“FAÇA A COISA CERTA”

Carlos Novaes, 10 de janeiro de 2023

Com acréscimos em Fica o Registro, às 18:36h

O título acima retoma celebrado filme do cineasta negro norte-americano Spike Lee, no qual Lee, que também representa o personagem protagonista, discute, entre outras coisas, as escolhas a serem feitas em situações limite.

Com as invasões das sedes dos três poderes da República, deram-se eventos em que dois agentes “fizeram a coisa certa”, sobrando aos outros se virarem como permitiram as suas limitações. Desses que fizeram a coisa certa, um a fez em total inconsciência, e se esgotou; o outro tornou-se protagonista central precisamente pela consciência com que não para de fazer a coisa certa. Falo, pela ordem, da turba bolsonarista, e de Alexandre de Moraes.

Para explicar porque entendo que a turba “fez a coisa certa” (note bem, entre aspas) ao invadir e quebrar as sedes dos três poderes da República, volto ao sentido do título do filme de Lee, pelo menos na minha interpretação: em cena notável, o personagem defendido por Lee, no auge das tensões, espatifa a vitrine da pizzaria dos patrões brancos arremessando contra ela uma lata de lixo. E o fez precisamente para desviar para as coisas uma ira que poderia se voltar contra as pessoas. Com o gesto, ele desencadeou uma torrente de ira e ressentimentos que estava represada, mas desviou tudo para os bens materiais, não para os titulares desses bens. Essa é a discussão central que o filme propõe, penso eu.

Na Conclusão que escrevi ontem na tentativa de agarrar o sentido político mais evidente dos eventos em curso, aludi, num toque entre vírgulas, ao fato de que a arruaça se deu num domingo. Mas isso ficou muito telegráfico, mesmo considerando que fiz um hiperlink na palavra domingo. Explico-me, então. Como se sabe, o domingo é o dia da celebração das fantasias de fuga ante a dureza da vida cotidiana: não se trabalha; finge-se que os problemas não existem ou, pelo menos, se faz o adiamento deles; as famílias celebram como dá o que restou de tradições havidas, hoje estropiadas; a TV insiste em brincar de realidade feliz, etc.

As invasões se deram num domingo precisamente porque se tratava da catarse de uma fantasia animada por uma sequência de blefes impotentes diante de uma realidade de que os manifestantes se evadiram por se recusarem ao esforço de entende-la. Eles não querem revolucioná-la, muito menos transformá-la (o que exigiria o esforço do entendimento) – eles fantasiam simplesmente aboli-la. Não era para valer; nunca foi para valer. Nada do que houve nesse domingo teria acontecido se fosse em um dia de semana, com os prédios cheios de gente. O que animou os golpistas não foi apenas a omissão intencional das autoridades paisanas e militares que lhes são simpáticas. O que os animou, mesmo, foi a certeza de que não haveria oponentes; foi a certeza de que não haveria a radicalidade de um enfrentamento real, imediato; foi a certeza de que eram eles e as coisas, ali, inertes, ao seu dispor. Tal como Bolsonaro, eles agiram imersos nas próprias fantasias.

É que, tanto quanto Bolsonaro, eles se contentam com a brutalidade verbal da coisificação de tudo e de todos, como se ninguém diferente importasse; mas como a realidade insiste em desmenti-los, eles se frustram e ressentem; se veem reduzidos à impotência do que recentemente explorei como um joguinho Gog&Magog, e, então, inconscientemente, arremetem contra moinhos de vento, para prejuízo deles próprios.

Moraes não para de fazer a coisa certa porque conscientemente compreendeu tudo isso e ainda mais: ele compreendeu as limitações de Lula como líder, que está aprisionado no papel de agente central do jogo das facções.

Há algumas semanas, gravei um vídeo para o canal Lavoura Política, no qual, mais uma vez, discuti a impertinência de, na atual conjuntura, procurar “aliviar tensões” ou fazer “pacificação”. As ações de Moraes vem mostrando que ele compreendeu isso muito bem: deixou para Lula a bobagem facciosa de “apaziguar” a situação, “unir o Brasil”, e passou a transpor limites que se mostraram de papel, especialmente um suposto limite que os militares imporiam.

Depois de denunciar a conivência militar com a desordem, e de dar um chapéu em Lula, mandando dissolver os acampamentos à beira dos quartéis comandados por quem deve obediência ao presidente da República (analisei esses fatos, no correr das horas, a quente, aqui), Moraes passou a literal e expressamente recusar a “pacificação” e acaba de decretar a prisão do Comandante da PM no dia da invasão.

Por tudo isso, Moraes não para de “fazer a coisa certa” e, claro, aparece como o principal agente da história brasileira que está a ser escrita neste momento, protagonismo que irá nos custar caro mais adiante, quando, entre outras coisas, Lula descobrir que assim como Alckmin pareceu o vice adequado inclusive para neutralizar uma possível má vontade de Moraes contra sua candidatura, ele, Moraes, poderá vir a se revelar perigoso oponente na luta dura que está por vir entre as facções.

Fica o Registro:

18:36h

– A imprensa dá notícia de que Lula criticou Múcio pela atuação nos episódios. Ao mesmo tempo, porém, dizem que o presidente reconhece que a a situação é delicada. Ou seja, além de indevidamente poupar Flávio Dino, Lula não demite Múcio porque continua a achar que resta aos militares alguma outra coisa senão obedecer!

– Na mesma matéria, Guilherme Boulos, um prócer da nossa autointitulada esquerda, já se mostra tão acoelhado no jogo de facções que, até para criticar a inaceitável atuação de um bolsonarista como Múcio, se submete a falar em questão de “opinião” e, ainda por cima, pede desculpas antecipadas: “agora, o ministro José Múcio dizer que as manifestações pedindo golpe militar em frente aos quarteis são democráticas, desculpe, mas essa não é a minha opinião. Quanta combatividade e altivez ideológica!!

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