Carlos Novaes, 29 de outubro de 2022
A razão principal para a existência de segundo turno é dar uma segunda chance aos eleitores dos candidatos que não alcançaram sequer a segunda colocação no primeiro turno. Isso deveria levar os dois candidatos finalistas a dialogar com esses eleitores. Por que nem Lula nem Bolsonaro fizeram dessa exigência a linha central de suas respectivas campanhas no segundo turno?
Porque nenhum dos dois tem um projeto para o futuro do Brasil. Lula insiste em uma restauração do passado recente, o que não convém à maioria de nós, seja porque foi insuficiente ali onde foi bom; seja porque foi farto em mazelas indesejáveis. Bolsonaro se orienta pela fantasia de uma regressão ainda pior para a maioria que prefere a democracia, pois sonha com a reinstalação do passado ditatorial, de cujo entulho ele é o chorume que virou jorro e, ademais, pretende prolongar um governo desastroso.
Trocando em miúdos, ambos estão impedidos, cada um a seu modo, de se dirigir com largueza e inventividade às preferências majoritárias do eleitorado que, confusamente, (i) prefere a democracia, (ii) tem aversão ao “sistema” e (iii) quer mudança. (i) Preferir a democracia é uma baliza fundamental, pois realimenta a memória das lutas dos últimos 30 anos e tira lastro de qualquer pretensão ditatorial. (ii) A aversão majoritária ao “sistema” oferece um norte para a preferência pela democracia, o que permite reconfigurar e requalificar a maioria, agora reunindo democratas e antissistemas. (iii) A vontade majoritária por mudança dá oportunidade de apresentarmos um projeto transformador (nossa versão para a “mudança”) a essa maioria que se reconfigura e requalifica, um projeto que tenha como eixo o combate à desigualdade (mantida e nutrida pelo Estado de Direito Autoritário – nossa versão para o “sistema”), na perspectiva da construção de um Estado de Direito Democrático.
Nem Lula, nem Bolsonaro podem lutar pela construção da maioria requalificada que reúna as três preferências acima. Lula pode se apresentar como (i) um democrata, mas não tem como deixar de aparecer como (ii) representante do “sistema” e, portanto, está impedido de apresentar qualquer projeto de mudança, o que o condena a (iii) essa restauração conservadora que temos visto. Bolsonaro, que não tem como (i) se apresentar como um democrata, fica se contorcendo para redefinir o que é a democracia, numa conversa cínica sobre liberdade e as tais “quatro linhas da Constituição”; e embora ele tenha vencido em 2018 simulando correspondência com a onda do “sentimento antissistema”, (ii) seu governo criminoso apoiado no Centrão o impede de fazê-lo agora, salvo para a minoria desejosa de uma ditadura, pois o besta não tem como representar uma maioria democrata e antissistema na (iii) luta contra a desigualdade na perspectiva de um Estado de Direito Democrático.
Quer dizer, o caminho da vitória em 2022 teria saído da soma proveitosa das três parcelas: i+ii+iii. Como ninguém foi capaz de fazê-la, restaram Lula e Bolsonaro, que aparecem em empate técnico com ligeira vantagem numérica para Lula precisamente porque o ex-presidente é o único que dialoga plenamente com uma (i) das três parcelas: Lula é um democrata. Além disso, Lula fez governos infinitamente melhores do que o de Bolsonaro, especialmente no tocante à desigualdade, pois embora não a tenha combatido, Lula tampouco se empenhou em aprofundá-la, como faz Bolsonaro. Se o empate persiste e nos deixa tão apreensivos é justamente porque esse arranjo que sugere vantagem para Lula é produto cerebrino de difícil concretização na confusão de uma campanha tão afastada do que realmente mobiliza o eleitorado.
A TV Globo exibiu tudo isso na noite de ontem, ao transmitir o debate entre os dois. Por estar preso ao passado, Lula foi incapaz de brilhar no debate, mesmo tendo como oponente alguém tão desqualificado como Bolsonaro. Como não pode fazer propaganda de sua fantasia secreta, a volta à ditadura, nem pode dar vazão à aversão aos pobres a que o leva seu fascismo classe-média, Bolsonaro, em qualquer debate, está condenado à inconsistência de defender com mentiras um governo que nada ofereceu de bom precisamente porque sua imbecilidade o impediu de governar até no sentido da fantasia irrealizável de tornar-se um ditador. Não obstante, Lula não pode esmagá-lo porque não tem um projeto para o Brasil real.
Lula poderia ter esmagado Bolsonaro deixando-o falar à vontade e reservando para si ignorá-lo enquanto oferecia ao país os elementos centrais do projeto que tenha para cada um dos temas abordados. Por exemplo: quando o tema foi “meio ambiente”, Lula, que dispunha de 5 longos minutos, poderia ter abordado rapidamente nossos seis biomas, oferecendo para cada um deles pelo menos uma proposta de preservação com desenvolvimento, esbanjando atualidade e esperança. Mas não. Lula se engalfinhou com Bolsonaro, perdeu qualquer norte que pudesse ter e, assim, mostrou-se tão despreparado quanto o oponente mentiroso, repetindo, pela enésima vez, parte do (pouco) que seus governos fizeram na Amazônia e nada dizendo do que quer que se proponha a fazer.
Um debate como esse atrapalha até a confirmação do voto recebido em primeiro turno, que dirá dos votos a conquistar nessa segunda etapa da disputa! Um dos dois receberá maioria de votos, mas essa maioria se apresentará quase que como obra do acaso, o que ajuda a entender o empate que as pesquisas estão a mostrar: estamos torcendo por Lula como quem torce para que dê cara ao assistir uma moeda a rodar.
Tudo somado, Lula e Bolsonaro representam o impasse a que nos trouxe a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. A maioria da sociedade brasileira está sendo levada a escolher com base no que rejeita de cada um dos dois precisamente porque rejeita este Estado, este sistema. A rejeição a ambos é a face visível da crise de legitimação que permanece oculta às consciências, embora aflore confusamente no “sentimento antissistema”. Bolsonaro é rejeitado pelo governo que fez e porque representa o entulho autoritário que a maioria quer remover definitivamente; Lula é rejeitado porque representa o sistema em sua limitação fundamental: faz do Estado abrigo contra danos da desigualdade, não agente de combate efetivo a ela — por isso, Lula se torna presa fácil dos críticos do Estado “intervencionista” e “inchado” enquanto, ao mesmo tempo, acaba por contentar esses críticos com as vantagens, os privilégios e a corrupção que este Estado acaba por ter de distribuir em seu papel de mantenedor da desigualdade. Quem quiser que se iluda.
Fica o Registro:
– O episódio em que Carla Zambelli se comporta como uma miliciana no centro de SP deve ser tão repudiado quanto o foi o atentado do paisano Roberto Jefferson no Rio. Zambelli está para Tarcísio como Jefferson está para Bolsonaro. Se Tarcísio ganhar, comportamentos desse tipo irão virar rotina em SP. Haddad é a resposta contra o avanço da milícia em SP.
– O alarido da mídia em torno de uma possível reação golpista do bolsonarismo não passa disso, alarido. Nada além de alguma arruaça passageira irá acontecer se, como esperado, Bolsonaro perder para Lula amanhã. Na verdade, tão logo constate a derrota, Bolsonaro começará a negociar para salvar a si e aos seus da cadeia, pois este sempre foi o terceiro objetivo dele, como exploramos aqui. Dado o que conhecemos do jogo faccioso do Estado de Direito Autoritário, Bolsonaro nada de muito grave terá a temer. Oxalá sejamos surpreendidos e este facínora venha a receber o que merece.