O feitiço se vira contra os feiticeiros, mas para salvá-los (diga o que disser FHC, o impoluto…)
Carlos Novaes, 16 de Março de 2016 — (15:45)
A ida de Lula para a Casa Civil da presidência da República com poderes para, além de fazer a articulação política com o Congresso, também alterar a política econômica do governo, ou seja, como um super ministro, significa a sua volta ao comando do país. Não deixa de ser irônico que seja mais uma vez Lula a tirar todas as consequências espalhafatosas de um projeto tucano vicário: Lula é o primeiro-ministro do semi-presidencialismo que dias atrás foi proposto pelo PSDB em sua incessante vontade de arremedar a França, cacoete que vem desde os tempos da academia uspiana.
Diga-se o que se disser de Lula, por mais defeitos que se lhe possam apontar, não há nele falta de coragem e de argúcia para explorar mesmo as menos propícias possibilidades de escape em situações difíceis. Foi assim em 2005, quando fez do mensalão a plataforma de lançamento do Lula incontrastável que a Lava Jato atingiu em pleno voo; e é assim agora, quando se lança num mergulho de flecha pois, mesmo com os recursos de navegação tão avariados, enxergou a única oportunidade de redenção realmente aberta: pode enquadrar Dilma e tentar salvar seu legado, o que implica, se conhecemos esse legado em toda a extensão do seu significado, estender a mão generosa a toda sorte de anjos caídos…
Que o leitor julgue, mas tenho como certo que Lula se decidiu pela ida ao ministério depois de ter ficado claro que Aécio vai passar a dividir com ele as honras da Lava Jato, pois as declarações de Delcídio requerem que se abra um processo contra o escorregadio tucano mineiro. Mas não pense, leitor, que eu estou indo na onda de supor que a decisão de Lula vem da disposição de lutar contra os tucanos, fazendo jus à polarização tola das ruas e da mídia convencional. Não. Os tucanos, mais uma vez, precisam de Lula, e desesperadamente. Lula vai para a articulação entre o Executivo e o Legislativo para salvar todo o sistema político do xeque em que foi colocado pela Lava Jato e, de quebra, oferecer uma saída confiável ao mercado, como não poderia deixar de ser. Lula volta ao planalto para dizer: “é assim que se faz, seus imbecis!”. Lula vai para o comando do país de modo a garantir que o Brasil continue a ser controlado por essa tralha que tão traiçoeiramente nos representa. Lula vira o primeiro-ministro que os tucanos sonharam ao preço de forçar o país a viver o pesadelo de uma tentativa desesperada de refazer a solda do Real. Nas linhas a seguir vou tentar explicar as afirmações acima. (Agora, se você é do tipo que acha meus artigos longos, leitor, faça o seguinte: não leia).
A crise política foi, finalmente, instalada
Confirmando desdobramento que tentei antecipar aqui e aqui, o encadeamento das denúncias de Nestor Cerveró e Delcídio Amaral arrastou o país a uma verdadeira crise política porque, com base nelas, a Lava Jato reuniu tanto evidências de crime envolvendo Dilma e a chapa Dilma-Temer, como achou a ponta do novelo tucano em Furnas. Essa crise política real é de superação complexa porque o nosso Congresso Nacional, instância na qual, em tese, se processam e superam as verdadeiras crises políticas, não tem legitimidade para enfrentar os desmandos do Executivo, e isso por duas razões principais: primeiro, porque seus principais líderes são líderes precisamente enquanto distribuem a seus pares poder e dinheiro obtidos de suas relações com operadores da corrupção concatenados com o Executivo; segundo, porque esse Legislativo federal veio desde o início da Lava Jato empenhado em produzir uma falsa “crise” política para precisamente encobrir a crise de representação que a ação comandada por Sergio Moro pôs a nu e feriu de morte, a saber: nossos representantes não nos representam, são antes delegados dos interesses dos grandes do “mercado” que, junto com eles, reúnem poder para fazer dinheiro na ciranda da desigualdade.
