Carlos Novaes, 04 de março de 2022
A guerra na Ucrânia pode levar a uma nova guerra mundial? Evidentemente, ninguém sério pode pretender dar resposta cabal a essa pergunta. O que se pode fazer é usá-la como provocação para interpretar a situação. Proponho três passos: 1. rememorar os fatos do período imediatamente anterior à invasão da Ucrânia; 2. analisar as reações à guerra de Putin dentro e fora da Ucrânia; 3. observar os movimentos de Putin e dos outros diante dessas reações.
1.
Antes de invadir a Ucrânia, Putin submeteu o país e a OTAN a uma guerra de nervos, na qual os lances principais foram o deslocamento massivo de tropas e equipamentos para a fronteira do país vizinho e a apresentação de sua exigência descabida de que a OTAN e a Ucrânia deveriam dar garantias formais de que jamais se uniriam (essa exigência é descabida porque nenhum país pode pretender impor ao vizinho rol e modelo de laços de amizade — do contrário, até o criminoso embargo dos EUA contra Cuba passaria a ser aceitável).
Diante desses fatos e, provavelmente, detendo outras informações, os EUA passaram a advertir a opinião pública mundial de que Putin planejava invadir a Ucrânia. Putin negava a invasão, insistia em dizer que se tratavam de exercícios militares e até o governo da Ucrânia declarava que os avisos dos EUA configuravam alarmismo. Embora sem repetirem o comportamento dos EUA, outros governos europeus demonstravam receios de uma invasão e trataram com Putin sobre ela, sempre sob negativas do russo.
Pois bem: Putin estendeu essa situação por meses porque vinha sondando o terreno. Estava medindo o tamanho da reação que viria se ele levasse a invasão a cabo. No curso das tensões que cresciam do lado adversário, ele, paradoxalmente, foi recebendo elementos que o tranquilizavam, afinal, todos os países importantes, a começar pelos EUA, deixaram claro que não enviariam tropas, nem fariam ações de defesa militar em favor da Ucrânia. Ademais, ele deve ter interpretado a insistência do presidente ucraniano por calma como evidência de que ele nem tinha disposição de luta, nem contava com apoio interno para tal.
Depois de sondar longamente o terreno das tergiversações dos maiorais da OTAN, seus constantes sinais de que, afinal, nada de muito forte fariam em favor da Ucrânia, além de observar a usual falta de unidade que transparecia na movimentação dos países adversários, e de ter obtido algum tipo de sinal verde da China, Putin acabou por entender que a invasão que tinha em mente não lhe traria revés maior do que aquele que já enfrentara em 2014, quando arrebatou a Criméia e estimulou guerrilha separatista ao leste da mesma Ucrânia.
Dessa perspectiva, Putin invadiu a Ucrânia porque EUA e aliados, sem o querer, mas sob tremendo erro de avaliação acerca de suas próprias declarações e atitudes, acabaram por dar parâmetros que levaram os estrategistas russos à conclusão de que os ganhos de uma invasão militar superariam as perdas, até porque poderiam lidar com reações diferentes entre os países adversários.
2.
Feita a invasão, Putin descobriu que iniciara uma guerra: EUA e aliados responderam com uma unidade e ferocidade de propósitos que contrastam muito com o que haviam feito no curso dos meses em que Putin foi tomando coragem. Mais uma vez, nada se aprende da história, verdade que se repõe a cada vez que a história se repete! Mesmo sabendo que havia risco de Putin fazer besteira, os adversários não se uniram de modo a mostrar força dissuasória efetiva. Preferiam manter suas políticas de relações exteriores próprias, e só depois da guerra iniciada passaram realmente a girar numa conexão que se tivesse aparecido antes teria levado Putin em outra direção.
No espaço nacional ucraniano a reação também não é a que Putin esperava, basta ver que além de não ter antecipado a ira popular ucraniana que sobreveio contra si, ele alimentava o cálculo explícito em uma deserção militar pró Rússia nas FFAA da Ucrânia, em ambos os casos deixando-se cegar pelo seu próprio nacionalismo eslavófilo e, como de praxe, desprezando o nacionalismo eslavo alheio — os russos não querem aceitar que são odiados pelos eslavos a quem sempre dominaram e/ou maltrataram.
Em suma, tal como Nicolau-I na guerra da Criméia*, toda essa reação contrária não antecipada está a mostrar a Putin que ele iniciou uma guerra que não lhe convinha… Mas agora é tarde para recuar, e a situação, que em guerras é sempre incerta, está especialmente confusa: afinal, o que Putin vai fazer com a Ucrânia, mesmo que a tome inteira para si?
3.
A primeira reação de Putin à magnitude inesperada do revés foi voltar a se conduzir como nos meses pré-invasão: de um lado negou os efeitos sentidos (tal como negava a invasão pretendida) e, de outro, fez ameaças de ainda mais belicismo, agora nuclear (tal como mostrava os dentes ao fazer suas exigências descabidas na fase pré-invasão). Essa primeira reação só piorou as coisas, pois à encarniçada resistência ucraniana ele viu se somar movimentos como os de Finlândia e Suécia, que adotaram atitude inédita contra ele. Como a reação ucraniana passou a exigir ímpeto bélico, guerra aberta; e como a reação externa se mostrou extremamente danosa e surpreendentemente unitária, Putin passou a se ver numa situação especialmente difícil: ter de fazer cruenta uma guerra que imaginara aceitável para seus principais adversários, pois esperara que eles se limitariam ao esperneio impotente de praxe.
Putin, então, refreou o ímpeto bélico em solo ucraniano para, tal como na fase pré-invasão, ganhar tempo, sondar melhor o ânimo adversário dos aliados da Ucrânia e sentir melhor o tamanho da resistência interna. Ao mesmo tempo, faz pequenos blefes com retórica nuclear, enquanto acena com a normalidade nos compromissos de fornecimento de energia.
Enquanto isso, os maiorais da OTAN continuam a dar o mesmo sinal de sempre: trouxeram exclusivamente para si a conduta responsável de evitar uma nova guerra na Europa (como se a Rússia nada tivesse a perder com uma guerra ali), fazendo dessa possibilidade de conflito a antessala de uma nova guerra mundial, tudo como álibi para mais uma vez oferecer a Putin negativas explícitas de maior ajuda militar à Ucrânia; com o que, uma vez mais, dão-lhe tempo para refazer cálculos na segurança de quem não vai ter de enfrentar mais dificuldades bélicas vindas dos “aliados” da Ucrânia. Essa estratégia só irá funcionar no longo prazo (para que?!, perguntaria a Ucrânia) e, mesmo assim, se todos os países se mantiverem firmes no bloqueio à Rússia pelos próximos anos — será?
Infelizmente, o presidente da Ucrânia tem razão: a OTAN deu a Putin licença para matar.
* O escritor russo Ivan Turguêniev deu tratamento literário a esses eventos em dois dos três contos cronológicos que incluiu tardiamente em seu clássico Notas de um caçador. Em um deles, intitulado O fim de Tchertopkhánov, ele trata metaforicamente da Guerra da Criméia e no outro, Relíquia viva, ele faz o mesmo com as circunstâncias do fim da servidão na Rússia. A análise que realizei para fazer aflorar o até então inédito sentido oculto de cada uma dessas obras pode ser lida entre as páginas 180 e 213 do meu livro LITERATURA CONTRA IMOBILISMO NA RÚSSIA DO SÉCULO XIX, que pode ser encontrado em formato .pdf aqui.
Pois é…