COMO VENCER O SEGUNDO TURNO?

Carlos Novaes, 04 de outubro de 2022

Uma vitória de Bolsonaro seria um desastre para o Brasil e um dano severo para o planeta. Temos de fazer tudo ao nosso alcance para consagrar com uma vitória o bom desempenho de Lula até aqui. Para alcançar esse objetivo é necessário compreender o que se passou no primeiro turno. Nas linhas a seguir vou explorar a contraposição Lula-Bolsonaro salientando semelhanças de forma que revelam debilidades severas nos conteúdos muito diferentes que os dois representam, e contribuem para esclarecer o empate havido neste primeiro turno.

Entender o que aconteceu neste primeiro turno não é fácil – basta ver as “análises” que têm circulado com destaque: a marca central é a confusão. Mas, sejamos justos, a própria realidade embaralhou as cartas de um modo nada trivial. Vamos avançar com cuidado.

O sentimento antissistema (a manifestação epidérmica da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário-EDA) é majoritário na sociedade brasileira. Isso significa que qualquer dos candidatos receberá votos de eleitores mais ou menos afetados por ele, pois este sentimento sempre estará entre as motivações para o voto, em variações de intensidade provocadas pelo nível de informação política e, ainda, por grau de instrução, preferência ideológica, idade, poder aquisitivo, confissão religiosa, local de moradia, gênero etc.

Isso nos leva a uma constatação fundamental que, por si só, permite agarrar a ponta do novelo em que a maioria dos analistas se emaranhou: nesta eleição, ao contrário de todas as outras e ao contrário do que é senso comum, o candidato que busca a reeleição tem um discurso cuja base é a ideia de mudança; enquanto o discurso do candidato da oposição tem por base a ideia de conservação. Bolsonaro se diz acorrentado pelo “sistema” e quer mudar essa situação para poder fazer mais; Lula se apresenta como aquele que irá conservar a democracia ameaçada pela mudança que o oponente propõe, e quer vencer para repetir o já feito. Essa inversão colocou a situação na ofensiva e a oposição na defensiva, e isso é central para entendermos o que aconteceu.

A proposta de Bolsonaro é falsa, porque ele não é antissistema, mas o fato é que seu pseudo-arrojo arrastou quase metade do eleitorado, aí incluídos aqueles em quem o sentimento antissistema é motivação residual; a proposta de Lula é sincera e inócua, e levou quase metade do eleitorado a deixar de lado a motivação antissistema pelo comodismo conservador de esperar dele, Lula, o serviço de nos defender de Bolsonaro.

Uma vez que o lulopetismo revestiu sua adesão ao Estado de Direito Autoritário-EDA (“sistema”) como “defesa da democracia”, o bolsonarismo extraiu desse defensismo lulopetista sua versão mais recente para a coreografia do blefe contra o “sistema”. É que enquanto Lula defende o que não está em questão (a democracia); Bolsonaro faz a ameaça fantasiosa correspondente (golpe contra a democracia) – todo esse faz de conta está amparado em estelionatos ideológicos respectivos e contrapostos numa autêntica cismogênese política: o lulopetismo finge para si mesmo que ainda é de esquerda; o bolsonarismo finge para si mesmo que poderia acabar com a democracia. Todos os demais, ou seja, o eleitorado brasileiro que não faz parte dos núcleos duros respectivos, estamos nos fazendo figurantes dessa encenação, que não nos vai levar a lugar nenhum e, por isso mesmo, gera desorientação e ajudou a compor esse verdadeiro empate eleitoral no primeiro turno.

O empate ocorreu porque Bolsonaro teve uma votação acima do que se podia supor olhando para as pesquisas (embora isso não signifique que elas tenham errado, pois houve movimentação de última hora que elas não poderiam ter captado de véspera…). O fato é que franjas eleitorais dos eleitorados do Rio e de São Paulo voltaram a correr para Bolsonaro. Não é razoável supor que esses contingentes que fizeram a diferença correndo para Bolsonaro nas últimas horas antes do pleito desprezem a democracia, afinal, se fosse assim, eles teriam aderido antes ao fanfarrão golpista. Quer dizer, esses contingentes de adesão eleitoral tardia estavam em dúvida e é mais razoável supor o contrário: eles acabaram por aderir a Bolsonaro justamente porque estão convencidos de que ele não tem condições de derrubar a democracia e, assim, deram-lhe o voto por uma razão mais profunda: o sentimento antissistema por mudança, que Lula acabou por atrair contra si insistindo na mesmice de reunir todo mundo na foto, ao que se seguiu uma campanha pelo voto útil com o foco errado.

