Arquivo da categoria: ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS

Posts sobre eleições passadas e sobre a que virá, afinal, uma eleição é, também, a reconfiguração da memória da anterior.

VENCEU A “ORDEM” — TEREMOS DES-“ORDEM”

Por excesso de acessos, este blog ficou fora do ar em três dias cruciais. Peço desculpas aos leitores por essa falha técnica, decorrente da minha imperícia na matéria…

Carlos Novaes, 29 de outubro de 2018

 

Já faz algum tempo que venho explorando, em vários textos e em séries de videos, um conjunto de ideias que pode ser resumido assim: em sua desorientação, a maioria da sociedade brasileira tem vagado de uma polarização fajuta a outra.

Primeiro, a maioria da sociedade se deixou envolver no joguinho em que dispositivos cruciais da ditadura paisano-militar se fizeram pólo anti-ditatorial fajuto e, assim, lograram se transferir de mala e cuia para o Estado de direito da Nova República, num processo em que a democracia viva praticada pela maioria da sociedade contra o Estado ditatorial não completou sua transição para dentro do Estado de direito, que, assim, ganhou a forma de um Estado de Direito Autoritário.

Segundo, a maioria da sociedade se conformou à polarização fajuta pela qual PSDB e PT se acomodaram ao Estado de Direito Autoritário, já que nenhum dos dois esteve disposto a arcar com os riscos de levar adiante o projeto de construir um Estado de Direito Democrático, uma construção que só poderá ser erguida sobre as fundações de um projeto de enfrentamento da desigualdade. As duas forças forjadas pela maioria da sociedade no exercício das franquias democráticas acharam mais rentável se acomodarem à desigualdade, recrutando, cada uma à sua maneira, os dispositivos paisanos da ditadura, apoiadas nos quais se revezaram no protagonismo para o exercício faccioso dos poderes institucionais que todo Estado de Direito Autoritário permite.

Terceiro, diante da crise saída da insustentabilidade dos arranjos anteriores — uma insustentabilidade que apareceu de maneira mais visível nas circunstâncias que levaram a dois golpes congressuais continuístas (pois está no Congresso o grosso da força dos dispositivos paisanos herdados da ditadura) na forma de impeachments presidenciais (pois se concentram no presidente da República as pressões à mudança), circunstâncias essas decorrentes da mistura entre avidez pelo poder e crises econômicas (inevitáveis enquanto não se encarar a desigualdade, que condena o país ao atraso e a maioria da sociedade a sofrimentos desnecessários, decorrentes dele) — diante dessa sucessão de crises, que levaram à conflagração das facções estatais, a maioria da sociedade se deixou conduzir para mais uma polarização fajuta, já agora não entre atores (os atores vieram depois), mas entre aspectos substanciais da sua própria desdita: embaladas para presente no papel da raiva, a urgência social e a urgência por ordem foram mutuamente contrapostas, quando deveriam ter sido reunidas num projeto de transformação.

Ao ir deixando-se levar pela raiva, a maioria da sociedade foi dividindo-se improdutivamente entre aqueles cuja afeição principal é a revolta contra o sistema (corrupção, privilégios, abusos de autoridade, interdições arbitrárias e violência), e aqueles cuja afeição principal é a revolta de fundo social (desemprego, sucateamento dos serviços públicos, assimetrias sociais e culturais, e falta de saneamento). Essa divisão foi até o fim porque: primeiro, não surgiu nenhuma alternativa transformadora que reunisse as duas urgências; segundo, essa divisão improdutiva correspondeu à história pregressa das principais candidaturas presidenciais e, por isso mesmo, se conformou ao que foi proposto por elas na campanha, seja na forma de alianças, seja no conteúdo “programático” — nunca ficara tão claro o abismo entre as urgências de um país e a mixórdia das suas pretensas vanguardas.

Quarto, toda essa sucessão regressiva convergiu, então, para a mais recente polarização fajuta, a das duas candidaturas que melhor atendiam à desorientação: Bolsonaro e Haddad. O primeiro porque reata o fio lá atrás, ao Estado ditatorial de antes da formação do Estado de Direito Autoritário que nos infelicita, com o que dá a ilusão de que esse Estado (o sistema) poderá ser deixado para trás — quando, na verdade, sob Bolsonaro esse Estado será feito ainda mais autoritário; o segundo pelo que ofereceu de continuidade no presente, de um lado em razão de um suposto compromisso social (que há tempos se revelou fajuto), de outro porque, de fato, Haddad não significa uma ameça à vigência das franquias democráticas de que a maioria da sociedade ainda desfruta (e este é o termo: desfruta, porque a elas não dá consequência emancipatória).

A vitória do despreparado Bolsonaro sobre o professor Haddad significa que a mudança (urgência por ordem, sem fazer caso do social) venceu a continuidade (perseverar no social, mas dando as costas para a desordem evidente), um resultado muito eloquente do que pode acontecer quando a irracionalidade de poucos se apoia na insânia de muitos para evitar até mesmo saídas que, se não eram ideais, pelo menos não davam para o abismo — a sonhada mudança tomou a forma de pesadelo.

Abre-se um tempo de luta social contra mais um ajuste realizado às custas da maioria para preservar a riqueza da minoria, embate que se dará sob condições especialmente desfavoráveis à maioria, pois a ordem legal estará do outro lado, como já deram sinais as recentes incursões de facções judiciárias e policiais contra as Universidades, diante das quais os posicionamentos da Corte mais alta não chegam a alentar, pois nem ela poderá atuar sobre a miudeza do arbítrio que virá (um arbítrio que irá corroendo, na prática, as franquias democráticas), nem sua disposição democrática será assim tão vigorosa no curso do tempo, uma vez que ela própria está atravessada por, e engalfinhada em, uma luta de facções.

O Estado de Direito Autoritário buscará transformar em ordem seu ímpeto governativo contra o social, tentando atribuir a pecha da desordem à resistência social — quem assim semeia a ordem acabará, mesmo, por colher desordem, na forma de mais uma fase da luta tenaz da sociedade democrática contra o Estado de Direito Autoritário.

EM BUSCA DOS 10% PERDIDOS

Carlos Novaes, 19 de outubro de 2018

[com acréscimo entre […] em 20/10]

Playlists

 

Nessa reta final da campanha, o desafio é virar cerca de 10% do eleitorado: tirá-los de Bolsonaro em favor de Haddad. É muito difícil, mas não é impossível.

Considerando que Bolsonaro já é beeem conhecido do eleitorado, não há razão para supor que o voto seja dado a ele por desconhecimento. Então, não adianta ficar esbravejando contra ele, repetindo o que todos já sabem. É necessário identificar algo mais sensível, que leve o eleitor a, realmente, pensar.

A principal razão de voto nessa eleição é a revolta contra o sistema.

O sistema é o Estado de direito que nos foi legado pelo Estado ditatorial. Esse Estado de Direito Autoritário vem há trinta anos resistindo contra a democracia vivida em sociedade e, nesta eleição, os eleitores estão fazendo uso das franquias democráticas para, saibam eles ou não disso, expressar sua revolta contra o entulho autoritário responsável pela bandidagem estatal, contra a corrupção, os abusos e os privilégios que beneficiam políticos profissionais e hierarcas do serviço público, agentes do exercício faccioso dos poderes institucionais.

O único candidato que se colocou frontalmente contra o sistema foi Bolsonaro. Entretanto, ele está contra o sistema por razões muito diferentes daquelas que orientam a maioria do eleitorado. Na verdade, enquanto o eleitorado quer um outro Estado de direito, compatível com a democracia; Bolsonaro favorece a volta de um Estado ditatorial, que acaba com a democracia. Mas esse “detalhe” não ficou claro porque todos os outros principais candidatos se apresentaram como defensores deste Estado de Direito Autoritário contra o qual a maioria do eleitorado se revoltou, o que abriu uma avenida para Bolsonaro.

[Em outras palavras: a maioria dos eleitores de Bolsonaro é democrata, mas como ela está entusiasmada para votar contra esse Estado de direito (o sistema); como identificou que o PT é parte do sistema; como o cânone dos bem-pensantes, desconsiderando que pode existir um Estado de Direito Autoritário, insiste em fundir, erradamente, Estado de direito e democracia; como nosso cérebro detesta ver a si mesmo em contradição; essa maioria democrata, ajudada por alguns pensadores e analistas, providenciou para si mesma a narrativa auto-justificadora de que Bolsonaro não ameaça a democracia, fazendo pouco caso das evidências desses trinta anos, como se o ex-capitão tivesse se transformado em outra pessoa e/ou como se nossa democracia tivesse sido consolidada em instituições democráticas sólidas, como se já não houvesse arbítrio bastante abrigado nesse Estado de Direito Autoritário.]

Dito isso, entendo que números das pesquisas mais recentes do DataFolha podem nos ajudar a encontrar os 10% que seriam suscetíveis a uma argumentação pela troca de candidato nessa reta final:

  • 69% do eleitorado do país preferem a democracia. Ou seja, a imensa maioria está em revolta contra o sistema (armado no Estado de direito), mas quer a democracia (vivida na sociedade).
  • 61% entendem que não se pode proibir partidos políticos. Ao contrário do que pretende Bolsonaro, que defende banir partidos de esquerda;
  • 80% desaprovam o uso da tortura. Ao contrário de Bolsonaro, notório defensor da tortura.
  • 51% acham que o legado deixado pela ditadura anterior é mais negativo do que positivo, e 32% acham esse legado mais positivo do que negativo. Mais uma vez, a maioria é contra a opinião de Bolsonaro, que vive a louvar o período da ditadura.
  • 50% sentem que há no ar a ameaça de uma nova ditadura no país. 42% descartam essa possibilidade e 8% não quiseram ou não souberam responder. Ou seja, os rumos da campanha eleitoral colocaram em “alerta democrático” metade do eleitorado.
  • 65% dos eleitores de Bolsonaro descartam a ameaça de uma nova ditadura no Brasil (o grosso dos auto-justificadores está aqui). Quer dizer: há um percentual de 35% dos eleitores de Bolsonaro que ou divisam uma ditadura ou não souberam responder. Se assumirmos os mesmos 8% para quem não quis ou não soube responder, restam 27% dos eleitores de Bolsonaro sentindo cheiro de ditadura no ar.

Mesmo não dispondo-se de mais dados, não deve estar muito longe da verdade quem considerar que há uns 10% do eleitorado total que votam Bolsonaro por serem anti-sistema, mas preferem a democracia, são contra a tortura, acham negativo o legado da ditadura e entendem como ruim a possibilidade de uma nova ditadura, que pressentem.

Nosso papel é ajudar esses 10% a juntarem lé com cré, ou seja, entenderem que uma vitória de Bolsonaro significa uma ameaça à democracia porque favorece a substituição do Estado de Direito Autoritário não por um Estado de Direito Democrático, mas por um Estado ditatorial, ou, no mínimo, ainda mais autoritário do que o atual.

Nesses 10%, mesmo os que acreditem que Bolsonaro abandonou as posições antidemocráticas que sustentou por três décadas podem ser levados a entender que uma vitória dele será uma ameaça à democracia pelo que sua candidatura já atiçou de forças antidemocráticas; forças que ele não poderia controlar mesmo que quisesse, seja no Estado, seja na sociedade.

No Estado, Bolsonaro trouxe de volta à cena política o que há de pior no dispositivo militar (FFAA e PMs) herdado da ditadura, assim como está a se apoiar no rebotalho do dispositivo paisano que ela nos legou: as bancadas ultraconservadoras do Congresso. Nenhum dos dois dispositivos tem compromisso com a luta anti-sistema que anima o eleitor; pelo contrário: eles são os segmentos mais apegados ao que há de vantajoso para si no sistema autoritário, e não hesitariam em sacrificar as franquias democráticas para conservarem suas vantagens.

Na sociedade, Bolsonaro deu vida a segmentos conservadores que já começam a se assanhar em grupos paramilitares, dispostos a agir, na cidade e no campo, contra o exercício das franquias democráticas de que ainda desfrutamos — essas franquias estão sendo usadas para gerar nas ruas o clima violento que favorece a desenvoltura antidemocrática dessas facções. Essa perversão está sendo possível precisamente porque o sistema (Estado de direito) faz corpo mole diante dessas ilegalidades contra a democracia contra a qual ele próprio sempre atuou — nessas ilegalidades se somam condutas facciosas vindas tanto da sociedade quanto do Estado (não é à toa que as milícias paisanas são compostas também por ex-policiais).

BURCA VERDE-AMARELA

Carlos Novaes, 18 de outubro de 2018

Pessoas de todo o mundo estão acompanhando os desdobramentos do assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, que desapareceu na Turquia depois de entrar no consulado da Arábia Saudita naquele país.

Jamal trabalhava para o jornal The Washington Post, dos EUA, no qual escrevia sobre os dilemas do mundo árabe. Hoje, a Folha de S.Paulo publicou uma tradução do último artigo de Jamal para o Post.

Li e reli o artigo, com uma perturbação crescente. Algo nele me soava familiar, mas não sabia o que era. Comecei, então, a tentar me aproximar desse sentido familiar do artigo, e fui fazendo uma nova versão dele. Nas linhas a seguir, a versão que minha perturbação me levou a escrever. Ela deixa claro porque o artigo de Jamal me pareceu familiar.

 

O Brasil precisa de livre expressão

O Brasil enfrenta sua própria versão do nazi-fascismo, imposta não contra religiosos ou estrangeiros, mas apoiada em certas igrejas e contra seu próprio povo.

Versão do último artigo de

Jamal Khashoggi 

 

Estive recentemente na internet examinando o relatório Liberdade no Mundo 2020, publicado pela Freedom House, e cheguei a uma grave conclusão: o Brasil já não é um país livre.

Em consequência, os brasileiros são ou desinformados ou mal informados. Eles não são capazes de abordar, muito menos discutir publicamente, questões que afetam o país e sua vida cotidiana. Uma narrativa conduzida pelo Estado domina a psique pública, e embora muitos não acreditem nela, uma grande maioria da população cai vítima dessa falsa narrativa. Infelizmente, essa situação provavelmente não mudará tão cedo.

O Brasil estava cheio de esperança durante a polarizada campanha eleitoral de 2018. As pessoas vibravam com expectativas de um Brasil no rumo certo, livre da criminalidade e na reta do desenvolvimento.

Elas esperavam deixar para traz os motivos das suas raivas: a urgência por ordem (bandidagem de rua e de palácio) e a urgência social (emprego, saúde, educação etc). Mas como elas preferiram separar essas duas urgências, essas expectativas foram rapidamente destruídas; seja porque o país recaiu no antigo status quo (pois a corrupção e os privilégios estão firmes), seja porque seu povo enfrenta condições sociais ainda mais duras que antes, com repressão policial crescente.

Muitos pensadores e analistas, que fizeram o debate naquele período eleitoral, ou foram silenciados pelos próprios meios de comunicação, ou estão sendo perseguidos por processos, sendo que alguns já foram presos.

A liberdade de imprensa vai sendo mais e mais sufocada, ante protestos protocolares da comunidade internacional, especialmente no caso dos EUA, pois Trump nunca escondeu suas simpatias pelo modo como o presidente do Brasil veio enfrentando a crescente oposição ao seu governo.

Em consequência, o governo brasileiro tem rédeas soltas para continuar calando a mídia em ritmo acelerado. Houve uma época em que os jornalistas acreditavam que a internet liberaria a informação da censura e do controle associados à mídia impressa.

Mas esse governo, que chegou ao poder através de um uso mentiroso das mídias sociais, agora vê sua própria existência depender do controle da informação, e bloqueou agressivamente a internet. Eles também reprimiram repórteres locais e pressionaram anunciantes para prejudicar a receita de publicações específicas.

Não há oásis que continuem personificando o espírito democrático que ainda havia na grande mobilização eleitoral de 2018. Os governos de estados importantes, como São Paulo e Rio, estão alinhados sem constrangimento ao governo de Brasília, todos empenhados em manter o controle da informação em favor da “velha ordem brasileira”.

Mesmo no Rio Grande do Sul, um estado do sul do país onde outrora falava-se de uma sociedade civil republicana, a mídia não reflete os graves problemas que o país está enfrentando e não dá espaço para a opinião divergente, sufocada em conversas abafadas nos grandes centros urbanos do país.

Em regiões mais remotas, se multiplicam tanto as mortes de camponeses em conflitos de terras contra os chamados “grileiros”, a serviço do grande latifúndio, quanto o assassinato de índios por garimpeiros, que invadem suas terras em busca de ouro e outros minérios valiosos.

O Brasil enfrenta sua própria versão do nazi-fascismo, imposta não contra religiosos ou estrangeiros, mas apoiada em certas igrejas e contra seu próprio povo, cujos sofrimentos estão sendo mais divulgados na mídia internacional do que na mídia interna. Muitos dos que escreviam em publicações brasileiras agora têm seus artigos publicados apenas em línguas estrangeiras, especialmente na Europa.

Os brasileiros precisariam poder ler em sua própria língua para poderem entender e avaliar as causas de seus sofrimentos, pois a desigualdade e a corrupção continuam, enquanto a pobreza aumenta, de mãos dadas com serviços de saúde e educação cada vez mais deficientes, enquanto a qualidade de vida das camadas médias não cessa de piorar.

Não há outro caminho a não ser perseverar na luta para abordar, esclarecer e enfrentar os problemas estruturais de que a sociedade brasileira padece.

NÃO ME PERGUNTARAM, MAS… 11 – Entrevista do GIANNOTTI, na Folha de hoje

COMO SE ALGUÉM PUDESSE GARANTIR QUE A SAÍDA DO PURGATÓRIO É O CÉU…!

Carlos Novaes, 16 de outubro de 2018

Reproduzo a seguir entrevista com o professor José Arthur Giannotti, publicada hoje pela Folha de S. Paulo e, em contraponto, apresento minhas respostas às mesmas perguntas, como se tivesse sido perguntado…

 

Folha – Por que a polaridade PT-PSDB foi varrida?

Giannotti –  Foi varrida porque ao PSDB faltaram lideranças, faltou se renovar. Quando você chega ao [João] Doria, que é pura aparência, é o fim. Nós vivemos numa sociedade do espetáculo, mas com o Doria você só tem espetáculo, não tem conteúdo político. O PSDB ficou dividido entre o Alckmin e oDoria. Do outro lado, o PT levou o país a uma recessão brutal por causa de uma série de equívocos econômicos. Esta eleição recupera e amplia 2013 [movimento contra alta de tarifas de transporte que depois começou a questionar a agenda dos partidos e a eficiência do Estado].

