TUDO PODE ESTAR MAIS CLARO DO QUE PARECE

Carlos Novaes, 29 de março de 2024

Com acréscimo às 19:40h em Fica o Registro

Faz tempo que nada publico neste blog. Ocupado em outras tarefas, deixei que os tentáculos da conjuntura se desenvolvessem até que fatos políticos relevantes voltassem a me motivar. Falo em tentáculos porque quem acompanha este blog sabe onde localizo o corpo do polvo em que as facções estatais se juntam: o Estado de Direito Autoritário – EDA. Tratarei a seguir do “golpe” de 8 de janeiro e do caso Marielle.

A natureza blefadora das tentativas de golpe de Bolsonaro foi discutida neste blog várias vezes, especialmente aqui e no dia 06 de janeiro, dois dias antes da arruaça (o leitor me ajudaria a mostrar o que penso se lesse estes dois artigos mais antigos, bem como se assistisse a este vídeo no canal Lavoura Política). Sempre deixei claro que embora Bolsonaro sonhasse com um golpe, que parte da sua base “autorizasse” um golpe, que militares aliados deles falassem num golpe, esse golpe era inviável, sobretudo (mas não apenas) em razão da preferência da maioria da sociedade brasileira pela democracia.

Todo o material recente sobre o que aconteceu no segundo semestre de 2022: minutas para malogradas medidas presidenciais golpistas; o general Heleno suplicando em reunião no Planalto por um golpe antes da eleição presidencial, pois depois seria impossível; as trocas de lamúrias entre golpistas, inconformados com a não adesão de chefes militares ao almejado golpe; tudo isso, e outros detalhes conexos, mostra que jamais houve possibilidade de golpe. A arruaça de 8 de janeiro saiu desse semestre anterior de frustrações acumuladas, em que os golpistas de palácio sentiam a inviabilidade de suas pretensões mas, irracionalmente inconformados, continuaram a se alimentar das ilusões com que inflavam a atmosfera conspiratória em que deliravam os golpistas acampados — esse tráfico de ilusões recíprocas é que levou à insânia e, dela, à baderna.

Veja bem, leitor, havia golpistas no palácio, havia golpistas na rua, houve uma arruaça promovida por golpistas da rua e assistida por golpistas de palácio (PM do DF e GSI da presidência sob Lula), mas não houve tentativa de golpe. A compreensão de que não houve tentativa real de golpe, não obstante houvesse golpistas, não é só minha, mas de duas maiorias esmagadoras dos brasileiros com mais de 16 anos de idade: em pesquisa DataFolha divulgada hoje, para 65% o 8 de janeiro foi vandalismo, não tentativa de golpe; não obstante, para outros 63%, os golpistas não devem ser anistiados seja da arruaça, no caso dos golpistas da rua, seja da conspiração contra o Estado de Direito, no caso dos golpistas de palácio e de alguns dos participantes da arruaça.

Quer dizer, mesmo com meses de alarido da mídia, do governo, das facções majoritárias atuando no STF, e da nossa autointitulada esquerda defensora da ordem vigente, martelando o golpe supostamente tentado, e mesmo com os bolsonaristas alardeando mais uma anistia indevida, expressiva maioria da população acima de 16 anos não se deixou enganar e persevera em sua orientação auspiciosa: preferência pela democracia e sentimento antissistema. Quem reunir essas duas preferências num projeto de transformação com base no combate à desigualdade construirá uma nova maioria para lutar por um Estado de Direito Democrático.

Marielle

Entre 15 e 20 de março de 2018 publiquei quatro artigos neste blog sobre o assassinato de Marielle e Anderson, já então discutindo como na morte deles se articulavam as facções estatais do Estado de Direito Autoritário-EDA. Como não poderia deixar de ser, o que vai aparecendo parcialmente como desfecho do caso mostra que a realidade foi além do que supúnhamos naquela altura: o próprio chefe da polícia civil articulou o crime e cuidou de encobri-lo.

A mídia convencional e as redes sociais padrão “defesa da democracia” estão pendurando o desfecho do caso de muitas maneiras, mas há uma perspectiva comum, da qual partilham até pessoas que se notabilizaram pela valentia com que enfrentaram a força dos criminosos: todos tratam essa força eleitoral e matadora dos irmãos Brazão como evidência de uma suposta “ausência do Estado” nas comunidades, abandonadas ao crime.

Ora, os Brazão, que mandaram matar Marielle, têm larga trajetória parlamentar, tanto estadual quanto federal, um deles foi eleito para o Tribunal de Contas com esmagadora maioria na Assembleia Legislativa do Rio, com muitos votos da autointitulada esquerda — não é também senão estatal a proteção que o deputado Brazão está a receber na Câmara Federal, com Lira se reunindo em seu favor com o não menos estatal Lewandowski (ex-STF); quem articulou o assassinato de Marielle e protegeu os cúmplices no crime foi nada menos do que um delegado, cuja carreira estatal bem-sucedida lhe permitiu chegar à chefe da Polícia Civil; quem nomeou o delegado para a Chefia foi um general do Exército; o matador de Marielle foi treinado como agente estatal pela PM e fez uso de munição de origem estatal para cometer os crimes.

Os mandantes, o articulador e o matador atuavam a partir de seus laços estatais e mantinham relações se não cordiais, ao menos de convivência conveniente com o crime organizado que, embora civil, é “organizado” desde dentro dos presídios estatais, onde seus chefes já encarcerados mantém seus poderes sobre o que se passa na rua pela compra da omissão, da ajuda e da cumplicidade de outros agentes estatais, como carcereiros, vigias e diretores de presídios. Tudo isso forma um claro conjunto faccioso, que não é senão estatal.

Em suma, os Brazão, as milícias, o crime organizado e a polícia corrupta que ditam a norma da vida infeliz das comunidades, enquanto distribuem migalhas para angariar poder pelo Brasil afora, não são resultado de uma suposta “ausência do Estado”, eles são a presença mesma do próprio Estado de Direito Autoritário, do qual também se serve, geralmente em outros poleiros (mas nem sempre…) a nossa não menos facciosa autointitulada esquerda, que espertamente o defende como se fosse um Estado democrático de direito.

Fica o Registro:

19:40h – Novos números da pesquisa DataFolha: perguntados se Bolsonaro tentou ou não “continuar presidente planejando um golpe”, 55% disseram que sim e 39% disseram que não. Veja bem, leitor, ao contrário do que diz a matéria que faz a “análise” dos números, a pergunta não foi se Bolsonaro tentou um golpe, mas sim se ele planejou um golpe. A maioria entende que Bolsonaro planejou um golpe porque soube fazer a diferença, embora a pergunta tenha algo de capcioso. Está claro que ao conspirar/planejar para abolir o Estado de Direito em favor de uma ditadura Bolsonaro cometeu crime contra o Estado de Direito. Parte dessa conspiração foram as sucessivas “tentativas” de golpe, que sempre acabaram sob a forma de blefe, uma vez que se tratavam de operações para incitar a ação de outros e/ou medir-lhes a disposição golpista. Bolsonaro planejou um golpe, mas não tentou realizá-lo porque nunca reuniu força suficiente. Note bem, leitor, planejar coletivamente um assassinato, sem entretanto chegar a atentar contra a vítima, não tipifica tentativa de homicídio, mas tipifica formação de quadrilha. Na mesma linha, planejar golpe contra o Estado de Direito não tipifica tentativa de golpe, mas tipifica conspiração contra o Estado de Direito.

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