O foco da campanha pelo voto útil não se centrou nas qualidades de Lula, mas na aversão a Bolsonaro – um voto útil negativo, não positivo (ou seja: mais uma vez, uma atitude defensiva, com o agravante de trazer de volta à lembrança o malsucedido “ele não”). E pior: foi um voto útil que não exaltou as qualidades comuns entre Lula e Ciro, mas, pelo contrário, ao invés de buscar semelhanças, a campanha atacou Ciro como se ele fosse abjeto, exigindo do eleitor não apenas um redirecionamento “útil” do voto, mas que ele antes rejeitasse justamente a quem preferia! Quer dizer, desprezou-se o significado profundo do vocábulo “útil” aqui, que significa “útil à causa comum. Tudo se passou como se Ciro tivesse a causa contrária… Resultado: assim afrontado, o eleitor preferiu fazer voto útil em Bolsonaro, no que também foi ajudado pelas lamentáveis atitudes de Ciro (que não deveriam ter sido exploradas por quem pedia “voto útil”).

Essa cegueira ditada pela arrogância da autointitulada esquerda vem de uma outra, mais ampla, a qual, infelizmente, põe, na forma (veja bem: na forma, não no conteúdo) os apoiadores de Lula muito próximos dos de Bolsonaro. Os apoiadores de Lula chamam de reacionários, conservadores e/ou fascistas a todos os apoiadores de Bolsonaro; enquanto os apoiadores de Bolsonaro chamam de comunistas a todos os apoiadores de Lula. Ambos os lados enxergam como respectivamente impróprias essas simplificações a respeito de si mesmos, mas nenhum dos dois está disposto a explorar os matizes do campo adversário. Por que estamos dispostos a reconhecer que em apoio a Lula se uniram forças plurais, com interesses não apenas diferentes entre si, mas até claramente antagônicos; mas não estamos dispostos a examinar que o apoio a Bolsonaro também reúne forças plurais, que podem até ter interesses não menos antagônicos entre si? Essa cegueira compõe uma polarização desinformada e despolitizante, que cria enormes dificuldades para o necessário trânsito eleitoral – tal como deixa clara a movimentação de “ciristas” em favor de Bolsonaro na última hora.

Para haver trânsito eleitoral é necessário suavizar aspectos mais duros da própria proposta, mas não a ponto de descaracterizá-la para a própria base fiel, que só é fiel justamente na medida em que ainda se vê contemplada nas preferências que julga inegociáveis. Ora, tanto Lula como Bolsonaro fizeram esses movimentos de abertura, com a diferença de que Lula está prisioneiro do defensismo, enquanto Bolsonaro explora a contenção do seu arrojo. Ambos estão a propor adiamentos às suas respectivas bases-dura. As escolhas de Lula embrulham mais um adiamento com defensismo; as atitudes de Bolsonaro mascaram de arrojo contido o adiamento implicado.

A base mais dura de Lula vem aceitado adiamentos desde pelo menos 2002, com a Carta aos Brasileiros, e tem aceitado seu líder promover reiterados rebaixamentos em seu horizonte programático em nome de uma política de alianças cada vez mais ampla, a tudo justificando com base no que chamam de realismo do “jogo democrático”. O problema é que essa atitude defensiva acabou por contaminar (até com corrupção) a ação política como tal. Resultado: em 2022 não há nem sombra da motivação havida em 2002, e não deixa de ser revelador que a música da campanha seja uma versão reformada (e tola) da música primordial, de quando tudo começou, em 1989, época em que, já em plena democracia, e sob o EDA, ser petista era ser, sobretudo, antissistema… justamente o que veio sendo adiado a tal ponto que nossa autointitulada esquerda se fez defensora intransigente do status quo, deixando o sentimento antissistema para o primeiro aventureiro que aparecesse.