Novaes – Foi varrida porque era um simulacro que se sustinha no pacto do Real e na falta de uma alternativa, uma falta de alternativa que repousava na acomodação da maioria da sociedade brasileira ao tal pacto e ao joguinho fajuto entre os dois partidos. Quando o pacto ficou insustentável — em razão da contradição insolúvel entre a desigualdade extrema (que a classe média que não é funcionária pública passou a sentir com cada vez mais força) e as franquias democráticas, a começar pelo amplo direito de opinião e voto — , a polarização desabou. Na descostura do pacto, como o PT ocupara fajutamente o lugar da “social-democracia”, o PSDB teve de abandonar o social e a democracia, e o resultado final é o Dória de mãos dadas com Bolsonaro prometendo fazer da polícia uma franquia de cemitério; do outro lado, na hora da ruína o PT fez o movimento oposto, tentando o simulacro de mais uma “volta às origens” (do que já está a recuar, para poder agradar aos de cima nesse segundo turno — firmes como estaca no pântano!).

O que o sr. achou do resultado das eleições?

Giannotti – Estou contente porque esse movimento antidemocrático, que é profundo e ocorre no mundo inteiro, representa o capitalismo atual, que é o capitalismo de conhecimento. Isso exige uma universidade que faça pesquisa, e o lulismo transformou a universidade num processo de ascensão social: você sai de secretária 3 para secretária 1. Os tucanos também fizeram isso em SP.

A eleição trouxe essa violência toda para o jogo político. Nós temos uma violência insustentável: morre mais gente aqui do que na guerra da Síria. A eleição foi um banho de soda cáustica revelando as nervuras da real luta política.

Novaes – Estou preocupado com as consequências sobre os mais vulneráveis, frequentemente negligenciadas pelos hegelianos apressados, sempre prontos a celebrar a racionalidade do real, como se o que se apresenta fosse a única via para o surgimento do novo, quando nem no parto é mais assim, pois faz tempo que inventaram a cesariana. O que ocorre no Brasil não é um movimento antidemocrático, muito menos profundo; é um abrangente, embora epidérmico, movimento anti-sistema, que reúne democratas e não democratas precisamente por ser epidérmico, e é epidérmico porque não fomos capazes de construir uma alternativa que juntasse os revoltados contra o sistema e os revoltados contra a desigualdade numa perspectiva democrática.

Pela epiderme evola-se a raiva. A raiva nunca é uma boa base para tomar decisões precisamente porque ela se vai e o resultado fica — no caso presente, o resultado será não exatamente essa revelação das “nervuras da real luta política”, mas o enrijecimento das dobras do Estado sobre a sociedade, de consequências nefastas previsíveis. Se há algo de propício nisso, só a luta dirá.

Essa onda conservadora tem relação com a violência?

Giannotti – Evidente. Mas é também uma reação violenta. Não esqueça também que o PT achava todo mundo que não fosse petista um canalha, golpista. A violência na política não está apenas no lado fascista, mas está do lado do populismo. Ao trazer a violência para a disputa, você traz inclusive os milicos para a política. Em vez de ficarem conspirando entre eles, uma parte da conspiração vai para a política. Porque a conspiração vai continuar.

Novaes – A onda tem relação com a violência, mas ela não “É” conservadora — ela se fez conservadora, foi hegemonizada pelos conservadores e reacionários, por falta de alternativa. Entende-la como de matriz conservadora é desprezar como delírio coletivo todo o esforço democrático que, apesar de tudo, a maioria da sociedade brasileira fez nesses 40 anos que nos separam do fim dos anos 1970, quando a luta contra a ditadura paisano-militar ganhou as ruas. O PT e o PSDB puseram tudo a perder.

A vantagem de trazer os milicos para a disputa foi uma só: todo mundo pôde enxergar todo o despreparo, toda a grosseria, toda a obtusidade trazida no linguajar vulgar dos generais falantes. O problema é que a política é feita com conversa, e eles, embora falantes, não são dados a ouvir e agem por outros meios.

Há perigo de golpe?

Giannotti – Esse perigo diminuiu. Agora tem menos risco de golpe porque as pessoas que eram golpistas encapuzadas passaram a ser golpistas dentro da dança política. Viraram parte da instituição. O golpe pode vir no impeachment do Bolsonaro. Em seis meses ele não vai ter essa aprovação que tem porque não vai resolver a crise econômica. Está todo mundo assustado, mas o resultado é bom.

Novaes – O risco diminuiu porque eles estão contando com essa consagração eleitoral que se anuncia. Mas, como já disse ontem, vamos ficar entre o impeachment e o golpe não apenas em razão da crise econômica, mas também em razão da marcha violenta e antidemocrática que vai se iniciar no próximo dia 29.

Não há razão para susto?

Giannotti –  Pelo contrário. Temos que fincar as nossas razões democráticas e começar a combater as causas dessa violência toda. O país está se preparando para sair da crise com crescimento de 1,5%, como se estivéssemos no século 19. Quais são essas causas? O petismo imaginou que existia um capitalismo brasileiro com características diferentes do mundial. Isso não dá num capitalismo de conhecimento.

Novaes – Há, mas não temos escolha a não ser valorizar a vigência das franquias democráticas e continuar a colocá-las contra o sistema e contra a desigualdade, que agora vão ficar ainda mais salientes, pois Bolsonaro não tem como abrir uma saída que responda às expectativas que criou.

O PSDB pode renascer?

Giannotti – Não. O fundamental é que renasça o centro. Porque não existe política sem centro. Para conter o discurso e a prática velha do PT. E, por outro lado, para conter essa onda que acredita na violência pela violência.

Novaes – O PSDB está morto faz tempo. Agora, para podermos ir adiante, tampouco podemos aceitar a liderança do que quer que sobre do PT, o núcleo duro do nosso atraso. Agora, não entendi como um mítico centro redentor pode ser visto como saída depois que se enxergou “as nervuras da real luta política”?!!

Por que o voto nos extremos?

Giannotti – O eleitor foi para os extremos porque ele raivosamente se apegou às promessas do PT, que foram frustradas. Essa raiva faz parte da tradição política, mas ela piorou. Nunca vi tanta violência, nem em 1964. Porque agora há muito ódio. E a violência está dos dois lados. Muitas vezes os que são contra Bolsonaro têm uma violência bolsonarista.

Novaes – Que extremos? Como assim a violência está dos dois lados!? Essa polarização Bolsonaro-PT é fajuta, não representa extremos reais, pelo contrário. Agora, dizer que, nesse caso, “a violência está dos dois lados” é de uma irresponsabilidade sem tamanho — deve ser a prudência do filósofo: Giannotti vai esperar o governo Bolsonaro para se certificar da diferença…

Há outras razões para o voto nos extremos?

Giannotti –  Há. O eleitor vive num mundo violento e acha que só a violência resolve. Para acabar com a violência, ele acha que é bandido na cadeia ou morto. Isso não funciona no mundo real. Você só resolve isso criando instituições democráticas. Você tem de criar empregos, tem de esclarecer como será a reforma da Previdência e acabar com vantagens.

Novaes – Os falsos extremos foram construídos porque falta uma alternativa que dê uma resposta articulada à violência como um todo: a violência da bandidagem de rua e a violência da bandidagem de palácio, ambas organizadas segundo facções estatais. Na bandidagem de rua, há dois tipos, a organizada, via presídios (Estado) e a desorganizada; na bandidagem de palácio (Estado) há dois tipos, os corruptos (ladrões, foras da lei), e os aproveitadores (espertalhões no uso da lei). Só uma visão articulada contra eles todos permitirá construir uma saída democrática contra a violência, pois essa articulação vai ajudar a mostrar que não dá para sair matando gente…

Quais vantagens?

Giannotti – As vantagens do funcionalismo, como auxílio-moradia. Quando você tira as vantagens, dizem que estão tirando direitos. Desculpe, mas estão tirando vantagens. Sou beneficiário disso também. Todos nós tivemos aposentadoria integral na USP. Eu me lembro quando estava construindo esta casa, eu peguei o [o filósofo francês Michel] Foucault e ia levá-lo para a faculdade [de Filosofia], mas tive que passar na obra. O Foucault perguntou: “Você tem bens pessoais, herança? Porque um professor na França jamais faria uma casa desse tipo”. Todo mundo tinha esses privilégios na USP. Há benefícios para militares, professores e juízes que nenhum país do mundo tem. Isso tem de acabar.

Dá para pacificar o país?

Giannotti – A grande sorte dessas eleições foi trazer para a política as forças ocultas. Com isso, elas vão se moderar. Você não governa com ameaças nem se mostra publicamente como um bandido. Eles serão obrigados a se civilizar. Não dá para ter também um país tão pobre. Isso não é mais tolerável.

Novaes – Pacificar sempre dá; até na marra. Agora, não cabe celebrar essa tragédia toda, por duas razões: primeiro, porque ela vai trazer danos tremendos à vida social; segundo, e mais importante, porque não existe isso de forças ocultas que vieram à tona, como se esses afetos e preferências já estivessem prontos, apenas esperando uma brecha para aflorar. Não. Pensar assim é fazer a teoria conspiratória dos sentimentos. Foi o processo que construiu os afetos, porque eles não são individuais, são coletivos, partilhados — por exemplo, um linchamento não resulta do aflorar de algo que já estava lá, dentro de cada linchador; não, o afeto linchador é construído no processo, que burila, por deformação, os seus agentes, que iriam em direção até oposta sob circunstâncias diferentes. Logo, não faz sentido algum ver vantagem em afetos tão nefastos.

Bolsonaro ataca mulheres, negros, gays e indígenas. Isso significa um retrocesso comportamental ou ele fala por um Brasil que é conservador mesmo?

Giannotti – Uma parte do país é conservadora. Mas esse discurso é uma estratégia, uma forma de se mostrar como durão. Isso pode ter repercussões muito ruins. Uma coisa é um deputado dizer que não estupra uma deputada porque ela é feia. Se um presidente disser isso, sofre impeachment. Esse comportamento é inaceitável para um presidente. Ou ele muda ou cai. Na eleição tínhamos que escolher entre duas crises.

Novaes – Bolsonaro diz essas coisas em público há quase trinta anos, logo, não é uma estratégia, é uma maneira de ser. A estratégia vem aparecendo agora, quando ele diz que não é bem assim justamente porque a maioria da sociedade não pensa desse modo. Isso quer dizer que temos razão para esperar o pior quando ele assumir o poder (e até antes da posse, especialmente contra os índios e na área rural).

Quais?

Giannotti – A crise que vem junto com Bolsonaro, com violência e não democracia, ou o impeachment por estelionato eleitoral do PT. Tudo indica que, pelo plano de governo que o Lula tinha montado, não daria para cumprir as promessas. O Brasil está encalacrado e só vai desatar quando o sistema político ficar mais moderno e democrático. Antes estava inteiramente fechado. Agora desarrumou tudo. Que bom!

Novaes – Ficamos entre duas crises, é verdade. Mas só quem pode viver a certeza íntima (ilusória, aliás) de que não vai sofrer as consequências é que pode achar bom que prevaleça a crise que Bolsonaro significa.

NÃO ME PERGUNTARAM, MAS… 10 – Entrevista na Folha de hoje

COMO SE AGARRAR AO VELHO — EM VÃO

Carlos Novaes, 15 de outubro de 2018

Reproduzo a seguir entrevista com o professor Marcos Nobre, publicada hoje pela Folha de S. Paulo e, em contraponto, apresento minhas respostas às mesmas perguntas, como se tivesse sido perguntado…

[Com acréscimo em Fica o Registro, às 15:24h]

 

Folha – O senhor falou em artigo recente que, mais uma vez, o PT tem uma chance de renascimento. Qual seria o caminho para o candidato Haddad vencer as eleições, com essa vantagem tão grande para Bolsonaro?

Marcos Nobre – Se quiser ganhar, Haddad tem que ser o candidato de uma frente de defesa das instituições democráticas. Se quiser ser o candidato do PT, vai perder. E o peso de uma possível regressão autoritária vai cair sobre as costas do PT.

Novaes – Fiz aqui uma crítica ao artigo de Nobre mencionado na pergunta. Acrescento ainda que:

  1. a votação recebida pelo PT não representa uma “chance de renascimento” como quer Nobre porque, além de tudo o mais ter permanecido igual, não houve renovação nos eleitos — o PT elegeu para a Câmara os mesmos de sempre, os que tinham mais máquina para arrancar o voto, ao mais velho estilo político;
  2. se Haddad defender as “instituições democráticas” vai perder, pois essas “instituições” são o próprio sistema que está sendo recusado pela maioria, como expliquei no artigo de anteontem e em série recente, iniciada aqui. Para vencer Haddad teria de fazer o eleitor democrata entender e acreditar: entender que Bolsonaro é anti-sistema mas é contra a democracia; e acreditar que ele, Haddad, é anti-sistema mas a favor da democracia, distinguindo “instituições democráticas” (o Estado em crise) de “franquias democráticas” (a sociedade em movimento) — uma operação dessas é quase impossível em 10 dias, talvez se abrisse mão para Ciro…

E como construir essa frente?

Nobre – Haddad deveria sinalizar claramente para o eleitorado que o governo dele será radicalmente diferente de qualquer governo anterior do PT.
A primeira coisa é chamar Ciro Gomes e dizer: “Eu abro mão de me candidatar à reeleição se for eleito e acho que nessa frente que montamos Ciro deveria ser nosso candidato em 2022”. Com isso, afasta-se o medo que as pessoas têm de que o PT vai se perpetuar no poder.
A segunda coisa é tomar pontos programáticos não só dos partidos que apoiarão Haddad, como PSOL, PDT e PSB, mas também tomar de outras candidaturas, de maneira unilateral, sem ter o apoio deles. De todas as forças políticas que disseram que não votam no Bolsonaro, ele tomaria unilateralmente os pontos do programa , sem negociar, sinalizando: “eu quero você dentro do meu governo”.
Poderia adotar, por exemplo, a agenda ambiental de Marina Silva, a proposta de Alckmin de criação de uma força de segurança nacional. Precisa abrir espaço para que Marina e Ciro participem. Deveria chamar uma figura como Joaquim Barbosa para representar, dentro do governo, o combate à corrupção. Chamar Nelson Jobim para ser responsável pela segurança pública.
Haddad precisa fazer movimentos nesse sentido. Se não fizer, não estará querendo de fato ampliar a sua base, não mostrará empenho em fazer um governo diferente.
É um desafio histórico, uma oportunidade de refundação. Para sair das cordas, o PT precisa de ajuda. E o PT pedindo ajuda, precisa também distribuir poder, de verdade.

Novaes – Todo o raciocínio de Nobre está voltado para a construção de uma verdadeira Frente do Sistema. A chance disso encantar o eleitor democrata que está com Bolsonaro é nenhuma. O erro desse eleitor não é ser anti-sistema, mas acreditar que Bolsonaro é uma saída. Esse eleitor democrata que é anti-sistema só pode ser ganho para uma saída que seja, ao mesmo tempo, anti-sistema e democrática. Essa frente do Nobre é o próprio sistema que a maioria do eleitorado acaba de recusar no primeiro turno…

Ao dizer que a primeira tarefa é chamar Ciro, Nobre mostra toda a irracionalidade da situação: Ciro foi esmagado quando era a única saída disponível; ao ser esmagado, se perdeu em contradições; agora, em razão dessas escolhas desastrosas, quando tudo deu errado, volta a passar por Ciro a saída, mas Nobre insiste em salvar o sistema e, junto com ele, o PT! Nobre chega ao cúmulo da irracionalidade de, sob uma crise dessas,  pretender arrancar promessas e legislar intelectualmente sobre o que seria 2022!!

Seja com Haddad, seja com Ciro, a saída, para hoje, passa por reconhecer que o sistema e o PT estão perdidos.

Mas lideranças como Ciro, Marina e Fernando Henrique Cardoso têm se mostrado resistentes a um apoio aberto a Haddad…

Nobre – O que acabei de dizer significa fazer gestos concretos na direção dessas pessoas. Não é apenas, “eu quero conversar com você”. Palavras não bastam.

São gestos concretos para se formar uma frente. Uma frente não se forma apenas porque do outro lado há um risco à democracia. “És responsável pelo segundo turno que conquistas” —o “Pequeno Príncipe” aplicado à política.
Não pode simplesmente dizer, “perdemos”. Pode perder, evidentemente, mas tem que de fato tentar.

Novaes – Haddad é um príncipe pequeno porque há um rei no comando, e esse rei recusou lá atrás o caminho dessa frente pouco inovadora, mas que poderia ter sido uma saída realista, com Ciro na cabeça, como divisei aqui. Ao contrário do que quer Nobre, Lula, que sempre tem a si mesmo em primeiro lugar, já dá sinais de um conformado “perdemos”, como apontei no final do artigo de anteontem.

Pelo que conhecemos do DNA do PT, vê alguma chance de isso realmente acontecer?

Nobre – Quando se tem uma tarefa histórica na sua frente, as pessoas e as instituições mudam. A situação é completamente diferente da de qualquer outra eleição. Se Haddad jogar essa chance fora, carregará esse peso. Vão perguntar: “por que, então, não deixou o Ciro ir?”.
Então Haddad deveria dizer ao eleitor: “Eu proponho essa frente e quero te convencer de que esse governo será muito diferente de todos os outros, que o PT não terá o protagonismo que teve nos governos anteriores. Então quero que seu voto, que hoje é de Bolsonaro, venha para mim. Mas se isso for impossível para você, se sua ojeriza ao PT é superior a qualquer outro sentimento, então, por favor, não vote em Bolsonaro”. Isso ele poderia dizer ao eleitor do PSDB.

Novaes – A pergunta é excelente. Nobre está tão cego para o que realmente está em jogo que insiste em salvar não apenas o sistema, mas ao próprio PT e, por isso, não atina para o que sua própria proposta exige: para ter alguma chance de êxito eleitoral fazendo o que Nobre quer, Haddad teria de se rebelar contra a linha do PT, se atirar na direção do novo, escancarar suas diferenças com Lula e com a máquina, que são reais — mas para isso ele teria de não ter aceito o papel de “Haddad”

Se FHC se mantiver neutro, isso mancha a biografia dele?

Nobre – Se queremos formar uma frente que tenha por princípio aceitar toda e qualquer pessoa que defenda as instituições democráticas, não pode ter pedágio. O primeiro pedágio é começar a acusar as pessoas. A formação dessa frente é uma dança, e cabe a Haddad dar o primeiro passo. São vários passos simultâneos.

