de melhorar a capacidade de investimento, construiu o chamado “arcabouço fiscal” (destinado a enfrentar o desequilíbrio das contas públicas) e uma proposta de reforma tributária (destinada a melhorar a arrecadação do Estado). Ambas as propostas são tímidas diante da desigualdade, mas são coerentes com a posição desvantajosa em que o governo se acha na luta de facções em que escolheu se afundar.

A timidez dessas propostas contrasta com a valentia eleitoral recente, período no qual nossa autointitulada esquerda sempre tira do armário sua batina radicalóide e brada contra os muito ricos (os 5%) e em favor dos mais pobres (os 50%), prometendo uma guerra que jamais irá travar. Uma vez no governo, passa aos acenos de moderação para apaziguar os muito ricos (os 5% tão atacados na campanha) e suas facções de apoio dentro do Congresso (especialmente o tão “repudiado” Centrão). Não obstante sua timidez, aquelas propostas foram e têm sido torpedeadas com sucesso pelo facciosismo da oposição congressual, que explora a fragilidade do governo ali. Como Lula faz da política uma reserva de mercado para profissionais, nada pôde fazer senão ceder mais e mais às exigências do chamado Centrão.

Como se não bastasse o fogo das facções adversárias, a questionável (mas inegável) racionalidade da proposta de Haddad tem sido torpedeada pelo próprio Lula: mesmo com as crescentes dificuldades para angariar os 150 bilhões de reais que lhe faltam para alcançar o mínimo daquela racionalidade almejada, o presidente não apenas impediu o fim da isenção fiscal para compras no exterior até 50 dólares (renderiam 8 bilhões), mas ainda anunciou uma nova isenção de impostos industriais para presentear a baixa classe média com um poluente “Meu Carro Minha Vida” (perda de uns 2 bilhões), o que vai na contramão do que seria uma política real contra a desigualdade em favor da baixa classe média: aumentar e qualificar o transporte coletivo com equipamentos elétricos, rodoviários e sobre trilhos (como, aliás, parece ser a proposta de Mercadante no BNEDS…).

Os recuos irracionais de Lula mostram sua incompreensão do problema da desigualdade: ele só entende o combate à desigualdade como distribuição de benefícios diretos de fruição imediata, não com investimentos cujos resultados só irão aparecer no médio prazo (infraestrutura) e, especialmente, no longo prazo (educação). Por isso Lula não tirou da baixa classe média a isenção para compras via internet até 50 dólares e ainda pretende dar a ela o tão sonhado carro popular: tudo se passa como se a luta contra a desigualdade não exigisse uma transformação no modo de ver a participação de cada um no desenvolvimento do país. Não parece difícil de entender que a luta contra a desigualdade ganharia tração política se o governo mobilizasse a maioria da sociedade para uma proposta em que todos ajudariam a pagar a conta — sem simplismos, mas apenas para dar um exemplo: viriam juntos o fim das isenções sobre lucros e dividendos (75 bilhões anuais) e sobre as tais compras até 50 dólares (8 bilhões anuais).

II.

Lutar para alcançar um Estado de Direito Democrático requer, de cara, reconhecer que — nesses mais de trinta anos que nos separam da queda do Estado Ditatorial instituído em 1964 — a democracia não completou sua transição desde a sociedade (onde ela permanece viva) para o Estado (que se defende dela com autoritarismo). Esse impasse alojado na transição democrática truncada ganhou forma no Estado de Direito Autoritário que nos infelicita. Ou seja, ao invés da democracia transitar da sociedade para o Estado; foi o Estado Ditatorial que transitou para o Estado de Direito Autoritário: adotou o “de Direito” para ceder algo à maioria da sociedade que queria democracia; mas manteve o “Autoritário” para preservar os poderes e interesses das facções estatais.

Infelizmente, por razões aludidas no artigo anterior e já detalhadas aqui e em outros posts deste blog, nossa autointitulada esquerda se afeiçoou ao Estado de Direito Autoritário-EDA a ponto de defendê-lo como se fosse um Estado democrático de direito, enredando-se com isso em toda sorte de inconsistências e contradições: ora chega a festejar as arbitrariedades do Judiciário contra os adversários, e até os ironiza por estarem provando do próprio chicote autoritário, como se isso não desmentisse a vigência do suposto Estado democrático de direito que alega defender; ora se alinha às facções reacionárias para burlar a exigências eleitorais quanto a cotas de mulheres e negros e quanto ao uso devido do dinheiro público dos fundos eleitoral e partidário.

Não é de espantar que essa mesma autointitulada esquerda se mostre impotente diante da violência autoritária com a qual o EDA invade (polícia) e abandona (políticas públicas) as comunidades carentes; ou não se insurja contra o corpo mole do ministro da Defesa diante do necessário e urgente combate ao garimpo ilegal (ou seja, não é “de Direito”) na Amazônia; ou tenha emudecido diante do necessário combate à corrupção; ou, por isso mesmo, trate como normal a compra de votos congressuais com emendas que antes fingia combater, chegando a elogiar Lira e Pacheco em seu papel de interlocutores confiáveis e como “defensores da democracia” contra um golpe que sempre foi inviável.

À vontade com esse Estado, Lula diz à sociedade que fique em casa, mesmo quando as facções adversárias o colocam de joelhos até para aprovar o organograma da esplanada dos ministérios, que chegou a 37 ministros justamente no intuito de “pacificar” a conflagração estatal. Em discurso na FIESP, Lula disse que “isso é a política” e que se tentarmos sair disso só iremos piorar as coisas… Deve ser por isso que o combate ao bolsonarismo está restrito a dois circos facciosos: o circo da CPI e o circo do Dino — ou seja, tudo cuidadosamente planejado para deixar de fora a maioria da sociedade, a quem se oferece a catarse das performances burlescas.

O alheamento de Lula aos desafios para a construção de um Estado de Direito Democrático fica escancarado quando ele indica seu advogado pessoal para a vaga a ser preenchida no Supremo Tribunal Federal-STF, legitimando as piores práticas de seu antecessor, nessa matéria, e dando mais um passo em direção à normalização do caráter faccioso do exercício do poder. Bolsonaro nomeou um “peixe meu” e, depois, alguém “terrivelmente evangélico”; Lula quer ver nomeado alguém terrivelmente lulista. A coreografia é tão facciosa que Lula usou como material de barganha para essa nomeação antirrepublicana o fato de ter escolhido apadrinhados de facções adversárias para duas vagas recentemente preenchidas no Superior Tribunal de Justiça-STJ — nomeações essas que não contemplaram nenhuma das mulheres que estavam na disputa.

III.

Enfrentar o desafio ambiental da mudança climática requer, no mínimo, acabar com a destruição da floresta e proteger o que restou dela. Acabar com a destruição significa enfrentar o que há de ilegal no garimpo, na extração de madeira e na produção pastoril, agrícola e pesqueira; proteger o que restou começa por fazer das populações indígenas o principal aliado no uso sustentável dos recursos naturais disponíveis nessas florestas: demarcar suas terras, reconhecer seu poder sobre elas e aprender com elas a preservar e manejar aquelas terras que elas não ocupam.

Depois do espalhafato inicial, o governo Lula acomodou-se diante de garimpeiros aquadrilhados, que têm enfrentado a tiros a rotina impotente do pequeno contingente de fiscais do IBAMA e da Polícia Federal destacado para aquela imensa área. Como os militares são avessos à preservação da floresta e ao respeito aos direitos indígenas, e como Lula está empenhado em “pacificar” a relação com eles (mesmo ao custo de passar pano para as afrontas bolsonaristas que eles protagonizaram recentemente), o governo está sem meios para mobilizar as FFAA no combate à bandidagem em ação na Amazônia. Vale notar que quando se trata das suas preferenciais internacionais, Lula encontra meio para enquadrar os militares: recentemente, determinou que eles convidassem o exército da China para evento militar organizado no Brasil.

Pelo lado do desenvolvimento, Lula tem mostrado pouca sintonia com as complexidades ambientais envolvidas, como deu exemplo na ideia do “Meu Carro Minha Vida”. Recentemente, diante de mais uma negativa do IBAMA a projeto da Petrobrás visando explorar petróleo no mar do Amapá, Lula declarou achar difícil haver problema ambiental na iniciativa, uma vez que se trata de empreendimento exploratório a 170 Km da costa… O absurdo da declaração é duplo: primeiro porque 170 Km significam um pulo quando se trata de dispersão de dano ambiental na água; segundo, e sobretudo, porque Lula fala como se um dano poluente que se restringisse ao mar não fosse de levar em conta.

IV.

Até aqui, Lula nada fez para alcançar relações internacionais compatíveis com os desafios que o Brasil enfrenta, pelo contrário. Toda a sua movimentação em busca de protagonismo na área tem sido lamentável, quando não delirante. Como já vimos detalhadamente aqui e aqui, seus arrancos de “pacificador” na guerra da Rússia contra a Ucrânia só serviram para deixar o Brasil em má situação com as consolidadas democracias europeias, as quais queremos como aliadas na luta ambiental, e com quem almejamos parcerias comerciais garantidas por tratados recíprocos. Tudo isso ficou abalado com a postura de Lula de se dizer “neutro” e, ao mesmo tempo, fazer reparos à solidariedade europeia diante de uma guerra de conquista contra país europeu!

Considerando os desafios estruturais enfrentados pela democracia brasileira, e tendo em mente o necessário combate conjuntural a ser feito contra o bolsonarismo, é realmente intrigante a deferência de Lula ao Bolsonaro da Rússia, preferência que nem o pragmatismo mais reles justificaria, afinal, a Rússia tem um PIB do tamanho do brasileiro — igualmente lastreado em exportações de matérias primas (a Rússia é o Brasil com arsenal atômico) — e nada de relevante pode fazer em nosso favor, especialmente agora que vai sair dessa guerra praticamente quebrada. Afinal, em nome do que Lula vetou a venda de ambulâncias militares brasileiras para a Ucrânia?!

Mas as trapalhadas de Lula não se restringem ao velho continente. Na recente cimeira entre líderes de países sul-americanos, Lula deu atenção desproporcional a Maduro, da Venezuela, com quem não apenas manteve espalhafatoso encontro bilateral, mas a quem defendeu contra as fundadas cobranças de respeito pelos Direito Humanos feitas por organizações sediadas em democracias europeias, classificando-as como “narrativas” — o que deu oportunidade ao jovem presidente do Chile de reagir para se distanciar resolutamente da anacrônica visão política de Lula.

Como se não bastasse, Lula usou Maduro para fazer dois gestos adicionais na mesma direção equivocada: primeiro, deu a declaração estapafúrdia de que as sanções contra a Venezuela são piores do que uma guerra, uma vez que, segundo ele, “em guerras só morrem soldados”… (e isso com tudo que se sabe do que Putin está fazendo contra o povo da Ucrânia, para não falar das duas guerras mundiais, ou da guerra do Iraque, do Vietnã, etc). Segundo, no contexto grave das atuais tensões internacionais, Lula, numa provocação tão desnecessária quanto tola aos EUA, sugeriu a Maduro fazer negócios em Yuan, a moeda chinesa, ao invés do dólar.

Para piorar as coisas, Lula ainda obteve um revés no campo que julga seu, o campo dos BRICS: em seu afã de aparecer como salvador da Argentina, fez proposta sem lastro sequer legal para que o Banco dos BRICS socorresse o quebrado país vizinho e acabou, mais uma vez, desmentido pelos fatos, não sem ter passado o vexame adicional de ter desconsiderada a sua sugestão de que o estatuto do banco fosse alterado (não consegue mandar no BC brasileiro e acha que por ter colocado Dilma na presidência do Banco dos BRICS…).

O frenesi de “pacificador”, estendido às relações internacionais, reflete, talvez, um açodamento de Lula na busca por realizar o sonho de obter um Prêmio Nobel da Paz — alguém precisa avisá-lo de que, se for este o caso, ele está a agir de modo contraproducente.

Fica o Registro:

– Celso Amorim, assessor de Lula para relações internacionais, acaba de declarar em entrevista ao Financial Times sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia que “Não podemos julgar a situação pelos últimos um ano e meio. Essa é uma situação de décadas. [A Rússia tem] preocupações que precisam ser levadas em conta. Isso não é culpa da Ucrânia. A Ucrânia é uma vítima, uma vítima dos resquícios da guerra fria”. Não poderia haver resumo melhor da preferência do governo Lula por Putin:

Primeiro, Amorim compra pelo valor de face, e repete feito papagaio, o falso argumento da Rússia de que a guerra unilateralmente iniciada (ou seja, as atrocidades em solo ucraniano nos últimos ano e meio) teria alguma explicação além da vontade de expansão territorial da Rússia em seu insaciável sonho milenar de grande império. Putin temia a Ucrânia na OTAN não porque isso significasse uma ameaça à sua segurança, afinal, qualquer invasão do território da Rússia será imediatamente respondida com armas nucleares. O problema é que a Ucrânia na OTAN tornaria impossível a Putin anexá-la. Putin iniciou a guerra para se antecipar ao problema que teria. Supôs que a OTAN nada faria e que a Ucrânia se renderia. A Ucrânia reagiu e a OTAN passou a fornecer-lhe apoio crescente.

– Segundo, Amorim fala em “situação de décadas”, “preocupações que precisam ser levadas em conta”. Ora, se fosse assim, se Putin estivesse a responder a uma questão real, de fundo, como explicar o fato de que ele nada tenha feito diante da afrontosa entrada da Finlândia e da Suécia na OTAN? O “cerco” não poderia ser maior, afinal a nova “ameaça” fronteiriça chega a novos 1.550 Km (1.340 Km por terra e 210 Km por mar); não obstante Putin não fez caso precisamente porque isso não significa, na real, ameaça alguma. No fundo, Putin deu oportunidade aos EUA e à Europa de mostrar quão impertinentes são os sonhos imperiais da elite russa autoritária.

– Terceiro, Amorim diz, numa compaixão fingida, que “a Ucrânia é uma vítima, uma vítima dos resquícios da guerra fria”. Veja bem, leitor, a falsidade: uma vítima não da Rússia nessa guerra quente cruel, mas da guerra fria, que ficou para trás faz décadas e no vácuo da qual Putin achou que poderia agir na marra para restaurar parte do império perdido. Essa declaração vergonhosamente sabuja de Amorim traduz com perfeição a posição de Lula que — depois de ter se feito de difícil em Hiroshima, demorando para aceitar uma reunião com Zelenski, e de ter recebido o troco num desprezo merecido — acaba de promover mais uma rodada de conversas com Lavrov, o desmoralizado chanceler russo mentiroso. Um vexame atrás do outro.

16:46h

– Em evento com simpatizantes em São Bernardo do Campo, Lula abordou suas dificuldades para aprovar na Câmara o organograma do seu ministério nos seguintes termos: “A esquerda toda tem no máximo 136 votos, isso se ninguém faltar. Para votar uma coisa simples precisamos de 257. Para aprovar uma emenda constitucional, é maior ainda. Então é importante que saibam o esforço para governar. Não é só ganhar uma eleição, você ganha a eleição e depois você tem que ficar o tempo inteiro conversando para aprovar uma coisa”.

– Mesmo tendo comprado os votos a peso de ouro (1,7 bilhão em emendas, pagos no dia e na véspera da votação; e a volta do cabide de empregos da FUNASA), Lula normaliza a barganha facciosa havida (que favorece a corrupção) chamando-a de conversa política, e pior: não faz qualquer aceno para a mobilização popular, a quem, para ele, cabe apenas votar — e ainda choraminga sobre “as dificuldades de governar”.

Lula e o PT cederam sem queixas ao desmonte dos ministérios de Marina Silva e Sônia Guajajara, que, por sua vez, estão caladinhas, agarradas aos fiapos de poder que lhes foram deixados. Para Lula, e para boa parte da autointitulada esquerda, a formação original daqueles ministérios não era uma questão central. Por isso, tudo se passa como se Lula tivesse obtido uma vitória… É sempre assim, querem nos vender como vitórias as derrotas havidas: a anistia para torturadores; as Diretas-Já; a “solução” Tancredo no Colégio Eleitoral; os 5 anos pro Sarney; etc.

– Essa votação foi mais um evento da guerra de facções e, por isso mesmo, exibe a movimentação facciosa em toda a sua inconstância de fusão contínua: o placar supostamente favorável, alcançado na última hora, enfraqueceu Lira, pois não resultou de uma ordem unida comandada por ele, mas de intensas negociações paralelas, num verdadeiro azáfama faccioso. Ademais, Lira já está a receber pressões oriundas do facciosismo no Judiciário e na Polícia, numa resposta ao fato de ele estar querendo dar uma de Eduardo Cunha num cenário sem as facções da LavaJato e esquecido de que Lula não é Dilma… Passou a levar tiros de advertência.

GOVERNO LULA IMERSO EM DESORIENTAÇÃO — 1 DE 2

Aos 10 anos das manifestações de junho de 2013VEJA SÉRIE DE VÍDEOS NA PLAYLIST DO CANAL LAVOURA POLÍTICA, NO YOUTUBE

Carlos Novaes, 01 de junho de 2023

A desorientação do governo decorre do fato de Lula ter se colocado na situação de quem não pode fazer o que tem de ser feito. Lula escolheu dizer à sociedade que fique em casa, que ela deixe a gestão da coisa pública para os políticos profissionais. Agarrado ao Estado, Lula quer produzir nele uma solução, desdenhando a participação da maioria da sociedade. Com isso, se condenou a acertos precários com Liras e Pachecos. Essa escolha seria um erro em qualquer circunstância, mas ela se revela um erro trágico (ou seja, o tipo de erro que encomenda um inevitável resultado catastrófico) quando o Estado é um Estado de Direito AutoritárioEDA e, ainda por cima, está em crise de legitimação, uma crise que emergiu e está presente no sentimento antissistema partilhado pela maioria da sociedade brasileira.

Mesmo quando colocado diante dos maiores reveses, que não param de se acumular, Lula insiste em defender o “sistema”, repetindo a bobagem de que a política é uma exclusividade dos políticos profissionais — como fez em discurso recente na FIESP. Lula enxerga na atuação das facções estatais o único caminho para conduzir o Brasil a dias melhores. Daí que, mesmo imerso numa guerra de facções, Lula persevere em se exibir no figurino impróprio de “pacificador”: de costas para a sociedade, ele quer pacificar as entranhas do Estado, quer dizer, restabelecer um solo comum para a luta entre facções estatais voltadas a reunir poder para fazer dinheiro.

O “solo comum” que Lula tenta restabelecer ficou visível em sua natureza de pântano na crise desencadeada pela concatenação entre as manifestações de junho de 2013 e a LavaJato. Já vimos aqui, a quente, como aquela crise desdobrou-se numa luta generalizada entre facções, cujas arbitrariedades, naquela altura, fizeram de Lula a maior vítima. Moro-Dellagnol&Cia são figuras execráveis, por certo, mas é inegável que na busca por seus objetivos escusos eles deixaram claro que o Estado de Direito Autoritário atuava, como continua a atuar, com base em autoritarismo e corrupção.

Para esconder o que houve (e há) de crescentemente incômodo para si mesma na decorrência daquelas circunstâncias, a nossa autointitulada esquerda pretende nos enfiar goela abaixo o juízo quase onipresente de que aquelas manifestações populares foram desde sempre fascistas, e que tudo que a LavaJato descobriu era mentira, invenção e conspiração. Ora, a verdade é que a autointitulada esquerda não podia (como continua não podendo) disputar o sentido da ira popular contra o Estado de Direito Autoritário porque ela se agarrou a este Estado como qualquer outra facção.

É que o Estado no Brasil é um refúgio protetor contra as agruras da desigualdade. Chegar a ele significa, sempre, reunir algum poder para fazer algum dinheiro. Pelo lado do poder, ele pode se traduzir na mera estabilidade no emprego; ou na direção de uma estatal; no manejo das prerrogativas de uma carreira obtida por concurso; no usufruir das oportunidades de mando de um cargo eletivo. Pelo lado do dinheiro, as vantagens são correspondentes ao poder reunido, que vão desde o salário garantido (que cresce conforme a hierarquia), passam por penduricalhos e privilégios legalmente arranjados (como auxílios-moradia) ou ilegalmente tolerados (como o uso de um carro oficial fora de serviço), e podem chegar a ganhos ilícitos obtidos por meio de corrupção direta (como a propina do guarda rodoviário ou a do contratante de uma grande obra).

Todo esse conjunto propriamente estatal contrasta fortemente com a situação em que vive a maioria da sociedade, que não tem meios de fugir das, nem mesmo compensar as, agruras e dificuldades impostas pela desigualdade, que atinge a imensa maioria de nós, ainda que, claro, com pesos diferentes. Não é por outra razão que boa parte da nossa classe média apresente a estranha combinação de defesa alienada do “livre mercado” e do “Estado mínimo” (aqui ela extravasa sua insatisfação confusa com o Estado de Direito Autoritário) e, ao mesmo tempo, não pare de incentivar os filhos a fazerem concurso público (aqui ela se rende ao pragmatismo do contorno à desigualdade, que se mantém pelo autoritarismo daquele Estado que ela odeia, mas que no qual, agora, ela quer que o filhote se abrigue…).

Qualquer esquerda que se preze teria que se colocar como tarefa explicar essa relação entre o Estado que temos e a desigualdade que nos inviabiliza como país — contradição que não pode ser resolvida com “pacificação”. Essa é a tarefa central para nos permitir dialogar com as classes médias que, desorientadas em seu auspicioso sentimento antissistema, acabaram por se voltar para figuras medonhas como Collor ou Bolsonaro. Mas não. Nossa autointitulada esquerda insiste em defender esse Estado, diz que essa aberração é um Estado democrático de direito, e, por isso mesmo, faz da luta contra a desigualdade uma bandeira vazia, que se traduz em meras políticas compensatórias, muito boas para angariar votos, mas inócuas para a solução dos problemas estruturais que afligem, sobretudo, aos mais vulneráveis.

Lula está no topo dessa alienação interessada e, por isso, emerge como a figura mais notoriamente desorientada no Brasil de nossos dias. Detalhemos isso.

“PACIFICAÇÃO” REVELOU-SE RENDIÇÃO

Carlos Novaes, 20 de abril de 2023

Com acréscimos em 21/04 e ++ acréscimos em 22/4, na seção Fica o Registro

Com dois vídeos bem recentes: o caso do GSI e Política como Profissão

Lula insiste no figurino de “pacificador”, equívoco que o levou à rendição tanto no front interno como no front externo da atuação de seu governo.

No front interno, depois de engolir afrontas militares que deveriam ter sido repelidas com exonerações e novas nomeações, o Lula “pacificador” precisou de 37 ministérios para agradar as mais díspares facções estatais e, por isso mesmo, montar um governo disfuncional — observe, leitor, que o governo de Lula é ainda mais heterogêneo do que o arco de adesões que recebera na campanha. Lula está no comando de um governo ao qual não consegue dar um vetor e se vê amarrado por todo lado, sem margem para atuar.

No front externo, Lula atua com uma desenvoltura sem lastro, que até parece a busca inconsciente por alguma compensação às limitações do front interno. Toda a vontade tolhida na política interna se derrama em voluntarismo megalomaníaco na política externa, onde Lula volta a atacar de “pacificador” como se tivesse força para isso. Acabou por se mostrar, a um só tempo, rendido aos interesses imediatos da Rússia (que quer parar a guerra de modo a consolidar territórios ocupados), e manobrado ao sabor dos interesses estratégicos da China (que pretende reincorporar Taiwan e ganhar terreno contra os EUA na construção de esferas de influência em âmbito mundial).

Nos últimos dias, a falta de rumo do governo — provocada pelo impulso “pacificador” de agradar a todos — apareceu tanto no recuo da decisão de revogar isenção fiscal para compras via internet até 50 dólares, quanto na falta de pulso para resolver o caso do vazamento das imagens que mostram o general do GSI omisso diante de vândalos agindo dentro do Palácio do Planalto no 8 de janeiro. No caso do recuo na taxa de importação, Lula preferiu ouvir palpiteiros e decidir segundo “pesquisas” do que seguir o penoso e pensado programa de sua área econômica. No caso do general, Lula, ao invés de impor razões de Estado para encaminhar uma solução, se rendeu a tal ponto às relações facciosas (indevidamente classificadas como “corporativismo”), que abriu mão até de figurar como líder diante da crise e endossou que o omisso general Gonçalves Dias deixasse o cargo “porque quis”!

Pesquisas nessa fase do governo podem informar, mas não devem orientar a ação governamental. Afinal, um governo seguro de seus propósitos e resoluto em suas escolhas deveria absorver contrariedades atuais na opinião pública em prol de medidas que venham a dar frutos no futuro, pois há tempo de sobra. Além de corrigir distorções de mercado, o fim da isenção na taxa de importação elevaria a arrecadação e, portanto, ajudaria a financiar políticas que agradariam a opinião pública num momento posterior — além de fortalecer a equipe econômica e mostrar que o governo tem algum rumo.

O caso do general Dias reforça a impressão de governo sem rumo, pois Lula, além de se mostrar desinformado (ele não vira as imagens gravadas pelas câmeras do próprio palácio!?), teve escancarada a sua falta de pulso para debelar o que houve de participação militar na cumplicidade com a baderna do 8 de janeiro, em ainda acabou por se render à instalação da CPI para investigar o ocorrido, uma CPI que, segundo ele, só iria “criar tumulto”.

O caso da posição de Lula diante da guerra da Rússia contra a Ucrânia foi discutido aqui faz mais de dois meses e, nesse período, Lula conseguiu piorar o que já era muito ruim. É que, agora, Lula acrescentou inabilidade e, parece, oportunismo à sua pregação estapafúrdia pela “paz” entre atores “igualmente responsáveis pela guerra”. A pregação é estapafúrdia porque desconsidera que a guerra se passa exclusivamente em solo ucraniano, cuja população arca sozinha com os custos do massacre promovido por Putin. A inabilidade está na forma como Lula tratou os EUA e a Europa. Afinal, criticar o envio de armas à Ucrânia como uma atitude contrária à paz é desconsiderar que sem armas o país invadido seria simplesmente subjugado pelo invasor.

O oportunismo está no fato de que Lula apresenta como “solução” para a guerra a cessão da Criméia à Rússia. Ora, qualquer pessoa informada sabe que esse é o desfecho provável, pois a Ucrânia não tem condição nenhuma de retomar a Criméia. Por isso mesmo, um chefe de Estado que se diz defensor da “independência, inviolabilidade territorial e autonomia” dos Estados soberanos não poderia jamais apresentar tal inescapável realidade cruel como “çábia” proposta sua, especialmente quando tal desfecho é dado como certo depois de uma guerra sangrenta! Será vergonhoso se Lula vier a reivindicar que “tinha razão” quando, finalmente, a guerra parar com a Rússia mantendo a Criméia ocupada.

Note, leitor, como é profunda a desorientação de Lula: no front interno, ele insiste em chamar de “luta pela democracia” sua imersão nesse jogo de facções estatais em busca de poder para fazer dinheiro, e ainda tenta esconder isso atrás do espantalho de um golpe ditatorial que já vimos ser inviável; no front externo, porém, abandona a democracia e a aversão à ditadura e (ao contrário do que disse na campanha) se alinha com os interesses de Bolsonaros que “deram certo” (Putin, Xi Jinping, Ortega, Maduro) e põe sob tensão desnecessária e contraproducente nossas relações com os EUA e as democracias europeias, que foram importantes no combate a Bolsonaro.

21/04

Fica o registro:

Não poderia haver exemplo mais claro do jogo entre facções estatais que paralisa em desorientação o governo Lula do que os desdobramentos dessa crise do GSI. De um lado, temos notícias de que, segundo o ministro à frente do GSI interinamente, Ricardo Cappelli, Lula determinou “acelerar a renovação” e “despolitizar” o gabinete. De outro lado, temos o ministro da Defesa, José Múcio, se apressando em declarar que a interinidade de Cappelli (um civil) deverá durar pouco, pois, na opinião dele, “não é hora de mudar o perfil do comando”, ou seja, Múcio, na trilha dos acertos facciosos desde a transição, se apressa em garantir que o comando continuará sob um militar. Ora, além de tardia, a tal aceleração já começa a ser freada pela Defesa — tudo em nome de acertos facciosos.

A aceleração é tardia porque deveria ter começado no dia 02 de janeiro. Se Lula tivesse compreendido o que se passara na transição, teria iniciado o governo substituindo os três comandantes militares nomeados por Bolsonaro naquela pantomima facciosa em que José Múcio se enrolou. Pergunta: como foi possível que o GSI tivesse permanecido repleto de militares leais a Bolsonaro, mas com chefia de um general de Lula? Resposta: o jogo de facções explica isso, pois tudo se faz com acertos, que não levam em conta as diferenças, que são realçadas apenas para o jogo deles de faz de conta com a sociedade. Uma vez lá, eles sempre acham que vão se acertar. Foi deixado ao general fazer, na maciota, o que deveria ser feito com resolução e até espalhafato. Foi tão na maciota que, só agora, mais de 100 dias depois da posse e de tudo o que houve no dia 8 de janeiro, Lula manda acelerar…

Ao contrário do que quer Múcio, que está freando também a revisão do artigo 142 da Constituição, Lula tem de desmilitarizar completamente o GSI, mantendo Cappelli ou outro civil na chefia do gabinete. Na verdade, dentro da lógica contra-facciosa que defendo, Lula deveria nomear uma mulher civil para a chefia do GSI.