A base mais dura de Bolsonaro, por sua vez, acaba de deixar claro que também aceita adiamentos, afinal, contrariamente ao que supus, o malogro do golpismo no mais recente 7 de Setembro não levou ao desengajamento que aventei, até pelo contrário: Bolsonaro cresceu. Seus eleitores foram às urnas em massa e, dando um passo de obediência para além do 7 de Setembro do ano passado, o fizeram na mais perfeita ordem, mostrando-se todos engajados na coreografia do blefe, que consiste em meter medo aos demais, mas buscando a vitória eleitoral dentro da ordem democrática que o chefe não tem força para derrubar (tanto que ele não disse uma palavra contra a idoneidade das urnas neste primeiro turno…)

Ao contrário do que muitos dizem por aí, o segundo turno não é outra eleição. Nem se trata de “outro jogo”, nem a campanha “se inicia do zero”. Pelo contrário, a memória do que acaba de se passar é determinante: as circunstâncias políticas e econômicas são exatamente as mesmas; o repertório do que está em jogo é o mesmo; os personagens secundários são os mesmos; o eleitorado é exatamente o mesmo (ainda que quem se absteve no primeiro turno possa votar no segundo, o que configuraria uma mudança de preferência como qualquer outra), a discussão dos temas é continuação da mesma, e, sobretudo, os candidatos que se mantém na disputa não poderão aparecer transformados em outro neste segundo turno, ainda que possam incluir alterações que não se mostrem contraditórias com o que fizeram até aqui. Em suma, trata-se, mesmo, de um segundo turno na mesma eleição.

É por isso que me dei ao trabalho de escrever este artigo: a campanha de Lula precisa entender suas debilidades e alterar aquelas que podem ser alteradas sem descaracterizar a candidatura. Em minha opinião, a chave está no caráter defensivo do discurso do candidato: ele repete aborrecidamente, até com os mesmos exemplos e números, que quer defender a democracia, defender seus governos anteriores, defender Dilma, defender sua inocência pessoal, defender os pobres e famintos, defender a Amazônia, defender as estatais, defender a política profissional… Falta a Lula um projeto que vá além de si mesmo, que vá além das trincheiras do status quo, que contemple a vontade de mudança que motiva a maioria da sociedade brasileira. Em suma, Lula tem se apresentar neste segundo turno como que descortinando um país possível, que não está, nem esteve aí: nem o passado desmotivador que ele próprio tem defendido; nem o horror que Bolsonaro significa.

Fica o Registro:

– Como preparação para debates com Bolsonaro, sugiro que Lula assista ao último debate entre Covas e Maluf no segundo turno da disputa para o governo de SP, em 1998: tal como um Padre de Festa Junina, Maluf foi para cima de Covas com ofensas e insultos e o tucano, com toda calma, sorrindo com um ar maroto, respondeu: “eu sei o que o senhor veio fazer aqui hoje, veio me arrastar para a sua lama, mas eu não vou”, e olhando para a câmera, dirigiu-se ao eleitor dizendo o que ia fazer para melhorar a vida dele.

– O apoio maciço dos “globais”, “ex-globais”, e dos artistas em geral ao “voto útil” em Lula pode ter atiçado alinhamento com Bolsonaro — as pessoas estão fartas de tutela, e o sentimento antissistema, para alguns, acaba englobando tudo que é “padrão” (tipo padrão Globo…). Há, de fato, uma certa arrogância na forma com que os artistas manifestam publicamente as suas preferências. Ademais, há anos realizei pesquisas profissionais sobre teledramaturgia e constatei que os telespectadores já não se identificavam com personagens que lhes eram apresentados como modelos a serem imitados, preferindo se verem representados tal como eram, isto é, constatei a decadência do esquema de representação aspiracional, substituído pela dinâmica do reconhecimento — uma recusa a se submeter a padrões hierárquicos. Esses apoios de artistas, e a importância dada ao apoio deles, têm algo de antipaticamente hierárquico.

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