Novaes – Claro que não mancha. Para bem e para mal, a biografia do FHC está consolidada. Entre simplesmente apoiar Haddad e resguardar o que resta de sua voz para se contrapor a Bolsonaro como alguém que não tomou partido, a segunda opção me parece a melhor.

Por enquanto, parece que a abordagem do PT tem um pedágio, usa a mensagem de “ou você nos apoia, ou apoia o fascismo”…

Nobre – Também não digo que essa seja a abordagem do PT. Não quero botar pedágio nem de um lado, nem do outro. Cabe a Haddad, não ao PT, dar o primeiro passo.
Isso são sinais para o eleitorado, as pessoas têm que perceber isso. Haddad tem que dizer: “Há duas possibilidades. Eu proponho que esse sistema funcione de maneira diferente. Meu adversário quer que esse sistema seja destruído. Isso é que está em jogo”.

Novaes – A maioria já enxergou que não tem como fazer esse sistema funcionar em seu favor. E não tem como em razão do que ele conservou da ditadura, não em razão do que a sociedade ganhou em democracia. E o PT não apenas não combateu, como se apoiou nessa herança da ditadura. Por isso, insiste em não atacar o sistema, em confundir esse Estado de direito saído da ditadura com a democracia almejada e nunca consolidada. Haddad teria de reconhecer a contradição entre a sociedade e este Estado de direito e, só então, poder dizer: “Há duas possibilidades. Eu proponho um novo sistema, que permita preservar e, mais adiante, consolidar a democracia que a gente vem construindo há trinta anos. Meu adversário quer preservar o que há de pior no sistema, seu autoritarismo, isso vai trazer de volta a ditadura, jogando fora o esforço democrático dos últimos trinta anos.”

O senhor sente um movimento de setores da sociedade e da imprensa para normalizar Bolsonaro, ou existe de fato um exagero nessa ideia de que ele fará um governo autoritário?

Nobre – A normalização está sendo feita há muito pela mídia tradicional e pelo mercado. No momento em que ficou claro que as forças anti-PT e antissistema confluíram para a candidatura dele, passaram a tentar civilizar Bolsonaro. Mas Bolsonaro já deixou absolutamente claro que é incivilizável. Há uma ilusão da elite pensante de que é um candidato controlável. Pergunto: se o New York Times fosse um jornal brasileiro, o que teria feito com Bolsonaro?

Novaes – Concordo.

Bom, mas existe a discussão sobre o posicionamento do NYT em relação a Trump, que seria panfletário e enviesado, em comparação, por exemplo, com o Washington Post, que adotaria postura crítica, mas com maior distanciamento…? 

Nobre – O NYT tomou uma decisão: Trump não é um candidato normal, as instituições estão em risco, e nesse momento as regras mudam. O WP resolveu tratar Trump como um candidato normal. A imprensa brasileira foi WP, não o NYT. Acho a posição do WP equivocada.
E não estou aqui comparando Trump a Bolsonaro. São incomparáveis. Um dos movimentos mais fortes de normalização de Bolsonaro é compará-lo a Trump.
Nunca houve uma ditadura militar nos EUA. Nunca o cara que ganhou uma eleição nos EUA apoiou uma ditadura militar. As instituições americanas têm uma solidez que aguenta o Trump. Imagine um presidente autoritário no Brasil, com instituições em colapso, como são as nossas? Não há instituição democrática que aguente Jair Bolsonaro.

Novaes – Concordo. Pense-se no seguinte: nos EUA, com toda a solidez institucional e com uma opinião pública predominantemente civilizada, Trump separou milhares de crianças dos pais, transportou-as por milhares de quilômetros e as confinou em celas de abrigos, tendo sido necessárias uma batalha judicial e uma cruzada cívica para reverter a medida, reversão que ainda não foi concluída e cujas consequências danosas jamais serão superadas inteiramente. Tanto quanto me ocorre nesse momento, essa foi a operação mais brutal e incivilizada que um país de primeiro mundo praticou em solo próprio desde o que Hitler havia feito na Alemanha contra os judeus, os homossexuais e os ciganos. O que pensar de um Brasil sob Bolsonaro?!

O fato de o PSL, o partido de Bolsonaro, ter feito a segunda maior bancada da Câmara, e que provavelmente será engordada com deputados de partidos nanicos que devem migrar para ele, isso não significa que haverá governabilidade?

Nobre – O partido com a maior bancada, o PT, tem apenas 11% da Câmara. A fragmentação é gigantesca. Você precisa ter uma capacidade de articulação, de reorganização do sistema, que o Bolsonaro não tem. A única resposta que poderá dar é truculência. Ele não tem equipe, nenhum requisito para reorganizar o sistema. Reorganizar o sistema não tem nada a ver com ter maioria parlamentar.
O risco de que o sistema político não consiga se reorganizar é muito alto. E, se não se reorganizar, a hipótese de um golpe volta à mesa.

Novaes – O problema não está na fragmentação, até porque esses partidos vão convergir para blocos nas casas congressuais. Ao contrário do que pensa Nobre, o sistema não vai precisar ser “reorganizado”; no plano congressual ele está organizado como sempre esteve e vai se acertar em “situação”, “oposição” e alguns espertinhos “independentes”. Sob uma presidência Bolsonaro, os problemas serão:

  1. o grau de compromisso com a democracia que esse Congresso vai ter — a possibilidade de um golpe vai crescer na proporção em que o Congresso proteger as franquias democráticas;
  2. no preço que o bloco da “situação” + “independentes” impuser para votar com o presidente, pois, mesmo que esse bloco se mostre tão anti-democrático quanto Bolsonaro, vai cobrar para dar ao presidente o que já quer, como expliquei aqui;
  3. esse preço, e as negociatas em torno dele, podem escancarar para a opinião pública a manutenção do sistema que ela imaginou estar a derrubar, o que tornará a situação instável e pode colocar o país entre o impeachment e o golpe.

Quando o senhor menciona a possibilidade de golpe, estamos falando de um golpe clássico ou algo mais insidioso, os golpes graduais, em sistemas com eleições, que vêm ocorrendo em países como Turquia e Venezuela?

Nobre – Seria uma mistura de Filipinas com Turquia. Nas Filipinas, virou uma coisa do tipo: você tem algum problema para resolver com seu vizinho, com lideranças indígenas, pode resolver que o Estado não vai mais arbitrar. O Estado deixa de arbitrar conflitos violentos na sociedade.

Novaes – Não é que “seria”… O Estado de Direito Autoritário já é essa mistura, basta ver os assassinatos de índios, camponeses, gays, mulheres e a ação do “sistema” diante de tudo isso: finge combater, mas, no fundo, arbitra favoravelmente aos agressores, em graus variados de omissão e engajamento. Temos sido apenas uma Filipinas-Turquia menos ruins. Nobre quer salvar um suposto Estado democrático de direito e, então, fecha os olhos para essas evidências de que ele jamais existiu. Bolsonaro é resultado da contradição irresolvida entre essas práticas autoritárias e a existência de amplas franquias democráticas, tudo sob desigualdade brutal. A autointitulada esquerda brasileira não pôde, e não pode, tirar proveito dessa contradição numa direção emancipatória porque se agarrou a este Estado, ajudou a construí-lo, e quer mante-lo.

O senhor vê isso como uma possibilidade no Brasil?

Nobre – Isso já está acontecendo e vai piorar. Se Bolsonaro tivesse alguma responsabilidade, iria para a TV e diria para essas pessoas: parem. Só que ele tem um problema. Se disser para essas pessoas pararem, está aceitando que é responsável por essa violência. Então temos um impasse. Esse é o lado Filipinas. O outro lado é o de estrangular as liberdades, como é no caso da Turquia.
Como sabemos, a mídia tradicional está em crise profunda. Caso ele ganhe, teremos um presidente com tendências claramente autoritárias num momento em que a imprensa está com dificuldades enormes. Então é a receita para ter restrição, para o governo ir para cima da imprensa.
Você elege seus próprios canais oficiais, segue com campanha em redes sociais, em que não há nenhum controle, e diz : “não acredite em nada que a mídia tradicional diga”.

Novaes – Nobre supõe que o que está acontecendo é uma novidade trazida pelos bolsonaristas radicais. Não é. É a ampliação do que já vinha acontecendo, pois era parte do funcionamento do sistema, sem que os governos do PSDB e do PT tenham realmente se empenhado em combater, ocupados que estavam em sua polarização fajuta e nas vantagens de poder e dinheiro que tiravam dela. Agora, a classe média esclarecida está a enxergar toda a extensão da sua omissão quando quem sofria a violência social eram os índios e os pobres do campo e das cidades. Assim como os desdobramentos do impeachment e da Lava Jato levaram à conflagração do Estado em uma guerra de facções estatais, generalizando para a luta dentro do Estado os métodos facciosos antes empregados apenas contra partes da sociedade, agora, em mais uma volta do parafuso da crise, a generalização do arbítrio vai engolfar novas franjas da sociedade, contra segmentos que se julgavam protegidos. Ou seja, com uma vitória de Bolsonaro se obterá a “pacificação” do Estado de Direito Autoritário, com a moderação da luta entre as facções estatais, ao preço de conflagrar a sociedade. Bolsonaro — que não lidera coisa alguma, ele é a marionete das massas — só irá aumentar a crise de legitimação e, diante dela, vai ficar cada vez mais inclinado, e será cada vez mais empurrado, a resolver na marra.

[15:24h] – Fica o Registro:

  • Apesar de todas as evidências, a autointitulada esquerda não deixa de nos surpreender em seu infantilismo e falta de consistência: a essa altura da crise, Boulos, lá do fundo da sua votação ridícula, vem insistir na sua superficialidade deletéria fazendo o que chama de ironias, quando o que o país precisa é de argumentação dedicada. O Brasil está em jogo, em meio a forças tremendas, e Boulos fica a se medir com Bolsonaro com provocações contraproducentes!

A ONDA BOLSONARO

Carlos Novaes, 13 de outubro de 2018

 

A onda Bolsonaro é avassaladora porque veio sendo impulsionada por duas forças: a do próprio candidato e a que veio dos seus adversários eleitorais.

O que ele fez: Bolsonaro se colocou contra o sistema e se fez resposta a uma urgência por ordem, deixando de lado a urgência social, a qual é, no fundo, negada pelo que ele propõe como ordem. Bolsonaro agarrou um pedaço da realidade para propor uma fantasia medonha como resposta.

O que fizeram os adversários: se colocaram no lugar de quem defende o sistema e, em graus variados, pretenderam legitimá-lo como ferramenta para enfrentar as duas urgências mencionadas acima, quando, na verdade, estão implicados na desordem e jamais enfrentaram a desigualdade, fundamento de ambas as urgências. Eles se agarraram a uma fantasia contraproducente para propor uma fantasia manjada como resposta (o blá, blá, blá de sempre, como escancarou o Cabo Daciolo).

Essa ação adversária deu potência a Bolsonaro porque o aspecto fantasioso dela é evidente: não há nada que justifique defender o sistema, ou seja, a ordem atual, isto é, este Estado de direito, afinal, está claro a toda gente que:

  • Este Estado de direito é instrumento de facções da bandidagem de palácio, voltadas ao roubo do dinheiro público com dois propósitos: enriquecimento pessoal e financiamento de sua permanência no poder — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes;
  • Este Estado de direito é o ambiente no qual se organizam as facções da bandidagem de rua, saindo de dentro dos presídios estatais as diretivas do crime — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes;
  • Este Estado de direito dá o arcabouço legal que garante às facções corporativas, especialmente aos hierarcas do serviço público, privilégios remuneratórios e previdenciários escandalosamente desiguais em relação ao que recebe a imensa maioria da sociedade — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes;
  • Este Estado de direito dá poder e protege de alto-a-baixo facções que praticam toda sorte de arbitrariedades, ora na forma de vantagens a favor de quem tem força, ora na forma de abusos contra quem, sem forças, precisa dos chamados serviços públicos: das polícias à fiscalização sanitária; dos Detrans ao SUS; da primeira à última instância da Justiça — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes;
  • Este Estado de direito se mostrou incapaz de conter a bandidagem de rua desorganizada, só obtendo algum resultado ao preço de fazer vítimas inocentes e entrar em acordo com facções do crime organizado — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes;
  • Este Estado de direito não ofereceu alternativa para tirar o país do atraso, pois está cego para os interesses da maioria, prisioneiro que é dos interesses dos ricos, contra os quais não é capaz de fazer sequer uma reforma tributária ou uma reorientação econômica que pelo menos retire o país da inviabilidade que se divisa — tudo contrário à consolidação institucional das franquias democráticas ainda existentes.

O golpe do impeachment e a operação Lava-Jato deram tão errado, fugiram tanto aos objetivos de seus feiticeiros, que escancararam o caráter autoritário dessa ordem estatal que acabo de sumariar. O golpe levou ao Planalto o chefe da outra metade da quadrilha, dando ocasião a toda sorte de desdobramentos inesperados; a Lava-Jato se tornou teatro de operações de uma luta entre facções, cujos desdobramentos levaram a essa conflagração do Estado de direito, nas quais se exibem toda sorte de alinhamentos e rupturas que, transversais aos três poderes, deram ocasião à crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário.

Foi em favor desse Estado de Direito Autoritário, defendido como um implausível Estado democrático de direito, que se organizaram, ainda que em linhas de defesa diferentes e eleitoralmente adversárias entre si, todas as candidaturas presidenciais relevantes, exceto a de Bolsonaro, um político profissional que jamais assumiu compromisso com Estado de direito algum, oriundo e adepto que é do Estado ditatorial.

Apoiando um pé na realidade e outro na inverossimilhança dos adversários, Bolsonaro erigiu seu próprio castelo macabro, que tem quatro pilares:

  • primeiro, ao se apresentar  contra tudo que aí está, disse a realidade atual contrária a uma suposta ordem natural (Deus, família, disciplina, certo-errado, propriedade) — os vetores da ameaça a essa suposta ordem natural seriam a homoafetividade, a relativização do papel estruturante das distinções de gênero e a bandidagem, tanto a de rua quanto a de palácio;
  • segundo, criou um passado mítico, a ser resgatado para restaurar essa ordem natural, uma suposta época de ouro, o período da ditadura paisano-militar;
  • terceiro, como não pode enfrentar a urgência social, trouxe de volta um espectro que já não ronda parte alguma do planeta, dizendo comunista quem quer que se lhe oponha, do MST à Globo, passando pela Folha de S.Paulo e pelo PSDB, todos com algum grau de compromisso com o PT;
  • quarto, se favorecendo precisamente do que há de implausível nos três passos anteriores, veio deixando no ar a ideia de que “não é bem assim”, de modo a diluir (em meio às acerbas emoções despertadas) a evidência racional de que essas fantasias nem podem ser resposta à realidade adversa que elas simulam combater, nem, muito menos, podem deixar de despertar forças aniquiladoras das franquias democráticas ainda existentes, forças essas que atualizam tudo de antidemocrático que Bolsonaro sempre disse e, agora, pretende disfarçar como coisa do passado.

A argamassa empregada na construção desse castelo saiu da fusão de ressentimentos particulares com incertezas coletivas, como se fosse possível fazer do país uma fortaleza contra um mundo em transformação, no qual tudo que parecia sólido se desmancha no ar, levando a uma redistribuição de papéis aturdidora: homem vira mulher e mulher vira homem e, como se não bastasse, as mulheres ainda se insurgem contra a dominação dos homens; o bandido que mata é tão vítima quanto aquele a quem ele mata; religiosos se revelam estupradores; policiais se parecem cada vez mais com bandidos; quem busca trabalho na iniciativa privada não encontra, quem não busca tem bolsa pública; pressões migratórias põem a nu a fragilidade e a arbitrariedade das fronteiras nacionais; a profusão ininterrupta de novos bens materiais disponíveis esmaga a autoestima de quem não pode comprá-los; as crianças têm cada vez mais direitos sem que se tenha os meios para ensinar-lhes os deveres correspondentes; a hipertrofia das relações horizontais aplasta hierarquias que parecem imprescindíveis à ordem; países que se fizeram ricos explorando suas riquezas naturais pretendem impor restrições ambientais àqueles que buscam sair do atraso; cotas são estabelecidas às custas de quem nunca descriminou ninguém; etc.

Na trilha dessa desorientação, a maioria do eleitorado está a votar num candidato que propõe:

  • a militarização do ensino (já em curso em alguns Estados, onde escolas foram entregues à PM), em marcha contrária ao que recomendam a ciência e as iniciativas de ponta, onde a abertura ao conhecimento e o estímulo à inovação dependem justamente da pluralidade e da flexibilidade com que se estimulam crianças e jovens;
  • a fusão de órgãos ambientais com os de fomento ao agronegócio, sob a determinação de “liberar os produtores de qualquer entrave”, uma medida que contraria toda a experiência nacional e internacional recente, num mundo desafiado pelas mudanças climáticas;
  • combater todo ativismo de quem pensa diferente como “inimigo da pátria”, como se fosse possível definir nitidamente o que é propício ou impropício à Pátria, como se o propício não tivesse que incluir necessariamente a controvérsia sobre o que é melhor;
  • estancar a demarcação de terras para populações vulneráveis e rever as já demarcadas, indiferente aos sofrimentos que essas providências acarretarão;
  • estabelecer alíquota única para o Imposto de Renda, não apenas indiferente à já absurda desigualdade brasileira, mas ao contrário do que ensina toda a experiência mundial na matéria;
  • liberar o uso de armas de fogo ao cidadão, aumentando o poder de provocar danos de quem já está disposto ao emprego da força, como dão exemplo seus seguidores mais extremados que, ainda desarmados, já correm as ruas a agredir violentamente quem pensa, age e vive de maneira diferente.

Bolsonaro é a saída regressiva para uma crise de legitimação do Estado associada à desorientação da maioria da sociedade, que foi chamada às urnas para escolher entre candidaturas que não encararam nenhum dos problemas reais do país. Ao não ser apresentada a uma proposta de como ir adiante, a maioria da sociedade engatou a marcha-a-ré, um recuo defensivo em que ao lulopetismo foi dado um papel que ele não tem como recusar: o de espantalho.

