AVISO: no dia 21 de julho publiquei aqui no blog um artigo com o título RESUMO DA ÓPERA. Horas depois, houve um incidente no DataCenter que hospeda o provedor deste blog e ele saiu do ar. A situação ainda não foi inteiramente normalizada, mas já é possível algum acesso. Não consegui, porém, recuperar aquele post publicado no dia da pane. Abaixo, publico uma outra versão do texto, feita com base num rascunho que fora salvo. 24/07/2018.
Carlos Novaes, 21 de julho de 2018
Estamos em vésperas de eleição, o país não produziu uma alternativa crível para a transformação política de que precisa, mas as candidaturas manjadas que estão aí dão a impressão de que tudo pode acontecer. Como é possível que o marasmo possa carregar tanta incerteza?
É simples: dado o abismo entre a maioria da sociedade e o Estado ocupado e disputado pelas facções estatais, abismo esse que é a própria crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, o jogo político está a ser feito apenas dentro do Estado conflagrado, enquanto a sociedade assiste para ver no que vai dar.
Tudo pode acontecer precisamente porque as facções não têm compromisso, sequer laços minimamente consistentes, com a maioria da sociedade. Se houvessem compromissos ou laços, o jogo seria mais previsível porque a organicidade da política, seu caráter programático ou ideológico, vem das relações que a política constrói na sociedade para orientar a disputa pelo poder de Estado.
Como não há essas relações, como os políticos profissionais sequestraram a política, como os partidos são meras fachadas para as facções conflagradas entre si em busca de reunir poder para fazer dinheiro, não há diferenças programáticas ou ideológicas para valer, que servissem de baliza para as disputas entre eles – a disputa por poder pelo dinheiro iguala a todos.
O resultado mais visível é esse aparente paradoxo: numa eleição presidencial e congressual que deveria ser decisiva, pois a crise é imensa, a sociedade está à margem do processo político e o jogo dos políticos profissionais se fez totalmente imprevisível, pois dos arranjos entre eles pode sair qualquer tipo de variação – e isso não porque eles sejam diferentes, mas porque eles são parecidíssimos: qualquer combinação é possível. A eleição só é previsível num aspecto: ela não vai produzir uma saída para o país.
Uma evidência de que a eleição não produzirá uma saída para o país, uma evidência de que, pelo contrário, ela produzirá no máximo uma saída para as facções conflagradas, está no papel central que o chamado Centrão vem tendo no processo. O Centrão é um amontoado incerto de partidos que faz um movimento pendular faccioso entre os dois dispositivos que a Nova República herdou da ditadura paisano-militar, o DEM (ex-ARENA/PDS/PFL) e o p-MDB. Por isso, ele tanto pôde ser “liderado” por Cunha, como agora pode ser “liderado” por Maia.
Na época da ditadura, só eram permitidos dois partidos, a ARENA e o MDB, que para acomodar suas disputas internas tinham sublegendas, isto é, facções internas, que podiam disputar as eleições umas contra as outras. Com a chamada redemocratização, essas sublegendas foram se reconfigurando e dando origem a vários partidos, que trouxeram os mesmos comportamentos que já tinham sob a ditadura. Na mesma redemocratização, a maioria da sociedade produziu duas alternativas que a levassem para longe da ditadura, o PSDB e o PT, a foi a esses partidos que ela favoreceu, pois confiava neles.
Como a transição foi lenta, gradual e segura, os antigos dispositivos paisanos da ditadura (PDS/PFL/DEM e p-MDB) continuaram funcionando, senhores supremos da política miúda para negócios graúdos. É por isso que o Centrão oscila entre ser liderado pelo DEM e pelo p-MDB, a depender das vantagens oferecidas, todos se revezando como o marisco da vez no casco do Estado de Direito Autoritário em cujo topo vieram se revezando, por sua vez, os dois partidos aos quais a maioria da sociedade imprudente e comodamente delegara o seu destino: o PSDB e o PT.
Ou seja, esses trinta anos da chamada redemocratização foi o tempo necessário para que as velhas forças cooptassem, corroessem e, por fim, descartassem os dois partidos que a sociedade havia favorecido na busca pela consolidação democrática num Estado de Direito Democrático.
Ficamos atolados num Estado de Direito Autoritário porque os partidos saídos dos dispositivos paisanos da ditadura jamais deixaram de manejar o processo político, negociando a chamada governabilidade na base de vantagens arrancadas do Executivo federal e do manejo de postos de mando nos entes federados. Essas vantagens dependem da ocupação dos cargos de confiança e dos benefícios que conseguem do orçamento federal.
É esse arranjo que está na base do nosso presidencialismo de coalizão, uma coalizão que oscila conforme os cálculos que esses partidos fazem acerca do que podem receber – essa é a base do nosso sistema, celebrado pela nossa ciência política acadêmica como um modelo de bom funcionamento do nosso multipartidarismo.