A “crise” política que os profissionais da política alimentaram no curso de 2015 para jogar no colo do Executivo toda a conta da corrupção, uma corrupção que, saída da desigualdade, está na raiz da ilegitimidade da representação deles, se voltou contra eles, se fazendo crise real, por três razões principais: primeiro, ao embaraçarem a ação do Executivo, deram tempo para que a Lava Jato acumulasse evidências não apenas contra a presidente, mas também contra eles mesmos; segundo, a fragilidade intrínseca de um Executivo sob Dilma, cuja capacidade defensiva contra a Lava Jato pôde ser embaraçada tão facilmente (ainda que com custos econômicos enormes para a sociedade brasileira), levou a cálculos precipitados sobre sua queda e, assim, ao afloramento sem controle das ambições conexas no p-MDB (embates entre Cunha, Renan e Temer) e no PSDB (disputas entre Aécio, Serra e Alckmin), com a correspondente dificuldade de concatenação da ação conjunta deles no Legislativo, o que deu ainda mais espaço, e tempo, para a ação do Judiciário, âmbito no qual a Lava Jato, apoiada no direito e na opinião pública, vem empurrando o STF a agir.
Ou seja, a crise (política e econômica) em que estamos mergulhados é, sobretudo, e antes de tudo, uma crise aguda do divórcio crônico entre os interesses do sistema político do país e os interesses da maioria da sociedade, que vem sendo ludibriada pelos políticos profissionais a fazer escolhas por um ou por outro dentre eles, quando, na verdade, nenhuma das forças políticas que se exibem no teatro de operações está a altura de oferecer uma alternativa. Exploremos as razões que nos levam a essa desorientação:
A desigualdade como problema político
Embora os números que atestam o caráter único da nossa desigualdade sejam conhecidos de toda gente e quase todo mundo fale contra essa mazela social e econômica, há pouca compreensão sobre o papel dela na nossa crise de representação política e nos males respectivos, com destaque para a corrupção. O desmanche do PT é apenas o mais vistoso exemplo do poder que a desigualdade tem de levar as organizações de ação coletiva surgidas para combatê-la a selecionarem como dirigentes justamente os militantes mais sensíveis à acomodação com ela. É que a pobreza é tão intensa e as dificuldades à ascensão individual se mostram tão intransponíveis, que todo grupo de pressão que se forma logo é chamado a ver as oportunidades de ganhos para si. É na peneira que separa os mais e os menos suscetíveis à acomodação que se dão as lutas internas iniciais. Em sociedades menos desiguais, as possibilidades de realização pessoal são maiores, e quem se interessa pela ação coletiva chega às organizações de reivindicação com seus problemas mais básicos já resolvidos, não sendo tão prementes as motivações do seu engajamento.
Os sindicatos brasileiros, sejam os ligados aos tucanos, sejam os ligados ao lulopetismo, são o melhor exemplo dessa distorção que tento agarrar nos estreitos limites deste artigo de blog, escrito sob as urgências do momento. A vida na máquina sindical é sempre muito menos cansativa e mais rendosa do que aquela que é imposta pela vida no trabalho. Além de escaparem à rigidez das relações de poder impostas aos seus representados pela estrutura empresarial, os sindicalistas gerem sem nenhuma fiscalização orçamentos não raro significativos, sem contar sequer com um arremedo de legislativo para fiscalizar o gasto do dinheiro à sua disposição – daí as disputas crescentemente violentas pelo controle da máquina sindical rentável, onde Executivo e Legislativo coincidem, em mais um arremedo de parlamentarismo.
No PT não foi diferente: Lula e José Dirceu foram os cabeças da seleção dos piores, numa prática que neutralizou pelo ostracismo, afastou por desencanto, ou enxotou com hostilidade, todos aqueles que se contrapuseram efetivamente aos seu métodos. O resultado foi uma máquina burocrática que, moldada por nulidades como Silvinhos, Delúbios, Vaccaris, Falcões, Okamotos e assemelhados, concentrou-se na prática de ganhar poder para fazer dinheiro. Esse apodrecimento precoce foi habilmente ocultado pelo manejo calculado de bandeiras embalsamadas caras aos agentes sociais sinceramente motivados à luta contra a desigualdade. Embora tenha sofrido um solavanco no mensalão, essa mentira serviu de barragem à mudança em todo o período Lula e, como não poderia deixar de ser, chegou sob pressão máxima no período Dilma, com os resultados desmoralizantes que conhecemos graças sobretudo à Lava Jato.