Diante da proposta desesperada de Kátia Abreu (a renúncia de Haddad em favor de Ciro), à qual, embora inviável, a gravidade da hora impede simplesmente desconsiderar, Lula disse não passar de “maluquice”, acrescentando que a política é assim mesmo, que “o tsunami vai e volta”, deixando ver que já absorveu a derrota e dando prova do realismo com que se orienta, um realismo de chefe de facção, no qual o cinismo de quem se habituou a explorar os sonhos alheios apagou qualquer centelha de sonho inspirador e impede enxergar a extensão da tragédia em curso, não obstante a mencione, como que seguro de que, ao fim e ao cabo, sempre será possível arrumar uma prancha e tirar proveito dela.

Nunca foi tão difícil votar em alguém, e nunca foi tão necessário fazê-lo.

UM EQUÍVOCO E TRÊS BESTEIRAS

Carlos Novaes, 11 de outubro de 2018

Nas linhas a seguir, vou tentar deixar mais claro meu ponto de vista sobre o que se passa fazendo o comentário tanto do que acaba de ser dito por quem começa a se aproximar do que venho dizendo há meses, quanto das três besteiras mais notórias que encontrei hoje na mídia convencional.

O EQUÍVOCO

Li na internet artigo do professor Marcos Nobre publicado ontem pela revista Piauí. Qualquer um que venha lendo este blog desde 2016 não pode deixar de reconhecer que Nobre está a um passo de entender que estamos diante de uma crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. Vejamos dois pedaços do que ele diz:

“[Precisamos de] uma frente de reconstrução institucional com uma multidão de figuras do mundo da internet, da indústria, dos novos coletivos sociais, da finança, da cultura, do agronegócio, de ONGs, da televisão e de tantos outros lugares. Onde quer que exista repulsa, ojeriza ou alguma restrição a Bolsonaro, aí tem de estar a candidatura de Haddad, pronta a acolher energia e apoios. Ou, quando não for possível, pedindo ao menos neutralidade”. (Nobre fala como se tivéssemos seis meses pela frente…).

Mais adiante, de novo:

“[Tarefa para] uma ampla frente de pessoas, organizações, instituições, partidos, grupos e movimentos preocupados com a reconstrução institucional da democracia. A impressão de que estamos de volta à década de 80, aos primórdios da redemocratização, tem algo de real. Porque estamos de fato em um momento de refundação institucional”.

Nobre está prisioneiro de uma contradição fundamental porque identifica o desafio sem encontrar-lhe a raiz, deficiência que o leva a enxergar como resposta a origem do próprio problema que aparece como desafio. Veja bem, leitor:

O desafio: “a reconstrução institucional da democracia”. Ora, o que é isso senão (re)construir instituições, ou seja, buscar um Estado compatível com a democracia? Nobre está a reconhecer que as instituições (o Estado), não são compatíveis com a democracia e precisam de reconstrução – ele não diz, mas uma situação assim é a própria crise de legitimação de que me ocupo há cerca de dois anos, em longas e detalhadas explicações.

Como esse Estado compatível com a democracia nunca foi alcançado nesses trinta anos, não se trata de (re)construção, mas de constatar que jamais houve um Estado democrático de direito. Nobre tem diante de si a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, mas como ele supõe, junto com legiões de outros cegos, que a reconquista das franquias democráticas lá nos anos 80 nos trouxe, por si só, um Estado compatível com elas, na hora da crise de legitimação desse Estado, fica a apelar para a união das mesmas forças que nos conduziram a ela, instando-as a reconstruírem o que jamais existiu!

Nobre está a reconhecer (finalmente!) que as tais “sólidas instituições democráticas” precisam ser nada menos do que “reconstruídas”, precisamente porque a maioria da sociedade não as reconhece, conjunto que escancara não uma crise institucional de um suposto Estado democrático de direito, mas a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário. Nobre não entende que a situação é ainda pior do que só estarmos de volta aos primórdios da redemocratização (uma ideia que já explorei aqui). Não. Estamos, sim, de volta, e a um só tempo, aos primórdios da redemocratização e aos primórdios de 64: temos uma ressaca de 1964 depois de um fracasso da redemocratização de 1988!

Nesses trinta anos, em razão do protagonismo de uma polarização fajuta entre PSDB e PT, a redemocratização da vida em sociedade recebeu por cima um Estado de Direito Autoritário contrário a ela, saído do legado da ditadura paisano-militar de 64, através do qual todos os grandes partidos (e a imensa maioria dos pequenos) se tornaram sócios do exercício faccioso dos poderes institucionais, ocupados em reunir poder para fazer dinheiro.

A crise desse arranjo levou a uma crise de legitimação do Estado, que aparece nessa revolta contra o sistema (urgência por ordem), em meio à qual se criou essa vigarice autoritária que Bolsonaro representa, uma vigarice que não poderá ser derrotada com a vigarice “democrática” dos mesmos de sempre!

Diante de um desafio desse tamanho, posto na forma de uma crise tão profunda, Nobre ainda insiste num “pacto de salvação institucional”, e pondo suas fichas no PT, a quem dirige apelos! Não há o que salvar no plano institucional, como digo faz tempo. Temos de nos concentrar em preservar o máximo das franquias democráticas propondo um outro Estado, não a salvação desse que está aí — foi por não entender isso que, por exemplo, Ciro perdeu a oportunidade de se tornar um candidato viável nesta eleição.

AS TRÊS BESTEIRAS

Diante do cinismo de Bolsonaro ante a violência crescente de seus adeptos, um articulista “sensato” fez a seguinte ponderação em artigo que denuncia a própria impotência intelectual e política:

  1. “Bolsonaro deixa de exercer papel de líder diante da intolerância”, na Folha de S.Paulo, em 11/10.

Como já expliquei aqui, Bolsonaro não foi, não é e não será líder de coisa alguma. Ele é um fenômeno novo justamente por isso: ele é a marionete das massas. Logo, reclamar que ele não se coloque contra a violência dos seus adeptos, ficar desapontado com o fato de ele dizer que o assassinato a facadas de um eleitor adversário foi um “excesso”, é simplesmente não entender a natureza da insânia que está em curso. Bolsonaro não pode se contrapor ao vetor mais profundo de onde ele próprio emergiu e do qual ele é instrumento, não líder.

Diante da irremediável polarização eleitoral desde o primeiro turno, vários doutos puseram-se de acordo em torno da seguinte “explicação”:

  1. “A causa das altas rejeições de Bolsonaro e Haddad é a polarização da sociedade”, no UOL, em 11/10.

Como é que alguém pode dizer uma besteira dessas e ainda encontrar quem publique, e numa edição caprichada?! Quem diz um troço desses não consegue entender o básico: a rejeição alta e a polarização exacerbada são modos de aparecer de um mesmo fenômeno e uma não pode explicar a outra, ambas foram sendo construídas na medida em que o fenômeno se dava. O fenômeno é a aglutinação paulatina da população em duas demandas de resposta à crise: os que enxergam a crise como uma urgência social e os que enxergam a crise como uma urgência por ordem. Uma polarização fajuta que não cabe nos simplismos de esquerdaXdireita e, por isso mesmo, não permitiu a saída manjada via um centro supostamente virtuoso, como inutilmente tentaram todos os candidatos cegados pela reunião de oportunismo político com mediocridade intelectual, de quem o eleitorado, merecidamente, fez pó.

Diante da pequena margem de manobra deixada por um primeiro turno em que já houve um início de segundo turno, há quem se saia com essa:

  1. “Haddad e Bolsonaro precisarão construir uma lógica discursiva mais ao centro para conquistar os 50% dos votos mais um”, no UOL, em 11/10.

Bolsonaro já ultrapassou os 50% sem a construção dessa “lógica discursiva mais ao centro”… O mais provável é que sua votação diminua se cair no logro dessa tal lógica, que parece tão sensata numa eleição convencional. No caso de Haddad, o absurdo dessa tal lógica não é menor, afinal, a rejeição dele não está numa proposta petista supostamente radical (ela não existe há décadas!), mas no que sua candidatura simboliza – para além do que as pessoas possam conseguir verbalizar, Haddad, no fundo, simboliza o establishment, o Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação.

Por isso mesmo, nada mais contraproducente (e mais inescapável!) do que ele se empenhar para poder se apresentar com o apoio dos outros representantes do establishment nessa eleição. Haddad vai acabar apresentando, mesmo, a cara do que de fato também é: a alternativa do blocão faccioso (prova disso está na movimentação que já reúne o Centrão e o PT para reconduzir Maia à presidência da Câmara como contraponto a Bolsonaro na presidência da República – é, leitor, quem tem juízo não pode deixar de ver que estamos, mesmo, sem alternativa e, por isso, o voto em Haddad só chega a se justificar para evitar o mal maior, mas não vai resolver nada, só vai adiar o desenlace).

Para terminar, permitam-me voltar a uma sentença do professor Marcos Nobre:

“como em todo momento inaugural, as chances de dar muito errado são muito maiores do que em qualquer outro momento.”

Para além do fato de que isso é só mais uma frase, ele está a chamar de “momento inaugural” algo que ele próprio acabou de descrever como uma defensiva reação (re)construtiva… Ora, inaugural é termo que se usa para quando nasce o novo, não para quando o velho tenta permanecer (e através do PT!), por mais que essa permanência se contraponha, como é o caso, à escuridão. Há que se debruçar diligentemente sobre o velho para saber como nasce o novo, descoberta que, em geral, indicará que o novo só poderá nascer de outro modo, mesmo.

ELEIÇÃO EM PROSA E VERSO

07 de outubro de 2018

 

“O DIABO NA RUA, NO MEIO DO REDEMOINHO…”

[…]

“E a gente raivava alto, para retardar o surgir do medo — e a tristeza em crú — sem se saber por que, mas que era de todos, unidos malaventurados.

[…]

Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se fôr… Existe é homem humano. Travessia.”

xxxxxx

No Meio do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

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  • A primeira parte do post traz três momentos de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa: a epígrafe do romance e, em seguida, duas orações, uma extraída bem do meio dele, num trecho de travessia na leitura; a outra é a última frase do livro (obedeci a grafia da primeira edição, de 1956).
  • Na segunda parte do post, um poema de Carlos Drummond de Andrade, que apareceu no primeiro livro publicado pelo poeta, Alguma Poesia, em 1930.

VOTAR PARA DEFENDER A DEMOCRACIA; NÃO ESTE ESTADO DE DIREITO

Carlos Novaes, 06 de outubro de 2018

 

Não obstante a vida política no Brasil transcorra sob a vigência de franquias próprias da democracia, tais como o direito de voto livre e universal e as liberdades de imprensa, opinião, religião, reunião, manifestação, organização e associação, nosso Estado de direito — embora obedeça aquelas franquias, e chegue a atuar em conexão com elas em muitos aspectos –, está orientado, no direito e/ou na prática, para conferir prerrogativas, favorecer privilégios e permitir abusos de autoridade que estão em desacordo frontal com a máxima de que “todos são iguais perante a lei”. Essa máxima resume a contrapartida propriamente estatal ao exercício da vontade popular livre para escolher como opinar, como se associar, como se manifestar e como ser governada.

Se a contrapartida estatal à vontade popular não faz uma tradução cabal do sentido das franquias democráticas para a ordem institucional, não há democracia consolidada e o Estado de direito resultante não é um Estado democrático de direito. Entendo que há no Brasil um Estado de Direito AutoritárioEDA, marcado por uma assimetria que leva, no curso do tempo, a um contraste crescente entre, de um lado, a inclinação dos hierarcas do Estado para defenderem e estenderem seus privilégios e prerrogativas, bem como perseverar nos (e, até, intensificar os) abusos de autoridade; e, de outro lado, a tendência não menos crescente da maioria da sociedade para identificar como danoso contra si o exercício desses privilégios, prerrogativas e abusos, conjunto de práticas que reuni sob o nome de exercício faccioso dos poderes institucionais. Esse “faccioso” tem aqui dois sentidos:

  • faccioso porque separa o que não deveria ser separado: os interesses de quem ocupa os postos de Estado e os interesses da maioria da sociedade;
  • faccioso porque se dá, no corpo do Estado, segundo uma dinâmica ela mesma feita de arranjos entre facções estatais, ou seja, grupos de interesse que, uns contra os outros, se fazem e desfazem ao sabor das disputas em torno do que lhes parece vantajoso.

Esse divórcio atual entre o Estado e a maioria da sociedade decorre fundamentalmente da desigualdade por duas razões principais:

  • primeiro, porque o Estado tem sido desde sempre no Brasil um instrumento dos ricos para carrear para si o máximo da riqueza produzida, deixando ao restante da sociedade só o necessário para que o país perdure (é esse o resultado de um Estado cuja origem primordial foi organizar a escravidão como negócio para outros negócios);
  • segundo, porque uma máquina estatal assim voltada à manutenção (quando não ao fomento) da desigualdade forma ou recruta os seus funcionários em troca de remuneração e distinção ofertadas sempre acima da média alcançada pelo cidadão na vida privada, o que só pode levar ao descolamento reiterado entre os interesses desses dois segmentos – no Brasil, entrar para o serviço público é, e sempre foi, uma maneira de contornar ou compensar o que há de mais agudo na desigualdade (é disso que vivem os cursinhos preparatórios para os concursos aos cobiçados empregos públicos).

Em outras palavras, na contraposição entre o Estado e a sociedade no Brasil, o Estado é instrumento tanto dos interesses dos ricos quanto do interesse dos seus funcionários estáveis ou de confiança, segundo uma escala de rendimentos, privilégios, prerrogativas e poderes que crescem segundo o lugar ocupado seja na pirâmide da riqueza, seja na hierarquia estatal. Os muito ricos no chamado Mercado se articulam com os muito poderosos no Estado seja para se assegurarem da permanência da dominação, seja para garantirem grandes negócios.

Como os muito poderosos do Estado são, em sua maior parte, escolhidos pelo voto popular, as facções estatais voltadas aos cargos cujo provimento se dá pelo voto popular têm nas eleições seu teatro de disputas; como eleições custam dinheiro, elas buscam o apoio dos ricos e, assim, a roda gira sem sair do lugar – foi por isso que Lula se gabou, com toda justiça, de que em seus governos os ricos ganharam dinheiro como nunca antes.

Num arranjo desses, os partidos são fachadas para facções de interesse e podem se aliar das maneiras mais variadas a cada eleição e, especialmente, no intervalo entre elas, pois o que importa é reunir poder para fazer dinheiro. Essas facções partidárias não se limitam aos partidos em si, mas têm conexões em toda a burocracia estatal, reunindo em seu jogo incessante gente pertencente a todos os três poderes do Estado de Direito Autoritário-EDA.

Sendo uma disputa por poder para fazer dinheiro, as desavenças são reais e podem se tornar acerbas, levando a impasses de gerenciamento. Em seu limite máximo, esses impasses têm sido “resolvidos” via impeachment, trauma institucional motivado não pelos interesses da maioria da sociedade, mas pelos interesses das facções estatais. As polarizações políticas que levaram aos dois impeachments recentes, embora reais no jogo entre facções, são totalmente fajutas no que diz respeito aos interesses da maioria da sociedade que, não obstante, tem se deixado levar e aderido a alinhamentos totalmente contraproducentes, como veio sendo o caso da disputa entre PSDB e PT.

A falência do pacto do Real, que estruturava o joguinho entre PSDB e PT, levou à ruína todo o arranjo porque já não há rota de fuga que permita combinar uma desigualdade tão grande com as franquias democráticas, pois os descontentes com o arranjo já não são apenas os muito pobres, contra os quais sempre se mobilizou o abuso de autoridade – isso ficou claro com a reação da opinião pública quando Alckmin jogou sua polícia contra os manifestantes de junho de 2013. A partir de 2013 veio ficando mais e mais claro o divórcio entre o Estado de Direito Autoritário-EDA (que define tarifas e emprega a força policial) e o uso das franquias democráticas pela sociedade.

A crise brasileira atual é a exibição plena do esgarçamento máximo da relação entre o EDA e a maioria da sociedade: o EDA foi desnudado em toda a sua podridão, se conflagrou numa guerra de facções estatais que se segmentou em todos os três poderes, e entrou numa crise de legitimação que se tornou visível ao observador atento porque a sociedade passou a expressar, via exercício das franquias democráticas, toda a sua revolta, que aparece na forma de duas urgências, uma urgência social e uma urgência por ordem.

Inteiramente integrados a esse EDA, seja porque o forjaram, seja porque nasceram dele, os partidos políticos não estão em condições de apresentar uma alternativa transformadora que integre as duas urgências que motivam a revolta da maioria da sociedade contra esse mesmo EDA. Vivendo a desorientação correspondente ao fato de ainda preferir alguma dessas forças políticas obsoletas (que, por isso mesmo, não sobreviverão à eleição), a maioria da sociedade não tem enxergado essas urgências como articuladas entre si e, muito menos, como decorrências da desigualdade. Os mais extremados entre os que têm preferência pela ordem propagam o preconceito de que a ordem deve ser posta contra o social, visto como demanda de vagabundo; em contrapartida, os mais extremados dentre os que demandam políticas sociais difundem o estigma de que quem pede ordem é fascista.

Dessa polarização fajuta se beneficiam Haddad e Bolsonaro, precisamente porque se nenhum dos dois pode integrar as duas urgências, cada um deles pode se apresentar como o campeão fajuto de uma das pernas do problema nacional: Haddad está cercado de ladrões e corporativistas, mas exibe políticas sociais compensatórias; Bolsonaro está cercado de reacionários neo-liberais, mas exibe o fervor pela ordem oferecida pelos cemitérios.

Como nada é tão ruim que não possa piorar, os autointitulados defensores da temperança, os centristas, trouxeram para o meio da disputa a ideia de que a crise estaria a colocar em perigo um suposto Estado democrático de direito. Com isso, têm ajudado a separar as duas urgências, pois ora pretendem convencer os que já se revoltaram contra o sistema de que esse EDA presta, ora censuram como radicais os distributivistas que, não obstante os bons sentimentos, insistem em empurrar uma vanguarda que há muito arriou suas bandeiras.

Sem saída transformadora e a menos de 24 horas de conhecermos o resultado de uma eleição presidencial sem esperança, só nos resta tentar evitar o pior, nos termos do artigo imediatamente anterior.

UM VOTO PARA PRESERVAR MEIOS DE CONTESTAR O ELEITO

Carlos Novaes, 04 de outubro de 2018

 

Por mais incerta que seja a situação eleitoral, salvo acontecimento extraordinário, que não está no horizonte, haverá segundo turno para a escolha do próximo presidente da República, e ele será disputado entre Haddad e Bolsonaro — e isso porque essas duas candidaturas polarizaram de vez a disputa e concentraram as incertezas na contraposição das suas respectivas rejeições. Trata-se de escolher o mal menor; vai ganhar não o preferido, mas o que for menos rejeitado.