22/04:

O governo Lula e a autointitulada esquerda estão a reclamar, com razão, da edição evidentemente manipulada do vídeo da CNN com imagens do que se passou no Palácio do Planalto no dia 8 de janeiro. Entretanto, se há um evento em que “os dois lados são igualmente responsáveis” é exatamente este, afinal, foi o governo Lula que decidiu esconder essas imagens da sociedade, dando espaço para manipulação, se elas vazassem… (e, felizmente, vazaram, pois, do contrário, jamais saberíamos da extensão facciosa do ocorrido). Foi o governo Lula que abriu mão de fazer a luta política aberta, dando à sociedade elementos para compreender por si mesma o que se passou naquele dia do blefe final do mito do golpe. E Lula nos sonegou essas informações depois de ele próprio ter declarado que assistiria às gravações, pois estava convencido de que tinha havido conivência por parte dos militares do Planalto!

Por que no dia 8 o general Dias ainda tinha sob “seu” comando no GSI militares nomeados por Bolsonaro? Não estamos falando de estruturas territorialmente ramificadas e complexas como a PF ou a PRF, mas de um gabinete que trabalha dentro do Palácio do Planalto, com acesso direto ao dia-a-dia do governo, espaço, evidentemente, reservado apenas a um punhado de pessoas de estrita confiança. Lula e Dias tiveram todo o período da transição para escolher os novos funcionários do GSI e planejar o que fazer nos dois primeiros dias de governo. As exonerações e nomeações poderiam ter se iniciado no dia de 02 de janeiro. Mas não: Lula levou seu cálculo errado sobre os militares para dentro da cozinha do Planalto e fez de Dias mais um agente da política inercial do jogo de facções, no estilo amador de que “os militares se entendem”. Deu no que deu: o general vagando omisso pelos corredores do Planalto invadido, sem pulso sequer para dar ordens aos seus subordinados bolsonaristas.

Evidentemente, a baderna do 8 de janeiro, assim como as omissões no combate a ela, são de exclusiva deliberação do bolsonarismo, e todos os “golpistas” têm de ser exemplarmente punidos. Mas, observe, leitor, como esse caso do GSI ilustra o jogo de facções estatais contra a maioria da sociedade: Lula reclama da polarização, mas quer esconder sob a fantasia de “pacificador” o fato de não integrar a sociedade no que há por fazer contra o bolsonarismo; pelo contrário: esconde intramuros estatais tudo o que pode, tentando até evitar uma CPI sobre o 8 de de janeiro, à qual, só agora, se rendeu. Ou seja, ao invés de chamar a sociedade à luta contra o bolsonarismo, Lula não para de fazer acertos faccisosos contraproducentes — escolha que nos permite perceber que, no fundo, Lula não acredita nessa polarização que, não obstante, alardeia… isto é, Lula sabe que não há (como nunca houve) risco de golpe, e só alimenta essa quimera para manter a maioria da sociedade cativa desse alarmismo, muito confortável para quem quer nos fazer engolir um governo que é a casa da mãe Joana das facções estatais. Note bem: a suposta ameaça de um impeachment contra Lula é a nova peça do alarmismo.

Diante do vazamento das imagens, Alexandre de Moraes, mais uma vez, não perdeu tempo e correu para tomar a frente do processo com providências que ele já deveria ter tomado faz tempo. Veja bem, leitor: só agora Moraes requereu a entrega das imagens dos militares envolvidos no apoio explícito aos arruaceiros — enquanto puderam, evitaram integrá-las ao processo, tendo sido deixadas para tratamento de uma sindicância interna do Planalto…

Por quê? Resposta: porque os agentes do Estado estão empenhados em um jogo de facções estatais para tentar (em vão) estancar a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, empenho no qual é fundamental refazer as relações entre as facções, reintegrar militares e outros desgarrados do bolsonarismo, adubar e regar novamente o solo comum, tão danificado pela avacalhação do golpe contra Dilma e pelas tensões adicionais trazidas pela ascensão e queda de Bolsonaro.

No front externo, Lula declara em Portugal o contrário do que declarou na China sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia. Ao que parece, Lula está com esperanças de tirar proveito do oportunismo de Macron, cujo ziguezague sobre a guerra já apontamos aqui. Macron está novamente a desdizer o que disse sobre “derrotar Putin” para, junto com outros, apresentar como “plano de paz” um rol de medidas que já foram antecipadas neste blog faz mais de um ano! O problema é que naquela altura Putin ainda não havia massacrado as cidades e a população civil ucraniana, como fez depois. Além disso, um analista como eu está em seu papel quando especula alternativas; ao passo que um chefe de Estado não pode fazer o mesmo, pois está invadindo competência do país invadido!! Definitivamente, ninguém poderá se exibir como “pacificador”, nem, muito menos, “visionário”, quando essa guerra acabar com a Ucrânia cedendo algum território à Rússia. Agora, neste momento, quem está agindo certo são os EUA e o Reino Unido.

PUTIN SONHOU COM IRAQUE E ACORDOU NO VIETNÃ — LULA DELIRA!

Carlos Novaes, 10 de fevereiro de 2023

O intrépido Lula a se voluntariar para mediar a guerra europeia entre Rússia e Ucrânia é o mesmo que o despachado dono da padaria da esquina se apresentar para mediar a desavença financeira entre as Americanas e os bancos credores.

Com acréscimos no título e na seção Fica o Registro, em 11/02

Os EUA foram derrotados na guerra contra o Vietnã por muitas razões, mas o principal erro deles foi subestimar a determinação da liderança vietnamita pela independência e autodeterminação, que era milenar. Décadas depois, os EUA de Bush mentiram sobre armas de destruição em massa no Iraque na pretensão de “justificar” uma guerra contra Saddam Hussein. Nos dois casos, o morticínio promovido pelos americanos contra os povos a quem cinicamente diziam pretender defender superou largamente qualquer sofrimento que lhes pudessem ser infringidos por seus líderes (inconsistência criminosa que se repete no bloqueio a Cuba, que prejudica mais o povo cubano do que a burocracia estatal que o oprime).

A Rússia de Putin iniciou a guerra de anexação contra a Ucrânia subestimando o apego dos ucranianos, de raízes não menos milenares, à sua independência e autonomia e com o pretexto cínico de que tratava de defender grupos eslavos supostamente ameaçados pela liderança ucraniana, numa agressão cuja falta de motivo ele pretendeu encobrir com a inconsistente alegação adicional de que a entrada da limítrofe Ucrânia na OTAN ameaçaria a segurança russa — e não sem, falsamente, acusar Zelensky de planejar o emprego de uma “bomba suja” (ou seja, municiada com restolho radioativo).

Depois de quase um ano de guerra, Putin — que já matou, feriu, desabrigou e baniu mais eslavos do que o teria feito qualquer governo ucraniano — teve de engolir a expansão da OTAN pela inclusão de novos países que lhe são limítrofes (Suécia e Finlândia) e está a aprender que Zelensky não é Saddam; pelo contrário: o presidente da Ucrânia mostrou-se um líder cuja sagacidade e tenacidade conduziram o nacionalismo ucraniano a revelar-se um oponente determinado e criativo como o foram os vietnamitas quando derrotaram os EUA.

Tendo em mente o que acaba de ser dito, não há como escapar da constatação de que a Rússia de Putin deve ser tão duramente criticada por essa guerra quanto o foram os EUA no Vietnã e no Iraque. Deveria ser evidente que o fato de os EUA estarem apoiando o país agredido nada retira da legitimidade do heroico esforço defensivo da Ucrânia contra uma agressão injustificada — e tão criminosa que de muito já ultrapassou a classificação de guerra suja.

O apoio do EUA está, é claro, lastreado em cálculos pouco defensáveis. Mas o fato de não compartilhar as motivações dos americanos não deveria contaminar a percepção básica de que Putin não pode sair vitorioso de uma guerra de conquista, pelo menos enquanto os ucranianos não disserem que aceitam perdas territoriais — e, tudo indica, isso não acontecerá, pois eles têm se mostrado determinados aos maiores sacrifícios. Essa obstinação tem levado à mudança de posição em aliados que pareciam reticentes: a Alemanha resolveu ceder tanques que antes embargava; Macron, que posava de negociador, acaba de declarar que “Putin não pode vencer”, e há indícios de que a Polônia vai ceder aviões da era soviética (aos quais os ucranianos já sabem pilotar) em troca de reposição por aviões britânicos para a sua frota.

Há quem veja como contraproducentemente tardias essas providências de apoio bélico, que deveriam ter ocorrido em estágios anteriores da guerra, justamente para impedir que ela chegasse ao ponto em que chegou. Outros, pelo contrário, justificam a demora com base nos riscos de uma escalada nuclear por parte de Putin. Na verdade, nem uma coisa, nem outra. Afinal, se qualquer dessas duas interpretações fosse correta, a alta inteligência política e militar dos países aliados, os mais ricos e desenvolvidos do planeta, teria de ser acusada de ingênua a ponto de ou subestimar a guerra, ou de levar a sério os blefes nucleares de Putin. Nada disso.

Quem sabe o que faz não tem Putin na cabeça. O interlocutor para a solução dessa guerra não é Putin, é a Rússia. O apoio bélico de larga monta à Ucrânia demora e se dá com senões e ziguezagues para mostrar aos russos que o chamado Ocidente não quer sufocar, nem muito menos agredir a Rússia. Os líderes da OTAN dão tempo aos russos para enxergarem o quanto Putin fantasia e mente acerca da guerra, à qual ele vem se esforçando para tornar uma guerra patriótica de vida ou morte. Ela é de vida ou morte para ele, não para a Rússia!

Em outras palavras, se Putin tomou decisões insensatas a ponto de colocar a Rússia na situação criminosa em que se encontra, não faria sentido tomar atitudes que pudessem levar os russos a de pronto se alinharem com as falsas alegações dele. Pelo contrário: é necessário cortejar a elite russa mostrando que não há disposição feral contra a Rússia. Esse é o sentido do jogo de senões dos líderes da OTAN, e seus custos, infelizmente, são pagos pela população ucraniana — e devem ser inteiramente debitados da conta de Putin. Por isso mesmo, não tem sentido fazer do terreno de guerra ora ocupado o ponto de partida para negociações de paz que só beneficiariam Putin e seu projeto totalitário de poder na Rússia.

Infelizmente, Lula, repetindo sua predileção por outros autocratas (Nicarágua, Venezuela, Cuba) escolheu colocar o Brasil nessa posição repelente, que não só é ridícula diante do direito internacional, mas inconsistente à luz da geopolítica e do comércio mundiais. Ridícula porque não cabe chamar de “erro” a ação criminosa de Putin, como Lula a classificou quando repetiu diante de um perplexo primeiro-ministro alemão a bobagem simplista de que “quando um não quer dois não brigam”, como se a Ucrânia pudesse ser recriminada por estar a se defender com o que tem à mão da agressão não provocada de um vizinho muito mais forte. E inconsistente porque em suas pretensões de negociador Lula aparece ecoando Putin justamente contra as declarações e atitudes das lideranças das maiores nações europeias em favor da Ucrânia, nações estas com cujos mercados Lula vem se esforçando para estreitar laços e para cuja União a Ucrânia acabará por entrar.

11/02

Fica o Registro:

– Lula está a se lançar no cenário internacional com o mesmo figurino fajuto com o qual paramentou seu personagem nacional: o pacificador. Lá como aqui haverá a hora fatídica em que alguém gritará “o rei está nu!” (basta olhar para o que está a se passar na guerra de invasão territorial e genocida dos Garimpeiros contra os Yanomamis – que pacificação pode haver ali?).

– Em sua viagem aos EUA Lula defendeu seus devaneios de paz na Ucrânia às custas das terras dos ucranianos e do sangue já derramado, e fez o enunciado “é preciso parar de atirar, se não, não tem solução”. Esse enunciado só não é de todo ridículo porque um cessar-fogo temporário (tático) retardaria iminente ofensiva russa e daria mais tempo à Ucrânia para receber e treinar seu pessoal no manejo das novas armas que está a receber, especialmente os tanques provenientes dos EUA e da Alemanha. Mas a ideia de parar de atirar para negociar a paz (estratégia) é ridícula porque isso é justamente o que Putin almeja: a proposta de Lula permite que se tome como fato consumado a ocupação precária que a Rússia de Putin faz hoje de terras na Ucrânia, dando ao déspota russo meios para definir o que retém e o que não retém do território e da população alheios.

– Mesmo que negociações pudessem levar Putin a desocupar as áreas que ora ocupa além da Criméia e do Donbass, ainda assim ele teria a vitória como prêmio pelos seus crimes (que Lula chama de “erros”), pois desde sempre o que Putin pretendeu foi acrescentar à Criméia (tomada em 2014) a área do Donbass, onde desde aquela época ele fomenta guerrilha separatista. Negociar a paz, agora, implicaria dar a Putin o que ele sempre desejou. É por isso que Lavrov, expoente internacional do cinismo russo, se apressa em visitar o Brasil, onde teria uma recepção de legitimação por parte de um Lula tão inflado de pretensões quanto insciente acerca do que está em jogo hoje no mundo.

– Depois de, ao longo de meses, ter posado em vão como “negociador”, Macron anunciou há cerca de quatro dias que “Putin não pode vencer”. Hoje, via redes sociais, Macron usou os devaneios da pretensão de Lula para, como todo oportunista, retomar o figurino que parecia ter abandonado, só para poder jogar nas duas pontas da solução para a guerra.

– Mas, pavoneando-se no palco internacional engolido por personagem que já está em farrapos no cenário interno, Lula insiste em reunir em seu comitê de “pacificadores” apenas países “não envolvidos no conflito”, como se uma guerra na Europa pudesse ser discutida sem os principais países europeus e sem o mais poderoso aliado deles, os EUA. Delírio puro! E, como se não bastasse, o intrépido Lula ainda integra a China ao seu comitezinho, pretendendo que se engula a bobagem de que o país de Xi não é parte do que se armou, quando se sabe que Putin jamais teria invadido a Ucrânia se naquela reunião que teve com Xi pouco antes da invasão ele não tivesse recebido algum tipo de “tudo bem”. Nessa marcha, se e quando a China fizer a guerra a Taiwan, Lula também dirá que “quando um não quer dois não brigam”, e irá querer se pavonear de pacificador na suposta liderança de países “não envolvidos no conflito”. E chovem aplausos ufanistas a todo esse ridículo!

– Destoando desses delírios pacifistas, Marina Silva vem acertando no cenário internacional ao arregimentar forças e apoios para, mesmo que não o diga, escolher lado e fazer a guerra de defesa da Amazônia. Faz muitos anos que defendi, detalhada e extensamente, a centralidade da questão ambiental para o futuro do Brasil, num projeto que, naquela altura, Marina, na prática, abandonou, como discuti aqui e em outros posts deste blog — aquela deserção em 2009 foi determinante para a paulatina marcha de Marina para a irrelevância segundo os descaminhos do apoio dela ao golpe contra Dilma, à defesa da independência do BC e à sustentação sem crítica da Lava Jato; até que a vida, em suas muitas voltas, lhe desse essa nova chance em sua longa estrada. Que faça bom uso e tenha êxito.

– Na contramão de Marina vai o ministro da Defesa, que contemporizou com os milicos e golpistas e deu no que deu, como vimos aqui e em outros posts. No caso do combate ao garimpo ilegal na Terra Yanomami, Múcio, mais realista do que o rei, mete a colher para contemporizar mais uma vez: mesmo diante da resistência dos bandidos, diz não querer “prejudicar inocentes”, já que, segundo ele, “têm pessoas que trabalham no garimpo para se sustentar” — por essa lógica, teríamos que ser tolerantes com quem, na visão dele, “trabalha” assaltando, sequestrando e roubando em busca do próprio sustento!

A DERROTA DOS MILICOS E O CARNAVAL DAS FACÇÕES PAISANAS

Carlos Novaes, 03 de fevereiro de 2023

Ao analisar o desempenho de Moraes e de Lula&Cia diante da arruaça do dia 08 de janeiro salientamos o protagonismo absoluto de Moraes e a timidez do time de Lula, e atribuímos a desenvoltura do ministro ao fato de ele ter percebido há tempos que o golpe era um blefe reiterado que, por isso mesmo, abrira uma oportunidade única para quem soubesse explorar o contraste abissal entre, de um lado, a preferência da imensa maioria da sociedade pela democracia e, de outro, a reunião do jogo de cena faccioso dos milicos com as fantasias da minoria histérica da base bolsonarista golpista, a quem os milicos iludiram com manobras diversionistas na tentativa de aumentarem o próprio cacife no jogo das facções estatais.

Hoje, Moraes deu prova literal de que há tempos sabia “o quão ridículo” era o suposto golpe com que a mídia e seus ilustres colunistas passaram anos assustando o país. Mas a ladainha não cessa. Há quem insista em supor que o golpe só não deu certo no dia 8 porque foi mal organizado! Sim, tem gente que acha que os militares queriam o golpe, mas teriam sido inábeis!!

Note bem, leitor: é evidente que havia um montão de otários supondo que participava de um golpe. Mas, como já explicado, o blefe é uma forma que se impõe por sobre as intensões conscientes dos agentes em situações assim, isto é, quando o desejo de um punhado não tem a menor viabilidade diante da realidade do tecido social e institucional que repele o desejo como pura fantasia.

Agora, supor que o general Arruda, ao colocar dois blindados entre os acampados e a PM, estava tentando um golpe é o mesmo que levar a sério que o Capitólio precisou ser “defendido a tiros” no 6 de janeiro dos EUA. Lá como cá, o golpismo nunca teve chance alguma. O que o general Arruda fez foi aumentar a aposta no meio do blefe, acreditando que o facciosismo militar sairia fortalecido por ele ter feito Lula&Cia engolirem a afronta. E quase deu certo! Tanto que Lula não o exonerou por aquela insubordinação, mas pela proteção que o comandante do Exército pretendeu dar ao coronel Cid, fiel escudeiro de Bolsonaro. A surpresa de Arruda diante da exoneração se deu justamente porque ele já contabilizara a “vitória” facciosa obtida com o blefe dos blindados na noite do dia 8. Lula&Cia levaram mais de 20 dias para enjambrar a versão de que o presidente fora consultado sobre deixar as prisões no acampamento para depois do nascer do dia.

Mesmo com a tibieza do novo governo, a coisa toda não salvou os militares da derrota que já fora vista e que só não foi maior porque, assim como os outros paisanos, Lula&Cia estão sempre empenhados em fazer acertos entre as facções estatais, não em levar o país a uma transformação. Note bem, leitor: o que permitiu escancarar a derrota da facção estatal militar não foi a conduta de Lula%Cia, pelo contrário, foi o comportamento da parcela mais inconformada da “sociedade civil” bolsonarista — eles partiram para a arruaça e, sem o querer, explicitaram a impotência dos milicos golpistas.

No campo faccioso paisano a estrela da semana foi Arthur Lira, com a acachapante votação recebida na recondução à presidência da Câmara. No discurso da vitória Lira não poderia ter sido mais faccioso: afinadíssimo com o discurso de Lula em “defesa da política”, Lira atacou a Lava Jato como “criminalização da política”, como se os crimes de Moro e Dallagnol contra Lula pudessem encobrir a vastíssima corrupção na política profissional que a Lava Jato flagrou e escancarou. As declarações reiteradas de Liras e Lulas mostram como as facções estão empenhadíssimas em nos fazer crer que a Política se reduz ao facciosismo dos profissionais que nos infelicitam com suas manobras, com base nas quais acabaram com o combate à corrupção e já soltaram até o Cabral!

Também em seu discurso, Lira se mostrou um ardoroso defensor da democracia e do direito de voto (já vimos o que isso vale quando discutimos aqui Lira e o voto impresso). Fazendo dueto, Lula insiste na importância de defender a democracia ao declarar que o golpismo está vivo e, claro, já começa a falar em reeleição… Com esse ocioso antigolpismo (o suposto golpe seria a negação da política) Lula busca justificar as dobradinhas facciosas com Liras e Pachecos (como se com eles se pudesse fazer a grande política) — e isso depois de ter nomeado ministros tão questionáveis que lhes precisou assegurar que não vai deixar ninguém para trás. Estamos no vórtice do looping das facções, mas tem gente que acha que, agora, vai!

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E FACCIOSISMO — 2 DE 2

Carlos Novaes, 21 de janeiro de 2023

Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa diferente

Rosa Luxemburgo

No primeiro artigo desta série, discutindo o alcance do postulado de Luxemburgo reproduzido acima como epígrafe, vimos que a liberdade é degradada quando se torna bandeira política manejada segundo os interesses facciosos dos próprios defensores. Vimos também que tampouco subsistirá como legítimo o uso da liberdade de expressão para reivindicar a supressão da ordem política democrática.

Ora, no Brasil do Estado de Direito AutoritárioEDA em crise de legitimação, temos o debate público dominado por essas duas instrumentalizações da defesa da liberdade que criticamos no artigo anterior. Enquanto os progressistas & a autointitulada esquerda se orientam pela perspectiva liberal, e camuflam (até para si mesmos) como defesa da liberdade e da democracia o interesse que têm pelo mero controle do EDA; bolsonaristas & golpistas pregam “liberdade” para cinicamente defenderem a supressão da democracia em favor de um Estado ditatorial.

Além dos dois grupos acima, a cena política brasileira atual exibe na mídia os adeptos de um liberalismo de manual, que combinam afeição pela democracia com defesa furiosa de uma liberdade de expressão ilimitada, coisa de nefelibata, como se, em política, expressão não significasse, em última instância, ação.

Os três grupos têm em comum a mesma falácia: falam e agem como se já vivêssemos sob um suposto Estado democrático de direitoo primeiro grupo fantasia protegê-lo; o segundo blefa para suprimi-lo; o terceiro sonha aperfeiçoa-lo. Por isso mesmo, os três grupos não são igualmente daninhos em sua relação com a realidade do EDA: o primeiro quer manter o “de Direito” sem reconhecer o “Autoritário”; o segundo quer suprimir o “de Direito”, mantendo apenas o “Autoritário”; o terceiro quer abolir o “Autoritário” bramindo que é pelo “de Direito” enquanto defende liberdade para os que querem uma ditadura.

Como essa disputa facciosa em torno da liberdade e da democracia não começou agora, vamos prosseguir com dois tópicos: 1. Recapitulação de antecedentes; e 2. Reconfiguração das formações facciosas.

1. Recapitulação de antecedentes

Há muito se desenvolve neste blog a ideia de que a crise de legitimação do EDA resultou numa conflagração das facções estatais. Foi um salve-se quem puder entre os que se empenham no exercício faccioso dos poderes institucionais no fito de reunir poder para fazer dinheiro. Nessa conflagração, as facções insurretas acabaram por atropelar o “de Direito” também na luta entre si, isto é, elas passaram a empregar umas contra as outras as regras antes só manejadas contra os pobres e os fracos. Em outras palavras, houve uma generalização no uso das regras não escritas que amparam o dia-a-dia “Autoritário” do nosso Estado de Direito.

Na altura em que essa situação começou a ficar clara para quem quisesse ver, a autointitulada esquerda se revelara a formação facciosa mais fraca, o que permitiu o golpe contra Dilma e, depois, as arbitrariedades contra Lula, seja por parte de Moro, seja por parte de uma maioria no STF afinada com o facciosismo dos militares. Naqueles dias, os nossos liberais se dividiram na meta, mas não no método: escolheram lado, mas todos aceitaram ou fizeram vista grossa a toda sorte de atropelo ao “de Direito” quando esse atropelo atingia o adversário. Nessas águas turvas foi jogado o anzol do bolsonarismo para fisgar e deturpar o auspicioso sentimento antissistema.

Tal como entendeu quem acompanhou este blog nos últimos anos (lendo, inclusive, artigos como os apontados nos hiperlinks acima), o EDA em crise de legitimação não teria para onde correr sem Lula e, por isso, tudo desembocou no desarranjo da vitória de Bolsonaro em 2018. Mais adiante, depois do uso macabro que Bolsonaro fez das ferramentas institucionais do EDA, o labiríntico conjunto foi levado ao looping que trouxe Lula de volta com apoio de um ajuntamento eleitoreiro (no qual me incluí), ajuntamento que alguns denominaram impropriamente de frente (o que repeli).

2. Reconfiguração das formações facciosas

Com a vitória de Lula e os acontecimentos subsequentes — intervalo em que as frustrações geradas pela sucessão de blefes golpistas cobraram todo o seu preço —, a crise de legitimação do EDA entrou em uma nova fase, cujo cenário são esses embates em torno da relação entre liberdade de expressão, democracia e ordem estatal.

Em um de seus inúmeros e enfadonhos discursos depois do dia da posse, Lula declarou que “o Brasil vai voltar a viver em democracia”, como se tivesse havido algum momento sem democracia no período funesto dos desmandos de Bolsonaro. Ora, como já vimos detalhadamente aqui, os danos provocados pelo besta não estão no que ele disse contra a democracia, mas no que ele fez com os poderes desse Estado que ele recebeu de tucanos e petistas. Toda essa conversa de “defender a democracia” pela “pacificação” do país, com o acréscimo esperto de “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda” está a serviço de encobrir os novos adiamentos que Lula vai protagonizar na luta contra a desigualdade, cujo enfrentamento é a única via para nos levar a um Estado de Direito Democrático.

A reconfiguração facciosa do jogo de poder está em marcha batida: pelo lado paisano, parte do Centrão já aderiu ao governo Lula; pelo lado militar, Lula ficou para trás na hora mais importante, no dia 8 passado; em seguida sugeriu alguma firmeza diante do derrotado facciosismo dos militares falando em perda de confiança; e, mais adiante, cedeu a eles em palavra e ato: declarou em entrevista na Globo News que iria “pedir” aos militares pela não politização das FFAA (esquecendo-se da hierarquia democrática, pois segundo a Constituição o presidente é o comandante e, portanto, determina, não pede); e convidou os chefes das três forças para conversar sobre incremento orçamentário, quando a hora pedia que, no mínimo, eles fossem deixados de molho por algum tempo.

Hoje, entretanto, Lula deu um passo decisivo contra o facciosismo militar, dando provas de que entendeu, mesmo, que eles não têm escolha senão obedecer: exonerou o comandante do Exército que havia protegido os golpistas do acampamento do DF com blindados e nomeou em seu lugar um general que há poucos dias discursou à tropa defendendo o respeito ao resultado das eleições. Como a natureza do jogo é facciosa, porém, na junção do facciosismo paisano & militar Lula declarou-se firmemente contrário à instalação de uma CPI para investigar a arruaça do dia 8, pois, na opinião dele, essa investigação iria provocar tumulto, como que esquecido de que tumulto foi justamente o que aconteceu na Praça dos Três Poderes!

Já os patriotários (que neologismo maravilhoso) começaram sendo chamados impropriamente de terroristas, mas logo passaram ao papel desde sempre reservado para eles: estão, merecidamente, a pagar o pato! Não cabe chamá-los de terroristas porque não houve a junção do furor arruaceiro deles com o emprego do arsenal bélico que eles dispõem (comprar armas é, na verdade, parte da fantasia que nutre a forma do blefe, por isso arruaça histérica e estéril, não revolução). Como já explicado aqui, os golpistas sempre foram prisioneiros da covardia que os confinou ao jogo de “não fazer antes o que sabiam que o outro não ia fazer depois”: esperaram por Bolsonaro, esperaram pelos militares e, como Spike Lee, foram até onde podiam em sua fúria frustrada contra as três maiores pizzarias de Brasília, mas jamais se insurgirão contra os pizzaiolos.

Enquanto isso, Alexandre de Moraes entendeu o jogo e segue surfando na fraqueza dos oponentes (nossa autointitulada esquerda haverá de não perder por esperar), tornando-se o principal protagonista no enfrentamento do blefe golpista por meio do manejo dos poderes constitucionais e infra legais para além do que teria sido possível se vivêssemos num Estado de Direito Democrático. Todo o ímpeto de Moraes não deixa de ter semelhanças com o voluntarismo de Bolsonaro, e deve ser por isso que, assim como os partidários do besta o chamavam de Mito, os fãs de Moraes o chamam pelo epíteto não menos ridículo de Xandão.

Naturalmente, como já detalhado aqui e em outros textos deste blog, as atitudes de Moraes não me incomodam (ainda), mas seria cinismo além da conta negar que boa parte dessas ações está coberta não pelo “de Direito”, mas pelo “Autoritário” que caracteriza o EDA. Daí a ginástica retórica dos progressistas e da autointitulada esquerda ante as flagrantes contradições entre o suposto Estado democrático de direito que dizem existir e as arbitrariedades necessárias ao enfrentamento dos golpistas. Na mesma linha, temos a gritaria dos liberais de manual, que, inspirados em ordenamentos legais de outros países, pretendem garantir o suposto direito de alguém defender a supressão da democracia.

Quando, tão ao gosto de Lula, a poeira baixar, veremos as velhas rotinas se reinstalarem e, talvez, mais gente vá se dando conta de que nosso hígido sistema eleitoral, franquia democrática fundamental para o que há “de Direito” no EDA, terá, mais uma vez, servido paradoxalmente a rearranjos facciosos e não ao início da luta por um Estado de Direito Democrático, ordem política indispensável à garantia de que liberdade é sempre a liberdade de quem pensa diferente.