Uma desigualdade como a brasileira (ou a russa) engendra a corrupção precisamente porque impõe sofrimentos que atingem escalonadamente a imensa maioria da sociedade (como discuti aqui) e não podem deixar de gerar numerosa militância organizada contrária a eles; contingente no qual não chega a ser difícil selecionar interlocutores “confiáveis”, levados a se fazerem amigos da ordem desigual que de início combatiam (daí que na maioria das organizações haja tão pouca alternância, pois na imensa maioria delas se permite a danosa reeleição infinita – tal como no poder Legislativo…). Na outra ponta, setores empresariais apregoadores de supostas leis de mercado, mas altamente dependentes do dinheiro público, demonizam a ação estatal enquanto instalam propinodutos entre o estado e o mercado que garantem tanto o fim da concorrência que alegam defender, quanto a canalização privilegiada do poder de estado que simulam execrar. Assim, uma obra que custaria 100 alcança facilmente o preço final de 200, pois alegando os riscos de receber 150 para devolver ilegalmente 50 ao agente estatal corrupto, o empresário cria uma oportunidade para aumentar seus lucros em mais 50…
Em suma (1): nessa situação de crise aguda de mazelas crônicas, temos dificuldades de saber como pensar e proceder porque não vemos a relação entre a desigualdade, a corrupção, a crise de representação e a ideologia enganadora do livre mercado (livre apenas para quem perde). Eis o conjunto danoso agarrado pela Lava Jato e que pôs em xeque todo o sistema político brasileiro.
Desorientados, tendemos a escolher lado onde não há lado a escolher.
Uma polarização enganosa
Para além do envolvimento de ambos na corrupção, para além do que há de convergente entre eles nessa reestreia de Lula na praça dos Três poderes, a maior evidência da semelhança fundamental entre PT e PSDB aparece justamente no enfrentamento à desigualdade, que, como vimos, está na base da corrupção e da crise de representação que nos infelicitam. Por mais que se possa reconhecer as políticas sociais da era Lula e o que restou delas nos anos Dilma, o fato é que embora elas tenham minorado os efeitos da pobreza, muito pouco, e mesmo nada significaram na diminuição da desigualdade em si e, muito menos, na alteração da ordem social que gera e garante essa desigualdade, situação muito parecida com a era tucana de FHC. Ricos e pobres continuaram separados pelo mesmo abismo, ainda que todos tenham se deslocado na escala de ganhos. Nada é mais emblemático dessas limitações do que a declaração de Lula de que no seu governo pobres e ricos ganharam dinheiro como nunca antes.
A essa semelhança mais geral, que reflete o compromisso de ambos com o pacto do Real — os tucanos porque o instituíram e o o lulopetismo porque a ele aderiu em 2002, depois de ter cumprido a larga curva de capitulação a que foi levado pela ânsia por poder e dinheiro — se soma a mesma falta de imaginação no exercício do poder político eleitoral: ambos se rendem às exigências do p-MDB para a partilha do governo. Assim, embora adversários eleitorais, ambos governam segundo respeitem a cláusula pétrea do pacto: os ricos não podem perder e os pobres só melhoram se todos puderem melhorar, ou às custas da qualidade de vida das camadas médias. Já o papel do p-MDB como dobradiça, que deitou raízes há mais de cinquenta anos (como busquei explicar numa série de quatro artigos publicados aqui), deveria servir de mais uma evidência para o caráter fajuto da polarização entre PT e PSDB, já que ambos possuem não apenas uma face compatível com o entulho autoritário que sobreviveu ao fim da ditadura paisano-militar, como dele não podem prescindir quando chegam à presidência da República.
Como não poderia deixar de ser, esses três partidos e os outros que os satelizam estão envolvidos em práticas de corrupção, acusando-se uns aos outros diante do público, para efeitos do alarido da mídia, mas negociando diligentemente intra-muros, no intuito de a cada percalço entregar tão somente os esquemas mais manjados, como deram exemplos as inúmeras pizzas assadas nos últimos anos pelas CPIs instaladas no Congresso nacional, palco do jogo combinado de sempre, onde eles simulam nos representar para nos enganar e, claro, garantir a permanência do esquemão mais geral, que a Lava Jato colocou em xeque. Por isso a volta de Lula vai ser agarrada como uma possibilidade única de restauração do status quo.
Resumindo, os onipresentes e antigos esquemas de corrupção do p-MDB acoplam-se aos menos antigos esquemas do PSDB e aos recentes esquemas do PT conforme detenha a presidência da República este ou aquele destes dois últimos partidos. Diante disso, não fosse a estupidez humana tão conhecida, o engalfinhamento apaixonado nas ruas por hordas sinceras de um e outro lado (nos quais há quem queira ver luta de classes) seria de estarrecer o observador medianamente informado. A volta de Lula pode nos ajudar a ver tudo com clareza.