Do ponto de vista do eleitor médio, o Brasil tem duas urgências: a urgência social e a urgência por ordem, urgências que se materializam na revolta contra a desigualdade e na revolta contra o sistema, como tentei desenhar nos quatro artigos de série recente, iniciada aqui. Nessas revoltas, os desafios principais são, pelo lado social, emprego, saúde e educação; pelo lado da ordem, a bandidagem de Estado, especialmente a corrupção, e a bandidagem de rua, especialmente o tráfico de drogas e armas.

Como nenhuma candidatura apresentou alternativa crível para enfrentar esse conjunto de problemas, a disputa se cristalizou numa polarização contraproducente entre o social e a ordem: um lado se apresenta como o campeão do social, o outro se diz o campeão da ordem, sendo que:

  • Bolsonaro não oferece nenhuma perspectiva para a urgência social, antes pelo contrário, dá seguidas indicações de que um governo seu levará o Brasil a regredir nessa matéria, a menos que se acredite que um ultra-liberalismo que não deu certo em país nenhum do mundo vá criar no Brasil os empregos que nossa gente precisa ou sirva de garantia para a continuidade dos programas compensatórios existentes ou mesmo para direitos trabalhistas há muito conquistados, com 130 salário, adicional de férias e outros.
  • Haddad não oferece nenhuma perspectiva para a urgência por ordem, pois, pelo lado da bandidagem de Estado, embora seja pessoalmente honrado, está vinculado a governos que, de um lado, organizaram e deixaram que se organizassem sofisticados esquemas de corrupção e, por outro lado, foram governos muito afeitos à acomodação com os privilégios dos hierarcas do serviço público; já pelo lado da bandidagem de rua, os governos petistas não oferecem precedente no enfrentamento do problema.

As limitações acima explicam parte da rejeição de cada um dos dois candidatos, mas se colocarmos uma contra a outra não temos como decidir.

Passemos à avaliação da consistência e desejabilidade do que Haddad e Bolsonaro oferecem ali onde são tidos, por seus mais ferrenhos defensores, como campeões:

  • Haddad é apresentado como campeão no social, o que não é verdade, pois embora o lulopetismo tenha uma marca na geração de empregos e na aplicação de medidas compensatórias, não foram políticas nem sustentáveis nem duradouras porque, além de outros erros, deixaram de fora o essencial: a estrutura tributária, da qual depende o enfrentamento da desigualdade. Entretanto, mesmo sob essas limitações severas, não chega a ser indesejável que um eventual governo seu mantenha o que já existe, desde que não ameace as franquias democráticas que nos permitirão contestá-lo e lutar por outras alternativas, a começar pela inadiável batalha da Previdência.
  • Bolsonaro apresenta propostas para alcançar a ordem que não são consistentes porque nem há razão para supor que sua associação com o que há de pior no Congresso (bancadas BBB e Centrão) vá patrocinar o combate ao banditismo de Estado, aos privilégios dos hierarcas do serviço público e aos abusos das facções policiais violentas; nem se pode considerar que sua proposta de armar o cidadão possa resultar num efetivo combate ao banditismo de rua. Ademais, e sobretudo, o que Bolsonaro propõe como ideário de ordem, cravejado de preconceitos e desconsideração contra quem pensa, age e vive diferente, não é desejável porque só pode ser alcançado suprimindo total ou parcialmente as franquias democráticas com que a maioria da sociedade brasileira ainda conta para trocar ideias, se manifestar, se organizar e agir contra a desigualdade e a desordem, que vão estar na ordem do dia no debate sobre a inadiável reforma da Previdência.

A polarização Haddad-Bolsonaro se dá com base nas rejeições deles porque ela esconde uma outra, da qual nem todos estão conscientes, mas que ganha forma num plebiscito em que todos iremos votar: ou o representante de forças facciosas que puseram as franquias democráticas a serviço de obter poder para defender principalmente os seus próprios interesses; ou o representante de forças que pretendem diminuir ou suprimir as franquias democráticas para garantirem um exercício ainda mais faccioso dos poderes institucionais, a começar pelo voto livre, que dizem fraudado se não lhes der a vitória.

Entre Haddad e Bolsonaro, o mal menor é Haddad.

CRISE DE LEGITIMAÇÃO E ELEIÇÃO PRESIDENCIAL – 4 DE 4

BOLSONARO VOLTA AO POSTO DE CAPITÃO, O CAPITÃO NASCIMENTO

Carlos Novaes, 03 de outubro de 2018 — 04:37h

 

Em 11 de setembro de 2010 fiz palestra em Seminário realizado para os alunos do curso de cinema da FAAP, na qual analisei o sucesso de público dos filmes Dois Filhos de Francisco e Tropa de Elite (participava da mesa comigo Mara Kotscho, roteirista de Dois Filhos, estando na platéia o roteirista do Tropa). Desenvolvi minha análise a partir do que já via como central para o sucesso de cada um dos filmes: Dois Filhos de Francisco dialoga, a contrapelo, com a figura do pai-ausente, tão comum nos extratos populares; Tropa de Elite dialoga com a ânsia por um princípio de ordem em meio à esculhambação e à balbúrdia — o sucesso dos dois filmes convergia para uma afeição autoritária, em favor do pai arbitral e rompedor de caminhos.

Os anos se passaram, vim desenvolvendo o diagnóstico da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário e chegamos às eleições de 2018, com os debates na TV entre os candidatos à presidência. Dos até aqui realizados, achei o mais recente, o da Record, perturbador. É que notei, entre os demais candidatos presentes, um desconforto generalizado diante da atuação do Cabo Daciolo; foi como se ninguém tivesse resposta para a verdade profunda que ele trazia à tona.

Os dias vieram passando e foi ficando cada vez mais difícil enquadrar aquela atuação do Cabo Daciolo sob o mero registro do folclore, ou melhor, constatei que ela só pode ser vista como folclórica num sentido muito profundo do que é o folclore: ela vai se revelando profética. O policial militar evangélico, com a Bíblia na mão, fez a síntese do momento histórico e anunciou os novos tempos: todos os outros candidatos ali presentes representam o status quo e estão aquém das tarefas exigidas pelos sofrimentos da maioria da sociedade.

A crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário finalmente veio a furo, e da pior maneira: favorecendo uma variante ainda mais autoritária, precisamente porque amputada da revolta contra a desigualdade, ainda que essa nova variante autoritária esteja a crescer precisamente porque passou a receber o apoio das emoções mais autênticas de quem mais sofre a desigualdade, como mostram os números da pesquisa DataFolha mais recente, nos quais, entre outras movimentações, se vê as mulheres pobres evangélicas sendo engolfadas pela onda Bolsonaro — mais uma vez, a desigualdade vai sendo posta a serviço da própria continuação.

Não vai faltar quem veja nessa onda uma revolta antilulista e/ou antipetista, como se uma movimentação tectônica pudesse ser explicada pelos ventos que varrem a superfície do fenômeno. Uma revolta por ordem contra uma ordem em crise sempre precisa de um fio condutor. Assim como a ascensão do nazismo não se deveu ao antissemitismo; também a ascensão do capitão Nascimento não pode ser explicada pelo antipetismo. Lula entra nessa história como o Judas indispensável a essas situações.

Em 16 de setembro de 2016, escrevi neste blog o artigo Consolidação do Autoritarismono qual, entre outras coisas, perguntava se o leitor poderia conceber coisa pior do que assistir a uma ascensão de Alckmin à testa de

um retrocesso no marco legal da vida político-social (com a correspondente gestão reacionária e fraudulenta dos recursos do Estado) e com a intensificação do arbítrio policial (com o apoio da religiosidade reacionária), tudo amarrado numa nova solda eleitoral do entulho autoritário (p-MDB + PM, com o beneplácito garantidor das Forças Armadas, cada vez mais “prestigiadas”).

Estamos a ver que nada é tão ruim que não possa se fazer pior.

CRISE DE LEGITIMAÇÃO E ELEIÇÃO PRESIDENCIAL – 3 DE 4

UM PLEBISCITO FUNESTO

Carlos Novaes, 02 de outubro de 2018

 

Ao contrário das eleições presidenciais anteriores, o emocionalismo que marca o início de toda eleição não só não está cedendo lugar à razão, como parece ganhar terreno contra ela. Por que?

Um motivo seria a conexão que tenho explorado em posts recentes, especialmente nesta série de que este é o terceiro: a revolta contra o sistema, sem a compreensão de que ela deveria se juntar com a revolta contra a desigualdade, leva a uma polarização entre as duas e, com isso, se instala um nós contra eles típico de programas de auditório, onde vale tudo que o animador/ditador deixar. Como a disputa é justamente para escolher o animador/ditador, a emoção não cede.

Mas penduremos os dados de outro modo no varal do juízo: e se parte desse emocionalismo estiver orientado pela razão, e se parte dessa emoção for apenas a forma entusiasmada da razão?

Tenho insistido em apontar que estamos cara-a-cara com uma crise de legitimação do Estado de direito no Brasil. E o Estado de direito que está em crise é o Estado de Direito Autoritário saído das lutas contra o Estado ditatorial instalado com o golpe paisano-militar de 1964. Essa circunstância levou a imensa maioria dos autointitulados democratas, bem como a da autointitulada esquerda, a cerrarem fileiras na defesa desse Estado, pois ele é a tradução de tudo o que eles fizeram nesses 30 anos — o Estado de direito em crise de legitimação é obra deles e eles são muito afeiçoados ao resultado das suas escolhas.

Mas se esse Estado de direito está em crise de legitimação, defende-lo é um caminho para a derrota, pois não há como sustentar uma ilegitimidade se ela já tiver sido identificada por aqueles que a sofrem. E é aqui que eu começo a rever aspecto central da minha análise: há uma parte da sociedade que já identificou a ilegitimidade do Estado e, por isso, mais e mais se volta para a única candidatura presidencial que propõe a derrubada desse Estado de direito ilegítimo: Bolsonaro — a catástrofe é que ele propõe um Estado ditatorial.

Dessa perspectiva, todas as outras candidaturas estão do lado errado, pois todas elas defendem o Estado de direito em crise de legitimação:

  • Haddad não faz autocrítica; não trata do sistema político corrupto, insistindo em persuadir os revoltados contra esse Estado de direito que a solução é uma volta ao passado (“feliz”!!) que construiu a ilegitimidade!
  • Alckmin é a face siamesa de Haddad, entre outras coisas porque atualiza a polarização fajuta entre PSDB e PT, uma polarização fajuta que está no cerne da crise de legitimação do Estado de direito, como já expliquei em vários posts anteriores.
  • Ciro faz uma campanha em que através de palavões e ofensas se apresenta como o candidato da pacificação sob esse Estado de direito em crise de legitimação. Ciro é o bipolar da polarização propondo a pacificação! (como diria o macaco Simão, a atuação dele é psicodélica).
  • Marina, depois de uma campanha reacionária em 2014, de apoiar tudo que deu errado nos anos seguintes (Aécio e o golpe do impeachment), e de ficar em silêncio ante situações de gravidade variada (de desastre ambiental a falas de general), se agarrou, claro, à defesa desse Estado de direito em crise de legitimação, endossando toda decisão emanada da Lava-Jato e das “instituições democráticas”, por mais arbitrárias que fossem — sem perceber, Marina passou da irrelevância para a condição de detalhe em meio àquilo que precisa ser vencido.

Como nenhum deles ofereceu uma alternativa transformadora, ou seja, uma alternativa que recusando esse Estado de Direito Autoritário propusesse um Estado de Direito Democrático; como todos eles entendem que o racional é defender um Estado de direito que aos olhos de muitos é indefensável, Bolsonaro está a avançar sozinho na avenida que se abriu em meio à maioria enraivecida: é o único candidato que se orienta pela crise de legitimação do Estado de direito, propondo outro Estado, totalmente diferente do atual. Dessa perspectiva, seus eleitores fizeram da emoção o papel de embrulho de um pacote racional: livrar o país de um Estado de direito que não presta.

Mas como o Estado de direito do Brasil não está em crise em razão das franquias democráticas que embutiu, a saída Bolsonaro não presta — se não se quiser olhar para a trajetória democrática da sociedade nesses 30 anos, que ao menos olhe-se para a apoteose democrática dessa campanha eleitoral, onde contingentes imensos vêm ganhando as ruas ainda sem nenhum incidente grave ( a possibilidade de ocorrerem agressões está inscrita não na democracia, mas no fato de que parte dos manifestantes ganha as ruas para exigir um Estado em que ninguém mais possa sair a elas…).

O Estado de direito do Brasil está em crise em razão das injustiças, dos vícios e das arbitrariedades que trouxe da ditadura, mas isso nenhum dos candidatos que defendem a “união nacional” pode reconhecer, pois foram eles que construíram essa engenhoca.

A desgraça dos alinhamentos eleitorais que essa situação produziu é essa polarização fajuta na forma de um plebiscito. Mas não um plebiscito entre Lula e o anti-Lula (Bolsonaro), como quer o marqueteiro dos marqueteiros, mas algo muito pior: um plebiscito entre o status quo (as facções estatais em guerra pela hegemonia no Estado de Direito Autoritário) e a regressão autoritária antissistema, na forma de um Estado ditatorial ou, no mínimo, ainda mais arbitrário. Dessa perspectiva, as manifestações do EleNão podem ter reforçado Bolsonaro, pois colocaram todos os que a ele se opõem num saco só, como defensores desse Estado ilegítimo — e na defensiva, o que é péssimo para o moral em situações conflagradas.

CRISE DE LEGITIMAÇÃO E ELEIÇÃO PRESIDENCIAL – 2 DE 4

ESSA COZINHA NOS PREPAROU UM PRATO-FEITO INDIGESTO

Carlos Novaes, 29 de setembro de 2018

[com acréscimo às 19:25h, em Fica o Registro]

No artigo anterior vimos a origem do Estado de Direito Autoritário que infelicita o Brasil, bem como mostramos que, ao não enxergar que está a viver a crise de legitimação dele, a maioria da sociedade brasileira se deixou levar para uma falsa polarização entre suas duas legítimas urgências máximas: a urgência social (revolta contra a desigualdade) e a urgência por ordem (revolta anti-sistema).

Essa polarização é falsa por duas razões fundamentais:

  1. a urgência social só é urgência porque a desigualdade não atinge desfavoravelmente apenas aos mais pobres, antes emperra toda a estrutura social em que os pobres e as camadas médias têm seu potencial criador represado numa ordem que privilegia os ricos e impede todos os demais de serem recompensados pelo que poderiam realizar;
  2. não haverá ordem se a desigualdade não for enfrentada em benefício dos pobres e das camadas médias; e não haverá solução social eficaz e duradoura se ela não for consolidada numa nova ordem, contraposta ao sistema atual.

Como a raiz da formação das preferências eleitorais da atual campanha presidencial é essa polarização falsa entre o social e a ordem, a disputa eleitoral também foi orientada para uma falsa polarização: aqueles cujas motivações estão mais orientadas para a urgência social acabaram por dar preferência à candidatura de Haddad; aqueles que se orientam preferencialmente pela urgência por ordem acabaram por dar preferência à candidatura de Bolsonaro.

Além de oriunda de uma polarização falsa, essa polarização que opõe Haddad a Bolsonaro é falsa por outras três razões subsidiárias:

  1. Bolsonaro, além de pessoalmente desqualificado para a tarefa presidencial, está em contradição intrínseca com as duas urgências: com a social porque está associado a quem acha que “social” é sinônimo de coisa para “pobre vagabundo”, sem sequer suspeitar das complexidades que associam a desigualdade aos entraves ao desenvolvimento do país; com a ordem ele está em contradição por dois motivos: (a) por achar que vai enfrentar a bandidagem de rua-violência apenas com repressão, sem equacionar a desigualdade; (b) por usar a bandidagem estatal-corrupção, que é parte da ilegitimidade do sistema, como pretexto para voltar a uma ordem ilegítima, o Estado ditatorial.
  2. Haddad, embora pessoalmente qualificado para a tarefa presidencial, não tem legitimidade para se propor a enfrentar as duas urgências: no caso da ordem porque está na condição de representante de uma das forças políticas que protagonizaram a desordem promovida pela bandidagem estatal-corrupção, quadro que piora com o fato de que ele resistiu a toda e qualquer forma de autocrítica; no caso da social ele não tem legitimidade por duas razões: (a) por pertencer à força política que, chegando ao governo, se acomodou aos interesses dos ricos, limitando os ganhos dos pobres à máxima de que “os ricos não podem perder”, levando aqueles ganhos a serem vistos como perda pelas camadas médias; (b) por pertencer à força política que, embora tenha governado o país pelo voto por um período de longevidade inédita, não fez do combate à desigualdade uma política voltada a uma nova ordem.
  3. Em razão dessas fragilidades mencionadas, nem Bolsonaro, nem Haddad podem ser uma resposta à crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, o que faz a polarização entre eles ser falsa outra vez: Bolsonaro não é resposta à crise de legitimação do Estado de direito porque ele representa o fim de quaisquer Estado de direito, defensor que é do Estado ditatorial; Haddad não é resposta à crise de legitimação do Estado de direito porque ele não se cansa de defender esse Estado de direito, essa forma estatal, na adesão à qual Lula e seu PT acabaram por se somar à luta das facções estatais que nos trouxe a essa crise de legitimação, uma crise que eles querem usar, facciosamente, para voltar a desfrutar de hegemonia para o exercício faccioso dos poderes institucionais, uma hegemonia da qual foram removidos pelo golpe do impeachment — tanto são facciosos que já estão mais uma vez aliados aos mesmos golpistas!

Como não é de surpreender, o acúmulo intercruzado dessas fajutices descritas nos itens 1, 2, 3, 4 e 5 acima vem demarcando a irracionalidade crescente do processo eleitoral, que se encaminha para dar ao primeiro turno um desfecho inédito: as motivações emocionais para o voto predominarão sobre as motivações racionais (as características de cada uma dessas motivações, bem como as diferenças entre elas foram explicadas aqui).

Toda essa insânia foi eleitoralmente bem sucedida porque a maioria da sociedade não produziu em sua dinâmica propriamente política uma alternativa eleitoral que reunisse as suas duas urgências numa perspectiva de superação da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, como ficou evidente na indigência política, programática e comportamental das outras candidaturas presidenciais, que não merecem que nos ocupemos delas mais do que já nos ocupamos.