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E FACCIOSISMO — 1 DE 2

Carlos Novaes, 20 de janeiro de 2023

Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa diferente

Rosa Luxemburgo

O princípio enunciado por Rosa Luxemburgo é o que há de mais sólido para dar início a uma discussão sobre a noção de liberdade. Para enxergar o alcance do postulado é necessário transpor a interpretação trivial dele, pela qual, sob o registro da tolerância, estar-se-ia a reconhecer o direito de expressão de quem pensa diferente, tal como o faz o liberalismo.

Essa perspectiva acanhada torna a defesa da liberdade cômoda, pois deixa a cada um o direito de defender a própria liberdade em concorrência tolerante com quem pensa de modo diferente. Mas não se trata disso. Pelo contrário: a força do enunciado da pensadora polonesa está em que ele resgata a liberdade do cárcere do direito individual e a liberta no espaço social das relações entre indivíduos.

Em sua radicalidade, o postulado de Rosa deve ser entendido como uma baliza a orientar a defesa da liberdade: um agente só está a defender a liberdade se e quando falar nela, e/ou agir por ela, exclusivamente para dizer e garantir o direito de expressão de quem pensa diferente dele — note bem: a pensadora disse sempre, não também. Em outras palavras: não se está a defender, nem, muito menos, a se exercer a liberdade, quando se está a defender, ou a exercer, o próprio direito de expressão.

Esteja atuando sob regime democrático ou desafiando regime ditatorial, isto é, esteja ou não amparado pela ordem vigente, todo agente (individual ou coletivo) que defende e expressa seus interesses, inclusive o direito à própria liberdade, está fazendo política legitimamente, mas, por mais necessária que se mostre essa sua ação, ele não está a defender a Liberdade. A defesa da liberdade requer um olhar para além dos próprios interesses e direitos de expressão e manifestação, por mais legítimos e necessários que sejam; ela requer um olhar que abarque o sentido último da vida política democrática.

Dessa perspectiva, a liberdade como princípio é fundamento silencioso da vida política democrática, não expressão da luta barulhenta entre os interessados nos benefícios dela para si. Quando o assunto é a liberdade, o silêncio só pode ser rompido para defender a liberdade de expressão de outrem. A liberdade não é senão degradada quando tornada bandeira política manejada segundo os interesses facciosos dos próprios defensores e, por isso mesmo — a valer o postulado de Rosa —, se a ninguém é dado dizer que defende a liberdade quando a reclama para si, ainda menos subsistirá como legítimo o uso da liberdade de expressão para reivindicar a supressão da ordem política democrática, garantidora do fundamento de que liberdade é sempre a liberdade de quem pensa diferente.

Com base nesse entendimento, analisemos a cena política brasileira atual.

LULA ENTENDEU E MUDOU O RUMO DA PROSA

Carlos Novaes, 18 de janeiro de 2023

Depois de titubear a ponto de ceder o protagonismo a Moraes, Lula começou a entender e, agora, parece mesmo ter entendido que não há o que temer dos militares, que estão sendo levados a encarar, sem blefes, quem manda: a maioria da sociedade brasileira, que prefere democracia e repele o facciosismo do “sistema” (EDA) sempre que consegue enxergá-lo — e, convenhamos, não há, hoje, facciosismo mais explícito do que o dos militares, cujas manobras visando aumentar o poder de barganha no âmbito do exercício faccioso dos poderes institucionais já chegaram ao ridículo. Façamos um apanhado da linha de análise que temos desenvolvido neste blog.

Para tirar vantagens de Bolsonaro, os milicos não repudiaram seus blefes golpistas e foram se enrolando até a desmoralização com a história da urna eletrônica. Com a derrota eleitoral do blefador, se viram isolados e passaram a criar tensão não menos blefadora com sua leniência ante os acampamentos golpistas. Adiante, fingiram que o quebra-quebra no DF não era com eles e, dobrando a aposta no blefe, foram até o ridículo de “mobilizar” blindados para dar retaguarda ao recuo dos criminosos. Nesse ponto, Moraes agiu e o blefe deles ruiu, pois tiveram de assumir a posição que sempre lhes fora a única: o golpe é mito, os criminosos têm de pagar por seus crimes e, assim, foram escoltados aos ônibus que os conduziram à prisão. Afinal, o que falta para todo mundo entender a derrota monumental dos militares?!!!

Como dito à quente, Múcio teria de ter caído. Mas a mídia convencional deixou clara a generalizada preferência pela acomodação facciosa. Apoiando-se, inclusive, na autointitulada esquerda (que não cansa de dar provas de oportunismo, travestido de “moderação” e “pacificação”), essa imprensa que apoiou o golpe contra Dilma ficou promovendo a manutenção de Múcio, como se a substituição dele pudesse gerar alguma reação militar. Os tolos têm esse temor; já os espertos não querem que Lula se apresente com a força constitucional que as urnas lhe deram. Se tivesse demitido Múcio, Lula teria dado um passo que o país espera desde a redemocratização truncada.

Mas o que Lula não soube ver em ato, em 10 dias a vida lhe ensinou. De modo que, embora tardiamente, ele vai deixando claro o que pensa dos militares e, sobretudo, está a entender que pode ir mais longe do que imaginava no dia 08: vem fazendo demissões militares com certo alarde e até reproches, sem a discrição que a “prudência” “pacificadora” recomendaria.

Os militares sentiram a mudança de ventos e, tal como fizeram com Moraes em torno da urna eletrônica, passaram a mendigar uma saída para a fragilíssima situação em que se encontram diante da opinião pública e na própria luta de facções estatais. Não é hora de adulá-los!

Vamos ver até onde Lula irá.

LULA COMEÇA A ENTENDER

Carlos Novaes, 11 de janeiro de 2023

Enquanto a imprensa trazia notícias de que nossa autointitulada esquerda e muitos progressistas recusavam decretar uma GLO para conter os golpistas, sob o argumento de que seria perigoso dar protagonismo aos militares, este blog defendeu, desde as primeiras horas da arruaça, o emprego do Exército contra os arruaceiros.

Como aqui sempre se teve claro que os militares jamais entrariam numa aventura golpista — percepção que ficou ainda mais clara depois de eles terem sido desmoralizados e desgastados com o oportunismo que conduziu seus líderes a contemporizarem com Bolsonaro –, não há razão alguma para temer insurgência deles em favor dos golpistas.

Como expliquei na Conclusão de post anterior, os militares precisam ser definitivamente arrancados da zona de conforto, na qual manipulam em proveito próprio (para aumentar seu poder de barganha na luta de facções dentro do Estado de Direito Autoritário-EDA) um fingido apoio aos golpistas e, ao mesmo tempo, se mantém ao abrigo da Constituição, pois só podem agir comandados pelo presidente da República ou por decisão judicial. Moraes começou a lhes tirar dessa mamata. Lula precisa terminar o serviço convocando os militares para dar sua contribuição à contenção da baderna. Eles nada podem fazer senão obedecer.

Mas não é fácil para Lula, reconheçamos. Esse impertinente temor venerando aos militares ganhou hoje defensores clássicos: ex-ministros da era petista, todos tarimbados na afeição pelas soluções acomodatícias mesmo quando essas soluções se mostram, como agora, evidentemente contraproducentes. O destaque fica para Orlando Silva, ex-ministro oriundo da mais clássica escola de acomodações burocraticamente proveitosas, o PCdoB, que se declarou enfaticamente contra a demissão do bolsonarista Múcio, solução que, na opinião dele, “seria um desastre” — quem sai aos seus não degenera: no limitado juízo de Orlando, “um ministro não vai enquadrar as tropas no grito”. Ora, quem já enquadrou as tropas foi a preferência da maioria da sociedade brasileira pela democracia, que prevê na Constituição o enquadramento dos militares.

O interventor nomeado por Lula para dirigir a segurança do DF parece ter entendido a situação e já admite convocar o Exército para ajudar na contenção à baderna na Esplanada. Embora tímido e tardio, é um passo na direção certa.

Fica o Registro:

Bolsonaro publicou, e apagou em seguida, um post com um procurador questionando a eleição de Lula. O imbecil continua com a mesma tática covarde: emite sinais de comunhão com os golpistas, mas logo trata de apagar pistas dessa comunhão. Encenação criminosa, mas tosca e já desmoralizada. Quanto ao procurador, ouvido pela imprensa, saiu-se com essa:

“o eleitor não vê a apuração dos votos, não vê nem o seu voto”. “Como você pode ter a certeza de que uma imagem que um software mostra numa tela pra você é igual ao que saiu da sua consciência, um software que não foi criado por você. O Estado é laico, ninguém é obrigado a confiar em servidor público”.

É difícil acreditar que um sujeito assim limitado tenha sido aprovado em concurso público e nomeado procurador. Afinal, no voto em papel os problemas são análogos, só que piorados pelo número de mãos (funcionários públicos) a manipular as cédulas e os mapas eleitorais igualmente manuais que a contagem delas gera. Depois de jogado na urna, o voto em papel sai das vistas do eleitor. Na hora da contagem das cédulas, o eleitor tampouco pode ter garantia de que o que ele assinalou vai ser escrito manualmente no mapa. A grande vantagem da urna eletrônica é a eliminação dessa manipulação e a auditagem pública e total do sistema. Para quem tem interesse, há uma série de dois artigos em que tudo isso foi explicado em detalhes.

“FAÇA A COISA CERTA”

Carlos Novaes, 10 de janeiro de 2023

Com acréscimos em Fica o Registro, às 18:36h

O título acima retoma celebrado filme do cineasta negro norte-americano Spike Lee, no qual Lee, que também representa o personagem protagonista, discute, entre outras coisas, as escolhas a serem feitas em situações limite.

Com as invasões das sedes dos três poderes da República, deram-se eventos em que dois agentes “fizeram a coisa certa”, sobrando aos outros se virarem como permitiram as suas limitações. Desses que fizeram a coisa certa, um a fez em total inconsciência, e se esgotou; o outro tornou-se protagonista central precisamente pela consciência com que não para de fazer a coisa certa. Falo, pela ordem, da turba bolsonarista, e de Alexandre de Moraes.

Para explicar porque entendo que a turba “fez a coisa certa” (note bem, entre aspas) ao invadir e quebrar as sedes dos três poderes da República, volto ao sentido do título do filme de Lee, pelo menos na minha interpretação: em cena notável, o personagem defendido por Lee, no auge das tensões, espatifa a vitrine da pizzaria dos patrões brancos arremessando contra ela uma lata de lixo. E o fez precisamente para desviar para as coisas uma ira que poderia se voltar contra as pessoas. Com o gesto, ele desencadeou uma torrente de ira e ressentimentos que estava represada, mas desviou tudo para os bens materiais, não para os titulares desses bens. Essa é a discussão central que o filme propõe, penso eu.

Na Conclusão que escrevi ontem na tentativa de agarrar o sentido político mais evidente dos eventos em curso, aludi, num toque entre vírgulas, ao fato de que a arruaça se deu num domingo. Mas isso ficou muito telegráfico, mesmo considerando que fiz um hiperlink na palavra domingo. Explico-me, então. Como se sabe, o domingo é o dia da celebração das fantasias de fuga ante a dureza da vida cotidiana: não se trabalha; finge-se que os problemas não existem ou, pelo menos, se faz o adiamento deles; as famílias celebram como dá o que restou de tradições havidas, hoje estropiadas; a TV insiste em brincar de realidade feliz, etc.

As invasões se deram num domingo precisamente porque se tratava da catarse de uma fantasia animada por uma sequência de blefes impotentes diante de uma realidade de que os manifestantes se evadiram por se recusarem ao esforço de entende-la. Eles não querem revolucioná-la, muito menos transformá-la (o que exigiria o esforço do entendimento) – eles fantasiam simplesmente aboli-la. Não era para valer; nunca foi para valer. Nada do que houve nesse domingo teria acontecido se fosse em um dia de semana, com os prédios cheios de gente. O que animou os golpistas não foi apenas a omissão intencional das autoridades paisanas e militares que lhes são simpáticas. O que os animou, mesmo, foi a certeza de que não haveria oponentes; foi a certeza de que não haveria a radicalidade de um enfrentamento real, imediato; foi a certeza de que eram eles e as coisas, ali, inertes, ao seu dispor. Tal como Bolsonaro, eles agiram imersos nas próprias fantasias.

É que, tanto quanto Bolsonaro, eles se contentam com a brutalidade verbal da coisificação de tudo e de todos, como se ninguém diferente importasse; mas como a realidade insiste em desmenti-los, eles se frustram e ressentem; se veem reduzidos à impotência do que recentemente explorei como um joguinho Gog&Magog, e, então, inconscientemente, arremetem contra moinhos de vento, para prejuízo deles próprios.

Moraes não para de fazer a coisa certa porque conscientemente compreendeu tudo isso e ainda mais: ele compreendeu as limitações de Lula como líder, que está aprisionado no papel de agente central do jogo das facções.

Há algumas semanas, gravei um vídeo para o canal Lavoura Política, no qual, mais uma vez, discuti a impertinência de, na atual conjuntura, procurar “aliviar tensões” ou fazer “pacificação”. As ações de Moraes vem mostrando que ele compreendeu isso muito bem: deixou para Lula a bobagem facciosa de “apaziguar” a situação, “unir o Brasil”, e passou a transpor limites que se mostraram de papel, especialmente um suposto limite que os militares imporiam.

Depois de denunciar a conivência militar com a desordem, e de dar um chapéu em Lula, mandando dissolver os acampamentos à beira dos quartéis comandados por quem deve obediência ao presidente da República (analisei esses fatos, no correr das horas, a quente, aqui), Moraes passou a literal e expressamente recusar a “pacificação” e acaba de decretar a prisão do Comandante da PM no dia da invasão.

Por tudo isso, Moraes não para de “fazer a coisa certa” e, claro, aparece como o principal agente da história brasileira que está a ser escrita neste momento, protagonismo que irá nos custar caro mais adiante, quando, entre outras coisas, Lula descobrir que assim como Alckmin pareceu o vice adequado inclusive para neutralizar uma possível má vontade de Moraes contra sua candidatura, ele, Moraes, poderá vir a se revelar perigoso oponente na luta dura que está por vir entre as facções.

Fica o Registro:

18:36h

– A imprensa dá notícia de que Lula criticou Múcio pela atuação nos episódios. Ao mesmo tempo, porém, dizem que o presidente reconhece que a a situação é delicada. Ou seja, além de indevidamente poupar Flávio Dino, Lula não demite Múcio porque continua a achar que resta aos militares alguma outra coisa senão obedecer!

– Na mesma matéria, Guilherme Boulos, um prócer da nossa autointitulada esquerda, já se mostra tão acoelhado no jogo de facções que, até para criticar a inaceitável atuação de um bolsonarista como Múcio, se submete a falar em questão de “opinião” e, ainda por cima, pede desculpas antecipadas: “agora, o ministro José Múcio dizer que as manifestações pedindo golpe militar em frente aos quarteis são democráticas, desculpe, mas essa não é a minha opinião. Quanta combatividade e altivez ideológica!!

OMISSÃO DE AUTORIDADES INCITOU BADERNA

Carlos Novaes, 08 de janeiro de 2023 – 17:02

Com uma conclusão em 09/01, às 17:30h:

Hoje começa o governo Lula

Com acréscimos anteriores, ao longo do dia 08, às 17:35h, 17:45h, 18:09h, 20:33h, 20:46h, 21:12h, 22:06h, e mais acréscimos em 09 de janeiro, às 00:37h

08/1 – 17:02h — A primeira explicação para que essa arruaça pré-anunciada chegasse ao ponto em que chegou, com a invasão sem contenção alguma das sedes dos três poderes da República, é a conivência do governo do DF e da respectiva PM. Simplesmente nada foi feito pelas autoridades diretamente responsáveis para dissuadir um desdobramento dessa monta, mesmo com a prévia arregimentação pública que veio sendo feita ao longo dos últimos dias.

Também é verdade, entretanto, que essa inação, por sua vez, estava pré-anunciada no comportamento do Ministro da Defesa e do Ministro da Justiça de Lula. Múcio, na Defesa, não via crime algum nos atos golpistas e dizia ter amigos no acampamento do DF. Flávio Dino, por sua vez, fez corpo mole diante da gravidade da situação, conduzindo uma indevida política de boa vizinhança com o governo bolsonarista do DF, tudo no melhor estilo faccioso.

Em suma, estamos diante de uma baderna anunciada, com desdobramento arruaceiro incitado pelo comportamento leniente das autoridades distritais e federais, que deu ocasião para uma sensação de liberou geral.

Agora, uma vez acontecido, é de perguntar: onde está o presidente da República?!

Lula precisa se dirigir imediatamente ao país. O silêncio dele está em linha com a nomeação de Múcio para a Defesa.

Lula tem de demitir imediatamente esse ministro da Defesa e, se necessário, tomar outras providências na área militar, a depender do que for indispensável para restaurar de imediato a ordem na esplanada dos poderes. Ou ele faz isso hoje, ou não terá autoridade para exercer plenamente a presidência da República, mesmo nos limites estreitos do jogo de facções interessadas no exercício faccioso dos poderes institucionais de modo a reunir poder para fazer dinheiro.

17:35h

Há na mídia notícia de que o Exército pôs tropa em prontidão para possível operação GLO. Além disso, generais estariam discutindo uma mudança de posição em relação ao acampamentos golpistas nas áreas próximas a prédios militares. Ora, a operação GLO já deveria ter sido decidida por Lula e posta em prática. A demora reflete inação típica dos melindres que orientaram a nomeação de um Ministro da Defesa como Múcio. Os generais começam a sentir as perdas com sua postura leniente, que discutimos em análises recentes.

17:45h:

Randolfe Rodrigues pediu intervenção federal na segurança do DF. Tem toda razão. É um assombro a lentidão de reação do Lula. A tendência acomodatícia dele mostra toda a sua limitação como real líder político. Não é hora de contemporização. Ele está a perder oportunidade de ouro contra esses imbecis que não sabem a extensão da própria fraqueza.

18:09h:

Lula está a fazer pronunciamento, no qual já anunciou decreto de intervenção federal no DF e prometeu responsabilização inclusive para agentes do governo federal que tenham concorrido para a ação dos vândalos. Demorou mais de três horas, mas acabou dizendo o que devia ser dito. Vamos ver.

20:33h:

No curso desta noite, Lula terá tempo de refletir sobre o absurdo que aconteceu nesta invasão aos palácios dos três poderes da República, se dará conta da oportunidade que essa baderna criou, e não poderá deixar de chegar a uma conclusão e a uma decisão: os dois ministros cujas pastas estão diretamente vinculadas aos fatos não se mostraram à altura da tarefa nessa hora crucial e não podem continuar no ministério. Múcio e Flávio Dino têm de ser demitidos. Para Ministro da Defesa, o ideal seria Nelson Jobim. Para a Justiça, Jacques Wagner ou Celso Amorin.

20:46h:

Já às 17:02h, no texto original com que abri esse acompanhamento dos fatos, escrevi que Dino havia se conduzido equivocadamente ao manter facciosas relações de boa vizinhança com o governador do DF. Agora à noite, o governador, além de fazer um ridículo “pedido de desculpas” a Lula (como se se tratasse disso), ainda se dirigiu ao presidentes da Câmara e do Senado como “meus amigos”, numa facciosa falta de protocolo institucional. Como se não bastasse, acrescentou que ele e Dino foram “pegos de surpresa pela magnitude da manifestação”, declaração estapafúrdia por duas razões: primeiro, como falar em surpresa, se houve dias de convocação?!!; segundo, ele continua com salamaleques recíprocos com Dino, como a ressaltar que ambos estão no mesmo barco… E estão mesmo! Lula não pode tolerar a continuação de Dino no cargo.

21:12h:

Em entrevista em curso, Dino deixou claro, agora há pouco, que protegeu o governador do DF de qualquer medida mais drástica, encarecendo que Lula limitasse a intervenção à área da segurança. E o fez mesmo estando claro que o governador deliberadamente não tomou providências necessárias a evitar os fatos, o que implica prevaricação. Dino está a defender enfaticamente o governador. Note, leitor, como essa proteção a um bolsonarista empedernido deixa clara a política facciosa em ação: para eles, trata-se, sempre, de fazer acertos que limitem danos às relações recíprocas no âmbito do Estado de Direito Autoritário-EDA, mesmo com sacrifício de oportunidades de levar o país na direção de um Estado de Direito Democrático. E tudo isso com Dino reconhecendo que o governo do DF alterou o combinado na última hora, passando a não impedir a entrada de pessoas na esplanada!!

22:06h:

A imprensa noticia dois novos absurdos: 1. que os arruaceiros voltaram a se aninhar no acampamento ao lado do QG do Exército, no DF; 2. que em reunião com o comando do Exército, o ministro da Defesa, José Múcio, estaria a combinar uma forma de acabar com os acampamentos “sem confronto”!! Como assim? O confronto já foi iniciado! Como é que Lula tolera isso? Como é que Lula não percebe que está a, desnecessariamente, aceitar um atestado de minoridade na condução do país??!! Múcio não poderia estar negociando nada. Ele já deveria ter sido demitido.

Madrugada de segunda-feira, 09/01

00:37h:

A imprensa traz duas notícias que devem ser avaliadas de maneira cruzada: 1. o Exército impediu a PM de entrar na área do acampamento golpista defronte ao QG, no DF. Informa-se, ainda, que o interventor nomeado por Lula está em reunião com Múcio e os militares no local. 2. Alexandre de Moraes afastou do cargo o governador do DF, por 90 dias.

O cruzamento é o seguinte: enquanto Lula pipoca e aceita que sua autoridade seja desafiada, tanto amparando-se nas conversinhas facciosas de seu ministro da Justiça (que, depois de nada de concreto ter feito contra o acampamento golpista, acintosamente protegeu o governador bolsonarista), quanto deixando rolar a autodeclarada conivência de seu ministro da Defesa com os golpistas; Moraes, ao contrário de Lula, avança o quanto pode, explorando todos os recursos do poder legal de que dispõe contra os arruaceiros, precisamente porque tem a leitura correta de que não passam disso: arruaceiros.

Nunca imaginei que algum dia faria isso, mas aqui vai um trecho da decisão de Moraes, que, entre outras providências, ainda deu 24 horas para a dissolução total dos acampamentos, com a prisão dos golpistas:

“Absolutamente NADA justifica a existência de acampamentos cheios de terroristas, patrocinados por diversos financiadores e com a complacência de autoridades civis e militares em total subversão ao necessário respeito à Constituição Federal. Absolutamente NADA justifica a omissão e conivência do Secretário de Segurança Pública e do Governador do Distrito Federal com criminosos que, previamente, anunciaram que praticariam atos violentos contra os Poderes constituídos.”

24h depois, a Conclusão:

Governo Lula começa sob signo da fraqueza

09/01, às 17:30h:

O cenário pós-baderna é muito instrutivo, especialmente para quem acompanha este blog.

Desde os escombros, que são também os escombros de um blefe monumental, eleva-se uma figura central: Alexandre de Moraes, que tomou definitivamente para si a bandeira da “ordem republicana”. Moraes conseguiu isso fazendo o que Lula deveria ter feito: mandou dissolver os acampamentos golpistas nas imediações de instalações militares. Moraes obrigou os milicos, constitucionalmente chefiados por Lula, a fazerem em 24h o que Lula não fora capaz de os mandar fazer durante uma semana, justamente a semana inaugural de um novo mandato seu na presidência da República…

Enquanto Lula ficou administrando o jogo miúdo das facções, enredado pelas tibiezas de seus ministros da Justiça e da Defesa, sempre em busca de uma acomodação das diferenças tão típica do elitismo brasileiro saído da desigualdade extrema, enquanto Lula se enredava nisso, eu dizia, Moraes, que aprendeu a fazer o jogo das facções num plano mais amplo do que o desses acertos miúdos, manejando a Constituição e a autoridade dos Tribunais Superiores, fez o que qualquer um que tenha entendido a natureza blefadora do golpismo não poderia deixar de ter feito (especialmente depois dos embates sobre a urna eletrônica, como expliquei minuciosamente neste vídeo aqui).

Moraes obrigou os milicos a saírem da zona de conforto — na qual garantiam o seu, dentro da ordem e, ao mesmo tempo, ficavam flertando com o golpismo, à espera de acumular força para a barganha facciosa no âmbito do Estadoe explicitarem o único lado que não poderiam deixar de ter, o lado do respeito à lei, pois eles nunca tiveram condições de (nem pretenderam) dar golpe, ou seja, de levar até o fim suas facciosas simpatias oportunistas pelo movimento bolsonarista, como há tempos expliquei nos vídeos acima citados.

Sem o saber, os golpistas tresloucados deram – num domingo, claro -, final escatológico a uma farsa cuja encenação se estendeu por anos e foi alimentada por blefes: a farsa do golpe com apoio nos militares para a volta de um Estado Autoritário. Enfim, jamais houve o que temer dos militares, como recentemente, combatendo a tibieza de Lula, detalhei aqui.

Fim de jogo, e Lula passou recibo de fraco — embora pouca gente enxergue isso. Quando Moraes vier a atuar contra Lula, valendo-se inclusive dos créditos acumulados contra os imbecis blefadores, é que muita gente talvez venha a enxergar o que quero dizer com jogo de facções em alto nível…

O GOLPISTA É, ANTES DE TUDO, UM FRACO*

Carlos Novaes, 06 de janeiro de 2023

Todo início de ano requer rearranjos. No artigo de ontem tratamos da montagem do ministério de Lula. Tratemos hoje da desmontagem dos acampamentos golpistas pró-Bolsonaro.

Quem tem acompanhado o desmonte dos acampamentos em torno de quartéis não pode deixar de constatar, finalmente, que os indevidamente chamados “radicais” do bolsonarismo, que insistem na súplica por um golpe, são, antes de tudo, uns fracos.

Esses ajuntamentos patéticos desmentem não apenas os temores de quem passou anos alardeando um golpe do blefador Bolsonaro, mas também as análises de quem vem teorizando que o bolsonarismo representa uma via revolucionária de direita no Brasil.

O bolsonarismo golpista é uma movimentação de fracos e impotentes que, por isso mesmo, fizeram de seus ressentimentos não uma força de ação, como seria o caso no impulso à revolução, mas uma lamúria pública. Eles estão há anos choramingando e, como não poderia deixar de ser, rezando para que outrem haja por eles, passividade que é o oposto da atitude revolucionária. Essa condição de raiz ajuda a entender, agora retrospectivamente, porque Bolsonaro sempre foi marionete de sua massa, e não o líder dela, como expliquei aqui faz anos.

Desde a imagem de Bolsonaro na rua, diante da massa, berrando “acabou, porra!” até a imagem do mesmo Bolsonaro em quartel, diante dos milicos, chorando silenciosamente como um garotinho que levou uma reprimenda, temos o arco de toda a trajetória do golpismo: sem chão, sem agente, sem sentido — trajetória em que a massa e seu marionete sempre estiveram em sintonia paralisante, tentando fazer parecer que inércia é fibra: um esperando que o outro quebrasse a passividade e abrisse como por milagre o caminho para a tomada de um quimérico poder total.

O marionete, nada disposto a correr riscos, covardemente se escondia em seguidor da massa, que deveras é, dizendo “quem decide são vocês!”; a massa, por sua vez não menos covarde, diante dos riscos de tomar a iniciativa se escondia sob lealdade espertalhona berrando “eu autorizo!” para fustigar o espertinho que tinha diante de si — um não queria fazer antes o que sabia que o outro não ia fazer depois**.

* – Em passagem célebre de Os Sertões, Euclides da Cunha disse: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”.

** – Peço desculpas por arremedar o grande poeta ao tentar elucidar matéria tão vil. Veja, de Cassiano Ricardo, o poema Gog & Magog.

MINISTÉRIO FACCIOSO PARA GERIR O ESTADO DAS FACÇÕES

Carlos Novaes, 05 de janeiro de 2023

Com + acréscimos na seção Fica o Registro, em 06/01

A corrupção com dinheiro público é um crime que pode ter consequências jurídicas e efeitos políticos. Com a vitória que o reconduziu à presidência da República, Lula obteve da maioria do eleitorado o direito a um esquecimento na esfera política: não é sequer razoável insistir sobre a corrupção havida em seus governos anteriores — a página jurídica já havia sido virada quando o STF reconheceu as arbitrariedades jurídico-estatais que Lula havia sofrido das tentativas fraudulentas de vinculá-lo pessoalmente à corrupção; a página política foi virada pelo voto: para a maioria, já não é legítimo insistir sobre a responsabilidade política de Lula pela roubalheira havida na Petrobrás, e em outras áreas dos governos que ele presidiu.

Logo, como figura central da política brasileira nesse período que se iniciou com as negociações para a vitória eleitoral de 2022, Lula terá de ser avaliado pelo que fez e vier a fazer daí em diante. Retomemos nossa conversa sobre o Estado de Direito Autoritário ajustando a pegada crítica para essa nova fase da sua crise de legitimação, que está a esconder-se atrás de uma aparente paz entre as facções, mas voltará a exibir-se com ímpeto, pois a luta entre as facções do Estado brasileiro tem fundamentos estruturais, a começar pela desigualdade.