Para essa gente, o fato de dos quatro últimos presidentes eleitos, dois terem sofrido impeachment pela ação desses fisiológicos insurgidos (Collor e Dilma) e os outros dois (FHC e Lula) terem traído completamente seus programas de mudança e/ou transformação para se acomodarem a esse mesmo fisiologismo regado a corrupção, que condena o país ao atraso e o povo ao sofrimento, são prova inquestionável de que o sistema político brasileiro é sólido!
Eles celebram como um caso de sucesso democrático o fato de a eleição não fazer diferença, pois o resultado é sempre o mesmo: um acerto entre os políticos que lhes permite desfrutar do poder para fazer dinheiro. Acredite, leitor: tem muita gente que fez e faz carreira acadêmica no Brasil sustentando essa tese esdrúxula.
Sabe como eles provam isso? Eles pegam os números saídos das votações congressuais (fora as dos impeachments, claro) e mostram como os parlamentares são obedientes ao que o presidente da República enviou ao Congresso. Como os números se mostram semelhantes aos de outros países, eles imaginam ter provado que nosso sistema funciona.
Ou seja, para esses cientistas políticos, não importa como a linguiça é feita, seus custos ou se ela provoca ou não indigestão em quem a consome, o que importa é que o jeitão dela se parece muito com a linguiça estrangeira – é mais ou menos como o LamborgUNO, o Lamborghini feito por um brasileiro através da transformação habilidosa de um Fiat Uno…ficou igualzinho…
Para essa ciência política, pouco importa se o voto do congressista favorável ao presidente tem as seguintes origens:
– o presidente consultou antes, e envia o que sabe que agrada ao parlamentar (como a maioria dos parlamentares é eleita através de esquemas eleitorais e de interesse que vêm desde a ditadura, imagine o que agrada a eles…);
– o presidente ofereceu ao parlamentar cargos, obras ou verbas, e recebe o voto em troca — isso se não estiver pedindo demais (e pedir demais é pedir qualquer coisa que, por exemplo, enfrente a desigualdade ou provoque alterações políticas que dificultem a reeleição do parlamentar…);
– o presidente deu ao parlamentar, direta ou indiretamente, dinheiro saído da corrupção e recebe de volta a governabilidade (uma governabilidade que dura enquanto não surja uma crise maior do que o arranjo pode digerir, o que sinaliza que é hora da manobra do impeachment…).
Num sistema assim, só não obtém governabilidade quem for inepto, certo? Por isso, Collor e Dilma caíram. A diferença é que na queda de Collor ainda haviam esperanças em PSDB e PT; já a queda de Dilma arrastou para a vala comum PSDB e PT. No pós-Collor a maioria da sociedade se acomodou à expectativa de consolidar a democracia num Estado de Direito Democrático pelo protagonismo de PSDB e PT; no pós-Dilma a maioria da sociedade vive a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário a que PSDB e PT se acomodaram para poderem brincar de protagonismo.
Com isso, chegamos em frangalhos a uma eleição presidencial em que o protagonista é o Centrão – o cachorro alcançou o próprio rabo.
Veja bem, leitor: o Centrão era uma arregimentação confinada ao jogo intra-muros, longe do eleitorado. O Centrão nunca foi uma força propriamente eleitoral, foi sempre uma fenômeno do jogo pós-eleitoral, do jogo que se faz no Congresso depois das eleições, um jogo destinado a submeter aos interesses congressuais atrasados o que quer que tenha saído da escolha da maioria da sociedade na eleição presidencial.
A crise é de tal ordem, a desorientação da maioria da sociedade é tamanha, que o Centrão está a acreditar que pode fazer a encomenda desde já! Ou seja, para que esperar a trabalheira congressual se podem obter desde já o presidente que lhes vai atender? Com a ruína de PSDB e PT o facciosismo deixou o Estado e busca colonizar a própria dinâmica pela mudança que, mal ou bem, as eleições presidenciais vieram significando no curso desses trinta últimos anos.
Já não contentes em roer a carga, os ratos subiram do porão para o convés e querem assumir diretamente o comando do navio, numa consagração do “parlamentarismo de ocasião” enjambrado por Temer, cuja “exitosa” governabilidade exibe números de fazer inveja a Obamas e Trumps.
Pelo andar da carruagem, nossos cientistas políticos de carreira vão obter números consagradores para suas teorias novidadeiras — pelo menos até que a crise recrudesça.
Fica o Registro:
- Ciro e Alckmin se mostraram faces da mesma moeda, ambos saídos do que outrora foi o PSDB e, por isso mesmo, ambos disputando o apoio do Centrão “liderado” pelo DEM, inteiramente imersos na luta de facções, que pouco caso faz da maioria da sociedade.
- Lula, que também queria o apoio do Centrão, alardeia compromisso com bandeiras há muito esquecidas para obter coesão de incautos à esquerda. Ao mesmo tempo, fica enviando recados aos de cima, como se ainda fosse necessário sublinhar que não é bem assim…