Como toda insânia tem uma contrapartida racional, e como a eleição se mostrou infensa a toda forma de razão emancipatória, a racionalidade está a se apresentar pela outra ponta, e de maneira bifurcada: primeiro, na descrença quase generalizada de que a eleição vá abrir caminho para o país encontrar uma saída; segundo, na disposição antidemocrática dos que só reconhecem o resultado da eleição como bom e alvissareiro se ele trouxer como vencedor o seu candidato (claro!).

Ambas são formas perversas da razão e alimentam uma à outra: a descrença é perversa porque é inerte, não se dá ao trabalho de compreender e tirar consequências do impasse que antevê; a disposição antidemocrática é perversa porque faz uso das franquias democráticas para voltar ao Estado ditatorial cujos resquícios alimentaram toda essa insânia. Elas reforçam uma à outra porque ambas apontam para a escuridão.

Como ninguém apresentou uma alternativa transformadora para o país, não há como se ver representado nesse primeiro turno, pois no primeiro turno a gente escolhe o que nos parece o melhor — não só não há em quem votar no primeiro turno, como temos que expressar na urna todo o nosso repúdio a esse processo espúrio.

O resultado eleitoral do primeiro turno, e seus desdobramentos propriamente  político-sociais no meio da rua, nos levarão à decisão do que fazer no segundo turno, que não será outra eleição (até porque estamos a repetir, e pelas mesmas razões, só que piorado, o resultado do primeiro turno de 2014), mas outra realidade, meeeesmo.

Fica o Registro:

  • Os atos públicos convocados pelo movimento EleNão, que nesse momento se espalham por cidades brasileiras e estrangeiras, com destaque para as maravilhas que acontecem em São Paulo e no Rio, dão testemunho do que poderia ser feito se nos voltássemos não apenas contra Bolsonaro e a regressão ditatorial de que ele é marionete, mas também contra esse Estado de Direito Autoritário que há trinta anos nos sufoca — vamos ver o que vai acontecer na passagem do primeiro para o segundo turno e/ou depois que tiver ficado clara a derrota de Bolsonaro, pois ainda é possível que ele não vá ao segundo turno.
  • É interessante observar o contraste entre essa mobilização e os métodos antidemocráticos dos apoiadores de Bolsonaro, que insistem em ameaçar e agredir quem pensa diferente — eles simplesmente não se dão conta de que seus métodos alertaram milhões para os riscos a que estamos expostos.
  • Quem ainda tinha alguma dúvida acerca de o quão libertária é a transversalidade do movimento feminista…

CRISE DE LEGITIMAÇÃO E ELEIÇÃO PRESIDENCIAL – 1 DE 4

QUANDO O ESTADO DE DIREITO SE OPÕE À DEMOCRACIA

Carlos Novaes, 28 de setembro de 2018

[com + e + acréscimos em Fica o Registro – 29/09]

Esta série de quatro artigos será uma tentativa de apresentar de maneira clara os fundamentos que orientarão meu voto em cada um dos turnos dessa eleição presidencial.

Quando um país se livra de uma ditadura, seja através de uma derrubada abrupta ou através de uma transição, o que se deu foi uma luta democrática, isto é, uma luta que contou com o engajamento dos cidadãos animados pelo desejo de viver sob um Estado de Direito Democrático, desejo este traduzido segundo motivações e práticas propriamente democráticas, expressas na desobediência crescente ao arcabouço legal da ditadura, uma desobediência que aparece na paulatina difusão oral e escrita da opinião contrária à ditadura, acompanhada do exercício não menos crescente da vontade de reunião e manifestação contra a ditadura. A luta contra uma ditadura se dá democraticamente na sociedade, é exercida nela, contra o Estado ditatorial.

Na derrubada de uma ditadura, a democracia surge antes do Estado de direito, ela é a condição prévia para que ele seja alcançado – a nova forma estatal, o Estado de direito, herda da sociedade o impulso democrático e tem de traduzir no novo ordenamento institucional a prática democrática exercida pela sociedade em sua luta contra o Estado ditatorial. No plano do exercício das liberdades, que é o da sociedade, o antagonista da repressão ditatorial é a prática da democracia; no plano institucional, que é o do aparato estatal, o oposto da forma ditatorial é o Estado de Direito Democrático. A forma estatal final, almejada pela sociedade mobilizada contra a ditadura é, portanto, o Estado de Direito Democrático, que recebe este nome precisamente porque deve dar forma (consolidar) nas suas instituições (no direito) ao impulso e às práticas democráticas vindos da sociedade. Entretanto, a história tem mostrado que essa forma estatal final nem sempre é alcançada, ainda que o Estado ditatorial tenha dado lugar a um Estado de direito.

O intervalo entre o começo da luta democrática e a queda da ditadura pode ser curto ou longo, a depender tanto da força disponível em cada lado, quanto do grau de antagonismo entre aqueles que hegemonizam (enquanto hegemonizam) cada lado da disputa. Se a força democrática vinda da sociedade é irresistível, como nas revoltas generalizadas (revolucionárias ou não), a ditadura é derrubada em dias ou semanas. Se a força democrática vinda da sociedade existe, mas o Estado ditatorial, embora não possa esmaga-la, tem como resistir a ela, instala-se um período de transição democrática – a transição se chama democrática precisamente porque o que deve transitar é a democracia: trata-se de fazê-la transitar da sociedade, onde ela já está viva, para o Estado, infenso a ela porque ditatorial.

Além de depender da força disponível em cada lado, o ritmo e a duração dessa transição dependem também do grau de antagonismo entre aqueles que hegemonizam (qua hegemonizam) os lados da disputa, porque é também esse antagonismo que vai definir o quanto a transição será realmente democrática, e quanto ela arrastará da forma autoritária. Tudo o que é vivo busca permanecer, e as transições são uma negociação atritada entre formas vivas: por um lado, a forma ditatorial, querendo se conservar tão menos democrática quanto possa; por outro lado, a forma de direito, querendo se estabelecer tão democrática quanto possa.

Nessa negociação atritada, o que define o lugar da negociação e o grau de atrito é a combinação da magnitude das forças arregimentadas com o antagonismo de propósitos entre as vanguardas de cada lado da disputa. Se, como está dado, nenhum dos dois lados tem força para simplesmente derrotar o outro (por isso a transição, e não a derrubada da ditadura ou sua reafirmação), mas ambos contam com vanguardas irremediavelmente antagônicas em seus propósitos, o que predomina na transição é o atrito, não a negociação, e o que cada lado busca no curso do tempo da transição é aumentar sua própria capacidade de arregimentação contra o outro, para impor-lhe uma derrota final. Agora, se as vanguardas não forem irremediavelmente antagônicas, se a transição contrapõe forças plurais que reúnem em suas fileiras contingentes menos ou mais avessos à negociação dos seus propósitos, a negociação pode predominar sobre o atrito, processo que não raramente leva a mudanças na composição das vanguardas de cada lado.

O resultado de uma transição democrática marcada pela negociação e não pelo atrito será sempre um compromisso entre as partes: o Estado ganha a forma de direito, mas conserva dispositivos e práticas da forma ditatorial.

A transição democrática brasileira foi uma transição desse tipo. Primeiro, porque não havia força para simplesmente derrotar a ditadura; segundo, o grau de antagonismo entre as vanguardas dos dois lados sempre esteve longe de ser irremediável: pelo lado da ditadura, o Estado estava sob comando hegemônico de uma vanguarda que queria alguma abertura (Geisel e Golbery); pelo lado da oposição, a sociedade estava representada por uma vanguarda cuja hegemonia era exercida por quem vinha da política profissional consentida pela ditadura (p-MDB e setores da ARENA, depois PFL e DEM) e, por isso, seus profissionais não estavam dispostos a promover alterações que pusessem em risco os mecanismos que lhes haviam permitido tornarem-se o que eram: políticos profissionais eleitoralmente bem-sucedidos.

O resultado foi que ao Estado Ditatorial sobreveio não um Estado de Direito Democrático, mas um Estado de Direito Autoritário: o Estado se tornou de direito porque deu forma institucional a aspectos fundamentais da dinâmica democrática que a sociedade mobilizara na luta contra o Estado ditatorial (liberdades de imprensa, de opinião e de manifestação, amplo e livre direito de voto etc), mas não se tornou democrático porque além de ter conservado na nova forma estatal dispositivos ditatoriais paisanos (p-MDB, PFL e satélites) e militares (Polícia Militar, prerrogativas e privilégios constitucionais das FFAA), também assegurou normas legais que não obstam, e até protegem, as práticas institucionais antidemocráticas desses dispositivos (estrutura eleitoral e partidária; judiciário próprio para policiais e militares, etc). Além disso, essas normas legais garantem privilégios (remuneratórios, salariais, previdenciários, compensatórios) e dão prerrogativas (foro especial e de iniciativa) aos hierarcas do serviço público civil que são assimétricas com, e agravam, as condições de vida da imensa maioria que labuta na chamada iniciativa privada e não é rica.

Tudo o que se acaba de recuperar realimentou o exercício faccioso dos poderes institucionais próprio do Estado ditatorial (faccioso porque contrário à democracia e porque se organiza, mesmo, por meio de facções estatais, que são formações não transparentes de defesa de interesses, que se montam e desmontam ao sabor das conveniências em jogo, como dá péssimo exemplo a prática diária da instituição tida como a guardiã da Constituição, o Supremo Tribunal Federal-STF, tão cindido pelas facções quanto nossos presídios). Em suma, nossa transição democrática foi truncada e resultou num Estado de Direito Autoritário: conseguiu trazer o direito, mas não consolidou a democracia.

Como já detalhei aqui, o resultado desse arranjo não poderia deixar de ser a permanente oposição entre esse Estado de Direito Autoritário e a sociedade democrática, uma oposição que se desenvolveu por trinta longos anos e, agora, apresenta toda a sua desfuncionalidade numa crise de legitimação que desgraçadamente separou sua dimensão econômico-social (desigualdade) da sua dimensão sistêmica (a ordem político-estatal facciosa).

A revolta, mais fortemente vocalizada pelas camadas médias, contra o sistema (bandidagem de Estado-corrupção; privilégios e regalias de facções estatais; e tributação injusta) não é senão a tradução da ilegitimidade do Estado de Direito Autoritário, um Estado faccioso voltado para si mesmo, para os seus. Nessa revolta a maioria da sociedade está a escancarar, sem enxergar, que o Estado é ilegítimo.

A revolta, mais fortemente vocalizada pelos pobres, contra os sofrimentos da desigualdade (emprego, educação, saúde, salário, bandidagem de rua-violência e arbítrio policial-violência) não é senão a tradução da ilegitimidade do Estado de Direito Autoritário, um Estado faccioso a serviço dos ricos. Nessa revolta a maioria da sociedade também está a escancarar, sem enxergar, que o Estado é ilegítimo.

Embora sejam aspectos da mesma realidade, essas duas revoltas não conversam uma com a outra. São essas cegueira e mutismo político diante de uma crise de legitimação tão flagrante e monumental que explicam a indigência dessa eleição presidencial: a maioria da sociedade não conseguiu construir um vetor de transformação que reunisse suas duas urgências e está, mais uma vez, a se dividir improdutivamente entre candidaturas amputadas, que ora simulam defender o social, ora defendem a ordem, mas sem reunir os dois hemisférios de um modo transformador em benefício da maioria e contra os interesses imediatos das minorias encasteladas no Estado e no Mercado, que armam juntas o circo eleitoral.

É por isso que Haddad pode aparecer como campeão do social e da ponderação (embora Lula e seu PT tenham aderido ao sistema, tenham traído a luta contra a desigualdade e vivam a gritar da boca para fora contra as elites). Por outro lado, não é outra a explicação para Bolsonaro poder aparecer como campeão anti-sistema (embora seja o representante da truculência antidemocrática e antissocial desse mesmo sistema); e para Alckmin poder aspirar ser o ponto de equilíbrio do sistema, como se tudo fosse uma questão de ajuste no âmbito do próprio Estado de Direito Autoritário, um arranjo estatal que simplesmente não tem conserto, é inviável, e, mais cedo ou mais tarde, acabará por ceder ou a uma outra ditadura ou a uma transformação – essa eleição é apenas um sofrido ritual de passagem para mais e maiores sofrimentos.

[29/09] – Fica o Registro:

  • A decisão de Fux, do Supremo, de proibir a realização e/ou censurar a publicação de entrevista de Lula à Folha de S.Paulo é ainda mais grave do que parece: além de ser facciosamente antidemocrática (embora dentro do Estado de direito…); além de vir embasada em uma justificativa falsa, pois a essa altura da campanha não há como supor que o eleitor letrado possa ser desinformado sobre quem é o candidato do PT se Lula for ouvido (até porque, na própria entrevista, Lula não poderá deixar de repisar que o candidato dele é Haddad); além de se opor a uma decisão, dessa vez bem fundamentada, do não menos faccioso colega Lewandowsky, que permitiu a realização da entrevista; a decisão de Fux é grave e perniciosa sobretudo porque antecipa, chancela e traz para dentro do STF o ânimo golpista que se instalará se Haddad passar ao segundo turno.
  • Bolsonaro já deu o sinal verde para a largada das hordas golpistas contra o Estado de direito (querem de volta o Estado ditatorial) ao declarar, em entrevista ao Datena (vejam a conexão: falou ao mais notório apresentador de programas de TV que enaltecem a truculência antidemocrática da polícia – truculência essa protegida pelo Estado de direito), que não aceita nada que não seja a própria vitória, ecoando fala anterior de Villas Bôas, cujo sentido comentei aqui — a situação se agrava, leitor.
  • O UOL acaba de noticiar que um juiz de Goiás, apoiador de Bolsonaro, planejou meticulosamente, e combinou facciosamente com o exército local, recolher as urnas eletrônicas, sob o argumento bolsonariano de que elas podem fraudar o voto do eleitor. Note-se que o referido juiz já agiu não apenas antidemocraticamente, mas inteiramente ao arrepio do próprio Estado de direito, pois, segundo o Conselho Nacional de Justiça, além de ele não ter poderes para tomar a decisão, ainda deixou de obedecer à norma de informar outros órgãos sobre o que pretendia fazer. Ou seja, já estamos vivendo a síndrome ditatorial do chamado “arbítrio de guarda de trânsito”…
  • Para se ter uma ideia de como Ciro está à altura do cargo que disputa… : a nove dias do primeiro turno, a imprensa nos informa que entre as dicas de campanha próprias de reta final, ainda está o conselho para Ciro evitar palavrões quando se dirigir “às mulheres”!!…. (vejam a “sutileza”: quem deu o conselho, sabendo que o candidato não tem conserto, concedeu que seja apenas quando se dirigir a mulheres, como se fosse possível, numa campanha eleitoral, selecionar a difusão dos palavrões do candidato segundo o gênero de quem os ouve). Agora é tarde!

DUAS FARSAS NOS PUSERAM ENTRE A TRAGÉDIA E O DRAMA

Carlos Novaes, 23 de setembro de 2018

[com acréscimos em 25/09, em Fica o Registro]

 

Em 1988, depois de uma intensa luta, de cujos enganos já tratei em texto e vídeo, foi promulgada essa Constituição que muitos supunham nos garantir um Estado democrático de direito.

No rastro dessa esperança, em 1989 a maioria da sociedade viveu a alegria de votar para escolher o presidente da República, imaginando que estava a tornar coisa do passado a ditadura paisano-militar — começava ali a produção de uma farsa parcialmente lastreada nas expressões mais visíveis do que havíamos alcançado de melhor na nova dinâmica política: o PSDB e o PT. Em movimentação que parecia paralela, mas que iria se mostrar convergente, já no ano seguinte, na eleição de 1990 para o Congresso, os votos de uma minoria ressentida elegeram Jair Bolsonaro deputado federal — começava ali a produção de uma farsa inteiramente gerada nas dobras mais profundas do que havíamos conservado de pior da velha cultura política: os dispositivos militar e paisano da ditadura.

Entre 1988 e 2018 temos os trinta anos em que criamos as condições para que essas farsas — contorcendo-se como duas serpentes entre oportunidades oferecidas pela rotina eleitoral a que a imensa maioria de nós se abandonou — ganhassem força, se entrelaçassem e acabassem por se colocar cara a cara, prestes a nos engolfar num espetáculo inédito: a dança macabra entre duas farsas vai produzir ou um drama, ou uma tragédia.

A primeira farsa consistiu numa polarização fajuta, PSDBxPT, que arregimentou e nutriu forças que deveriam ter sido vencidas (p-MDB e ARENA/PDS/PFL/DEM), trazendo o país a uma situação pior do que a existente nos dias do golpe de 1964 contra a democracia; a segunda farsa vem costurando a mortalha da democracia que parecia recuperada retorcendo os fios da história deixados pelos primeiros farsantes, que renunciaram ao trabalho de levar a luta contra o legado de 1964 até o fim; o drama será o aprofundamento da crise de legitimação desse Estado de Direito Autoritário em que a primeira farsa fez seu ninho manipulando a palha frágil da democracia eleitoral; a tragédia será o retorno do país, via democracia eleitoral, à situação brutal em que a desigualdade é incrementada com o arbítrio, que sufoca até a liberdade de nos dizermos contra ela.

Onde está o nó de amarração dessa disjuntiva amarga?

A DESORIENTADORA CENTRALIDADE DA DESIGUALDADE

A desigualdade é a chave para entendermos esses trinta anos, pois foi em torno dela que mobilizaram o engano, o erro e a mentira contra o potencial transformador da verdade. A verdade é que o Brasil tem uma desigualdade cruel, sem paralelo no mundo, que condena ao sofrimento a maioria da sociedade; o engano está em supor que o fundamental nessa desigualdade seja o fato (indiscutível) de os interesses dos muito ricos provocarem o sofrimento extremo dos muito pobres; o erro, saído desse engano, foi rebaixar a luta contra a “desigualdade” à busca da compaixão daqueles que foram levados a supor que não sofrem com a desigualdade; a mentira está em difundir que essa “desigualdade” tem sido combatida com esses programas sociais que agradam aos pobres, são tolerados pelos ricos e vividos como perda pelas camadas médias.