No processo de montagem do seu ministério, Lula deu total consequência ao que já fizera no período eleitoral (como antecipei no último item deste texto aqui), deixando claro, na prática, que assim como não houve a construção de uma frente para derrotar Bolsonaro, tampouco haveria a montagem de um ministério frentista.

Chega a ser cômico acompanhar na mídia convencional as “análises” que deformam a realidade dos fatos para levar os incautos a crer que depois de ter vencido a eleição com uma suposta frente, Lula teria montado um governo supostamente frentista.

Relembremos que as adesões ao candidato Lula foram costuradas uma a uma, em acertos isolados que desenhavam, em termos discretos, a adesão a ele, não a uma suposta frente. A formação e o ingresso em uma frente teriam exigido reuniões abertas, nas quais as diferentes forças teriam de se apresentar como agrupamentos coletivos e dialogar em busca de pontos em comum — ora, na adesão a Lula o ponto comum foi Lula. Por isso mesmo, a suposta frente jamais contou com um programa que traduzisse seus fundamentos. Afinal, a elaboração de um programa teria exigido amplo debate de ideias, cara a cara, com aferição de interesses, numa depuração que acabaria no programa mínimo comum — para uma frente, teria de ter havido, por exemplo, um debate aberto entre os indígenas, os ambientalistas e o agronegócio que aderiram a Lula. Só que não. Escondidos atrás de uma inócua “defesa da democracia”, tirando proveito eleitoreiro daquilo que do macabro Bolsonaro podia ser exibido como espantalho, os frentistas chamaram de “frente democrática” um amontoado de adesões que, sabíamos, manteria sua forma apenas até a eleição.

Dando consequência a esse modelo, os ministros do governo Lula foram escolhidos um a um, em acertos desprovidos de solo comum que tenha relação com o que quer que possa ter motivado a maioria da sociedade brasileira a votar — na montagem de um governo desses, o solo comum é o interesse que as facções estatais têm no poder de Estado que puderem abocanhar.

Temos discutido neste blog as heranças paisanas e militares que a ditadura legou ao Estado de Direito Autoritário. A primeira evidência pública de facciosismo na formação paisana do ministério de Lula foi a novela em torno da indicação da conservadora Simone Tebet: como ela é figura menor tanto no facciosismo do agronegócio quanto no velho facciosismo do p-MDB, nem o agronegócio, nem o p-MDB chancelaram sua participação no ministério, exemplo da dinâmica que veio empurrando Lula a criar pastas para acomodar todo mundo. A novela de Tebet só foi superada como evidência facciosa pela nomeação da incontroversa Daniela do Waguinho para ministra do Turismo, acompanhada da ornamental capitulação de Marcelo Freixo, alegremente constrangido a se saciar com a presidência da Embratur e, coerentemente, a se filiar ao PT.

Na área militar, o facciosismo foi, dessa vez, mais explícito do que entre paisanos. Conhecendo o jogo de facções e estando à vontade nele, Lula, ao invés de aproveitar a fraqueza dos militares para tomar um rumo diferente àquele dos acertos que, lá atrás, inauguraram o Estado de Direito Autoritário, pelo contrário, não hesitou em recorrer a um “querido” de Bolsonaro para o Ministério da Defesa e, ainda por cima, engoliu calado e sem gesto toda sorte de desobediências e descortesias por parte dos milicos que se aninharam ao facciosismo ao qual Bolsonaro aderiu, no que foi acompanhado por seu obediente (de Lula) ministro da Justiça, Flávio Dino, que, mais realista do que o rei (ah!, o que já não devemos ao acomodatício oportunismo burocrático em que o PCdoB educa seus quadros!), tentou nomear para funções centrais do novo ministério figuras saídas do pior das facções militares e, ainda por cima, não viu crime e foi leniente com o que se passava nas imediações do QG do Exército, no DF.

E chovem aplausos ao espírito de frente da formação do governo… Coitados de teóricos como Marcos Nobre, que não só defenderam a frente, mas fizeram a ressalva refinada de que a frente deveria ser apenas para vencer, não para governar, o que exigiria um espectro menor de forças… Enfim, mesmo que frente tivesse havido, o governo já estaria formado muito além da frente, pois dela não teriam feito parte nem o União Brasil (antigos ARENA, PFL, DEM), nem as milícias, nem os milicos que procuram obter força facciosa apoiando-se em movimentações antidemocráticas às quais não podem aderir, mas tampouco entendem conveniente repelir.

E tudo isso em nome da governabilidade de um governo que teria sido eleito por uma frente para defender a democracia depois de ter presumidamente superado a polarização outrora fajuta entre PT e PSDB. Quem quiser se iludir que acredite que daí possa vir alguma transformação.

Fica o Registro:

06/01

– Hoje foi divulgado que um general brasileiro foi nomeado pelas Nações Unidas para comandar a Missão da ONU para Estabilização na República Democrática do Congo. Faço esse registro porque uma distinção dessas, com tudo que traz de vantagens em remuneração, carreira e prestígio, seria impossível se os militares brasileiros tivessem embarcado em alguma aventura golpista. A recusa deles em perder esse tipo de inserção internacional é exemplo do que expliquei neste vídeo sobre o mito do golpe, que tão tolamente assombrou a sociedade brasileira.

– Diante da repercussão pública das informações sobre a ministra do Turismo Daniela do Waguinho, Lula, num alinhamento indireto nada surpreendente com o governador do Rio, Cláudio Castro, saiu-se com uma formulação sobre lealdade que é filha do mais puro facciosismo: “Estarei apoiando cada um de vocês nos momentos bons e nos momentos ruins. Não deixarei nenhum de vocês no meio da estrada, não deixarei nenhum de vocês”. A sintonia Lula-Castro é mais um spot a iluminar o fato de que a despeito das muitas diferenças, o facciosismo estatal é o solo comum de quem chega ao poder de Estado no Brasil.

– E no melhor estilo “bola prá frente”, Lula ainda deu a entender que, por grave que seja, não vai olhar para o passado dos ministros, acrescentando que “quem fizer errado será convidado a deixar o governo”, e emendou “e se cometer algo grave terá de se colocar diante da própria Justiça”.

– Vale notar que, no mesmo discurso, Lula voltou a confundir a Política com a política dos profissionais, afirmando montar um governo “sem criminalizar a política”, como se a ação política fosse uma reserva de mercado de quem se dedica profissionalmente a ela; como se quem faz a crítica da política facciosa dos profissionais estivesse contra a Política.

MILITARES: DO SONHO AO PESADELO

Carlos Novaes, 18 de novembro de 2022

Em 03 de abril de 2018, o comandante do Exército publicou um tuite com o objetivo de impedir a candidatura de Lula à presidência da República; em 15 de novembro de 2022, o mesmo general, já reformado, publicou uma nota apoiando manifestações contrárias à posse de Lula na presidência da República. Na ativa, o general grunhiu autoritariamente para dentro do Estado, e obteve êxito; de pijama, o general foi democraticamente derrotado pela maioria da sociedade e choraminga dando voz à minoria inconformada. De um texto até o outro, o facciosismo estatal dos militares sofreu uma tremenda derrota para a sociedade, o que nos custou o preço de sofrer e transpor um “governo” de Bolsonaro. Não fosse a natureza facciosa da candidatura de Lula, seria o caso de vermos nessa trajetória uma nova oportunidade para avançarmos na direção de um Estado de Direito Democrático. Esmiuçemos.

Essas duas manifestações do mesmo general, “muito respeitado” na caserna, servem de balizas a escancarar que, ao contrário do que se diz na mídia convencional, no curso desses quase cinco anos os militares, embora tenham auferido vantagens, se enfraqueceram e se desgastaram diante da maioria da sociedade. Se enfraqueceram porque, ao imaginarem que poderiam tutelar Bolsonaro para aumentar o que já recebem do Estado de Direito Autoritário-EDA em que estão acomodados, acabaram por serem arrastados a explicitarem sua condição de meros agentes estatais facciosos em busca de poder para fazer dinheiro, repetindo o comportamento das facções rivais, que hipocritamente diziam repelir, como ficou demonstrado na convivência interesseira com o Centrão. E se desgastaram porque, inábeis, não souberam obter a melhoria da sua já confortável situação no EDA sem ter de entregar a contraproducente contrapartida de se enredarem nos blefes golpistas do chefe, a ponto de se emaranharem em infundados questionamentos às urnas eletrônicas, e se desmoralizarem.

Ao ficarem na contramão das duas maiorias fundamentais da sociedade brasileira, os militares chegam ao fim do governo Bolsonaro podendo ser caracterizados como expressão cabal do repelente facciosismo que caracteriza o Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação: tanto a maioria do sentimento antissistema, quanto a maioria da preferência pela democracia chega ao limiar de 2023 podendo enxergar nos militares o que eles de fato são: um adversário na luta por um Estado de Direito Democrático.

Os facciosos líderes do Centrão se saíram muito melhor do que os militares, afinal, experientes na luta aberta entre facções, sabem não ter como evitar a corrupção e o fisiologismo que nutrem o sistema, mas — tirando proveito do jogo atrapalhado dos militares (cujo esperneio não temem) — não titubearam na hora de defender as urnas eletrônicas, cuja idoneidade é a garantia do próprio jogo faccioso, como vimos detalhadamente aqui.

Embora não queiram um golpe, nem, muito menos, fazer de Bolsonaro um ditador, como explicado neste vídeo aqui, os militares estão flertando irresponsavelmente com as manifestações contra a posse de Lula porque esse é o único apoio social que lhes restou depois das trapalhadas que fizeram no curso desse período entre as duas manifestações do general Villas-Boas (cujas mangas já estavam de fora muito antes, como discuti aqui) — agora, trata-se de um blefe dentro do blefe: blefe porque não almejam um golpe, até porque estão muito bem no EDA; blefe adicional porque ainda que o quisessem, agora estão mais fracos do que na época em que puderam impedir a candidatura de Lula. Mas precisam parecer hostis para, posando de “último recurso”, arrancarem de Lula concessões que impeçam a transformação da derrota sofrida em perdas materiais, perdas que dariam realce ao sentido negativo dos reveses simbólicos havidos.

Se não estivesse cego pela inócua tarefa regressiva de “defender a democracia”, Lula poderia fazer da chancela democrática da maioria da sociedade o ponto de partida para iniciar a construção de uma nova maioria, recobrindo a desmoralização dos militares com uma derrota real deles, isto é, uma derrota que trouxesse ganhos para a almejada consolidação da democracia: nomear uma mulher do mundo civil para chefiar o Ministério da Defesa, com todas as decorrências que uma escolha assim implicaria. Para tornar a situação especialmente difícil ao esperneio das facções militares contrariadas, o recomendável seria escolher uma mulher conservadora afeita às práticas de mando, especialmente na lida com homens que só o aceitam quando submetidos a padrões hierárquicos arcaicos, como é o caso na vida militar e… no agronegócio. Num cenário assim, o nome da fazendeira tradicionalista Simone Tebet emerge como ideal.

RETALHOS DE UMA COLCHA POR FAZER

Carlos Novaes, 12 de novembro de 2022

Com acréscimos em 13/11

— Ao contrário do que predicara a teoria do frentismo, os militares chegam ao fim do governo Bolsonaro humilhados e desmoralizados. Humilhados porque ao se meterem em área que não lhes dizia respeito, a área eleitoral, exclusiva das “forças desarmadas”, foram vistos numa pantomima na qual mendigaram atenção e acabaram entregando um relatório irrelevante, que foi simplesmente ignorado. Desmoralizados porque ao flertarem facciosamente com os blefes golpistas do chefe, acabaram a tal ponto na contramão das preferências e expectativas da maioria da sociedade, e em tal desacordo com as facções estatais vitoriosas (aí incluídas facções paisanas que sustentaram Bolsonaro), que não puderam escapar de serem embrulhados pelas faixas e bandeiras da ruidosa minoria autoritária que insiste não só em questionar, melancolicamente, o resultado da eleição, mas em, obtusamente, exibir sua fraqueza contraposta à marcha geral das coisas.

— Esse isolamento do facciosismo militar não deve ser visto como uma “vitória da democracia” porque ele não indica que estamos a caminhar no rumo de um Estado de Direito Democrático; antes pelo contrário, trata-se de mais uma “vitória” do Estado de Direito AutoritárioEDA, como, infelizmente, já vai ficando claro na movimentação de certas organizações propriamente civis, como é o caso da demanda por um “revogaço” de Lula contra mais de 200 medidas que Bolsonaro emitiu para ajustar o EDA aos interesses nocivos que promoveu. Trata-se de demanda delegativa e acrítica. Delegativa porque se exime de qualquer esforço, limitando-se ao que Lula pode fazer, como se bastasse a ação dele para que as coisas se acertem. Acrítica porque ao não se darem ao trabalho de compreender como foi possível que Bolsonaro tenha ido tão longe no manejo dos poderes do EDA, julgam ser o bastante devolver o EDA à conformação anterior ao mandato do besta, sem questionar essa forma estatal no que tem de tão propício ao aprofundamento do que há de autoritário nela.

— Naturalmente, não vai faltar quem veja “astúcia estratégica” no silêncio e apatia a que Bolsonaro foi levado pelo aturdimento em que se encontra depois da derrota. Embora ninguém possa negar que algum cálculo este imbecil está a fazer (afinal, há contas a ajustar e projetos de eleições a disputar em 2024 e 2026), já está mais do que na hora de pararmos de superestima-lo, por mais robusto que tenha sido seu desempenho eleitoral, fruto não da sua suposta sagacidade, mas da desorientação do país. O besta continua o que sempre foi: uma marionete dos humores da massa autoritária que o tem como mito. Essa minoria e o que ele partilha com ela o mantiveram incapaz de governar no rumo do seu fantasioso projeto autoritário e serão insuficientes para sustentá-lo nesse futuro em que estará desprovido dos poderes do EDA, afinal, o que terá ele a oferecer para segurar os eleitores não autoritários que votaram nele?

— A essa altura, já deveria estar claro que não faz sentido entender como bolsonarista a maioria dos 49% que votaram nele — se o fosse, as arruaças contra o resultado da eleição não seriam assim ridículas, mesmo contando com o corpo mole e até o velado incentivo oportunista de facções policiais e militares. A grande maioria desse eleitorado está em disputa, tarefa que será facilitada pelo fato de que o besta já não ocupará a presidência da República. Seria oportuno desenvolver um projeto de combate à desigualdade que reunisse a preferência pela democracia ao sentimento antissistema.

13/11

— Precisamente porque a maioria dos eleitores de Bolsonaro não apoia essas manifestações de cunho golpista é que não se pode dizer que os militares estão mais fortes, hoje, do que estavam antes de todo esse processo que culminou com a derrota eleitoral de Bolsonaro. O desgaste deles foi tão grande que estão precisando pegar carona no inconformismo dessa minoria bolsonarista antidemocrática. Eles só estariam mais fortes se pudessem usar essa minoria como ponto de partida para um golpe. Mas, dado tudo que já vimos do cenário nacional e internacional, eles não contam sequer com unidade entre si para um desfecho desses.

— Ao contrário do que pretendem alguns analistas, o vaivém do relatório e das notas dos militares em torno da urna eletrônica não pode ser lido senão como evidência de enfraquecimento. Como se deixaram enredar pela desorientação dos blefes golpistas do chefe, nem podem contestar a idoneidade das urnas, nem podem simplesmente se alinhar à maioria da sociedade, que acredita nelas. Com isso, imaginam obter alguma contenção de dano voltando a reivindicar um suposto “poder moderador”, o qual foi desmentido precisamente nesse episódio das urnas eletrônicas: o país não precisou da “moderação” deles para tocar em frente com êxito o processo eleitoral.

— Toda essa exposição recente dos militares se deu em prejuízo das pretensões tutelares que eles mantêm sobre o funcionamento do EDA. Ao participarem tão intimamente desse governo desastroso, e ao flertarem inocuamente com preferências autoritárias que se movimentaram aos blefes, os militares explicitaram a sua condição de agente faccioso estatal, engalfinhados na luta por poder para fazer dinheiro como qualquer das outras facções do sistema. De modo que não há porque supor que eles reúnam agora mais condições de pressão sobre o governo Lula do que dispunham antes. As pressões sobre Lula virão das facções do EDA em seu conjunto, a começar pela amplitude frentista dos apetites aliados que ele terá de contentar, bem como da situação socioeconômica em que o país se encontra.

+ UMA “VITÓRIA” DO ESTADO DE DIREITO AUTORITÁRIO

Carlos Novaes, 02 de novembro de 2022

Com acréscimos sobre negociatas em curso na seção Fica o Registro, em 03/11

O criminoso governo Bolsonaro piorou a vida da maioria dos brasileiros, tendo degradado mais a dos assalariados e, especialmente, a dos pobres — dentro de pouco tempo teremos números a demonstrar que Bolsonaro aumentou a desigualdade. Compondo essa maioria descontente há minorias que tiveram as vidas destroçadas, basta pensar nas vítimas da Covid, nas populações indígenas, nos que foram mortos pela violência policial, nos que tiveram suas vidas inviabilizadas pelo desemprego, ainda mais quando acompanhado da fome, ou ainda nos que sofreram a violência oriunda do recente incentivo ao porte de armas de fogo.

Nas linhas a seguir, vou tentar demonstrar que classificar a vitória eleitoral obtida contra Bolsonaro por essa maioria descontente como uma “vitória da democracia” não apenas (i) negligencia o potencial emancipatório do esforço feito, mas faz dessa negligência uma manobra para (ii) encobrir a derrota que essa vitória traz embutida para a maioria de nós, e da qual muito rapidamente começaremos a sentir o gosto, embora isso vá se dar mais como sentimento do que como entendimento sobre o que se passa.

Só teria havido uma “vitória da democracia” se a democracia tivesse passado por alguma ameaça séria. Ela não passou. Embora tenha blefado à vontade, nada do que Bolsonaro fez ameaçou as franquias democráticas, que sempre estiveram aí — sem qualquer contestação precisamente porque são a própria vigência da democracia em movimento e a serviço de um Estado de Direito Autoritário –, a tal ponto rotinizadas, essas franquias democráticas, que jamais deixaram de receber o elogio protocolar, mas apropriadamente enfunado, de Lyras, Gilmares e Alexandres, como deu exemplo a querela em torno do voto impresso ou a adequada defesa do papel desempenhado pela imprensa.

Se a democracia tem sempre estado aí, contando com defensores até mesmo na base dura de Bolsonaro (como o presidente da Câmara dos Deputados, ou o Ministro da Casa Civil do governo dele), não há porque falar em vitória da “defesa” dela (aliás, é como “defensores da democracia” que Lyra e Ciro Nogueira vão abrir caminho para se acertarem com Lula…). Celebrar a derrota eleitoral de Bolsonaro como uma “vitória da democracia” (i) negligencia o potencial emancipatório do esforço feito porque — ao desconsiderar as motivações reais que levaram os eleitores, em sua repulsa aos sofrimentos oriundos da desigualdade, a votarem contra Bolsonaro — tal celebração dilui aquelas motivações a ponto de torná-las estranhamente compatíveis com o que motiva os democratas Lyras e Ciros em seu empenho para manter a desigualdade!

Bolsonaro foi derrotado pelo governo que fez, e em cujos crimes e mazelas, que incrementam a desigualdade, estão implicados muitos dos “defensores da democracia”, num conjunto de complexidades que procurei explicar detalhadamente aqui, aqui e aqui.

A negligência explicada acima serve como manobra para (ii) encobrir a derrota que no fundo sofremos porque o que não faltam são inocentes bem-intencionados para serem manobrados por espertalhões. Toda essa alaúza em torno da “ameaça à democracia” se nutriu inocentemente de paralelismos históricos precários que a nossa autointitulada esquerda (com os progressistas a reboque) gosta de fazer para atrair para si a aura dos grandes momentos da existência humana, soberba que, dessa vez, chegou até mesmo a comparar atabalhoadamente o Brasil atual com a Alemanha dos anos 30, onde Bolsonaro seria um Hitler, cabendo à nossa autointitulada esquerda posar afetando ora a lucidez de um Trotsky (domesticado a ponto de virar um obediente lulopetista), ora o refinamento democrático de um Habermas (amassado a marteladas até servir à preservação “frentista” do nosso Estado de Direito Autoritário).

Com o espantalho da grande ameaça a um suposto Estado democrático de direito, mito ao qual aderiram inocentes e espertalhões, criaram-se as condições para encobrir o fato de que todas as ações e omissões governamentais que levaram aos sofrimentos havidos sob Bolsonaro estiveram abrigadas pelo “de Direito” do Estado de Direito Autoritário e, por isso mesmo — exatamente por não ter passado de degradação do ruim que já estava abrigado nessa forma estatal (na qual o “Autoritário” garante a vigência facciosa do “de Direito”) –, nada desse horror levou ao afastamento do responsável, que permaneceu “de Direito” no cargo, e ali ficará até que se cumpra, “de Direito”, o prazo para a posse do novo presidente escolhido pelo exercício pleno das franquias democráticas que Bolsonaro jamais teve condições para impedir de funcionarem.

A vitória de Lula foi uma vitória nossa porque era necessário derrotar Bolsonaro, uma vez que não poderíamos permitir que esse facínora continuasse a empregar o “de Direito” de maneira tão acentuada e descaradamente “autoritária”, voltada a aumentar a desigualdade. Mas essa vitória já passa a se exibir como derrota quando vemos que o governo Lula se anuncia, como já sabíamos, como mais uma tentativa de preservação do Estado de Direito Autoritário, sem reconhecer sua crise de legitimação, com Lula figurando como grande articulador dos interesses das facções, todas voltadas para o objetivo de reunir poder para fazer dinheiro através do exercício faccioso dos poderes institucionais.

A primeira evidência disso, pelo que traz a mídia, é a notícia de que teremos mais de trinta ministérios — quer dizer, ao invés da força do Estado como agente de combate à desigualdade, vamos ter o Estado como abrigo a infortunados pela desigualdade — e tudo para preservar os interesses dos que ganham com a desigualdade, afinal, os ricos não podem perder. Ao invés de tonificar a capilaridade do Estado em um fluxo de transformação recíproca com a sociedade, vamos ter a abertura dos poros do Estado para mais um esforço de cooptação despolitizante, que muitos julgam ser a qualidade “agregadora” de Lula — como celebrou Haddad recentemente no Flow, Lula seria “tão agregador” que mesmo com seu governo avaliado como bom e ótimo por 87% nas pesquisas, ele se perguntava como agradar os 4% de ruim e péssimo, ou seja, Haddad festeja como qualidade justamente um defeito de Lula: ao invés de discriminar para transformar, quer agradar a todos, o que o impede de enfrentar o problema central (isso é muito bom para a carreira de um líder carismático, mas é péssimo para o país).

Em suma, ao invés de um Estado forte, vamos ter um Estado flácido, versão degradada do Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação, afinal, precisamente porque vai abrir os poros, esse Estado ficará sem tônus para arbitrar as perdas necessárias ao combate à desigualdade, única maneira de desatar as amarras que impedem o desenvolvimento do país.

Fica o Registro:

– Aos que me cobram análises sobre o que se passa nas rodovias, informo que não vou fazê-las porque tudo está correndo como previsto há muito tempo: essas arruaças só servem ao blefador, e, mais uma vez, contra os próprios participantes, coitados, pois Bolsonaro está repetindo o seu “estelionato ideológico como método”, usando seus extremistas para preparar sua própria “anistia”, num acerto de facções.

– Uma anistia a Bolsonaro, seja ela direta ou, mais provável, por debaixo do pano, vai nos levar de volta à situação do final da ditadura paisano-militar de 64: mais uma vez, o jogo das facções estatais vai trair a maioria da sociedade, que será levada a engolir como vitória a derrota pela qual a contemporização entre elites vai, mais à frente, nos obrigar a reencontrar os mesmos problemas.

– A separação entre espertalhões e inocentes úteis fica muito clara nas redes sociais: os inocentes se ocupam dessa irrelevância que se passa nas rodovias, como se isso tivesse alguma importância, e chovem comentários indignados, imagens, memes, vídeos — quanta bobagem, quanta energia desperdiçada. Enquanto isso, os espertalhões promovem os acertos entre as facções estatais. De modo que o que se passa nas rodovias tem mão-dupla livre: distrai bolsonaristas e a autointitulada esquerda, cada grupo fazendo a sua catarse ali onde não interessa.

– Aliás, está explícito que esse acerto de facções já começou, com o encontro havido hoje entre Bolsonaro e Alckmin, do qual o vice de Lula saiu fazendo deferências exageradas ao besta. Tudo vai se armando para que Bolsonaro se sinta protegido a ponto de não atrapalhar (muito) o início do próximo governo.

– O fato de o STF, depois de todos os insultos e afrontas, ter feito aquela pantomima de receber Bolsonaro trazendo para si um reconhecimento da derrota que deveria ter partido dele já havia mostrado como já vai longe o acerto das facções estatais — nada conspirado, a coisa toda flui por música, afinal, trata-se de uma coreografia de séculos.

– Em sua independência costumeira, o jogo das facções no Estado de Direito Autoritário vai cumprindo por si o que os teóricos do frentismo sonharam como obra de sua engenharia política de prancheta: assim como facções militares foram fortalecidas no período Bolsonaro sem que fosse necessário um novo pacto e, mais adiante, foram desmoralizadas porque apostaram do lado errado da guerra de facções em torno da urna eletrônica; também agora a teoria da construção de uma “direita civilizada” já vai dando certo sem precisar dos teóricos da engenharia política: Tarcísio venceu em SP e Alckmin avança como figura oportuna seja na relação com o que resta do governo Bolsonaro, seja nas operações de acomodação para o governo que vai se formando. Quem precisa de teoria para fazer isso?!!

SE BLEFAR É RUIM; TEIMAR NO BLEFE É PIOR

Carlos Novaes, 01 de novembro de 2022

Evidentemente, a guerra da Ucrânia não é uma guerra mundial. Mas, após mais de oito meses de intensa atividade bélica, haveria o risco real de estarmos caminhando para a terceira guerra mundial?

Se é verdade que nenhuma das guerras mundiais anteriores teve início como mundial, não é menos verdade que uma guerra sempre é iniciada por quem supõe que pode vencê-la, ou seja, que irá tirar proveito final das perdas infligidas e sofridas. As duas guerras da era moderna que se fizeram mundiais foram iniciadas por quem julgava poder vencê-las. No caso da Segunda Guerra, essa certeza já embutia a hipótese, e até a aposta, de que a guerra se faria, de algum modo, mundial – Hitler, contudo, julgava ter elementos para nutrir a convicção de que, fosse como fosse, sairia vitorioso do conflito.

As coisas mudaram desde 1945, depois que a Segunda Guerra Mundial terminou com o uso unilateral de bombas nucleares pelos EUA. Desde então, à medida que mais e mais países passaram a contar com armas nucleares, ficou claro que, com o fim da unilateralidade, uma guerra nuclear seria necessariamente uma guerra mundial da qual ninguém poderia ter certeza de sair em vantagem, constatação que orientou a chamada “guerra fria”, e veio impedindo potências nucleares de fazerem uso do seu arsenal atômico nas guerras de que participaram. Por isso mesmo, desde 1945 não houve guerras em que potências nucleares tivessem confrontos diretos.

Na verdade, uma das características do envolvimento dessas potências em guerras tem sido, justamente, a obediência à cláusula amplamente aceita de que, embora fazendo guerra para vencer países sem armas nucleares, elas não farão uso da sua “vantagem” nuclear, mesmo quando diante de derrota para oponente mais fraco, uma vez que não poderiam dosar aquele uso apenas contra o adversário direto, necessariamente pondo em risco a si mesmas e/ou, sobretudo, a terceiros. Foram exemplos notórios disso as participações dos EUA ou da hoje Rússia nas guerras do Vietnã, da Chechênia, do Afeganistão, da Geórgia, do Iraque e da Síria. Em suma, se não pretende desencadear um conflito mundial, uma potência nuclear não pode entrar em guerra sem, de pronto, oferecer evidências de que não fará uso de armas nucleares.

Tendo em mente o que foi dito acima, podemos avaliar melhor a extensão do erro de cálculo cometido por Putin ao invadir a Ucrânia, e mais: podemos entender os erros posteriores a que ele tem sido levado justamente em razão da extensão da surpresa dele ante os reveses saídos do erro inicial, que jamais haviam sido imaginados, que dirá previstos.

Putin iniciou a guerra contra a Ucrânia não apenas porque supôs que poderia vence-la, mas, mais importante, porque imaginou que seria fácil ter êxito com um custo quase insignificante para si e seu país. Ou seja, a facilidade com que o êxito viria já indicaria que não se cogitava do uso de armamento nuclear. Imaginando-se lastreado nessas garantias, Putin calculou que – com a complacência dos ucranianos e sob olhar atônito e impotente do resto do mundo – iria anexar parte da Ucrânia e, ainda por cima, colocar o que restasse dela sob controle de um governo obediente a ele, como ocorre com a Bielo Rússia. Foi por isso que a invasão se deu com aquela dispersão de forças inicial: as tropas de Putin ocuparam territórios limítrofes e ainda marcharam alegremente para Kiev no fito de simplesmente depor o governo que, no julgar dele, cairia quase por si. Tudo parecia tão favorável que Putin deveria ter desconfiado, especialmente considerando a própria história da Rússia.