Em suma (2): para quem está interessado em que o Brasil dê um passo à frente, criando leis e políticas que diminuam significativamente a desigualdade, permitindo sufocar a corrupção e reinventar a representação, não faz sentido escolher entre o castigo ao PT ou ao PSDB, nem, muito menos, depositar esperanças no p-MDB. Temos de nos livrar dos três enquanto os três se agarram para se salvarem.
Desorientados, nos dividimos entre os que criticam Moro por perseguição seletiva ao PT, e aqueles que o apoiam por combater a corrupção simbolizada no PT, ignorando as mazelas de p-MDB e PSDB. Enquanto isso, o sistema parece ter encontrado a via de escape que buscava, mas sob a batuta de Lula, não contra ele.
A unilateralidade da ação da Lava Jato
Além da desigualdade e da polarização enganosa exploradas acima, também a unilateralidade da Lava Jato contra o lulopetismo ajudou a nos levar à desorientação. Em primeiro lugar, ao negligenciar as falcatruas de PSDB e p-MDB, Moro deu munição política à defesa dos corruptos; em segundo lugar, porque essa injustiça flagrante gerou insegurança nas pessoas de bem quanto ao que realmente a Lava Jato estava a almejar. Essa unilateralidade deriva, por certo, também de uma certa cultura conservadora, anti-petista por hábito, não por fundamento (se atinassem para os fundamentos saberiam que o PT é um aliado da ordem da desigualdade). É nesse conservadorismo que se tem agarrado os críticos modorrentos da Lava Jato: tendo servido a era Lula, “teorizam” as ilusões geradas por ela e tentam a qualquer custo salvar suas próprias biografias, como se houvesse muita gente interessada nelas. Não querem ver que o poder de fogo da Lava Jato se centra no lulopetismo porque é dele a presidência da República, foi sob ele que a corrupção na Petrobrás encontrou seu desenho mais recente, ainda que herdando operadores da presidência FHC, pois o p-MDB muda o presidente a que serve, mas não os tarimbados operadores de que lança mão.
Como quer que se pendurem as razões acima, porém, a razão principal da unilateralidade da Lava Jato está no fato de que a sociedade brasileira ainda não produziu uma força organizada capaz de oferecer uma alternativa política ao país. Sem alternativa de mudança em que se apoiar, a Lava Jato se vê na contingência de dosar os inimigos que faz, de se apoiar na confusão gerada pela luta entre forças igualmente comprometidas. Sem alternativa de mudança em que nos engajarmos, nos vemos a escolher entre o que está aí, e somos empurrados a tudo enxergar sob a ótica dessa escolha mal feita. O Judiciário se fez vetor da mudança porque o sistema político faliu, mas um poder sozinho não faz transformação, mormente se atuando convictamente apenas na primeira instância.
A hora é tão crucial para o país, e ela nos chega em momento tão pouco auspicioso, que foi necessário mais de um ano de “crise” política, “crise” essa que prolongou e tornou muito pior do que deveria ter sido essa crise econômica que nos leva à beira do colapso, para que o divórcio entre a sociedade e seu sistema político ficasse evidente: da perspectiva deles, dos políticos profissionais, a única saída é uma volta ao passado; da nossa perspectiva, da sociedade que transcende o mercado, a única saída é fazer dessa volta ao passado a evidência cabal de que não queremos saber deles.
Em suma (3): Lula chega a primeiro ministro não exatamente para conquistar imunidade para si, mas para conferir imunidade a todo um sistema. Lula chega a primeiro ministro não para se refugiar no Supremo Tribunal Federal, mas para fazer-se interlocutor-ponte entre os Três Poderes, na perspectiva de reintegrá-los ao jogo de poder que a Lava Jato escangalhou. Se der certo, é como se Lula passasse direto de Bettino Craxi a Berlusconi, o que não deixaria de ser uma depuração…
A desorientação tenderá a aumentar porque além das dificuldades já postas à compreensão da trama, Lula volta ao proscênio com a fama imerecida de campeão do combate à desigualdade. Foi para enfunar essa fama que ele reivindicou a a condição de orientador da política econômica do governo. A Lava Jato viverá agora o seu dilema: ao abrir baterias contra Aécio, deixará de ser unilateral, mas ao preço de paradoxalmente estimular a convergência política do sistema político contra si. A sociedade brasileira precisa se reinventar não exatamente para apoiar a Lava Jato, mas para salvar a si mesma.