Os sabichões da nossa autointitulada esquerda contribuíram decisivamente para esse estado de coisas. Vejamos como eles têm interpretado os números e desenhado os gráficos com que pretendem ilustrar a nossa desigualdade. É sempre a mesma ladainha, com três invocações básicas:

  1. Mostram os grandes contrastes de renda e riqueza entre, de um lado, os muito ricos (variando entre os 1%, os 5% e os 10% mais ricos) e, de outro lado, a imensa maioria mais pobre (geralmente os 50% mais pobres);
  2. Comparam a situação com outros países, falando da injustiça de uma situação assim única no mundo;
  3. Pretendem levar a platéia a achar que a solução é tirar dos ricos para distribuir aos pobres, não sem ressaltar que não se trata de caridade, embora toda a argumentação tenha por base despertar a adesão inerte dos pobres e a compaixão/solidariedade das camadas médias.

Toda essa arenga deixa de fora o essencial: os 49%, 45% ou 40% que não estão em nenhum dos dois blocos polarizados acima: as camadas médias. Por que isso é essencial?

  1. Desde logo porque se trata de quase metade da população;
  2. Como a desigualdade é brutal, ela distribui sofrimentos palpáveis por todas as camadas da pirâmide social que estão abaixo dos ricos. As camadas médias sofrem a desigualdade na má qualidade da vida que levam, um sofrimento desnecessário quando se considera o que o país poderia oferecer: vias de transporte precárias, saúde e educação ruins (quando públicas) ou caras (quando privadas), transportes coletivos caros e sucateados (trens e ônibus) ou caros e aquém da demanda (metrô), violência crescente, segurança cara e inconfiável (quando privada) ou ruim e arbitrária (quando pública);
  3. Não há como sair disso pela reparação aos mais pobres, porque reparação não move as estruturas pesadas que têm de ser transformadas. Focar nos mais pobres excluindo as camadas médias permite proteger os ricos, pois o que tem sido distribuído aos mais pobres é pouco, embora os contente, e pesa muito, por via direta e indireta, nas costas das camadas médias.

Foi uma arranjo bom para cativar eleitores, mas péssimo para o país: cativou eleitores porque os pobres ficaram gratos e parte das camadas médias não protestou porque aderiu ao chamado à compaixão e/ou preservou seus privilégios corporativos no serviço público; foi péssimo para o país porque armou esse desastre que é a ressaca decorrente da união da frustração dos pobres com a raiva aberta dos segmentos de classe média que nunca aderiram à compaixão e estavam contidos em sua contrariedade.

Veja bem, leitor: a raiva que hoje vemos nessa classe média contrariada foi nutrida por dois pratos indigestos: primeiro, ela foi levada ao caminho mais fácil de acreditar que seus sofrimentos devem-se ao que foi dado aos pobres; segundo, e mais importante, depois de ser confrontada por anos com o discurso hegemônico da compaixão, um discurso que a incomodava também por explicitar o conflito entre a sua mesquinhez real e os seus alegados valores cristãos, deixando-a em desconforto moral consigo mesma, essa classe média recebeu como um bálsamo legitimador do pior de si a descoberta de que os pregadores da compaixão pelos pobres, que tanto a espezinhavam, tinham feito da corrupção um meio de enriquecimento pessoal, pelo qual traíam a boa fé dos pobres a quem cativavam às custas dela!

Essa é, em última instância, a explicação para o fato de nesta eleição a sociedade estar improdutivamente polarizada entre as suas duas urgências fundamentais: a urgência social e a urgência por ordem.

RESÍDUOS NEFASTOS DESSE MALOGRO HISTÓRICO

O que resta da primeira farsa, protagonizada por PT e PSDB, são, enquanto candidaturas que importam, Haddad e Alckmin. A segunda farsa emerge com a força de Bolsonaro, que se fez vetor dessa ampla revolta cujas bases tentei apresentar acima. Haddad e Alckmin resistem porque a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário não encontrou saída transformadora; Bolsonaro emerge precisamente porque, não havendo alternativa transformadora, a volta ao passado, para antes dos 30 anos da farsa, aparece para os mais conservadores como a saída mais viável — daí a mistificação sobre a ditadura ter sido uma época de progresso e segurança.

Ambas as farsas compartilham o fundamental, ainda que divirjam no método:

  • Compartilham o empenho em mostrar credenciais de governança aos ricos (simbolizados no tal Mercado), deixando claro que continuarão a servi-los, sem mexer na desigualdade;
  • Divergem na forma de fazer o exercício faccioso dos poderes institucionais:  os primeiros pretendem, sem saber bem como, estender a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, isto é, insistem em manter uma equação que não fecha: desigualdade extrema com democracia eleitoral; o segundo propõe o fim da crise de legitimação pela pura e simples entronização da ilegitimidade, com o fim da democracia.

Alckmin está em situação difícil porque, embora tenha a confiança do Mercado e seja seu preferido, quando se passa às massas eleitorais, incontornáveis numa democracia eleitoral, sua candidatura está espremida entre as duas urgências: perdeu o social para a Haddad e perdeu a ordem para Bolsonaro.

Alckmin perdeu o social para Haddad em razão do fator Lula, sobre o qual já falei bastante nesse blog — em resumo: entre os pobres, Lula se beneficia de ressentimentos e esperanças cativas, obtidos com o logro do assistencialismo e a manipulação de um inegável laço simbólico, que ele traiu; nas camadas médias, quando não é visto como o caminho para se dar bem, Lula oferece apoio ao escapismo ideológico de quem não quer encarar a própria derrota, que está patente, entre outras coisas, nesse êxito de Lula entre os pobres.

Alckmin perdeu a ordem para Bolsonaro precisamente porque o divórcio entre o social e a ordem, que o PSDB ajudou a promover junto com o PT, abriu a brecha para que o ex-capitão explicitasse, tornasse motivação de massa, aquilo que Alckmin já fazia, farsescamente, na encolha: o uso arbitrário da força contra os pobres, feito espetáculo diário em programas de televisão — Alckmin providenciou os pregos e o martelo com que estão a pregar a tampa do seu caixão. Tanto é assim que Bolsonaro está muito na frente de Alckmin no Estado de São Paulo. Boa parte disso se explica pela transformação em força eleitoral do que havia de simpatia entre os paulistas pelos métodos do dispositivo militar que nos foi legado pela ditadura, a PM.

Além de estar em lugar de destaque nas principais campanhas para governador e ter vários candidatos fortes para o Legislativo, a PM paulista aderiu, em peso, à candidatura de Bolsonaro, numa ação concatenada que mostra a existência de um projeto de militarização da política que sempre esteve além de um Alckmin — viram no ex-capitão uma oportunidade de deixar para trás o “legalismo” dosado dos tucanos, que vinham tendo que tolerar.

Os ricos pensam que Bolsonaro poderá organizar a Casa Grande e pôr ordem na senzala (a essa altura, vão ter de matar bem mais de 30 mil…); as camadas médias em que a raiva tomou o lugar dos dilemas da compaixão, e os pobres nos quais o ressentimento é maior do que a esperança, têm em Bolsonaro o portador de uma vingança (cada um supõe saber de quem está a se vingar e rói lá no íntimo o pão sovado da vingança) — esse processo, que é irracional, acaba por fazer a convergência eleitoral entre segmentos de perdedores que, não obstante partilhem a condição de perdedor, se odeiam, ódio recíproco que, por sua vez, é um equívoco, pois ambos são vítimas dos ricos aos quais se uniram em busca de uma ordem que acabará por garantir a permanência do pior do status quo que os infelicita!

A ALTERNATIVA

A desigualdade brasileira é de tal magnitude, ela amarra o país de tal forma ao atraso, que ela é sim um jogo de soma zero: o país só pode ganhar se os ricos perderem, ainda que o que iremos ganhar não se resuma ao que os ricos perderão, pois a perda deles é apenas parte do esforço para desatar forças produtoras de riqueza social.

Temos que tirar dos ricos, deixá-los menos ricos, não exatamente para distribuir aos pobres, mas principalmente para alterar estruturas e incrementar as condições que permitam tirar o país do atraso e, assim, mais adiante, alavancar milhões do fundo da pobreza.

Não há bala de prata distributiva contra a desigualdade. São mudanças tributárias, previdenciárias, salariais e em serviços sociais. Por um lado, temos de redistribuir o ônus da obtenção da receita pública, cobrando mais de quem tem mais, mas cobrando, sim, de quem tem menos; por outro, melhorar a qualidade do gasto público, redefinindo prioridades de modo a que os 40% que não são ricos sem serem pobres também constatem que haverá melhora para si.

O ônus da obtenção da receita se redistribui via reforma tributária, menos para aliviar os pobres ou as camadas médias, e mais para agravar os ricos. Do lado do gasto, fazer uma reforma da previdência partindo de que todos os diretamente implicados perderão alguma coisa, sendo que alguns perderão mais do que outros, sempre em benefício do bem comum no futuro. Esse bem comum deveria aparecer na forma de projetos claros de incremento do gasto público em Educação, Saúde, Segurança e Infraestrutura. Seria necessário propor um projeto que abarcasse com detalhes todas essas variáveis ao mesmo tempo, de modo a que os números das perdas e dos ganhos ficassem claros para todos os interessados, mostrando, na linha do tempo, para onde irão as receitas saídas da tributação dos mais ricos e economizadas com as concessões inescapáveis que todos teremos de fazer na Previdência.

Só que não. Os políticos profissionais preferiram o atalho do engano, do erro e da mentira. Separaram as urgências, quando a saída exige juntá-las. Se as tivéssemos juntado, os ricos teriam ficado isolados, e as camadas médias, ainda que com defecções importantes, claro, poderiam se unir aos pobres para fazer maioria social pela transformação, uma transformação cujos rumos seriam (e serão, um dia) disputados entre idas e vindas de maiorias eleitorais que a ninguém é dado prever.

No momento, a sociedade brasileira vê o Brasil em crise sem enxergar que ele está como uma caravela montada dentro de uma garrafa: o gargalo oferecido por esta eleição é estreito demais para que a caravela possa enfunar velas e ganhar alto-mar — há que quebrar a garrafa, mas sem arrebentar o barco.

[em 25/09] – Fica o Registro:

  • A Polícia Federal anunciou que irá abrir outro inquérito sobre o agressor de Bolsonaro, agora para “devassar” os dois anos mais recentes da vida de Adelio Bispo. O inquérito atual, já concluído, indica que Adelio vagava pelo país “ostentando” quatro celulares e um laptop — os restos de uma “inclusão” vicária, realizada via aquisição de bens de consumo já inservíveis, pois quebrados há tempos. Esse novo inquérito será uma oportunidade única para conhecermos em detalhes dois anos inteiros da vida de um brasileiro pobre em meio à crise e à violência, bem como as conexões dessas circunstâncias com o desenvolvimento dos problemas mentais do agressor. Essa recuperação sociológica sobre o legado da primeira farsa será valiosa para compreendermos os fundamentos sociais da atração perversa que a segunda farsa, o cabo de alta-tensão da violência (Bolsonaro), exerceu sobre o fio desencapado da loucura (Bispo) até o desenlace no curto-circuito da facada.
  • O lugar da mentira nessa campanha eleitoral é proporcional à verdade (desigualdade) que ela busca soterrar. A campanha de Bolsonaro é a campeã da mentira, apropriando-se até de imagens que não são suas para simular manifestações favoráveis ao candidato. O próprio candidato se atrapalha em sua ânsia por confundir os outros: na primeira entrevista depois da facada, sustenta que Bispo não agiu sozinho, que só se arriscou porque contaria com ajuda para não ser linchado e, ao mesmo tempo, diz que Bispo forjou um álibi para si, como se o agressor, ao mesmo tempo em que tinha como certo que seria apanhado, tivesse julgado ser possível escapar incógnito da cena do crime. E o candidato da mentira diz pretender trazer de volta o ensino de moral e cívica (bem, faz sentido…).

LENDA ELEITOREIRA RENTÁVEL: $ E VOTO

Carlos Novaes, 14 de setembro de 2018

[com acréscimo às 21:38h – em Fica o Registro]

A ideia de que Haddad poderia contrariar os interesses do chamado Mercado é uma lenda requintadamente fraudulenta. Haddad sequer inquieta o tal Mercado, quando se entende por Mercado o que de fato ele é no Brasil: o punhado de donos do dinheiro grosso, que têm no Estado de Direito Autoritário um sistema para operar normas e instituições a serviço dos seus interesses, a começar pela manutenção da desigualdade.

Por que, então, estão a divulgar que Haddad ainda precisaria passar pelo crivo do Mercado, como se ele não fosse uma das alternativas de que o Mercado já dispõe?

Por três razões principais (não coordenadas entre si, evidentemente):

  1. Porque a ignorância predomina. Já na altura das desavenças congressuais acerca do impeachment de Dilma, a maioria dos tais “formadores de opinião” não percebeu que o Mercado não queria a saída de Dilma. Quem tocou adiante o impeachment foram os políticos profissionais que viram na situação uma maneira de tirar o PT da jogada e poderem se locupletar sozinhos — o impeachment foi uma desavença entre facções que disputam a hegemonia para o “exercício faccioso dos poderes institucionais”, exercício este que, independentemente de qual facção predomina, lá na ponta sempre favorece o Mercado. Nenhuma das facções estatais enfrenta a desigualdade. Antes pelo contrário: a existência delas depende da manutenção da desigualdade. No impeachment, o Mercado só se rendeu à “rebeldia” do braço político mais antigo do establishment quando a situação, de tão institucionalmente insustentável, passou a ameaçar os negócios, como discuti detalhadamente, já naquela época, aqui. O lulopetismo é galinha de casa desde pelo menos a Carta aos Brasileiros, e Haddad é o seu garboso frango obediente, que não disputou com o galo velho, antes foi ungido por ele.
  2. Porque os espertos dos interesses graúdos sempre arrumam um jeito de ganhar dinheiro nas costas dos otários: fingir que Haddad é uma ameaça permite ganhar em cima dos temores dos aplicadores menos informados, tanto no dólar como no mercado de ações. Mais adiante, se Haddad vencer, voltarão a ganhar em cima dos mesmos otários, pois Haddad fará o governo “responsável” que eles já sabem que fará. Esses espertos têm seus homólogos no hemisfério propriamente político-eleitoral: são as facções adversárias do lulopetismo, que vêem como rentável difundir o suposto “socialismo” dele — que sabem ser falso, mas mostra-se um espantalho útil — e, com isso, dialoga com os interesses do próprio lulopetismo, que precisa de reagimentação ideológica para passar ao segundo turno (tudo é uma questão de ênfases/matizes).
  3. Porque os espertos dos interesses miúdos, os hierarcas do lulopetismo, têm fingido acreditar na lenda de que Dilma foi derrubada pelo Mercado, e a difundem, pois dizer que o Mercado não tolerou o reformismo (qual?!?) do PT é a mentira mais rentável para coesionar em suas fileiras legiões de otários bem intencionados, que ainda acreditam quando a máquina do PT empunha bandeiras há muito deixadas às traças, totalmente esquecidas ou contrariadas em seus 13 anos de presidência (tributação sobre rendimentos financeiros, revisão da tabela do IR, cobrança de dívidas tributárias, fim das desonerações leoninas, imposto sobre grandes fortunas e herança etc).

Essa lenda, cheia de tons, dá a Haddad uma boa margem de manobra, pois diante dela ele pode exibir toda a sua pomposa “ponderação”, que é lida pelo Mercado como a reiteração daquilo que ele já sabe; é vista pelo eleitor mediano como “preparo”; é vivida pelo jornalismo adversário como tergiversação exasperante e é desculpada pelo petista médio como uma concessão eleitoralmente necessária.

Mas o jogo real é outro. Para enxergá-lo, basta prestar atenção na face política dele. Ao confraternizar com o p-MDB, ou defender Alckmin quando o tucano se vê às voltas com a emergência do iceberg de corrupção dos governos do PSDB em SP, Haddad não está apenas querendo diminuir a chuva de pedras sobre o telhado de vidro do seu PT. Não. O sentido é mais amplo e profundo. Tanto que Jacques Wagner também está a dizer que votaria em Alckmin contra Bolsonaro. Ambos estão sinalizando para o Mercado e para seus adversários na luta de facções que estão dentro do esforço comum para restaurar a “normalidade” institucional do Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação — mas dentro dos marcos da chamada Nova República, evitando a regressão militar.

Nessa eleição, como a maioria da sociedade brasileira não produziu alternativa transformadora, a democracia eleitoral está a serviço ou do Estado de Direito Autoritário em busca de uma recauchutagem, ou da regressão a uma formação ainda mais autoritária, como os generais Mourão e Villas Bôas não se cansam de explicitar: o primeiro defende uma Constituição sem Constituinte; o segundo coroou uma sequência de intervenções antidemocráticas com o blefe de que só a vitória de Bolsonaro legitima a eleição.

Nunca é demais insistir que não estou atribuindo esses arranjos e rearranjos a um desenho de prancheta, como se houvesse um “alguém” a tudo organizando, ou como se os protagonistas estivessem seguindo acordos sacramentados em conspirações. Não. Essas formações vão resultando do andar da carruagem, como também dá exemplo a candidatura de Bolsonaro.

No início, ele não era levado a sério nem pelos militares. Aos poucos, com a experiência das intervenções no Rio e a crescente audiência conquistada pelo ex-capitão, os maiorais do Exército começaram a enxergar nele uma oportunidade e, agora, já pretendem atrelar a própria legitimidade da eleição à vitória do seu candidato, pondo a regressão autoritária no coração da democracia eleitoral saída do fim da ditadura paisano-militar. Vão perder a eleição, mas sairão dela em situação melhor do que antes, o que não deixa de ser um sinal de que a crise de legitimação do Estado vai se aprofundando.

[21:38h] – Fica o Registro:

  • A entrevista de Haddad no Jornal Nacional foi um debate, onde um Bonner exasperado pretendeu ser, ao mesmo tempo, apresentador e debatedor (não cronometrei, mas, talvez, ele tenha, sozinho, falado tanto ou mais do que o entrevistado). Como não poderia deixar de ser, Haddad foi muito mal quando questionado sobre a corrupção nos governos do PT, afinal, não há como falar de “erros individuais” diante de tantos hierarcas do PT, que ocuparam altos postos do Estado nos governos, indiciados, processados e presos. Quando enfrentou as acusações de corrupção contra si, se saiu bem, pois os indiciamentos e delações são claramente facciosos, não merecendo credibilidade. Nos demais assuntos, o debate acalorado foi pouco esclarecedor, mas permitiu enxergar que Haddad se escora na velha polarização PTXPSDB, sem encarar a crise de legitimação do Estado a que essa polarização fajuta nos levou.