De fato, a história russa tem formidável exemplo anterior de uma guerra que, partindo de pressupostos assemelhados, acabou se dando ao contrário do esperado. Foi a chamada Guerra da Criméia (1853-1856), iniciada pelo Tsar Nicolau-I para expandir o território russo para áreas do Império Otomano em que já havia populações russófonas. Tal como Putin, Nicolau imaginou que suas tropas seriam recebidas com adesão do povo invadido e sem que potências europeias viessem a se importar muito com a anexação… Deu tudo errado: o povo não se levantou favoravelmente, a Áustria, tida como parceira, se posicionou duramente contra a Rússia, e a França e a Inglaterra entraram diretamente na guerra ao lado do Império Otomano. Sentindo o revés, Nicolau tentou recuar, mas os adversários não lhe deram chance precisamente porque constataram que estavam diante de uma oportunidade para tirar vantagem de um conflito que não haviam buscado. De fato, como a inferioridade bélica da Rússia revelou-se notável (o alcance dos seus fuzis, por exemplo, era 1/5 do alcance dos fuzis europeus), o resultado foi uma derrota tão humilhante que teve consequências nefastas até para a continuidade da dominação interna dos Romanov*.

O erro fundamental de Putin foi acreditar que seu desprezo pelo nacionalismo dos ucranianos tinha base real, isto é, ele fantasiou que os ucranianos se sentiam, literalmente, como “pequenos russos”, denominação com que os russos, desde a Rússia Imperial, se referem aos povos eslavos assentados na região que veio a ser definida como a Ucrânia atual (antiga Pequena Rússia**). Putin se deixou embalar pela mitologia eslava que lhe era conveniente e, raciocinando com os próprios desejos, desconsiderou o apego dos ucranianos à sua autonomia e independência, como se eles não fizessem questão de ter um país para si. E pior: Putin não levou em conta que esse nacionalismo ucraniano se definiu e incrementou, antes de tudo, por contraposição, justamente, ao quase milenar chauvinismo despótico da Rússia – se havia alguém contra quem os ucranianos defenderiam seu torrão natal, esse alguém eram justamente os russos.

O brio com que os ucranianos se levantaram contra a invasão pegou Putin desprevenido e logo levou as potências adversárias de Moscou a calcularem que, mutatis mutandis, poderiam estar diante de oportunidade como aquela da Guerra da Criméia. Fecharam-se contra a Rússia em sanções crescentes, passaram a armar a Ucrânia, abriram-se para uma acelerada adesão à OTAN de Suécia e Finlândia e o resultado está aos olhos de todos: o que parecera aos russos um desenvolto passeio por campos vizinhos virou uma medonha decida pelos círculos do inferno. Com isso podemos compreender o aturdimento de Putin diante do contraste entre a certeza da vitória que embalara o início da sua “operação especial” e os reveses crescentes colhidos no curso da guerra que se viu ter de fazer contra um adversário cuja capacidade de resposta subestimara.

A desorientação suscitada por esse aturdimento recebeu um ingrediente adicional: o erro de cálculo fora de tal monta que Putin não se viu em condições de admiti-lo sequer para si mesmo, o que dirá para o resto do mundo (e, menos ainda, para a sociedade russa). Vieram daí os blefes iniciais, com Putin pretendendo fazer parecer que tudo saia como previsto, como se os improvisos crescentes para fazer frente à situação adversa inesperada fossem resultado de cálculo antecipado. Não eram, e isso começou a ficar claro não apenas pelos reveses crescentes no campo de batalha e pela convocação de reservistas, mas, sobretudo, pela retórica nuclear que começou a ser ambiguamente emitida por autoridades russas, pois a situação se revelara de tal maneira atrapalhada que Putin precisou dar a entender que, no limite, sempre contara com o arsenal nuclear de que a Rússia dispõe.

Dizendo o mesmo de outro modo: para encobrir a evidência de que se enganara sobre a facilidade de invadir e submeter a Ucrânia, Putin improvisou a cortina de um suposto cálculo pelo qual o armamento nuclear sempre estivera subentendido como recurso a empregar na superação de dificuldades surgidas no campo de batalha – como a dizer “não precisamos nos preocupar tanto, uma vez que temos as nossas bombas”.

Ora, o problema com essa retórica é que ela não podia ser recebida senão como blefe, pois contraria a cláusula pétrea de que potências nucleares não podem empregar bombas atômicas se não estiverem dispostas a iniciar uma guerra mundial. Essa trapalhada narrativa dificilmente poderia ser menos verossímil, e os governos da OTAN não foram enganados: para inflar o blefe nuclear de Putin e aumentar o desgaste dele quando, finalmente, recuasse, passaram a simular ao público levar a sério as ameaças atômicas, ou seja, como se elas, embora improváveis, pudessem sim ser possíveis, enquanto vieram tomando providências na mão contrária, ou seja, providências de quem está certo de que a situação se resolverá num campo de batalha convencional: aumentaram a coesão entre si, vêm incrementando seus gastos em defesa, intensificaram a entrega de armas à Ucrânia, adotaram sanções crescentes contra a Rússia e, ainda, providências para embutir os prejuízos, bem como transpor as dificuldades, da decisão já tomada de não mais ter o país de Putin como parceiro comercial para a compra de energia. Não levou muito tempo para que o déspota russo – ao descobrir, mais uma vez tardiamente, que perdera tempo – viesse a público, como esperado, para declarar, pessoalmente (embora insistindo em afetar que “tudo caminha como previsto”), que o uso de armas atômicas contra a Ucrânia “não tem sentido, nem político nem militar”; não diga…

A essa altura já se pode ver que não há elementos para que se ponha sequer no horizonte longínquo a hipótese de que a guerra da Ucrânia leve a uma terceira guerra mundial. O que se passa são modificações profundas na OTAN e na União Europeia, todas implicando perdas severas para a Rússia. A OTAN logo será ampliada, com a entrada de Finlândia e Suécia, e fortalecida como gastos em defesa adicionais dos seus membros, o que levará a uma benéfica diminuição da dependência ante os EUA, tudo isso num cenário em que todos passaram a entender a Rússia como um país inimigo. A União Europeia também está a fortalecer seus laços internos em pesquisa e comércio, especialmente para buscar alternativas de energia, o que levará à reconfiguração de políticas comerciais, tudo isso tendo a Rússia como país não confiável para relações desse tipo.

Depois desses quase nove meses de guerra, nos quais um Putin crescentemente surpreso se viu obrigado a blefar até sobre justamente aquilo que jamais pretendeu ou poderia ter pretendido, a elite governamental da Rússia está a reaprender contra si uma velha lição da história: guerras são eventos de que se controla apenas o início.

***

* – O escritor russo Ivan Turguêniev deu tratamento literário aos eventos e desdobramentos da Guerra da Criméia nos três contos cronológicos que incluiu tardiamente em seu clássico Notas de um caçador. No primeiro deles, O fim de Tchertopkhánov, ele trata metaforicamente da Guerra da Criméia; no segundo, Relíquia viva, ele faz o mesmo com as circunstâncias do fim da servidão na Rússia; e no terceiro, Pancadas! , ele antecipa, antevendo mais de 40 anos, os desdobramentos que levarão à aliança operário-camponesa contra o tsarismo. A análise que realizei para fazer aflorar o até então inédito sentido político oculto de cada uma dessas três obras pode ser lida entre as páginas 180 e 228 do meu livro LITERATURA CONTRA IMOBILISMO NA RÚSSIA DO SÉCULO XIX, que pode ser encontrado em formato .pdf aqui.

** – Essa denominação deve ter surgido do desenho cartográfico daquela região, pois mesmo o mapa do que hoje é a Ucrânia continua a parecer uma reprodução, em tamanho menor, do mapa que traz o desenho cartográfico atual da gigantesca Rússia.

BOLSONARO NA SESSÃO DA TARDE: REPETINDO O DE SEMPRE

Carlos Novaes, 01 de novembro de 2022 – 15:58h

E o golpe, que nunca existiu, não veio…

Bolsonaro vai discursar dentro de minutos. Fica fácil adivinhar o que vai ser: depois de anos repetindo a coreografia do blefe, que consistia no pêndulo entre esbravejar e enfiar o rabo entre as pernas, hoje teremos “novidade”: ele vai esbravejar e, ao mesmo tempo, enfiar o rabo entre as pernas — um blefe para daqui quatro anos… Vamos conferir. Depois volto.

16:44h – Bolsonaro acaba de se pronunciar: mais uma vez, abandonou seus radicalóides na chuva, deixando claro que os caminhoneiros estão obstruindo indevidamente o ir e vir. É tão despreparado e covarde que não consegue dizer o que deve. Deixou para Ciro Nogueira comunicar que a lei da transição será cumprida. Fim de jogo, por mais que ele venha a aprontar daqui até a posse de Lula.

VOTO SECRETO – UMA RESPOSTA À INDAGAÇÃO DA @ANITTA

Carlos Novaes, 30 de outubro de 2022

Hoje no Twitter a @Anitta fez duas ponderações simples, sugerindo reflexão:

Se o voto é secreto protegido pela lei. Por que será que as pesquisas de voto são permitidas pela lei? Não parece um pouco ambíguo? Bom refletir sobre.”

Como as redes sociais são o âmbito das certezas cínicas e dos insultos, a manifestação da moça foi recebida com a indignação dos autoritários sem causa. Como não poderia deixar de ser, ninguém (pelo menos até onde tive paciência de ler) chegou nem perto de dar uma resposta minimamente correta às ponderações e ao convite que ela fez.

Minha posição sobre a urna eletrônica foi desenvolvida com detalhes aqui. Para responder à @Anitta, digo apenas o seguinte:

@Anitta , nada há de “ambíguo” porque (1) “Intensão de voto”, que é o que pede a pesquisa, não é voto na urna; (2) O voto é secreto não para impedir que o eleitor o declare, mas para impedir que ele faça prova do que declara (quando declara).

Quer dizer, o eleitor está impedido de fazer prova do voto que depositou na urna, isto é, ele está obrigado a ser livre. “Obrigado a ser livre” também nada tem de “ambíguo”, ou paradoxal, pois a liberdade do eleitor não é um atributo individual, mas uma condição política, propriamente social — por isso ele tem a liberdade individual de declarar o voto, mas está constrangido pela liberdade coletiva, que o impede de fazer prova dessa declaração. Daí porquê, não é ele, o eleitor, o guardião do segredo do próprio voto; nem tampouco o é a Justiça Eleitoral (TSE e TREs). Não. O guardião do segredo do voto é a urna (eletrônica ou não), local onde dormem unidos em sua força os votos incógnitos dos eleitores.

Fica o Registro:

– A Folha de S. Paulo de hoje traz artigo de Elio Gaspari sobre o último debate entre Lula e Bolsonaro. Quero crer que o que Gaspari viu foi o que a maioria de nós viu. A explicação para o que vimos, porém, Gaspari não deu, mas está aqui desde ontem.

UM DEBATE REVELADOR PELA INCERTEZA QUE MANTÉM

Carlos Novaes, 29 de outubro de 2022

A razão principal para a existência de segundo turno é dar uma segunda chance aos eleitores dos candidatos que não alcançaram sequer a segunda colocação no primeiro turno. Isso deveria levar os dois candidatos finalistas a dialogar com esses eleitores. Por que nem Lula nem Bolsonaro fizeram dessa exigência a linha central de suas respectivas campanhas no segundo turno?

Porque nenhum dos dois tem um projeto para o futuro do Brasil. Lula insiste em uma restauração do passado recente, o que não convém à maioria de nós, seja porque foi insuficiente ali onde foi bom; seja porque foi farto em mazelas indesejáveis. Bolsonaro se orienta pela fantasia de uma regressão ainda pior para a maioria que prefere a democracia, pois sonha com a reinstalação do passado ditatorial, de cujo entulho ele é o chorume que virou jorro e, ademais, pretende prolongar um governo desastroso.

Trocando em miúdos, ambos estão impedidos, cada um a seu modo, de se dirigir com largueza e inventividade às preferências majoritárias do eleitorado que, confusamente, (i) prefere a democracia, (ii) tem aversão ao “sistema” e (iii) quer mudança. (i) Preferir a democracia é uma baliza fundamental, pois realimenta a memória das lutas dos últimos 30 anos e tira lastro de qualquer pretensão ditatorial. (ii) A aversão majoritária ao “sistema” oferece um norte para a preferência pela democracia, o que permite reconfigurar e requalificar a maioria, agora reunindo democratas e antissistemas. (iii) A vontade majoritária por mudança dá oportunidade de apresentarmos um projeto transformador (nossa versão para a “mudança”) a essa maioria que se reconfigura e requalifica, um projeto que tenha como eixo o combate à desigualdade (mantida e nutrida pelo Estado de Direito Autoritário – nossa versão para o “sistema”), na perspectiva da construção de um Estado de Direito Democrático.

Nem Lula, nem Bolsonaro podem lutar pela construção da maioria requalificada que reúna as três preferências acima. Lula pode se apresentar como (i) um democrata, mas não tem como deixar de aparecer como (ii) representante do “sistema” e, portanto, está impedido de apresentar qualquer projeto de mudança, o que o condena a (iii) essa restauração conservadora que temos visto. Bolsonaro, que não tem como (i) se apresentar como um democrata, fica se contorcendo para redefinir o que é a democracia, numa conversa cínica sobre liberdade e as tais “quatro linhas da Constituição”; e embora ele tenha vencido em 2018 simulando correspondência com a onda do “sentimento antissistema”, (ii) seu governo criminoso apoiado no Centrão o impede de fazê-lo agora, salvo para a minoria desejosa de uma ditadura, pois o besta não tem como representar uma maioria democrata e antissistema na (iii) luta contra a desigualdade na perspectiva de um Estado de Direito Democrático.

Quer dizer, o caminho da vitória em 2022 teria saído da soma proveitosa das três parcelas: i+ii+iii. Como ninguém foi capaz de fazê-la, restaram Lula e Bolsonaro, que aparecem em empate técnico com ligeira vantagem numérica para Lula precisamente porque o ex-presidente é o único que dialoga plenamente com uma (i) das três parcelas: Lula é um democrata. Além disso, Lula fez governos infinitamente melhores do que o de Bolsonaro, especialmente no tocante à desigualdade, pois embora não a tenha combatido, Lula tampouco se empenhou em aprofundá-la, como faz Bolsonaro. Se o empate persiste e nos deixa tão apreensivos é justamente porque esse arranjo que sugere vantagem para Lula é produto cerebrino de difícil concretização na confusão de uma campanha tão afastada do que realmente mobiliza o eleitorado.

A TV Globo exibiu tudo isso na noite de ontem, ao transmitir o debate entre os dois. Por estar preso ao passado, Lula foi incapaz de brilhar no debate, mesmo tendo como oponente alguém tão desqualificado como Bolsonaro. Como não pode fazer propaganda de sua fantasia secreta, a volta à ditadura, nem pode dar vazão à aversão aos pobres a que o leva seu fascismo classe-média, Bolsonaro, em qualquer debate, está condenado à inconsistência de defender com mentiras um governo que nada ofereceu de bom precisamente porque sua imbecilidade o impediu de governar até no sentido da fantasia irrealizável de tornar-se um ditador. Não obstante, Lula não pode esmagá-lo porque não tem um projeto para o Brasil real.

Lula poderia ter esmagado Bolsonaro deixando-o falar à vontade e reservando para si ignorá-lo enquanto oferecia ao país os elementos centrais do projeto que tenha para cada um dos temas abordados. Por exemplo: quando o tema foi “meio ambiente”, Lula, que dispunha de 5 longos minutos, poderia ter abordado rapidamente nossos seis biomas, oferecendo para cada um deles pelo menos uma proposta de preservação com desenvolvimento, esbanjando atualidade e esperança. Mas não. Lula se engalfinhou com Bolsonaro, perdeu qualquer norte que pudesse ter e, assim, mostrou-se tão despreparado quanto o oponente mentiroso, repetindo, pela enésima vez, parte do (pouco) que seus governos fizeram na Amazônia e nada dizendo do que quer que se proponha a fazer.

Um debate como esse atrapalha até a confirmação do voto recebido em primeiro turno, que dirá dos votos a conquistar nessa segunda etapa da disputa! Um dos dois receberá maioria de votos, mas essa maioria se apresentará quase que como obra do acaso, o que ajuda a entender o empate que as pesquisas estão a mostrar: estamos torcendo por Lula como quem torce para que dê cara ao assistir uma moeda a rodar.

Tudo somado, Lula e Bolsonaro representam o impasse a que nos trouxe a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. A maioria da sociedade brasileira está sendo levada a escolher com base no que rejeita de cada um dos dois precisamente porque rejeita este Estado, este sistema. A rejeição a ambos é a face visível da crise de legitimação que permanece oculta às consciências, embora aflore confusamente no “sentimento antissistema”. Bolsonaro é rejeitado pelo governo que fez e porque representa o entulho autoritário que a maioria quer remover definitivamente; Lula é rejeitado porque representa o sistema em sua limitação fundamental: faz do Estado abrigo contra danos da desigualdade, não agente de combate efetivo a ela — por isso, Lula se torna presa fácil dos críticos do Estado “intervencionista” e “inchado” enquanto, ao mesmo tempo, acaba por contentar esses críticos com as vantagens, os privilégios e a corrupção que este Estado acaba por ter de distribuir em seu papel de mantenedor da desigualdade. Quem quiser que se iluda.

Fica o Registro:

– O episódio em que Carla Zambelli se comporta como uma miliciana no centro de SP deve ser tão repudiado quanto o foi o atentado do paisano Roberto Jefferson no Rio. Zambelli está para Tarcísio como Jefferson está para Bolsonaro. Se Tarcísio ganhar, comportamentos desse tipo irão virar rotina em SP. Haddad é a resposta contra o avanço da milícia em SP.

– O alarido da mídia em torno de uma possível reação golpista do bolsonarismo não passa disso, alarido. Nada além de alguma arruaça passageira irá acontecer se, como esperado, Bolsonaro perder para Lula amanhã. Na verdade, tão logo constate a derrota, Bolsonaro começará a negociar para salvar a si e aos seus da cadeia, pois este sempre foi o terceiro objetivo dele, como exploramos aqui. Dado o que conhecemos do jogo faccioso do Estado de Direito Autoritário, Bolsonaro nada de muito grave terá a temer. Oxalá sejamos surpreendidos e este facínora venha a receber o que merece.

O “DE DIREITO & AUTORITÁRIO” EM ESTADO PURO

Carlos Novaes, 24 de outubro de 2022

A recepção a ações de um Estado de Direito AutoritárioEDA sempre impõe a adoção de algum cinismo: é que cada um de nós é levado a avaliar uma decisão “de Direito” pela régua do autoritarismo necessariamente embutido nela. É por isso que, para mim, por exemplo, prender o Silveira de modo arbitrário foi aceitável, mas não o foi fazê-lo com Lula. Em outras palavras: o dano autoritário contra Lula foi inaceitável porque atingiu o que me parece fundamental; enquanto o dano autoritário contra Silveira pareceu parte do jogo, sendo algo menor no âmbito do que realmente importava naquele momento. Ora, esse é um raciocínio político que não pode deixar de conter certa dose de cinismo, uma vez que é indefensável do ponto de vista de quem almeja uma vida realmente democrática, ou seja, de quem almeja um Estado de Direito Democrático.

Explicando melhor. Assim como é verdade que num Estado de Direito Democrático, Moro não poderia ter condenado Lula e, depois, ainda menos, poderia ter obtido apoio de instâncias superiores, também é verdade que (i) a ministra Carmen Lúcia tampouco poderia fazer censura prévia, (ii) Tóffoli não poderia ter aberto processos motu proprio, (iii) Moraes não poderia ter mandado prender Silveira (ainda iremos sentir contra nós esse autoritarismo do Moraes, a quem a autointitulada esquerda vem fortalecendo…). Quer dizer, sempre fui contra a condenação arbitrária de Lula, mas nenhuma dessas outras três medidas mencionadas me entristeceu… Entretanto, todas quatro têm a mesma natureza (ou o mesmo caráter) facciosa(o), isto é, são medidas típicas de um Estado de Direito Autoritário, cujo controle está sendo disputado por facções.

De modo que, os medonhos acontecimentos que estão a moldar o “caso Roberto Jefferson” ilustram o EDA de modo perfeito. Nada do que se passa em torno de Jefferson no âmbito propriamente institucional seria necessário num Estado ditatorial — o “terrorista” seria simplesmente eliminado; e nada disso teria lugar num Estado de Direito Democrático — o delinquente jamais teria chegado a reunir condições de reagir como reagiu a uma arbitrariedade que tampouco se daria. Quer dizer, esses acontecimentos mostram que não vivemos sob um Estado democrático de direito que devêssemos defender, como querem os teóricos do frentismo que reuniu a autointitulada esquerda e os “progressistas” nessa equivocada, porém necessária, candidatura de Lula.

Ao derrotar Bolsonaro, se derrotarmos, estaremos arrancando das mãos de um facínora os poderes simbólicos e materiais que o Estado de Direito Autoritário confere a quem ocupa a presidência da República. Isso significa que a almejada vitória de Lula contra Bolsonaro deveria ser recebida não como um triunfo da democracia, mas como o ponto de partida para a construção de um Estado de Direito Democrático, em cujo caminho teremos de transpor Lula, Alckmin e Cia, todos agarrados como mariscos ao Estado que, tendo recebido deles, Bolsonaro pôde manejar como manejou — é precisamente porque estamos navegando em meio à treva que não deveríamos escolher fechar os olhos…

Fica o Registro:

– A atitude de Roberto Jefferson deu vazão real e, por isso mesmo, inócua, aos blefes de Bolsonaro. BobJeff jamais entendeu o “estelionato ideológico” como prática política continuada de Bolsonaro. BobJeff acreditou que seria possível aplicar no Brasil de 2022 o “foquismo” dos anos 50/60, “teoria” que pregava a revolução por meio da criação de focos de revolta armada, os quais catalisariam o descontentamento das massas. Ele já havia tentado no 7 de Setembro passado, quando estimulou a resistência à proibição do tráfego na Esplanada dos Ministérios. Como expliquei detalhadamente neste vídeo, qualquer ação arruaceira saída da base bolsonarista não controlada por Bolsonaro (como BobJeff) seria facilmente contida e acabaria na cadeia. Um golpe nunca foi viável e, se perder, Bolsonaro terá de, mais uma vez, dar as costas aos seus radicais e ir para casa, ainda que possa haver alguma arruaça, como no caso Trump.

DESIGUALDADE E DESORIENTAÇÃO ELEITORAL

Carlos Novaes, 20 de outubro de 2022

Infelizmente, Bolsonaro vem aumentando sua maioria no Sudeste, região mais populosa e desenvolvida do país, enquanto Lula insiste na propaganda furada de que governar é uma ação social voltada a socorrer os pobres, sem entender que Bolsonaro fez maioria entre os não pobres que tampouco são ricos* precisamente porque Lula os abandonou!

Na raiz dos equívocos tremendos da campanha de Lula estão um erro propriamente político e um erro socioeconômico. Do erro político não vou tratar neste artigo, pois, como ele é o mais determinante, já o vimos extensamente em vários posts como, por exemplo, aqui, e no canal Lavoura Política: Lula e os seus erram ao não enxergarem a centralidade e a força político-eleitoral do sentimento antissistema, expressão da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário-EDA. Tratemos do erro socioeconômico, que se dá na incompreensão básica sobre a desigualdade: nossa autointitulada esquerda, no que é acompanhada pelos ditos progressistas, perdeu-se em falácias ao se abandonar preguiçosamente às facilidades de presunçosamente “explicar”, “contestar” e “enfrentar” a desigualdade pela oposição entre os 5% mais ricos e os 50% mais pobres. Querem nos fazer engolir que a mera ilustração de um aspecto do problema possa substituir um verdadeiro projeto para a solução do problema.

Façamos uma simples conta de somar: 5%+50%=55%. Como o universo da população é 100%, estão faltando na conta nada menos do que 45%. Quem se concentra na polarização fácil de 50 contra 5 fica impedido de sensibilizar aquela parte dentre 45% (classes médias) que não se vê como pobre e, ademais, oscila eleitoralmente segundo um repertório de preferências e interesses que, em última instância, estão emaranhados sobretudo em aspirações de melhoria material do padrão e da qualidade de vida. Quer dizer, essa fatia das classes médias (uma parte dos 45%), nem é reacionária (essa já foi para Bolsonaro), nem é socialmente progressista (essa já foi para Lula). Centrada em si mesma, ela não está afeita a aderir a projetos pretensamente totalizantes, de orientação geral, polarizados a ponto de exigir dela aquilo de que ela tem aversão: se engajar em uma missão coletiva (seja essa missão “salvar aos pobres da fome”, seja “salvar o Brasil do comunismo ateu”).

Essa franja das classes médias (repitamos: uma parte dos 45%) não vê nem a vida, nem o mundo, desse jeito totalizante — ela é mais pragmática e pé no chão, não havendo nessa posição mais estupidez ou lucidez do que em qualquer das outras faixas de preferência (como, aliás, tem sido mostrado à farta no conteúdo produzido por outras faixas dos 45% que estão engajadas e alimentam a polarização entre as campanhas nas redes sociais — Ah! as “vanguardas” de classe média não abrem mão de alimentar o, e se vangloriar do, que há de superficial em suas diferenças, para satisfação dos ricos e sofrimento dos pobres; entre Duviviers e Alans há graus para todos os gostos). Voltemos.

Por suas características, essa parte dos 45% que poderíamos realisticamente conquistar, nos períodos eleitorais se deixa oscilar segundo o que lhe chega no vento, ora dando maioria a um lado, ora a outro, sendo que esses lados jamais estiveram tão polarizados (e desorientados) como nesta eleição (daí esse verdadeiro túmulo da crítica que é o juízo de que “bom era o tempo de PSDB x PT“, justamente as duas forças que comodamente se dividiram para não enfrentar as duras tarefas que a centralidade da desigualdade impõe a quem quer transformar o Brasil).

Eleição após eleição nossa autointitulada esquerda, especialmente o lulopetismo, veio insistindo nessa retórica impotente do 50 contra 5, ainda mais vazia depois que eles se renderam à cláusula pétrea que degradou o Plano Real, ali onde se estabeleceu, na prática, que os ricos não podem perder, como mostrei detalhadamente aqui, quando discuti que do ponto de vista da luta contra a desigualdade o obediente lulopetismo já se fizera um cadáver. Ora, se os ricos não podem perder e, mesmo assim, se insiste em 50 contra 5, os 45% restantes serão levados às apreensões típicas de quem sente que vai pagar o pato quando as coisas derem errado… Como tem acontecido! (é aí que ganham tração as reações repelentes tipo “aeroporto virado em rodoviária”, o “escândalo do pobre fazendo medicina”, a revolta com “os direitos trabalhistas das empregadas domésticas” etc). Eis a soma nefasta: sentimento de pagar o pato + sentimento antissistema = maioria eleitoral de Bolsonaro entre os 45%, especialmente nos pequenos e médios municípios da região Sudeste, onde as classes médias imperam.

Nenhuma candidatura presidencial ofereceu à maioria da sociedade brasileira um projeto que ganhe para a luta contra a desigualdade essa fatia não reacionária dos 45% (a fatia progressista dos 45% já está conosco). Temos de conquistar essa fatia que ainda não entendeu, mas pode entender, que a desigualdade a atinge diretamente. Precisamos de um projeto que a leve a se dar conta de que a desigualdade não é um problema de 50 contra 5, mas de 95 contra 5 (reduzindo a uma minoria aquela parte dos 45 que sempre permanecerá aderida aos interesses dos 5% mais ricos). Mas isso não será alcançado insistindo, como faz a campanha de Lula, em “salvar os pobres”, “acabar com a fome”, “moradia popular”, “aumentar o salário mínimo”, “programas sociais de renda” etc. Tudo isso é fundamental, mas nada disso permitirá enfrentar, mesmo, a desigualdade no que ela tem de entrave ao desenvolvimento, à elevação da renda média e ao enquadramento social da acumulação da riqueza.

Por ignorância, oportunismo e preguiça, a autointitulada esquerda, com ajuda de “progressistas”, insiste no erro de confinar a luta contra a desigualdade à “solução” Robin Hood de tirar dos ricos para distribuir aos pobres segundo a fórmula de “botar os pobres no orçamento e os ricos no Imposto de Renda” – que burrice!! Nessa fórmula não aparecem as classes médias. Quer dizer, eles dão um chapéu nelas e depois querem que a maioria delas se faça nossa aliada na luta contra o enfraquecimento do Estado (e pior: um Estado que está em crise de legitimação em razão da corrupção, dos privilégios, do autoritarismo policial, das vantagens salariais indevidas, dos péssimos serviços públicos etc).

Olhada num único lance de amarração, vê-se que a campanha de Lula tem errado sistematicamente: 1. ao se desgarrar da percepção da maioria da sociedade, quando tratou os blefes golpistas de Bolsonaro como se fossem ameaças reais à democracia que a maioria de nós já garante; 2. ao deixar para uso de Bolsonaro o sentimento antissistema da maioria da sociedade brasileira; 3. ao abandonar à exploração de Bolsonaro as inseguranças das classes médias; 4. ao adotar um frentismo cujo projeto é uma conservadora volta ao passado, indevidamente glorificado; 5. ao nada de novo oferecer ao eleitor que quer mudança, nem mesmo ali onde isso é evidente, como no caso da Petrobrás, onde o passivo existente só pode ser transposto com uma proposta clara e ampla de mudanças na política energética, projetando a empresa para além do rebaixamento político que sofreu, e ainda sofre; 6. ao subir no salto alto a ponto de salpicar a campanha de sinais de revanchismo, exibindo uma falante Dilma em comícios, insuflando contraproducentemente o “vamos voltar”, e repetindo arrogantemente seja a defesa de ditadores, seja um tolo eu vou ganhar”. Tudo somado, é um milagre que Lula ainda esteja em primeiro lugar nas pesquisas.

Se ainda assim ganharmos, teremos tirado Bolsonaro do poder, mas continuaremos com todos os outros problemas. Se perdermos, ninguém poderá fingir que não sabe por quê.

* – Sem pretender rigor técnico, apenas para ilustrar o sentido geral do argumento, imaginemos aquela fatia do eleitorado que aparece nas pesquisas com renda entre (+) de 2 e (-) de 10 Salários Mínimos-SM.

UM DEBATE INCÔMODO

Carlos Novaes, 17 de outubro de 2022

Na ausência de pesquisas bem feitas, não passam de querelas inúteis as discussões sobre quem, aos olhos do eleitor, terá ganho o debate de ontem entre Lula e Bolsonaro. Além dessa ausência de parâmetros confiáveis, ainda há a prática generalizada de a avaliação ser orientada não por um juízo criterioso sobre o debate, mas, pelo contrário, segundo a preferência eleitoral de cada um. Não contem comigo para esse tipo de propaganda despolitizada.

Já apresentei neste blog, e no meu canal de YouTube, Lavoura Política, razões pelas quais devemos preferir a vitória de Lula sobre este imbecil que ocupa a presidência da República. Entretanto, essa preferência não me impede de enxergar e expor as limitações da campanha que Lula vem protagonizando, a começar pela proposta inócua de “defesa da democracia”, um guarda-chuva cujo cabo é o apego ao passado que orienta o conservadorismo das alianças, das práticas e dos discursos de Lula — entendo que esse conservadorismo é contraproducente a ponto de nos ter impedido de vencer no primeiro turno, e terá tido papel central se viermos a ser derrotados.

A defesa da democracia é tão inócua, está tão descolada da realidade sofrida do eleitorado, que o próprio Lula, mesmo dispondo de tempo, e tendo Bolsonaro na sua frente, cara-a-cara no debate de ontem, não questionou o fanfarrão autoritário sobre o tema — o silêncio de Lula mostra que ele próprio, lá no fundo, não sente como séria essa história de “democracia ameaçada”. Não obstante, Lula tampouco pode orientar a luta contra Bolsonaro no caminho certo, isto é, mostrando que este imbecil é perigoso e nocivo não pelo que diz contra a “democracia”, mas pelo que fez e faz contra a maioria da sociedade valendo-se dos poderes do Estado que, infelizmente, herdou de tucanos e petistas.

Orientado para o passado, cercado por correligionários e apoiadores a repetir essa nada mobilizadora “defesa da democracia”, Lula tem sido incapaz de apresentar ao eleitor que ainda não está com ele já não digo um projeto, mas uma simples ideia que aponte para o futuro. Lula não cessa de repetir o discurso surrado em que faz elogios aos seus governos anteriores, como se ele próprio ainda não estivesse convencido do que diz. No debate de ontem, depois de um início promissor, em que obrigou Bolsonaro a encarar os crimes que cometeu na pandemia, Lula se perdeu.

A desorientação é real, pois Lula não dispõe de uma resposta cabal à roubalheira na Petrobrás. Afinal, uma coisa é ser inocente no aspecto estritamente pessoal, como ficou assentado nas decisões judiciais que lhe foram amplamente favoráveis; outra coisa é pretender inocência política, como se ele não pudesse ser responsabilizado politicamente pelas nomeações realizadas em troca de apoio congressual. Ora, a única maneira de enfrentar esse aspecto espinhoso da questão é assumir que os métodos precisam mudar e, principalmente, apresentar um projeto novo para essa empresa, que terá papel central em qualquer programa enérgico que o país for desenvolver. Só que não. Lula ficou repetindo desculpas que, esfarrapadas ou não, já estão surradas. Mesmo diante da oportunidade de discutir o papel propriamente estatal da Petrobrás, pondo seu adversário em apuros, Lula se limitou a, laconicamente, esbravejar que é contra sua privatização, sem oferecer nenhum argumento, que dirá projeto que tenha para a empresa. Foi um tremendo desrespeito com o eleitorado, especialmente com os indecisos.

Além desse erro no conteúdo propriamente temático do debate, Lula ainda cometeu erros formais que comprometeram seu desempenho: parecendo não ter compreendido as regras do certame e suas decorrências, não dirigiu questionamentos a Bolsonaro, fazendo silêncios (dando a impressão de que não havia o que dizer) e até colocando-se numa posição arrogante de quem não indaga ao rival. Pura tolice, pois o adversário não cessou de questioná-lo, poupando o próprio tempo e o obrigando a gastar o seu em altercações desconexas, sem fio que conduzisse cognitivamente o telespectador, chegando ao cúmulo de falar em “orgulho da revolução sandinista” para voltar a driblar um questionamento sobre essa figura monstruosa que é o ditador da Nicarágua, Daniel Ortega. A arrogância de Lula apareceu também no tom com que insistiu em gargantear “vou ganhar a eleição”, quando o debate é justamente uma oportunidade para o eleitor avaliar quem merece seu voto e, por meio dele, a vitória. Horrível.

Naturalmente, como já dito, não tenho elementos para avaliar o efeito dessa performance lamentável sobre a motivação do eleitor para o voto, embora suspeite que seja pequeno, seja pela audiência, seja porque Bolsonaro foi ainda pior. O problema é que o debate expôs de forma gritante, e no comportamento do próprio Lula, as limitações de que padece a campanha, reiteradas e amplificadas no modo como ele vem interagindo com o eleitorado nas oportunidades proporcionadas pelo dia-a-dia da disputa — é preocupante.

Fica o Registro:

– A campanha de Haddad, a quem também apoio, vai no mesmo rumo contraproducente, só que com resultados piores, pois ele já está atrás na disputa. Para que se tenha uma ideia da bobajada em curso, indico que assistam ao vídeo em que Haddad recusa Catchup na pizza, como se isso fosse um argumento contra o “forasteiro” Tarcísio. Além de despolitizada e horrivelmente xenófoba, essa linha de campanha, especialmente quando encarnada no próprio candidato, joga água no moinho do adversário, pois o que, em sua desorientação, a maioria do eleitorado paulista fez no primeiro turno foi justamente escolher “sangue novo” contra o que entende como candidatos do “sistema”, tanto para o Senado como para Governador — escolhas essas que indicam o caminho para que se compreenda como Bolsonaro acabou à frente de Lula em SP.

BOLSONARO RECAPTUROU O SENTIMENTO ANTISSISTEMA

Carlos Novaes, 08 de outubro de 2022

Tenho discutido neste blog e no canal do YouTube, Lavoura Política, que o sentimento antissistema é majoritário na sociedade brasileira. Esse sentimento nada mais é do que o modo como as pessoas manifestam a, dão expressão à, crise de legitimação do Estado de Direito AutoritárioEDA. O EDA tem dificuldades cada vez maiores para ser percebido como legítimo pela maioria da população, que dá corpo à sua revolta “sentindo” que o sistema não presta. Quer dizer, o conceito crise de legitimação é uma construção intelectual para apreender teoricamente o que se passa; o sentimento antissistema é o que se passa, é o modo como as pessoas traduzem na realidade a sua revolta.

O conceito tenta agarrar a realidade complexa; o sentimento expressa essa complexidade em si mesmo. O conceito vem depois do sentimento. O sentimento reúne todas as motivações particulares, pois, em última instância, cada pessoa está revoltada com o EDA por suas próprias razões; o conceito desconsidera o que é particular para entender o sentido político final do que se passa.

Toda eleição tem algum hipotético caminho real que conduz à vitória mas, como tal caminho é difícil de encontrar, raramente ele é trilhado por algum dos candidatos. Como em toda disputa acaba por haver um vencedor, quem erra menos acaba por vencer, ainda que ninguém tenha trilhado o caminho real. Em outras palavras, frequentemente o vencedor é aquele que, sem ter enxergado o caminho da vitória, acabou por fazer a campanha que menos se afastou dele.

Como vimos aqui, desde pelo menos 2018 está claro que o sentimento antissistema é majoritário no eleitorado brasileiro. Como a maioria de nós também prefere a democracia a qualquer outra forma de governo, não é difícil chegar à constatação propriamente intelectual de que o caminho de saída da crise de legitimação é a reunião do sentimento antissistema com a preferência pela democracia. Quer dizer, precisamos de uma força que nos proponha ir além do EDA, de uma força que construa esse caminho da única forma que ele pode ser construído: consolidar a democracia fazendo uso dos materiais que a maioria da sociedade oferece. Esses materiais são feitos de insatisfações e aspirações. As insatisfações da maioria de nós resultam da desigualdade, tomada em sentido amplo, o que resulta na aspiração pelo enfrentamento de duas urgências: a urgência social e a urgência por ordem, como já vimos aqui.

Se em 2022 o caminho para a vitória eleitoral é ir além do EDA, desde o início ficou claro que nenhum candidato (ou candidata) à presidência da República estava em condições de desempenhar o papel: ninguém concatenou a grande novidade de reunir a preferência pela democracia com a aversão ao “sistema”. Não tendo sido desafiado pela novidade para a qual estava pronto, o eleitorado foi tangido para a polarização óbvia, embora ela não traduza suas necessidades e expectativas.

Ainda que com graus diferentes de informação e clareza, o fato é que para a maioria dos eleitores a democracia brasileira não está ameaçada — essa não é a questão. Não obstante, Bolsonaro vocifera seus blefes contra a democracia para parecer antissistema; já Lula diz defender a democracia enquanto, na verdade, saiba ou não o alcance disso, defende o sistema (EDA). A polarização Lula-Bolsonaro levou a maioria da sociedade brasileira a cindir a sua preferência de base em duas metades contrapostas de modo improdutivo e desorientador: ou bem reafirma sua preferência pela democracia; ou bem dá vazão ao sentimento antissistema. O vencedor sairá das incertezas próprias de uma desorientação como essa.

Os números de Bolsonaro nas pesquisas realizadas no curso do primeiro turno indicavam alta rejeição (resultada do governo dele com o Centrão) e intenções de voto que, embora robustas, eram insuficientes para fazer maioria mesmo num hipotético segundo turno. Quer dizer, o campeão supostamente antissistema parecia ter perdido as condições que lhe haviam levado à vitória em 2018. Por outro lado, Lula logrou fazer da sua campanha uma “frente” pela democracia e, embora insistindo num passado questionável sem descortinar nenhum futuro, parecia caminhar ou para uma vitória já no primeiro turno, ou para um triunfo no segundo. Quer dizer, o injustiçado de 2018 parecia ter conseguido se transformar no campeão da democracia.

Infelizmente, porém, nas últimas horas do primeiro turno, longe da percepção das pesquisas, houve um realinhamento das sempre complexas motivações para o voto, pois o resultado eleitoral indica que o sentimento antissistema ganhou impulso e, apesar de tudo, Bolsonaro foi favorecido por ele — a maior evidência disso foi o inesperado primeiro lugar de Tarcísio em SP, afinal, ao votar nele os paulistas nada mais fizeram do que preferir o “forasteiro” ao “sistema” (nem PSDB, nem PT, imagem que os adversários ajudaram a construir com sua xenofobia despolitizada). Quer dizer, ainda antes do final da eleição Lula parece ter começado a pagar o preço de ter feito da sua campanha uma fotografia até literal do “sistema” — o que, além de favorecer o adversário diretamente, pode até ter desmotivado eleitores do próprio Lula a irem votar…

As primeiras pesquisas deste segundo turno indicam que, até aqui, essa tendência não se alterou, com Bolsonaro se apresentando perigosamente competitivo, no que está sendo ajudado pela autointitulada esquerda e pelos progressistas, que insistem em demonizá-lo como a besta-fera da democracia, enquanto o ajudam a difundir a falsa imagem de cavaleiro antissistema, que ele vem explorando ao antecipar nefastas alterações no STF (uma válvula central no funcionamento do coração do sistema, como a autointitulada esquerda sempre soube, mas resolveu “esquecer”…). Assumindo para si uma suposta “norma civilizada”, nossos bem pensantes destacam em Bolsonaro justamente o comportamento desviante, contribuindo para a ideia de que ele se contrapõe ao estabelecido e, ainda por cima, reproduzindo preconceitos (síndrome de Janones) que afastam gente séria e, assim, solapam a potência de um discurso comum. Vem dando errado…

Lula, por sua vez, voltado para o passado, enredado em compromissos com as facções do EDA — na esteira da aliança com Alckmin (metáfora do que deveria ter feito há trinta anos) –, traz em seu apoio, neste segundo turno, não menos tardiamente, os ex-formuladores e ex-implementadores do Plano Real. Tenham os méritos que tenham, o fato é que, nas atuais circunstâncias, esses apoios completam a foto do anacronismo que exploramos detalhadamente aqui, e o sistema aparece em todo o seu desenho contraproducente: FHC, Arida, Lara Rezende, Bacha, Malan e Armínio — SP já mostrou estar a repelir isso.

Tenham ou não consciência disso, os estrategistas das campanhas estão arrastando o eleitor que quer mudança a decidir entre, pelo lado de Lula, a volta a um passado controverso para, no máximo, tomar fôlego para mudanças posteriores (adiamento); ou, pelo lado de Bolsonaro, correr os riscos de insistir no imediatismo de uma reacionária via turbulenta de desarranjo da ordem que infelicita a maioria (“botar prá quebrar”) — por mimetizar o desespero do eleitor, o comportamento “desesperado” de Bolsonaro pode funcionar, especialmente quando contraposto à falta de uma visão de futuro no projeto de Lula.

COMO VENCER O SEGUNDO TURNO?

Carlos Novaes, 04 de outubro de 2022

Uma vitória de Bolsonaro seria um desastre para o Brasil e um dano severo para o planeta. Temos de fazer tudo ao nosso alcance para consagrar com uma vitória o bom desempenho de Lula até aqui. Para alcançar esse objetivo é necessário compreender o que se passou no primeiro turno. Nas linhas a seguir vou explorar a contraposição Lula-Bolsonaro salientando semelhanças de forma que revelam debilidades severas nos conteúdos muito diferentes que os dois representam, e contribuem para esclarecer o empate havido neste primeiro turno.

Entender o que aconteceu neste primeiro turno não é fácil – basta ver as “análises” que têm circulado com destaque: a marca central é a confusão. Mas, sejamos justos, a própria realidade embaralhou as cartas de um modo nada trivial. Vamos avançar com cuidado.

O sentimento antissistema (a manifestação epidérmica da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário-EDA) é majoritário na sociedade brasileira. Isso significa que qualquer dos candidatos receberá votos de eleitores mais ou menos afetados por ele, pois este sentimento sempre estará entre as motivações para o voto, em variações de intensidade provocadas pelo nível de informação política e, ainda, por grau de instrução, preferência ideológica, idade, poder aquisitivo, confissão religiosa, local de moradia, gênero etc.

Isso nos leva a uma constatação fundamental que, por si só, permite agarrar a ponta do novelo em que a maioria dos analistas se emaranhou: nesta eleição, ao contrário de todas as outras e ao contrário do que é senso comum, o candidato que busca a reeleição tem um discurso cuja base é a ideia de mudança; enquanto o discurso do candidato da oposição tem por base a ideia de conservação. Bolsonaro se diz acorrentado pelo “sistema” e quer mudar essa situação para poder fazer mais; Lula se apresenta como aquele que irá conservar a democracia ameaçada pela mudança que o oponente propõe, e quer vencer para repetir o já feito. Essa inversão colocou a situação na ofensiva e a oposição na defensiva, e isso é central para entendermos o que aconteceu.

A proposta de Bolsonaro é falsa, porque ele não é antissistema, mas o fato é que seu pseudo-arrojo arrastou quase metade do eleitorado, aí incluídos aqueles em quem o sentimento antissistema é motivação residual; a proposta de Lula é sincera e inócua, e levou quase metade do eleitorado a deixar de lado a motivação antissistema pelo comodismo conservador de esperar dele, Lula, o serviço de nos defender de Bolsonaro.

Uma vez que o lulopetismo revestiu sua adesão ao Estado de Direito Autoritário-EDA (“sistema”) como “defesa da democracia”, o bolsonarismo extraiu desse defensismo lulopetista sua versão mais recente para a coreografia do blefe contra o “sistema”. É que enquanto Lula defende o que não está em questão (a democracia); Bolsonaro faz a ameaça fantasiosa correspondente (golpe contra a democracia) – todo esse faz de conta está amparado em estelionatos ideológicos respectivos e contrapostos numa autêntica cismogênese política: o lulopetismo finge para si mesmo que ainda é de esquerda; o bolsonarismo finge para si mesmo que poderia acabar com a democracia. Todos os demais, ou seja, o eleitorado brasileiro que não faz parte dos núcleos duros respectivos, estamos nos fazendo figurantes dessa encenação, que não nos vai levar a lugar nenhum e, por isso mesmo, gera desorientação e ajudou a compor esse verdadeiro empate eleitoral no primeiro turno.

O empate ocorreu porque Bolsonaro teve uma votação acima do que se podia supor olhando para as pesquisas (embora isso não signifique que elas tenham errado, pois houve movimentação de última hora que elas não poderiam ter captado de véspera…). O fato é que franjas eleitorais dos eleitorados do Rio e de São Paulo voltaram a correr para Bolsonaro. Não é razoável supor que esses contingentes que fizeram a diferença correndo para Bolsonaro nas últimas horas antes do pleito desprezem a democracia, afinal, se fosse assim, eles teriam aderido antes ao fanfarrão golpista. Quer dizer, esses contingentes de adesão eleitoral tardia estavam em dúvida e é mais razoável supor o contrário: eles acabaram por aderir a Bolsonaro justamente porque estão convencidos de que ele não tem condições de derrubar a democracia e, assim, deram-lhe o voto por uma razão mais profunda: o sentimento antissistema por mudança, que Lula acabou por atrair contra si insistindo na mesmice de reunir todo mundo na foto, ao que se seguiu uma campanha pelo voto útil com o foco errado.

O foco da campanha pelo voto útil não se centrou nas qualidades de Lula, mas na aversão a Bolsonaro – um voto útil negativo, não positivo (ou seja: mais uma vez, uma atitude defensiva, com o agravante de trazer de volta à lembrança o malsucedido “ele não”). E pior: foi um voto útil que não exaltou as qualidades comuns entre Lula e Ciro, mas, pelo contrário, ao invés de buscar semelhanças, a campanha atacou Ciro como se ele fosse abjeto, exigindo do eleitor não apenas um redirecionamento “útil” do voto, mas que ele antes rejeitasse justamente a quem preferia! Quer dizer, desprezou-se o significado profundo do vocábulo “útil” aqui, que significa “útil à causa comum. Tudo se passou como se Ciro tivesse a causa contrária… Resultado: assim afrontado, o eleitor preferiu fazer voto útil em Bolsonaro, no que também foi ajudado pelas lamentáveis atitudes de Ciro (que não deveriam ter sido exploradas por quem pedia “voto útil”).

Essa cegueira ditada pela arrogância da autointitulada esquerda vem de uma outra, mais ampla, a qual, infelizmente, põe, na forma (veja bem: na forma, não no conteúdo) os apoiadores de Lula muito próximos dos de Bolsonaro. Os apoiadores de Lula chamam de reacionários, conservadores e/ou fascistas a todos os apoiadores de Bolsonaro; enquanto os apoiadores de Bolsonaro chamam de comunistas a todos os apoiadores de Lula. Ambos os lados enxergam como respectivamente impróprias essas simplificações a respeito de si mesmos, mas nenhum dos dois está disposto a explorar os matizes do campo adversário. Por que estamos dispostos a reconhecer que em apoio a Lula se uniram forças plurais, com interesses não apenas diferentes entre si, mas até claramente antagônicos; mas não estamos dispostos a examinar que o apoio a Bolsonaro também reúne forças plurais, que podem até ter interesses não menos antagônicos entre si? Essa cegueira compõe uma polarização desinformada e despolitizante, que cria enormes dificuldades para o necessário trânsito eleitoral – tal como deixa clara a movimentação de “ciristas” em favor de Bolsonaro na última hora.

Para haver trânsito eleitoral é necessário suavizar aspectos mais duros da própria proposta, mas não a ponto de descaracterizá-la para a própria base fiel, que só é fiel justamente na medida em que ainda se vê contemplada nas preferências que julga inegociáveis. Ora, tanto Lula como Bolsonaro fizeram esses movimentos de abertura, com a diferença de que Lula está prisioneiro do defensismo, enquanto Bolsonaro explora a contenção do seu arrojo. Ambos estão a propor adiamentos às suas respectivas bases-dura. As escolhas de Lula embrulham mais um adiamento com defensismo; as atitudes de Bolsonaro mascaram de arrojo contido o adiamento implicado.

A base mais dura de Lula vem aceitado adiamentos desde pelo menos 2002, com a Carta aos Brasileiros, e tem aceitado seu líder promover reiterados rebaixamentos em seu horizonte programático em nome de uma política de alianças cada vez mais ampla, a tudo justificando com base no que chamam de realismo do “jogo democrático”. O problema é que essa atitude defensiva acabou por contaminar (até com corrupção) a ação política como tal. Resultado: em 2022 não há nem sombra da motivação havida em 2002, e não deixa de ser revelador que a música da campanha seja uma versão reformada (e tola) da música primordial, de quando tudo começou, em 1989, época em que, já em plena democracia, e sob o EDA, ser petista era ser, sobretudo, antissistema… justamente o que veio sendo adiado a tal ponto que nossa autointitulada esquerda se fez defensora intransigente do status quo, deixando o sentimento antissistema para o primeiro aventureiro que aparecesse.

A base mais dura de Bolsonaro, por sua vez, acaba de deixar claro que também aceita adiamentos, afinal, contrariamente ao que supus, o malogro do golpismo no mais recente 7 de Setembro não levou ao desengajamento que aventei, até pelo contrário: Bolsonaro cresceu. Seus eleitores foram às urnas em massa e, dando um passo de obediência para além do 7 de Setembro do ano passado, o fizeram na mais perfeita ordem, mostrando-se todos engajados na coreografia do blefe, que consiste em meter medo aos demais, mas buscando a vitória eleitoral dentro da ordem democrática que o chefe não tem força para derrubar (tanto que ele não disse uma palavra contra a idoneidade das urnas neste primeiro turno…)

Ao contrário do que muitos dizem por aí, o segundo turno não é outra eleição. Nem se trata de “outro jogo”, nem a campanha “se inicia do zero”. Pelo contrário, a memória do que acaba de se passar é determinante: as circunstâncias políticas e econômicas são exatamente as mesmas; o repertório do que está em jogo é o mesmo; os personagens secundários são os mesmos; o eleitorado é exatamente o mesmo (ainda que quem se absteve no primeiro turno possa votar no segundo, o que configuraria uma mudança de preferência como qualquer outra), a discussão dos temas é continuação da mesma, e, sobretudo, os candidatos que se mantém na disputa não poderão aparecer transformados em outro neste segundo turno, ainda que possam incluir alterações que não se mostrem contraditórias com o que fizeram até aqui. Em suma, trata-se, mesmo, de um segundo turno na mesma eleição.

É por isso que me dei ao trabalho de escrever este artigo: a campanha de Lula precisa entender suas debilidades e alterar aquelas que podem ser alteradas sem descaracterizar a candidatura. Em minha opinião, a chave está no caráter defensivo do discurso do candidato: ele repete aborrecidamente, até com os mesmos exemplos e números, que quer defender a democracia, defender seus governos anteriores, defender Dilma, defender sua inocência pessoal, defender os pobres e famintos, defender a Amazônia, defender as estatais, defender a política profissional… Falta a Lula um projeto que vá além de si mesmo, que vá além das trincheiras do status quo, que contemple a vontade de mudança que motiva a maioria da sociedade brasileira. Em suma, Lula tem se apresentar neste segundo turno como que descortinando um país possível, que não está, nem esteve aí: nem o passado desmotivador que ele próprio tem defendido; nem o horror que Bolsonaro significa.

Fica o Registro:

– Como preparação para debates com Bolsonaro, sugiro que Lula assista ao último debate entre Covas e Maluf no segundo turno da disputa para o governo de SP, em 1998: tal como um Padre de Festa Junina, Maluf foi para cima de Covas com ofensas e insultos e o tucano, com toda calma, sorrindo com um ar maroto, respondeu: “eu sei o que o senhor veio fazer aqui hoje, veio me arrastar para a sua lama, mas eu não vou”, e olhando para a câmera, dirigiu-se ao eleitor dizendo o que ia fazer para melhorar a vida dele.

– O apoio maciço dos “globais”, “ex-globais”, e dos artistas em geral ao “voto útil” em Lula pode ter atiçado alinhamento com Bolsonaro — as pessoas estão fartas de tutela, e o sentimento antissistema, para alguns, acaba englobando tudo que é “padrão” (tipo padrão Globo…). Há, de fato, uma certa arrogância na forma com que os artistas manifestam publicamente as suas preferências. Ademais, há anos realizei pesquisas profissionais sobre teledramaturgia e constatei que os telespectadores já não se identificavam com personagens que lhes eram apresentados como modelos a serem imitados, preferindo se verem representados tal como eram, isto é, constatei a decadência do esquema de representação aspiracional, substituído pela dinâmica do reconhecimento — uma recusa a se submeter a padrões hierárquicos. Esses apoios de artistas, e a importância dada ao apoio deles, têm algo de antipaticamente hierárquico.

VOTEMOS EM LULA; MAS, PELO MENOS, TENDO CLARO POR QUÊ

Carlos Novaes, 29 de setembro de 2022

Quem acompanha este blog e/ou assistiu aos vídeos da recente incursão que fiz no YouTube, no canal Lavoura Política, está familiarizado com minha teoria sobre a natureza intrinsecamente autoritária do nosso Estado de Direito, perspectiva que venho desenvolvendo há tempos, e cujo desenho mais geral pode ser agarrado com a leitura de duas minisséries: Um domingo para não esquecer, na qual exploro, a quente, antecedentes e desdobramentos do golpe contra Dilma; e Crise de legitimação e eleição presidencial, minissérie em que, em 2018, a poucos dias da eleição, detalhei meus motivos para votar em Haddad, motivos aqueles que evoluíram junto com a maioria da sociedade brasileira e, agora, em 2022, também podem servir, com os ajustes devidos, como fundamentação para o voto em Lula. De modo que não seria impertinente se o leitor fosse aos hiperlinks das linhas acima.

Considerando, porém, que o Brasil de 2022 não é o Brasil de 2018, que o mito Bolsonaro se espatifou e que Lula não é Haddad, são necessárias atualizações e alguns acréscimos para que possamos tentar nos aproximar de uma compreensão do que se passa e do que nos aguarda.

De 2018 para 2022 a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário só fez aumentar. E não é por outra razão que Bolsonaro está sendo derrotado, afinal, depois das falsas esperanças que suscitara ao sequestrar, em 2018, o auspicioso sentimento antissistema, a atuação governamental desse vigarista tornou as coisas ainda piores para a maioria da sociedade brasileira em todas as áreas em que o Estado tem algum papel a desempenhar.

Essa situação de piora acentuada da situação geral põe problemas para as formulações teóricas que tentaram explica-la recorrendo a três ideias: a teoria de que o golpe contra democracias atuais se dá no segundo mandato, sendo o primeiro de preparação (um novo “etapismo”); a avaliação de que Bolsonaro pode ser tudo, menos imbecil (chegaram a atribuir-lhe talentos de grande estrategista); e a análise de que Bolsonaro jamais teve interesse em governar, e astutamente promoveu o caos como maneira de criar condições para dar um golpe.

Não é preciso pensar muito para perceber que Bolsonaro não pode ser um gênio que planejou cuidadosamente dar um golpe no segundo mandato se, ao mesmo tempo, se constata que ele abriu mão de controlar a própria governança de primeiro mandato, justamente o mandato de cujo sucesso dependeria alcançar a reeleição, que lhe permitiria dar o tão inteligentemente planejado golpe… A coisa toda não bate, a tal ponto que seu principal teórico, o prof. Marcos Nobre (presidente do CEBRAP e professor de filosofia na Unicamp), passou, recentemente, a um adiamento: deu para falar em sofisticados cálculos que Bolsonaro estaria a fazer para o golpe que planeja dar depois da vitória presidencial de 2026, quando terá herdado os resultados do insucesso de Lula em debelar os problemas que ele mesmo, o genial Bolsonaro, teria propositadamente criado…

Estou entre aqueles que têm uma explicação mais simples: Bolsonaro é um imbecil que chegou à presidência da República numa onda de sentimento antissistema (crise de legitimação do Estado), circunstância que não compreendeu e, por isso mesmo, e para nossa sorte, perdeu “oportunidades” (como a pandemia) e, afinal, acabou por sucumbir às contradições da inviabilidade do seu sonho. Passou quatro anos dando blefes autoritários para contentar a massa que o tinha como marionete, enquanto, ao mesmo tempo, se enredava em concessões feitas às cegas a uma parte das facções estatais (do “sistema”), que viu nele um meio fácil de reunir poder para fazer dinheiro enquanto ocupava o polo dinâmico do velho exercício faccioso dos poderes institucionais.

De modo que o golpismo de Bolsonaro veio sendo um mal-entendido. Sempre foi evidente que Bolsonaro gostaria de se tornar um ditador, até porque ele próprio jamais buscou esconder isso. O problema é que para haver um ditador tem de haver a derrubada da democracia. Como a maioria da sociedade brasileira prefere a democracia a qualquer outro modelo, e como as facções estatais acomodadas no Estado de Direito Autoritário-EDA também não querem um ditador sobre elas, o sonho do besta ficou sem lastro, o que condenou Bolsonaro a fanfarronices cuja forma final sempre foi o blefe.

Por isso mesmo, assim como os que preferem a democracia são maioria e sabem disso, também tem sido da maioria a percepção de que o que Bolsonaro diz não merece confiança. Ou seja, a maioria sempre soube que as ameaças de Bolsonaro à democracia não deviam ser levadas a sério. Logo, a maioria que hoje se recusa a votar nele o faz não pelo que ele disse contra a democracia, mas pelo que ele fez no seu péssimo primeiro mandato.

De fato, Bolsonaro esbravejou contra a democracia, mas nunca teve força para atingi-la: não pôde cassar nenhum mandato (embora tenha vociferado contra o Legislativo); não pôde colocar nenhum partido na clandestinidade, nem fechar nenhum sindicato (embora tenha grunhido contra os “comunistas”); não pôde censurar matérias jornalísticas, nem fechar meios de imprensa (embora tenha insultado jornalistas); não pôde interferir arbitrariamente no Judiciário (embora tenha caluniado seus membros); não pôde reprimir, nem, muito menos, proibir, manifestações da oposição (embora tenha ido às ruas, onde ladrou à vontade); não pôde corromper o sistema de voto livre e direto (embora tenha mentido contra as urnas eletrônicas e pressionado, sem qualquer chance, para alterá-las – o que restou aos milicos dele foi a migalha de consolação que Moraes lhes atirou no apagar das luzes da desmoralização deles). Enfim, o que Bolsonaro fez de ruim não foi contra a democracia, que continua igualzinha ao que era antes dele.

Se a maioria de nós rejeita Bolsonaro e ele nada pôde contra a democracia, porque nós o rejeitamos?

Resposta: porque ele empregou os poderes do EDA para fazer um governo ruinoso para a maioria de nós e criminoso contra minorias e temas que nos são caros.

Bolsonaro contra a maioria de nós

A maioria de nós foi prejudicada porque ele não corrigiu o salário mínimo acima da inflação; não fez a atualização do imposto de renda; cancelou o Minha Casa Minha Vida e nada colocou no lugar; desmantelou o perene Bolsa Família e criou um cenário de tal incerteza que mesmo os muito pobres, quando passaram a receber os tais 600 (que todos sabem que o besta concedeu a contragosto e por tempo limitado) não viram razão para deixar de confiar em Lula, que pode ter muitos defeitos, mas não improvisa. Bolsonaro ainda deu condução desastrosa à política energética, causando perdas e incertezas tremendas para a maioria (gás, gasolina, diesel, eletricidade); nada fez para melhorar as condições básicas para o saneamento e a logística, limitando-se, quando muito, a concluir obras iniciadas em governos anteriores.

Nas relações propriamente institucionais, Bolsonaro se rendeu ao jogo de facções do “sistema” (EDA) que dissera combater e, para piorar, acossado pela base fanática, não pôde fazê-lo da maneira agregadora que notabilizou Lula e marcou Temer, e acabou tendo de hostilizar o Judiciário e acabar por fazer composições no Legislativo que o levaram a ir além da corrupção dos seus antecessores para acabar obtendo menos, chegando até ao deletério “orçamento secreto”.

No plano das relações internacionais, depois de ter feito a campanha de 2018 pregando um tosco pragmatismo comercial em lugar do que acusava serem “alinhamentos ideológicos” da “esquerda”, Bolsonaro atropelou toda a respeitada tradição brasileira na condução de nossos interesses no cenário internacional e comprometeu o Brasil num emaranhado internacional de, aí sim, preferência ideológica pela ultradireita, brigando com parceiros comerciais importantes, se alinhando com autocratas e descendo à baixeza do insulto personalizado contra autoridades estrangeiras.

Dando vazão à sua preferência pela ignorância, Bolsonaro garroteou a Universidade e a Ciência&Tecnologia, empurrando o país para trás nesses requisitos básicos para o que quer que se pense sobre desenvolvimento. Para coroar tudo isso, ainda agiu de forma inepta e desumana no combate à pandemia, se tornando responsável por mortes que poderiam ter sido evitadas. Enfatizemos: Bolsonaro fez tudo isso sem tocar nas franquias democráticas, apenas usando impunemente os poderes “de Direito” do Estado que herdou dos antecessores.

Diante desse rol de macro evidências, que ficaram tão claras para todos nós, seria de esperar que a “oposição” ou, ao menos a autointitulada esquerda, enxergasse nesse cenário uma oportunidade para, no mínimo, apresentar, por exemplo, uma Reforma Tributária, uma ampla e detalhada Política de Renda, um Programa Habitacional, um Projeto de Infraestrutura, uma Política Energética e uma notável revisão do SUS e da Educação Básica, cujos profissionais tanto sofreram (e muito aprenderam) com a pandemia, iniciativas em tudo dependentes de Ciência e Tecnologia. Só que não.

Bolsonaro contra minorias e temas que nos são caros

Além do que se viu no subitem acima, não podemos fugir de que o Estado de Direito Autoritário-EDA também legou a Bolsonaro os poderes “de Direito” que lhe permitiram provocar (ou se omitir ante) não apenas a morte dos pacientes da Covid, mas também promover uma política armamentista que incitou facínoras tanto para o assassinato de indígenas, que perderam a vida em esbulhos fundiários promovidos pelo “agro” e na luta contra as pestilências da mineração; quanto para a execução de lideranças urbanas e rurais por braços paramilitares tolerados (quando não fornidos) pelo EDA.

Bolsonaro ainda esteve coberto pelo “de Direito” quando incentivou com homenagens e promessas de proteção a conduta violenta da polícia, especialmente nas arbitrariedades e matanças contra comunidades pobres; ou quando assistiu ao extermínio da fauna e da flora pelo fogo ateado por criminosos, depois de ter desmantelado órgãos de fiscalização; ou ainda quando intensificou o desmatamento e o envenenamento das águas pelo uso de agrotóxicos que autorizou.

Ademais, sem alterar qualquer ordenamento “de Direito”, sem nenhuma lei nova, apenas manejando valores monstruosos desde há muito disponíveis à negociação, nutridos em confissões religiosas sempre daninhas, Bolsonaro insuflou a perseguição de minorias, a ponto de provocar assassinatos em razão disso. Mas, veja-se bem: nada disso sendo propriamente uma novidade, ou coisa incompatível com nosso suposto Estado democrático de direito — embora a coisa toda tenha piorado desde que este facínora chegou à presidência da República.

A “defesa da democracia”

Não obstante tudo o que se acaba de sumariar, aproveitando-se da inércia da maioria da sociedade, nutrindo-se em teorias oportunas, e contando com a conivência interessada da militância de muitos “movimentos sociais” (especialmente os controlados pela nossa autointitulada esquerda), as facções estatais conseguiram, graças ao espantalho Bolsonaro, proteger o EDA da sua ilegitimidade ao dirigirem apenas contra o besta o descontentamento da maioria, reduzindo a ação danosa dele a uma “ameaça à democracia”, simplificação que se ajustou sem esforço à tese do frentismo, tese em cuja formulação, não por acaso, teve papel proeminente o mesmo prof. Marcos Nobre que indicara a genialidade de Bolsonaro (afinal, para combater um talento desses, só uma Frente).

O fato de o frentismo ter resultado não em uma Frente, mas na pura e simples adesão eleitoral a Lula, celebrado como um “salvador da pátria”, não abala seus defensores precisamente porque essa história toda esteve sempre marcada pela despolitização, tanto que o próprio prof. Nobre já havia improvisado ajustes para fazer a coincidência entre frentismo e eleição em dois turnos, como critiquei aqui. Naturalmente, se Lula, como tudo indica, vencer no primeiro turno, teremos novos ajustes nessa melíflua teoria – provavelmente se dirá que a Frente foi um sucesso ainda maior do que o almejado, conclusão que não será abalada nem pela ausência de programa na tal Frente; nem pelo fato de que, então, as “nossas instituições democráticas” não estariam tão “colapsadas” como diz estarem o mesmo prof. Nobre.

O fato é que a crescente adesão a Lula se unificou na desnecessária palavra de ordem “quero minha democracia de volta”. Essa fórmula, que permite querer “de volta” — no caso, a “democracia” — algo que jamais foi perdido, busca encobrir (consciente ou inconscientemente) o comodismo de lavar as mãos diante do que realmente interessa: a trabalheira de dizer o que fazer com a democracia que já temos e lutar para alcançar esses objetivos, luta cuja base é o combate à desigualdade e cujo objetivo final é um Estado de Direito Democrático, que não poderá ser alcançado sem a explicitação de divergências que acabem por definir perdedores e ganhadores. Em outras palavras, já deveria estar claro que não haverá consolidação democrática com uma desigualdade como esta que o Estado de Direito Autoritário garante e nutre.

O porquê da “solução” Lula

Embora vá votar em Lula, ainda que sob crítica, e veja como fundamental uma vitória dele já no primeiro turno, entendo, como já disse aqui, que a força de Lula é a forma atual da nossa debilidade para construir uma alternativa política transformadora. Entretanto, como foi a essa ferramenta que a sociedade brasileira recorreu para se livrar de Bolsonaro, somos desafiados a entender por quê Lula acabou por desempenhar esse papel.

Em vídeo recente, retomei a ideia de que Lula foi trazido de volta porque as facções adversárias se deram conta de que o Estado de Direito Autoritário não pode funcionar se a massa popular não estiver minimamente contemplada (especialmente no plano propriamente simbólico-aspiracional — as pessoas precisam acreditar que o Estado as leva em conta).

A enredo é simples: em sua cegueira ante o que se passava, incapazes de reconhecer que estávamos (como estamos) em meio a uma crise de legitimação do EDA, os reacionários e conservadores que viviam as turbulências do período 2013-2017 imaginaram que poderiam aproveitar a “confusão” para descartarem Lula e o lulopetismo, atribuindo apenas a eles mazelas que vêm de longe. Esse erro monumental ajudou a abrir a brecha para Bolsonaro, que se apresentou como solução para a crise do EDA pela via de acabar com ele regredindo a um Estado Ditatorial (de fato, como criatura híbrida entre a ditadura de 64 e um almejado Estado de Direito Democrático, o EDA só poderá superar seu hibridismo com uma de duas alternativas: ou regredindo à formação anterior, de onde saiu; ou avançando na direção dos sonhos que viraram esse pesadelo pela traição de PSDB e PT). Voltemos.

Diante da ameaça da presidência Bolsonaro (vinda de cima, do Estado, querendo ditadura), e da perda de aderência popular (desde baixo, da maioria da sociedade, cujo sentimento antissistema quer democracia), as principais facções estatais aderidas ao EDA finalmente se deram conta de que sem Lula e o lulopetismo não teriam forças para contornar a crise de legitimação, e poderiam ficar sem nada. Ao mesmo tempo, como nossa autointitulada esquerda acomodou-se ao EDA e nada preserva do ímpeto transformador que caracterizou a história da esquerda mundial, ela está desapetrechada para ver na situação uma oportunidade emancipatória e, assim, não foi difícil abrir caminho para uma “união nacional em defesa da nossa democracia”…

Foi assim que eles redesenharam os alinhamentos facciosos a ponto de alcançar que os juízes que soltaram e reabilitaram Lula fossem os mesmos que haviam aberto caminho para a prisão arbitrária dele — para enxergar isso basta olhar para a “evolução” da relação propriamente estatal entre Lula e Gilmar Mendes, coroada com a aliança socio-eleitoral Lula-Alckmin, tudo no bojo do jogo das facções que inerva o EDA e camuflado no princípio lulinha-paz-e-amor de “não olhar para traz”.

Lula pôde ocupar esse lugar central porque ele próprio é agente e persona de uma transmutação: de líder popular investido de uma representação da maioria da sociedade, ele passou a expressar a capilaridade vicária do Estado brasileiro. A passagem se deu em 2003, com a chegada à presidência da República depois da Carta aos Brasileiros. Não sendo o caso sobrecarregar o leitor com a recuperação de toda a história, vou indicar os vetores principais nesses parágrafos finais.

Saído da produção e do comércio de mercadorias ancorados no tráfico de pessoas sequestradas na África e na escravidão delas, o Estado brasileiro exerce sobre a sociedade uma atração de buraco negro: todas as camadas sociais querem se abrigar nele, seja como mandantes, seja como funcionários, seja como protegidos. Para sustentar (sob o voto direto e livre da população) a desigualdade de renda e riqueza que essa evolução histórica determinou, o Estado brasileiro foi obrigado a se abrir e a se capilarizar.

Nas décadas mais recentes, essa abertura veio pelas lutas democráticas da nossa transição truncada, a capilarização veio pelos desdobramentos daquelas lutas, que esbarraram na resistência das facções estatais, num embate que desenhou o caráter crescentemente insustentável da situação e levou a grandes movimentações, sendo de isolar aqui duas das mais formidáveis: pelo lado da sociedade, o surgimento do PT; pelo lado do Estado, o Plano Real. Mas, como dito há muitos anos neste blog:

Olhadas com grandeza, as duas operações mais notáveis das últimas décadas foram justamente a construção do PT e a implementação do plano Real. Entretanto, a mais genuína força política emancipatória construída pela sociedade brasileira, o PT, se posicionou contra o projeto governamental de maior potencial emancipatório já implementado entre nós, o plano Real. O PT foi emancipatório porque, para dar certo, reuniu contra a desigualdade, de forma inteligente, espontânea e democrática, o maior arco político de forças populares e médias já construído organicamente no Brasil; o plano Real abrigou enorme potencial emancipatório porque, para ter êxito, previu e contou com a adesão inteligente, espontânea e democrática da população, no maior esforço popular já realizado em prol de uma tarefa governamental no Brasil. No PT cada um falava três minutos; no Real cada um conferia a tablita da URV.

Foi assim que Lula e o PT se desorientaram ante o Real duas vezes: a primeira quando recusaram liminarmente o plano; a segunda, com a Carta aos Brasileiros, quando aderiram a ele quando já não passava de um farrapo, domesticado que fora pela máxima de que “os ricos não podem perder”. Aí Lula deixou de ser um vetor vindo da vivacidade da sociedade, para transformá-la; e passou a ser expressão da capilaridade compensatória do Estado de Direito Autoritário-EDA, voltada a aquietar a maioria da sociedade enquanto favorece as facções estatais.

Na era Lula o EDA ramificou sua presença e estendeu seus capilares para tecidos antes não irrigados, o que permitiu mais uma vez adiar o enfrentamento da desigualdade e aumentou o embuste de que o Estado atende a todos os brasileiros: os ricos continuaram a fazer do Estado instrumento dos seus interesses (o dinheiro grosso); as classes médias acorreram aos concursos públicos (salários, aposentadorias e privilégios) e aos incentivos fiscais; e os pobres tiveram estímulo e amparo (disputaram editais para missangas ou auxílios diretos). Os governos Dilma deixaram claro que a coisa era insustentável, vieram Temer e Bolsonaro e, então, as facções majoritárias trouxeram Lula de volta para dar mais uma volta nesse parafuso espanado.

Infelizmente, a maioria de nós ainda não enxergou o cerne dessa situação e, assim, incapaz de construir uma “terceira via”, está mais uma vez se deixando levar na direção errada, rejubilando-se no conforto de, com base nas mesmas generalidades de sempre, fazer nova delegação a quem não tem condições de resolver os problemas, pois Lula tornou-se filtro estatal do muito que significou para a maioria da sociedade. Virão tempos difíceis, mas muito menos ruins do que seriam se ficássemos sob Bolsonaro.

VOTO “PELA DEMOCRACIA” E ANISTIA A BOLSONARO

Carlos Novaes, 21 de setembro de 2022

Com acréscimo em Fica o Registro para comentar a importante nota lançada por Fernando Henrique Cardoso, em 22/09.

A conjuntura política ficou frenética e, por isso, há muitas linhas abertas requerendo análise. Todo o esforço cognitivo deve, portanto, se concentrar naquilo que pode convergir para uma compreensão mais completa do que se passa, especialmente quando cogitamos sobre os obstáculos e as tarefas para a construção de um Estado de Direito Democrático.

A campanha pelo chamado “voto útil” ganhou as redes e se alastra em velocidade e intensidade que tornam praticamente certa a vitória de Lula já no primeiro turno. Como dito, há velocidade e intensidade, mas não há diversidade, pois o texto é o mesmo para todos: a assim chamada “defesa da democracia”.

O frentismo levou à adesão a Lula com base na defesa da democracia e, agora, cada um dos novos apoiadores faz o mesmo. Ou seja, não há sequer menção a qualquer conteúdo efetivamente programático. Um apoio desses é, sim, um cheque em branco para Lula, pois a vitória dele já significará para essas pessoas a realização de uma meta: defender a democracia. Ou seja, a maioria de nós está se empanturrando por antecipação: encomenda a Lula a mera remoção desse bode fétido que a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário-EDA pôs na sala.

Ora, já vimos detalhadamente aqui e em outros muitos posts deste blog que a democracia não está ameaçada por Bolsonaro, que este imbecil tem sido nocivo não pelo que diz contra a democracia, mas pelo que faz contra a maioria de nós utilizando os poderes do EDA. Quer dizer, deveríamos estar apoiando Lula com base em um programa sobre o que fazer com a democracia que já temos; ou seja, deveríamos estar discutindo o que fazer com a democracia que a maioria de nós garantiu contra as fantasias golpistas de Bolsonaro.

Ao não fazermos nenhuma exigência para votar em Lula, estamos dando um cheque em branco para que ele se faça prisioneiro das suas próprias limitações, sendo a maior delas a ilusão de poder restaurar circunstâncias havidas em seus mandatos anteriores, coisa que, na verdade, é impossível, quando mais não fosse porque, dessa vez, Lula está ainda mais cercado de interesses contrários ao que realmente interessa: enfrentar a desigualdade na perspectiva de construir um Estado de Direito Democrático.

Assistindo ao que vimos aqui, bem como lendo posts mais antigos deste blog, você pode entender que a aliança “frentista” entre Lula e Alckmin não passa de encenação anacrônica para uma necessidade antiga, mas que caducou: lá atrás, em 1993, Lula e Jereissati apontaram para a possibilidade de uma aliança PT-PSDB que, então, era uma demanda não explícita, mas real, da maioria da sociedade brasileira. Trinta anos depois, essa aliança Lula-Alckmin não passa de metáfora perversa daquela necessidade: é metáfora porque versão simbólica (anacrônica) de algo que já foi real; e é perversa porque em lugar de atender a uma demanda da sociedade (que há trinta anos foi real), essa aliança atende agora uma demanda das facções estatais. E isso justo na hora em que a maioria da sociedade repudia as facções dos profissionais da política, que manejam o Estado de Direito Autoritário que a infelicita.

Lula-Jereissati teriam conduzido o Brasil a uma transformação, derrotando as forças residuais da ditadura (mas eles preferiram a moleza de ficar um contra o outro numa polarização fajuta, para a qual se apoiaram em pedaços do que deveria ser derrotado); Lula-Alckmin tentam conduzir o país a mais uma acomodação com os interesses das facções estatais que sobreviveram à ditadura e vicejaram nesse Estado de Direito Autoritário-EDA a que nos conduziu a traição de PSDB e PT.

Esse EDA está em crise de legitimação, como já expliquei aqui e em outros posts deste blog. As facções empenhadas na vitória de Lula têm no apoio a ele a sua esperança de contornar essa crise de legitimação, tudo sob a camuflagem de defender a democracia. Eleger Lula é, para eles, a possibilidade de relançar o EDA, estancando a crise que o sentimento antissistema deixa ver, ainda que sem nitidez. O ápice dessa acomodação viria com uma anistia a Bolsonaro e seus asseclas.

Veja bem, leitor, assim como lá atrás, o Estado de Direito Autoritário foi fundado com base na concessão de uma anistia para torturadores, o que ficou sendo o símbolo máximo da capitulação da luta por um Estado de Direito Democrático; agora, uma anistia a Bolsonaro (que fez do país uma câmara de tortura) aparece como um lance faccioso coerente e nada surpreendente, quando entendemos que eles buscam salvar o mesmo EDA — sendo especialmente coerente que essa ideia tenha vindo a público na boca de Temer, um político do p-MDB desde os tempos da ditadura que serviu à polarização fajuta entre PSDB e PT e, ademais, é uma espécie de dublê de Alckmin, como há mais de vinte anos mostrei aqui, ao vivo, diante do próprio Temer.

Insistir na ideia vazia de que a vitória de Lula salva a democracia abre caminho para essa anistia inaceitável. Já vejo os argumentos deles: “para salvar, mesmo, a democracia, temos de pacificar o país; para pacificar o país temos de conter o (suposto) comportamento antissistema de Bolsonaro (no qual há quem veja ímpeto revolucionário – a que ponto chegamos!!); para conter a ‘besta antissistema’, nada melhor do que anistiar a ele e à sua família”…

Tudo no parágrafo anterior é falso, leitor. Repitamos: a democracia não está ameaçada, justamente porque o besta não tem força para ameaçá-la, como vimos detalhadamente neste vídeo aqui; não temos de pacificar o país, pelo contrário, temos de ser capazes de divergir acerca do que fazer com a democracia que já temos e garantimos, como vimos nesse vídeo aqui; Bolsonaro não é antissistema, ele é cria e atua dentro do velho normal e não passa de um blefador; anistiar Bolsonaro para contê-lo, além de ser um ataque à democracia, é um gesto vazio, pois Bolsonaro não vai ter a menor condição de ameaçar o que quer que seja depois de derrotado — ao contrário do que dizem 11 entre 10 analistas da mídia convencional, sustento que Bolsonaro vai desaparecer no curso da longa noite em que ele entrará com a derrota (com ou sem anistia).

Em poucas palavras: votemos em Lula, mas tendo claro que votar nele “em defesa da democracia” já é um primeiro passo para reforçar a condição de Lula como mediador de facções estatais e, com isso, encaminhar a anistia para Bolsonaro — ambas são ações de Estado contra os interesses da maioria da sociedade.

Fica o Registro:

– Está em curso a “cristianização” da candidatura de Ciro. Para quem acompanha este blog, essa situação foi antevista, de maneira fundamentada, há mais de um ano, como se pode ler aqui.

– Começa a ficar clara a deserção dos bolsonaristas das redes sociais. Bem, essa reação foi antecipada aqui ainda antes do mais recente 7 de setembro desmoralizante para o besta. Como vimos, o enfraquecimento nas redes do bolsonarismo raiz pode levar a uma deserção no voto dos eleitores menos convictos de Bolsonaro. Não ficarei surpreso se Bolsonaro chegar ao final do primeiro turno abaixo dos 30% de votos.

22/09:

– Fernando Henrique Cardoso lançou uma nota sobre as eleições que diz assim:

Peço aos eleitores que votem no dia 2 de outubro em quem tem compromisso com o combate à pobreza e à desigualdade, defende direitos iguais para todos independentemente da raça, gênero e orientação sexual, se orgulha da diversidade cultural da nação brasileira, valoriza a educação e a ciência e está empenhado na preservação de nosso patrimônio ambiental, no fortalecimento das instituições que asseguram nossas liberdades e no restabelecimento do papel histórico do Brasil no cenário internacional.

Segundo o UOL/Folha e muitos outros, “FHC defende voto pró-democracia”. Ora, foi justamente isso que ele não fez!! Leia e julgue por si mesmo: sequer há a palavra democracia na nota. Depois de enfrentar problemas substantivos, cuja resolução nos falta, como a desigualdade, FHC defendeu o “fortalecimento das instituições que asseguram nossas liberdades”, ou seja, fortalecer (não defender) as franquias democráticas de que já dispomos. Enfim, além de manifestar indiretamente repúdio a Bolsonaro, FHC deixou claro que está olhando lá adiante e, seja lá por quais caminhos, também desprezou a pauta boboca que orienta o frentismo – por isso mesmo, não nomeou Lula. Gostei.

BARATA-VOA E DESESPERO

Carlos Novaes, 14 de setembro de 2022

Com inclusão, em 15/09, de hiperlink para artigo sobre Vera Magalhães

O episódio com a jornalista Vera Magalhães ao fim do debate entre os candidatos a governador no Estado de São Paulo serve como uma exibição concentrada do barata-voa que se instala no bolsonarismo: 1. O chefe destratou Magalhães no debate presidencial; 2. O fanático discípulo bolsonarista ataca a mesma jornalista no debate para governador (mas o faz fora do tempo, pois o chefe já está com outra tática); 3. O candidato bolsonarista a governador, com tática diferente dos dois anteriores, percebe o desastre e repele o fanático; 4. Um dos truculentos filhos do mito, tentando sintonia com o pai, repreende o fiel escudeiro e defende a jornalista agredida; a qual, por sua vez, 5. É, ela própria, uma reacionária que fez parte da franja externa do bolsonarismo.

Quer dizer: essa balbúrdia se dá, toda ela, dentro dos anéis bolsonaristas, o que deixa confusa a base, num aturdimento que se soma à desmoralização que antecipamos aqui para o 7 de setembro. São cada vez mais visíveis os sinais de que a candidatura de Bolsonaro pode desmoronar, pois tudo isso não apenas impede ganhar novos eleitores, mas, sobretudo, deve provocar perdas nas franjas menos convictas do voto em Bolsonaro, com muita gente fugindo da foto ao lado de um fanfarrão desmoralizado.

Enquanto isso, há cada vez mais sinais de que a candidatura de Lula pode superar a pequena distância que ainda o afasta de uma vitória em primeiro turno, o que gera um desespero de segundo nível, dessa vez nas franjas mais conservadoras do establishment. A coisa chegou a tal ponto que o Estadão e o Grupo Globo, por exemplo, desenvolveram um apego repentino à realização de um segundo turno presidencial, com teoria mirabolante sobre a relação entre dois turnos e democracia, como se o eleitorado não pudesse fazer sua escolha dispensando, democraticamente, a segunda etapa da disputa.

Não é que eles se empenhem em uma derrota de Lula, cuja provável vitória já absorveram. Na verdade, eles se deram conta de que, se ganhar no primeiro turno, Lula irá participar como presidente já eleito das campanhas a governador que forem para o segundo turno. Isso fará dessas campanhas, que são curtas, uma marcha triunfal de Lula para fazer vitoriosos os candidatos que apoiar. Vejamos alguns casos: em São Paulo, por desejável que seja (e é), uma vitória de Haddad parece difícil se ele tiver que disputar um segundo turno sem que Lula tenha se desvencilhado da disputa presidencial já no primeiro. Se Lula vencer de cara, porém, será o contrário: a candidatura de Haddad se tornará quase imbatível.

O mesmo no Rio, no Ceará e até em Minas; para não falar em Pernambuco e na Bahia. Na primeira dessas disputas nordestinas, por exemplo, mesmo que Marília Arraes tenha de enfrentar um segundo turno contra o PSB, um Lula vitorioso não poderá deixar de contribuir, direta ou indiretamente, para a vitória dela; no segundo caso, o da Bahia, se ACM Neto não ganhar no primeiro turno, poderá ter severas dificuldades no segundo, pois terá de enfrentar Lula em caravanas embaladas pela vitória.

É essa onda que o establishment quer evitar quando faz a defesa do segundo turno como uma necessidade democrática…

Fica o Registro:

– Ciro Gomes, cumprindo o script mais pessimista, que há tempos se vislumbrou aqui e aqui, passou de patético a daninho. Com ares de teórico, fala, agora, em “fascismo de esquerda” só porque sua candidatura, como previsto, naufragou, e em razão das suas próprias escolhas. Depois do equívoco político de dar combate simétrico a Bolsonaro e Lula, o coronel envernizado passou a poupar o fascista para atacar Lula, cujos defeitos são graves e merecem crítica, mas nada que se pareça com as injúrias assacadas por Ciro.

OOOHHH! QUANTA INDIGNAÇÃO…

Carlos Novaes, 08 de setembro de 2022

Com acréscimo em Fica o Registro às 23:12h

As mídias convencional e “alternativa” estão repletas de artigos inconformados com o que Bolsonaro fez ontem. Talvez a “análise” mais representativa de tudo o que está circulando, justamente por ficar na média entre esquerda-centro-direita das facções estatais de oposição (com seus capilares na classe-média “consciente” da sociedade civil), seja o artigo em que Míriam Leitão faz um apanhado, digamos assim, global, do que se passou. Está tudo lá, como numa Frente: ela parte da óbvia apropriação eleitoral de uma efeméride nacional (quanto patriotismo!); passa pelo autoritarismo golpista de Bolsonaro (quanta indignação!); reclama da quebra de protocolos institucionais (oohhhh); alerta as instituições (esses espíritos que nos rodeiam, ora colapsados, ora funcionando…); e, finalmente, se debate, nesciamente, no beco sem saída ao qual, sem perceber, seu próprio artigo a levou, nos deixando com este lapidar último parágrafo:

Se Bolsonaro sair de novo impune de todo o escandaloso abuso de poder exibido durante todo esse infeliz Sete de Setembro, é porque o país se deixou encurralar por um golpista que usa todas as técnicas de manipulação para destruir a democracia.

Que potência!

Agarrada ao Estado de Direito Autoritário-EDA que ela ajudou a construir, fazendo das franquias democráticas meros apêndices (dele dependentes), Leitão não pode enxergar que para punir Bolsonaro (seja por falta de decoro, seja por crimes) é necessário ir além do Estado de Direito Autoritário em sua crise, (crise que é de legitimação, não institucional), uma vez que a preservação desta forma estatal em plena crise traz embutida, como uma necessidade, a incapacidade mesma para, por exemplo, conduzir um processo de impeachment, como há anos detalhei aqui, entre outros textos — resumindo: afinal, quem tem legitimidade para fazer o impeachment de Bolsonaro: esse Congresso?!

Leitão se enche de indignação para repudiar o golpe ficcional de Bolsonaro (que não passa de blefe, como, mais uma vez, vimos ontem), mas, por exemplo, apoiou o golpe real contra Dilma: sua convivência conveniente com o caráter Autoritário do nosso Estado de Direito — cujas facções majoritárias derrubaram Dilma e, agora, numa generalização da regra, têm incrementado o autoritarismo para dar combate aos aliados do ainda mais autoritário Bolsonaro — essa convivência acomodada, eu dizia, a fez cega para o fato simples de que não vivemos sob um Estado de Direito Democrático, a única forma estatal que tornaria impossível uma presidência como a de Bolsonaro (inaceitável não apenas pelo que ele diz, mas, sobretudo, pelo que ele faz).

Foi essa cegueira conveniente (e perigosa) — compartilhada com toda a autointitulada esquerda e com os não menos autointitulados progressistas (entre os quais, hoje, Leitão deve se incluir) — que permitiu o alastramento do frentismo, esse frágil arranjo eleitoral (que dá às classes médias uma novo impulso ilusório de que “alguém” vai lutar por ela, ou seja, ela poderá continuar na arquibancada, indignada, atordoada, mas atenta… sei…), um frentismo que, como eu dizia, só vem dando certo porque Bolsonaro empregou os poderes do EDA de uma forma que, aparentemente, o impede de fazer maioria eleitoral para continuar. Se Bolsonaro tivesse usado de maneira menos imbecil os poderes do Estado que recebeu (dos tucanos e, depois, inalterado pelos petistas), seria imbatível nessa eleição. Por sorte, a “genialidade” atribuída a ele não foi suficiente para que atinasse com o que deveria fazer.

Bolsonaro sequestrou o 7 de setembro; os políticos profissionais sequestraram a Política. Embora se diga uma democrata, defensora de um suposto Estado democrático de direito, Leitão, viciada no autoritarismo brasileiro das facções políticas profissionais, adoraria trocar o prazer de derrotar Bolsonaro nas urnas pelo gozo de derrubá-lo com o autoritarismo “legal” e “institucional” disponível (via TSE?…), o que, se fosse possível, daria ânimo “novo” ao Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação. E chove aplausos.

Fica o Registro:

[23:12] – Bolsonaro perdeu impulso hoje em quase todas as plataformas. Foi superado por Lula em mais de uma plataforma em que costumava vencer. O fato está sendo atribuído à morte da rainha Elizabeth, mas talvez não tenha sido só isso. Talvez tenha sido a ressaca sofrida ontem pelos fanáticos da base bolsonarista, que ficaram a ver navios com suas faixas e cartazes golpistas. Vamos ver melhor nos próximos dias.

DE UM 7 DE SETEMBRO A OUTRO

Insisto: para entender, mesmo, o que penso, e julgar por si mesmo, é importante ler também os hiperlinks.

Carlos Novaes, 05 de setembro de 2022

Com acréscimos e atualizações em Fica o Registro, em 06 e 07/09

Se, como entendo, não houve mudança substancial na situação de Bolsonaro entre setembro do ano passado e este mês de setembro, nem seria o caso de escrever sobre a “ameaça” que muitos insistem em adivinhar para daqui a dois dias — enfim, seria meramente o caso de indicar a releitura de dois dos artigos que publiquei neste blog por ocasião da efeméride nacionalisteira do ano passado, a saber: Desmoralização com data marcada: 8 de setembro, e Estelionato ideológico como “método“.

Ocorre que, se não houve mudança nos fundamentos que governam a conjuntura, há incremento que, talvez, acabe por fazer emergir alguma novidade. É que a situação de Bolsonaro piorou: primeiro, porque, apesar de todo o uso da máquina governamental, a oscilação dos números não alterou o desfavor nas pesquisas eleitorais, que é persistente e consistente; segundo, porque as facções estatais que apoiam o besta, sejam as de inspiração majoritária paisana (Centrão), sejam as de corte predominantemente militar, uma como outra deu sinal claro de que está na contramão até mesmo do mero blefe do golpe.

De modo que, quando se tem em mente as facções estatais, Bolsonaro vai para o dia 7 em situação ainda mais desfavorável do que no ano passado, o que não seria de estranhar, visto que essas facções seguiram em sua marcha inalterada desde a adesão do besta ao velho normal. Bolsonaro é que não consegue tirar consequências inevitáveis das escolhas que faz.

Na verdade, Bolsonaro até hoje não entendeu a confusão em que está metido — confusão que, aliás, é simétrica, embora contraposta, à vivida pela autointitulada esquerda: de um lado, o besta não atina a quem servir, se às facções (agarradas ao Estado de Direito Autoritário-EDA), se à sua “sociedade civil” antissistema orientada para a ditadura; por outro lado, a autointitulada esquerda agarrou-se ao sistema facciosoEDA, sem atinar para as razões que a impedem de tirar proveito do auspicioso sentimento antissistema da maioria da sociedade, orientada para a democracia. Por isso, ao falso golpismo de Bolsonaro pró ditadura se contrapõe, na justa medida, o fajuto frentismo conservador da autointitulada esquerda em defesa (inócua) da democracia. Esse duelo banguela favorece quem se contrapõe a Bolsonaro não porque ele ameace a democracia, mas porque ele fez um governo indefensável, ou seja, ele escancarou as mazelas do Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação.

Para piorar as coisas, o besta terá de tourear sua própria base dura, a que chamo de “sociedade civil bolsonarista”, que, não mão contrária das facções estatais a que Bolsonaro aderiu, está a viver o dia 7 como uma última cartada para a realização das suas fantasias ditatoriais. Quem acompanha este blog sabe que, há tempos, lá em 2018, defini Bolsonaro como um fenômeno novo, visto que o caracterizei como marionete das massas. Pois bem, o dia 7 se anuncia como um possível divórcio entre a marionete e sua base fanática. Em outras palavras, a massa bolsonarista vai ter de encarar o que tem teimado em não enxergar: os arroubos golpistas que Bolsonaro volta e meia ainda insiste em exibir vieram servindo de disfarce para uma alteração fundamental, isto é, desde a adesão ao velho normal o besta deixou de ser marionete sua para ser marionete do Centrão e adjacências.

Por mais gente que se aglomere, a desmoralização do próximo dia 7 pode ser de tal ordem, pode gerar um desalento tão grande nessa base mais fiel, que acabe por leva-la a um sensível esmorecimento no engajamento nas redes sociais, o que seria catastrófico para a candidatura do besta, que só não desceu a ribanceira porque está escorada nesse entusiasmo autoritário ainda existente — talvez ele persista, mas vem ficando difícil.

Fica o Registro:

– O alarido da mídia não cessa, e a “novidade” agora é que os aliados de Bolsonaro, ou seja, as facções estatais que ainda o apoiam, estão pedindo a ele moderação nos pronunciamentos que fará nos atos do dia 7. Entenda bem, leitor, leia devagar, para essas facções estatais aliadas, Bolsonaro deve ser moderado por duas razões: primeiro, e sobretudo, para não entrar em choque com as facções estatais adversárias, com as quais as facções ora bolsonaristas vão ter de se entender (e se refazer!) depois das eleições; segundo, mas menos importante (afinal, quem é do ramo já entendeu que a besta foi pro brejo), porque as facções estatais aliadas de Bolsonaro sabem que o besta não ganha votos sendo destemperado.

– Ao contrário do que a maioria pensa, não devemos temer o radicalismo das falas de Bolsonaro no dia 7. Não. Pelo contrário, para nós, que queremos derrotar Bolsonaro, quanto mais radical nas falas ele for, melhor. Veja bem, leitor, como tudo isso é teatro, quanto mais agressivo o besta se mostrar, maior será o contraste com a normalidade dos dias subsequentes, pois nada vai acontecer, ainda que possa haver alguma arruaça, como previ para o caso de Trump, nos EUA. Se radicalizar, Bolsonaro, além de abrir mais possibilidades para inquéritos futuros, ainda ficará duplamente desmoralizado: desmoralizado diante de quem não vota nele, e desmoralizado diante da sua minoria mais fanática, que gostaria de um golpe.

Ao barrar a pretensão de Bolsonaro de liberar a presença de caminhões na Esplanada dos Ministérios, no DF, o governador, que é bolsonarista, deixou bem claro de que lado estão as facções estatais que ainda apoiam Bolsonaro quando o besta, para fazer pose de agrado à sua base mais dura, tenta simular ter algum poder de tiranete. Essa tentativa fracassada de Bolsonaro foi uma antecipação da desmoralização que ficará clara dentro de mais algumas horas.

07/09:

– A pasmaceira no DF foi mais melancólica do que no ano passado e, para ornar, Bolsonaro fez um discurso xoxo, que, secundado pela pregação brega do pastor que o antecedeu, fica como uma extensão bocó para o discurso vazio que ele já fizera no 7 de setembro do ano passado, que analisei, a quente, aqui. Vamos ver como vai ser no Rio, tendo em mente o fiasco do ano passado em SP.

– O palanque só com militares (que, constitucionalmente, precisam obedecer as ordens do chefe), sem a presença dos outros poderes, é o retrato do isolamento faccioso de Bolsonaro. As facções estatais adversárias isolam Bolsonaro ao máximo, orientadas que estão para a preservação do Estado de Direito Autoritário-EDA, agora sem Bolsonaro — o que vai levar a um redesenho das formações facciosas. Ontem houve uma prévia, quando a aliança entre o governador do DF (um bolsonarista) e o STF prevaleceu sobre os arroubos de tiranete do besta, que sonhou poder liberar caminhões na Esplanada e fez o Exército passar por mais um vexame: cadastrar caminhões para nada.

– A TV Brasil flagrou o que seria um desentendimento entre Bolsonaro e Michele. São imagens em que Bolsonaro parece impaciente e inconformado — o que já estaria preocupando aliados do besta. Tenha ou não tenha ocorrido, esse “desentendimento” será suplantado pelo que emergirá de Michele depois da derrota eleitoral de Bolsonaro, especialmente se ele vier a enfrentar os reveses judiciais que se anunciam.

– Diante do discurso eleitoreiro de Bolsonaro no Rio, sua base dura tem elementos para se dar conta de que tem sido lograda e, talvez, diga a si mesma que saiu às ruas pela “última vez”.

QUE MISÉRIA!

Carlos Novaes, 28 de agosto de 2022

Com acréscimos em Fica o Registro

Mais um debate desses e Bolsonaro pode desmoronar — e favorecendo a subida de uma mulher, no caso, Simone Tebet. Alguém poderia imaginar que Bolsonaro obteve no debate a confirmação do voto que já tem, mas não parece ser o caso: há uma franja dos que votam nele que deve ter ficado desapontada. A depender da repercussão nas redes sociais e também de debate futuro, o improvável pode acontecer — e se ele cair nas pesquisas, pode haver debandada.

Não será surpresa se Simone ultrapassar Ciro, pois o candidato do PDT, além de repetir o egocentrismo, não apenas insistiu numa equivalência descabida entre Lula e Bolsonaro, como já tratei detalhadamente aqui, mas foi além: fez um papelão quando, num momento crucial do debate, poupou a misoginia de Bolsonaro para enfiar uma crítica artificial (no caso) a Lula.

Lula foi mal no debate porque não deu resposta ao problema central da sua persona pública: a corrupção. Ele e o PT não conseguem uma resposta minimamente articulada para o problema da roubalheira na Petrobrás. Além disso, Lula tomou a iniciativa de trazer Dilma para o debate fazendo uma equiparação infantil entre pedalada fiscal e motociata, misturando a uma tolice certa soberba que pode lhe custar caro, como já tratei em Fica o Registro (aqui). Além desses dois momentos particularmente ruins, Lula deixou a desejar na articulação das outras respostas e acabou compondo a imagem de alguém fora do tempo, num certo alheamento cansado. Enfim, com esse desempenho não fecha a eleição no primeiro turno.

Fica o Registro:

– Lula não falou em rachadinha assim como não pôde responder sobre a Petrobrás. A rachadinha é uma prática corrente em várias Câmaras de Vereadores e Assembleias Legislativas e políticos profissionais do PT já foram acusados de praticá-la. Esse tema é parte da interdição que a corrupção exerce sobre o lulopetismo.

– Essa interdição da corrupção está diretamente ligada ao fato de que o azeite das engrenagens do Estado de Direito Autoritário é um blend de corrupção, privilégios, prerrogativas e foros especiais. E Lula é a grande esperança das facções do Estado de Direito Autoritário, facções que conseguiram a proeza de orientar todas as forças ativas da sociedade civil progressista e da autointitulada esquerda para a defesa desse Estado que infelicita a maioria de nós enquanto as atende plenamente!

– O debate do debate, feito no CALMA URGENTE!, é muito instrutivo pelas suas qualidades e pelas suas limitações. As qualidades, partilhamos. Mas o tom de indignação sobre Bolsonaro “tornar dizível o indizível”, sobre a defesa liberal da relação “empregado-empregador” etc, é um primor do verniz de classe média arranhado que precisamos superar. Não se trata de interditar essa linguagem e ou temática, temos de não cair nela e perseverar pelo contraste. O fato de essa linguagem ser aceita nos informa do trabalho que temos pela frente. Nada disso, porém, deveria, muito menos, nos levar a endossar o Janones ali onde ele decalca o bolsonarismo, como fizeram contraditoriamente no CALMA URGENTE!

BOBO DA CORTE NÃO DÁ GOLPE. POLARIZAÇÃO É O OPOSTO DE PACIFICAÇÃO NACIONAL

Carlos Novaes, 25 de agosto de 2022

Lula só não esteve perfeito no Jornal Nacional por três razões: primeiro, não conseguiu conter a exasperação que tem marcado suas manifestações públicas — a falta de serenidade incomoda, talvez atrapalhe o diálogo com os indecisos; segundo, foi impreciso em algumas afirmações, o que vai gerar desmentidos desgastantes. Terceiro, ficou preso à ideia da volta ao que já foi, ainda que dizendo querer fazer mais – o que é implausível, não apenas porque as condições econômicas são piores, mas também porque o arco de concessões para a vitória terá sido maior do que em 2002 e 2006.

De uma maneira geral, porém, a impressão é a de que ele não apenas se saiu melhor do que Bolsonaro e Ciro, mas que, dos três, é o único que pode ter tirado vantagem eleitoral da entrevista. Evidentemente, esse resultado recebeu ajuda do despreparo de Bonner e Renata, que não conseguem extrapolar os limites que o debate eleitoral já sedimentou e, a cada candidato, repetem abordagens manjadas.

No mais, Lula mostrou a agilidade cognitiva, a valentia e a lealdade política que sempre o caracterizaram, dando respostas rápidas e até desconcertantes, enfrentando o debate sobre corrupção (ainda que a mim, politicamente, não convença) e não hesitando em defender Dilma e o MST. No caso de Dilma, ele jamais irá reconhecer seus dois erros monumentais: primeiro, tê-la preferido a Tarso Genro quando da candidatura em 2010; segundo, não ter disputado a presidência no lugar dela em 2014. Quanto ao MST, é fato que a imprensa em geral fala do movimento com base em preconceitos antigos, sem conhecer as grandes transformações ocorridas ao longo do tempo.

Mas o mais importante foi a espontaneidade com que Lula desfez os dois argumentos básicos dos frentistas que o apoiam: primeiro, ao comparar Bolsonaro a um “bobo da corte”, ele deixou ver que não avalia Bolsonaro com força para ameaçar a democracia; segundo, em lugar de defender a “pacificação nacional”, Lula salientou a importância da polarização entre divergentes como um aspecto central da política democrática — e ainda aproveitou para fazer crítica eleitoralmente proveitosa à falta de alternância em Cuba e na China.

Em suma, Lula se mostrou um democrata e, ao mesmo tempo, se distanciou do frentismo (ainda que não tenha como compatibilizar essa, digamos, intuição, com a realidade do arco heterogêneo de forças que o apoia — se vencer, essa será a grande dificuldade para a caracterização política do mandato que, por isso mesmo, estará a serviço do Estado de Direito Autoritário que nos infelicita).

BOLSONARO PODE ENTRAR EM RUÍNA?

Carlos Novaes, 20 de agosto de 2022

Com acréscimos em Fica o Registro, em 21/08.

Ao comparecer à posse de Moraes na presidência do TSE, Bolsonaro sinalizou um pedido de trégua típico de quem está perdido e, então, tomou uma invertida não menos típica dessas situações: ao invés de aceitarem a trégua, os adversários avançaram para o nocaute. De fato, ao pedir trégua, Bolsonaro deu um passo além do abandono do golpismo, ele abandonou também qualquer pretensão de ser visto como antissistema. Ao avançarem para o nocaute, os adversários deixaram claro que era tarde demais.

Contribuem para essa percepção outros quatro episódios desses dias: primeiro, no âmbito do Estado, os militares tomaram a iniciativa de sabotar o 7 de setembro pretendido por Bolsonaro, ainda que ele próprio já viesse indicando não querer dar tom golpista ao evento – é que os militares foram além, e retiraram do desfile sua característica de demonstração de força; segundo, líderes do Centrão já estão explicitando o abandono do barco, dando a público divergências com Bolsonaro. Terceiro, no âmbito da sociedade, o lamentável episódio do “tchutchuca do Centrão”, quando um preconceito repelente, de que o próprio Bolsonaro é partidário, foi usado como estigma contra ele mesmo. Quarto, no campo religioso, as mentiras evangélicas sobre fechamento de igrejas por Lula estão sendo desmentidas por gravações antigas dos mesmos pastores… Nos quatro casos, Bolsonaro acabou por ter contra si desmoralizações adicionais à que ele próprio havia protagonizado no TSE.

Trocando em miúdos: por mais que o frentismo erre ao insistir na defesa de uma democracia que não está ameaçada pelo que o besta diz, em poucos dias Bolsonaro ficou sem condições de tirar proveito desses erros, pois já não pode fingir ser o que nunca foi: um político antissistema. Pelo contrário, Bolsonaro, mais uma vez, explicitou sua rendição ao sistema e, pior, dessa vez, o sistema, em terno e farda, o recusou!

Ante uma reviravolta como essa, num intervalo de tempo tão curto, típica de situações instáveis, não será surpresa se a candidatura de Bolsonaro entrar em ruína — afinal, são três reveses simultâneos e inapeláveis: (i) ficou escancarado que ele tem os comandos militares da ativa contra si; (ii) sua base autoritária já não tem onde apoiar o autoengano acerca de uma postura golpista do chefe; (iii) dissemina-se na opinião pública a ideia de que Bolsonaro já era e não merece respeito algum.

Se for assim, a reta final do primeiro turno pode trazer grandes surpresas.

Fica o Registro:

– É lamentável que essa história de “tchutchuca do Centrão” tenha ganho a força que ganhou entre a autointitulada esquerda. Mostra bem o quanto teremos que caminhar até poder estar à altura do largo alcance do que se convencionou chamar de politicamente correto. Estão glorificando preconceitos.

– Não menos lamentável, repugnante até, é essa história de chamar Moraes de Xandão, nada diferente de chamar Bolsonaro de Mito. Quero ver o que esse pessoal vai fazer com o Xandão quando as preferências autoritárias dele se voltarem contra o possível governo Lula. Estão glorificando o facciosismo.

– Ao insistir em integrar Dilma à campanha, ao defendê-la em manifestações públicas, Lula está abusando da tolerância de uma parte fundamental dos eleitores que estão com ele nessa eleição. Por mais que ela tenha sido injustiçada, e o foi, é uma imprudência eleitoral pretender enfiar isso goela abaixo daqueles que pensam diferente, mas estão com Lula porque não veem alternativa. Essa atitude acrescenta alguns centímetros ao salto alto…

– Enquanto o frentismo faz a defesa inócua da democracia (que cerca de 80% de nós defendem), o Janones, do jeito dele, com as limitações dele, foi ao que é central: a desigualdade, via denúncia do Auxílio Brasil oportunista do Bolsonaro. Quem faz o óbvio numa conjuntura em que os outros erram, vira gênio.

– Chega a ser constrangedor ver as comemorações em torno da recepção dada a Lula na posse do Moraes, por contraste com o isolamento de Bolsonaro na cena. Ora, Lula foi prestigiado precisamente porque é a esperança das facções hegemônicas no Estado de Direito Autoritário, papel que ele desempenha com a cobertura da inócua defesa da democracia. Comemorar sem crítica essa situação mostra cegueira ante o que está em curso. Para detalhes, ver, entre outros, este artigo aqui.

Hoje no YouTube:

FRENTISMO PODE FAVORECER BOLSONARO

Carlos Novaes, 11 de agosto de 2022

Hoje tivemos o lançamento público de manifesto pela democracia. Uma apoteose frentista que reúne de Boulos a Luciano Huck… É um frentismo tão aguado que sequer tem um programa para amarrar as forças que, na verdade, estão juntas porque aderiram, mais ou menos explicitamente, à candidatura de Lula, o coringa das facções.

O objetivo é reiterar a preferência pela democracia, que é da maioria da sociedade brasileira, contra as minoritárias fantasias ditatoriais de Bolsonaro. Evidentemente, a posição dos signatários é confortável. Por outro lado, ela é inócua, uma vez que, como já vimos ao longo dos últimos anos, em vários posts deste blog, e em vídeos mais recentes, Bolsonaro não tem a menor condição de dar um golpe para entronizar-se como ditador.

Diante da preferência nacional pela democracia, não há desafio algum em mobilizar para a defesa dela. O desafio estaria em mobilizar para dizer o que fazer com a democracia que temos. Incrustradas num Estado de Direito AutoritárioEDA em crise de legitimação (sentimento antissistema), nossas amplas franquias democráticas precisam ser mobilizadas em favor da construção de um Estado de Direito Democrático, que não será alcançado sem a luta concomitante contra a desigualdade. Ou seja, precisamos de um programa que detalhe o combate à desigualdade, apoiando-se no sentimento antissistema e almejando a consolidação da democracia.

O problema é que os protagonistas dos manifestos fundem, indevidamente, a defesa da democracia com a defesa deste EDA, chamando-o, enganosamente, de Estado democrático de direito. Os manifestos pela democracia defendem a democracia como se não houvesse problema algum entre, de um lado, a vigência das franquias democráticas e, de outro, as práticas autoritárias do EDA — defendem a democracia renegando o auspicioso sentimento antissistema que atravessa a sociedade brasileira. Preferem a posição cômoda de combater Bolsonaro pelo que ele diz contra a democracia; e não pelo que ele faz contra a sociedade apoiado nos poderes que lhe são conferidos pelo Estado de Direito Autoritário.

Tudo se passa como se o “de Direito” tivesse vigência republicana plena no Brasil, como se não houvesse, na prática, o exercício facciosos dos poderes institucionais, um universo de regras (não escritas) e de rotinas estatais em que se abrigam violência policial, corrupção, vista grossa e até incentivo à predação ambiental, privilégios salariais e previdenciários para burocratas estatais, arbítrio contra a população ameríndia, descaso da Justiça contra os mais pobres etc.

O Estado é “de Direito”, mas as regras e as rotinas pelas quais esse “de Direito” se traduz na prática são autoritárias. A inviolabilidade do domicílio é “de Direito”, mas o pé-na-porta da polícia na casa do pobre é a regra, a rotina autoritária. Roubar e furtar são crimes no “de Direito”, mas fazer vistas grossas à corrupção é regra.

Por isso, a maioria de nós prefere a democracia e desenvolveu um auspicioso sentimento antissistema.

Várias pesquisas já mostraram que a maioria da população não acredita no que Bolsonaro diz. Os incautos leem esses números registrando apenas o que essas pesquisas dizem de favorável à nossa luta contra o besta… O problema é que esses números também trazem embutida a certeza da maioria da população de que o que Bolsonaro diz contra a democracia também não merece crédito… Quer dizer, todo esse frentismo democrático não está falando com a maioria, e por três razões sobrepostas, ainda que assimetricamente distribuídas: (i) a maioria já prefere a democracia; (ii) a maioria sabe que Bolsonaro não reúne condições para dar um golpe; (iii) a maioria já sabe que Bolsonaro é um bravateiro que, no fundo, está, ele próprio, careca de saber que não tem força para se tornar um ditador.

Não obstante, Lula e seus seguidores (seguidores, não eleitores, pois até eu me incluo entre os eleitores de Lula – fazer o que?) insistem em convocar para a tarefa inócua de defender a democracia, e pior, o fazem afrontando o sentimento antissistema da maioria de nós com esse ajuntamento promíscuo (pelo menos aos olhos do eleitor médio) de facções e políticos profissionais aderidos ao EDA, justamente o que está em crise de legitimação. E tudo isso sem detalhar programa algum, proposta alguma — afinal, é uma “ampla frente”….

Bolsonaro foi afastado da condição de fazer maioria e amarga baixo potencial eleitoral nas pesquisas não porque ameace a democracia, mas pelo que fez com os poderes do Estado na condição de presidente. Logo, a campanha da oposição ao besta deveria estar centrada não na democracia, mas no governo que Bolsonaro fez, no uso que ele deu ao EDA — e, claro, em uma alternativa clara a esse estado de coisas. Indo na mão contrária, porém, Lula e os frentistas podem estar abrindo uma via de escape para Bolsonaro.

Trocando em miúdos: Lula e os frentistas tanto fazem, erram tanto ao não combater Bolsonaro pelo que ele fez, que acabarão por permitir que as bravatas grosseiras que ele diz passem por compromisso antissistema… — como a maioria sabe que Bolsonaro não tem condições de se tornar um ditador, pode haver uma outra composição de maioria para a qual migrem parte dos que têm a democracia como assegurada e, então, na falta de uma alternativa real, embarquem, mais uma vez, no embuste antissistema de Bolsonaro. O risco é real.

OUTRA COISA:

No link abaixo está a versão final do meu livro sobre relações que julgo ter descoberto entre obras de Aleksandr Púchkin e Ivan Turguêniev.

LITERATURA CONTRA IMOBILISMO NA RÚSSIA DO SÉCULO XIX

BOLSONARO REPETE DALLAGNOL

Carlos Novaes, 19 de julho de 2022

Com acréscimo de um vídeo em 30/07

Com o PowerPoint cheio de falsidades com que humilhou o país que preside diante de embaixadores de outras nações, Bolsonaro repetiu o vergonhoso episódio no qual Deltan Dallagnol apresentou suas convicções contra Lula com base num PowerPoint fajuto. A simples repetição de um artifício amplamente desmoralizado já indica o grau de desorientação do besta.

Naturalmente, não faltará gente para ver na ação desastrada de Bolsonaro mais um passo dele na direção do poder ditatorial, afinal, para esses teóricos, Bolsonaro não pode ser avaliado pela lógica política convencional, requerendo dons especiais, que provavelmente incluem a telepatia… Dessa perspectiva, Bolsonaro estaria, mais uma vez, investindo no caos para colher mais adiante… Sei… O problema é que ele vem repetindo essa tática e não colhe nada positivo desde os votos que ganhou em 2018.

Felizmente, a maioria de nós interpreta a política segundo elementos lógicos elementares: quando um presidente da República, candidato à reeleição e perdendo apoio popular que há tempos já é minoritário, convida embaixadores de países amigos para enxovalhar o próprio país, dizendo inconfiável um sistema de voto eletrônico que veio sendo aperfeiçoado e exibe robustez fartamente comprovada, fica claro que se trata de um reconhecimento antecipado da própria derrota, quaisquer que tenham sido os cálculos geniais do flibusteiro.

Essa constatação, por si mesma, se reflete como desmoralização sobre o golpista, tornando-o ainda mais patético com a repetição do blefe e diminuindo as já exíguas margens para uma ação golpista bem sucedida. Bolsonaro volta a encenar seu estelionato ideológico trazendo de volta a matéria vencida do voto impresso. Levar isso a sério, tomar a pantomima como temíveis operações para um golpe de Estado, é fazer como aquele que sai ao quintal para se assustar com o espantalho que ele próprio instalou.

SENTIMENTO ANTISSISTEMA

Carlos Novaes, 19 de julho de 2022

No Brasil, o sentimento antissistema da maioria da sociedade vem com a preferência pela democracia. Bolsonaro tem cada vez menos apoio: é um antidemocrata e já foi desmascarado como um aliado do que há de pior no sistema (Centrão+milicos de pijama).

Sentimento antissistema + preferência pela democracia = transformação.