O TEMPO E O VOTO

Carlos Novaes, 12 de setembro de 2018

[com acréscimos em Fica o Registro às 20:03h e em 14/09]

O tempo talvez seja a variável mais desafiadora para quem pretenda conquistar o voto. Há a conexão do tempo do eleitor com o tempo do país, que a tudo preside, e, depois, o tempo de pré-campanha; o tempo de agenda do candidato; o tempo de campanha; o tempo cronometrado dos debates; o tempo da propaganda na TV; o tempo disponível na TV e, até, o tempo para a transferência de votos. Nada fácil.

Saber ler o tempo do eleitor é o desafio fundamental. Ele exige tanto o diagnóstico do tempo vivido pelo país quanto o conhecimento da posição mais geral da maioria do eleitorado em relação a esse tempo, uma posição que varia segundo dois outros tempos: o tempo da motivação fraca (emocional) e o tempo da motivação forte (racional) para o voto, como detalhei aqui. Na pré-campanha, é preciso ouvir as preliminares do desenvolvimento dessas motivações do eleitor para o voto, pegar no início e dialogar com o modo como ele vai ajustando sua motivação para o voto ao tempo do país e às suas posições diante dele.

PRÉ-CAMPANHAS

O tempo da pré-campanha já inclui o tempo de agenda do candidato: ele busca ouvir se tornando o mais visível possível. Nessa eleição presidencial, duas pré-campanhas se destacaram, e são elas que vou explorar para ilustrar o papel desse tempo na disputa: a de Bolsonaro e a de Ciro. A de Bolsonaro por ter feito tudo certo; a de Ciro por ter feito tudo errado.

No âmbito de suas limitações, Bolsonaro soube ler o tempo do país, um tempo de raiva, sem ser de revolta, porque é uma raiva passiva, e, dada essa passividade, ainda um tempo em que o eleitor espera de alguém uma solução, não está ele próprio engajado na construção de uma alternativa. Uma solução é como café solúvel, já vem pronta; uma alternativa requer que a gente se dê ao trabalho de construir.

Bolsonaro se apresentou como o candidato da raiva, como alguém que resolve na base de uma intolerância dupla: contra o sistema, responsável por “tudo que está aí”, e contra a diferença, fonte de ameaça a um modo de vida sonhado em padrões conservadores. Depois dessa pré-campanha, na qual explorou favoravelmente as motivações emocionais do eleitor, Bolsonaro tem de fazer uma campanha que dê lastro racional às emoções que recebeu em si.

Seria difícil desenhar uma pré-campanha pior do que a de Ciro: numa fase em que a maioria do eleitorado ainda está desligada da eleição, e só sabe dela pelo acúmulo de disparos ocasionais ou por ouvir dizer, ao invés de apresentar uma narrativa consistente sobre o tempo do país, da qual o eleitor fosse absorvendo, por qualquer de seus disparos, o mesmo núcleo duro de mensagem, que seria retomado na campanha numa perspectiva de amarração, Ciro disparou disparates e acumulou incertezas: em meio a atitudes agressivas, impaciência, ameaças e bravatas contra Bolsonaro, dando-se ares de importância (“se não for como quero, desisto”: o eterno garotão precoce não reconhecido, aos 61 anos!) e distribuindo palavrões, ele saiu de uma tentativa de aliança com o PT para o empenho pelo apoio do Centrão, depois de ter declarado uma rejeição vaga pelo p-MDB e enquanto tentava se unir ao PSB.

Ou seja, Ciro tentou arranjos que não dialogavam com o tempo do país, pois não só reabilitavam forças contra as quais o eleitor dirige sua raiva, como não faziam diferença entre facções que o eleitor foi levado a colocar em lados opostos. Ficou sem apoio nenhum e com a merecida imagem de quem gera intranquilidade (que realimenta e parece explicar o fato de ter ficado sozinho). Depois dessa pré-campanha, em que nutriu com emoções contraproducentes as motivações emocionais do eleitor, em que fez promessas de embates com Bolsonaro que não se cumpriram, Ciro tem de fazer uma campanha que não só não herda nada de bom da pré-campanha, como ainda tem que transpor os problemas que ele próprio criou para si.

CAMPANHAS

O tempo da campanha é também o tempo dos debates e o tempo da propaganda eleitoral na TV. Ao contrário do que se difunde, não é que os debates e a propaganda eleitoral assumam o comando do tempo do eleitor, levando-o a prestar atenção na eleição. Não. Os debates e a propaganda eleitoral começam nessa fase da campanha porque é nela que o eleitor começa a pensar sobre o voto. E pensar, aqui, significa partilhar opinião, conversar. Em suma, é o tempo do eleitor que comanda a campanha, é o momento em que ele aloca atenção à política eleitoral que define a hora e o emprego dos tempos mais importantes: o dos debates e o da TV.

Bolsonaro terá problemas para manter na campanha o apoio obtido na pré-campanha não apenas porque não dispõe de tempo de TV, mas principalmente em razão da sua condição de marionete das emoções alheias. Bolsonaro não dispõe de elementos para dirigir emoções, ele apenas as recebe em si. Seu pelotão de recrutas dispersos em rede age individualmente e apenas segundo a emoção, não distingue fases na disputa eleitoral. Bolsonaro esteve desde sempre prisioneiro da condição passiva da sua “liderança”.

A situação desfavorável se agravou com o atentato por  quatro razões: primeiro, o golpe de faca exacerbou os ânimos e levou os recrutas a elevarem contraproducentemente o tom emocional num tempo que é da razão (a nota forte é a insistência para forjar uma suposta conspiração contra seu candidato — uma conspiração na qual eles próprios precisam emocionalmente acreditar); segundo, sem a TV, que permitiria uma reorientação de discurso (se é que pretenderia uma reorientação), Bolsonaro não pode tentar unificar sequer o discurso emocional; terceiro, a ausência dele da cena eleitoral intensifica a disposição para o “deixa que eu resolvo”, própria de seus recrutas, atitude contrária a qualquer ação coordenada; quarto, na mão contrária ao emocionalismo em suas hostes, Bolsonaro vê a alastrar-se o juízo ponderado de que ele “colheu o que plantou”.

Por tudo que conheço de eleição, salvo alguma grande mudança no comportamento do eleitor, ou uma soma de erros nas campanhas adversárias, Bolsonaro terá dificuldades para passar ao segundo turno.

Ciro tenta uma campanha de recuperação, na qual gasta um tempo que se encurta para consertar o mau uso do tempo anterior. No debate mais recente, na Gazeta, ele se saiu bem justamente porque retomou a posição que assumira lá no início da pré-campanha e, no curso dela, estranhamente abandonara: sem deixar de demarcar distância com o lulopetismo, apresentou-se solidário com Lula, dizendo-o vítima de uma condenação sem provas, e serenamente insistiu em suas propostas autônomas para enfrentar a crise, enquanto repudiava tanto o ataque a Bolsonaro quanto o que o ex-capitão representa, ajudando o eleitor nessa hora em que ele é levado a trocar a motivação para o voto — faltou apenas dizer, por outras palavras, claro, que Bolsonaro “colheu o que plantou”.

Ainda que o pouco tempo de TV seja um obstáculo importante, especialmente para quem usou tão mal a pré-campanha, contrariamente ao que recentemente supus, talvez Ciro ainda possa ir ao segundo turno, ainda que isso já não dependa fundamentalmente dele, mas sim do eleitor motivado a votar em Lula.

Haddad é refém de um outro tempo: o tempo da transferência de votos. Ao contrário do que dizem 11 de cada 10 analistas com espaço na mídia convencional — e em situação oposta à de Ciro — o tempo de campanha que Haddad tem pela frente é um problema para ele não por ser curto, mas por ser longo demais. Aliás, não entendo como é que esses analistas classificam como genial a estratégia de Lula (que procurou justamente encurtar ao máximo a exposição de Haddad como candidato) e, ao mesmo tempo, apontam como problema o fato de o lançamento tardio de Haddad deixa-lo com pouco tempo de campanha pela frente (quem tiver a solução desse enigma, por favor, escreva para este blog). Voltemos.

A estratégia de Lula só terá sido genial se a jornada emocional proposta por essa telenovela durar até o dia da eleição. Em outras palavras, ao abrir mão de construir a transferência junto com o eleitor, promovendo o engajamento racional dele na opção por Haddad desde lá de trás, Lula apostou tudo em si mesmo, na sua condição de vítima. É por isso que a campanha é longa demais para Haddad, pois dá tempo para que — numa hora em que tudo o que resta é a imagem de Lula na prisão — se quebre a solda emocional do eleitor com Lula, expondo Haddad aos verdadeiros desafios de uma disputa eleitoral: se desvencilhar das críticas represadas contra Lula, Dilma e o PT e, ao mesmo tempo, se apresentar de maneira crível, vale dizer, racional, como alguém que pode conduzir o país a dias melhores, indo muito além da condição de portador passivo de uma reparação.

O que falta a Haddad não é tempo para ficar conhecido, ou para que o eleitor de Lula descubra que “agora é Haddad”. Isso se resolve rápido, se é que já não foi resolvido. O que sobra como problema é o tempo que Haddad tem pela frente para se esconder do escrutínio do eleitor a respeito do que ele representa, a começar pela sua condição de marionete, que Lula fez questão de enfatizar até na carta que escreveu para fazer a transferência do bastão, falando em “representante” e em “governar junto”. Na verdade, Lula passou o bastão mas continua agarrado na outra ponta, a essa altura mais atrapalhando do que ajudando o subsequente companheiro de corrida (o ex-presidente continua a achar que ele é o máximo a que a autointitulada esquerda pode aspirar, e não está tão senhor assim das suas emoções…).

A condição de marionete com base emocional conecta Haddad a Bolsonaro, e as dificuldades de ambos para passarem ao segundo turno não são menos conexas. Os obstáculos enfrentados por Bolsonaro para reter eleitores são os mesmos que Haddad enfrenta para ganhar eleitores. De modo que o destino eleitoral de Haddad depende, em parte, do destino de Bolsonaro, ambos atolados no pântano das emoções. E Bolsonaro tem um adversário poderoso.

Alckmin definiu um rumo desde o tempo da pré-campanha e, acertadamente, persevera nele nessa nova fase. Para o tucano, o tempo de campanha é suficiente, e o tempo de TV muito favorável. O problema é que o rumo definido não apenas é desprovido de emoção, como contraria frontalmente as emoções afloradas na pré-campanha, nas quais Lula e Bolsonaro surfaram. Alckmin é a cara do sistema e expressa o que há de elitismo anti-social na política, como acabo de explicar detalhadamente aqui.

Mas Alckmin dispõe de muito tempo na TV para dialogar com o tempo do eleitor, que tem raiva, mas também pensa e tem medo. Alckmin é quem mais pode tirar proveito do atentado contra Bolsonaro, e tem buscado isso, mas sem a ênfase e a criatividade que a situação “colheu o que plantou” enseja e, até, exige.

Se, tal como em todas as eleições presidenciais anteriores, os eleitores, nessa reta final, forem trocando a emoção pela razão, além de tirar eleitores de Bolsonaro, o tucano também poderá desviar alguns de outros candidatos, desde que o perfil deles não se choque frontalmente com o seu. Afinal, para uma e outra dessas outras candidaturas nunca houve tempo bom: elas jamais tiveram clareza de propósitos ao pôr a cara no vento que o tempo pode levar na direção do voto — se tudo o que é sólido acaba por se desmanchar ao vento, o que não dizer de tudo o que sempre foi vago?

[às 20:03h] Fica o Registro:

  • A situação abominável vivida pela advogada Valéria Lúcia dos Santos, do Rio, precisa ser conhecida por todos. Quem quiser mais informações sobre essa mulher notável, leia aqui. Faço uma sugestão: quem é capaz de tomar as providências técnicas, organize uma vaquinha para que ela possa ir ver os filhos nos EUA, afinal, não seria nenhuma fortuna.
  • [14/09] – Ciro não tem conserto: suas declarações sobre a entrevista de Villas Bôas são um desastre, e não porque atrapalhem as relações dele com os militares — é que, embora na direção correta, a manifestação de Ciro veio no linguajar de boteco que repõe os problemas criados na pré-campanha e o descredenciam como candidato para setores com os quais teria de dialogar para tentar ir ao segundo turno cavando um caminho entre Haddad e Bolsonaro. É um imaturo irremediável: ao invés de fazer política, está sempre egocentricamente se medindo com todo mundo.

LOUCURA E VIOLÊNCIA SÃO CONSTRUÇÕES SOCIAIS

Carlos Novaes, 08 de setembro de 2018

[com acréscimo em 09/09, em Fica o Registro]

A essa altura, toda pessoa sensata já terá descartado qualquer dimensão conspiratória ao ataque contra Bolsonaro — a facada foi o golpe de um indivíduo maluco emocionalmente motivado.

Não se deve, porém, supor que a motivação individual de um maluco seja resultado apenas de um distúrbio orgânico no cérebro do indivíduo perturbado, um cérebro com dificuldades para, entre outras limitações, dar conta da tarefa complexa de harmonizar memórias usinadas em áreas e dispositivos dedicados às emoções com as memórias usinadas em áreas e dispositivos voltados à produção de ideias e à comunicação.

Sendo o homem um animal político, emoções e comunicação ordenada são feixes de relações sociais. O distúrbio, quando ocorre, é individual e tem na base uma dimensão orgânica, por assim dizer cerebral, mas sua origem, a matéria que o alimenta e a produção que resulta dela são sociais.

Não devemos tratar a ação do agressor como um caso isolado, ou limitar sua natureza coletiva aos desdobramentos eleitorais do gesto, como se o problema tivesse florescido do nada na cabeça dele, ou como se o seu desdobramento mais importante fosse o de trazer vantagens/prejuízos políticos a essa ou àquela candidatura.

Violência e loucura são fenômenos sociais, latentes como a eletricidade, que está por toda parte, mas só ganha sentido e direção quando encontra um fio condutor. Se a política motiva violência e loucura, sempre haverá violentos e loucos interessados nela. A violência latente de que Bolsonaro se fez um cabo de alta tensão atraiu a loucura latente de que Bispo se tornou um fio desencapado — o curto-circuito foi a facada.

Enquanto houver quem prega a eliminação de quem pensa diferente, sejam “30 mil” ou um, haverá a possibilidade real de que lobos solitários ou linchadores acabem por se motivar para a realização da tarefa. Por isso, o fato de Bolsonaro estar convalescendo de um ferimento a faca não o torna merecedor de nenhuma trégua no combate ao que ele prega e representa; antes pelo contrário: é hora de mostrar para onde nos levam o belicismo e a intolerância dele.

Desconsiderando os mais ferrenhos adeptos de Bolsonaro, a compreensão de que ele, infelizmente, colheu o que plantou está ao alcance de qualquer um que venha prestando alguma atenção, se não à vida política, pelo menos à campanha eleitoral do candidato — desde que não tenha sucumbido ao bom-mocismo dos que confundem empatia humana com ética política, como fazem certos blogueiros.

Se os adversários recuarem do combate à violência de Bolsonaro nesse resto de campanha será uma capitulação muito reveladora: primeiro, porque já não restará dúvidas de que eles não entendem o que está em jogo; segundo, porque se explicitará a natureza oportunista dessas candidaturas, sempre prontas a se moldarem ao que julgam eleitoralmente mais rentável (fazendo, no caso, um cálculo errado); terceiro, e mais importante, porque terão deixado passar uma oportunidade de ouro para fazer aflorar às consciências o que a realidade está a ulular: a saída da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário não está na volta à predação autoritária, mas em buscar partilhadamente o caminho que nos leve para cada vez mais longe do autoritarismo — ele sim o grande dano à democracia que pode sair da lâmina de Bispo.

[em 09/09] Fica o Registro:

O general Villas-Boas voltou a falar. A entrevista, intrinsecamente autoritária, explicita o seguinte:

  1. Os militares vinham acreditando em, e torcendo por, uma vitória de Bolsonaro.
  2. Agora, como não são bobos, ao invés de acreditarem no jogo do bom-mocismo, temem que o atentado tenha explicitado a inadequação de Bolsonaro para a tarefa que a maioria da sociedade brasileira imagina para o próximo presidente — e isso porque está a se alastrar a percepção de que ele “colheu o que plantou”.
  3. Villas-Boas buscou estabelecer um marco de questionamento para essa derrota que se anuncia, dando sustentação a um possível argumento de Bolsonaro contra a legitimidade de uma derrota sua: “prejudicaram a campanha” — como se campanhas não fossem processos em que precisamente “se prejudica” tanto quanto “se promove” a campanha dos candidatos. Além do que, se a loucura de Bispo é social, a ação de Bispo não pode ser generalizada para quem é contra Bolsonaro se não for, também, generalizada para quem defende, junto com Bolsonaro, as ideias dele — curto-circuito é curto-circuito.
  4. Bem espremida, a entrevista repete a forma do blefe feito contra o STF no caso de Lula, de que tratei aqui: “não aceitamos nada menos do que a vitória de Bolsonaro”.

Ao contrário do STF, a maioria de nós vai ter de pagar para ver.

EMOÇÃO DUPLICADA: AGORA LULA E BOLSONARO SÃO VÍTIMAS

Carlos Novaes, 07 de setembro de 2018

 

Venho publicando artigos que trazem reflexões sobre a miséria dessa campanha eleitoral, que obriga a uma concentração incomum nos aspectos novelescos e emocionais que podem ser observados na cena política, marcada pela contraposição entre Lula e Bolsonaro, na qual Haddad seria o herdeiro presumido de Lula, arranjo eleitoral que poderia fazer do segundo turno uma disputa Bolsonaro X Haddad.

Num outro registro, explorei também uma contraposição de outra ordem entre o mesmo Bolsonaro e Alckmin, agora para definir qual dos dois irá ao segundo turno, para enfrentar, quem sabe, o próprio Haddad ou, mais provavelmente, um outro nome. Se Alckmin prevalecer no campo reacionário, será sinal de que o eixo da campanha passou de emocional para racional, e, nesse rearranjo, aí mesmo é que seria difícil Haddad se tornar o maior beneficiário da frustração dos eleitores de Lula, pois a liga emocional da campanha terá sido quebrada.

Nos dois casos, me ocupei de Bolsonaro na dimensão emocional porque é assim que enxergo a adesão do eleitorado a ele. Quem se ocupar do material publicado pelos adeptos de Bolsonaro nas redes sociais, não poderá deixar de constatar o exacerbado emocionalismo, que aparece, entre outras coisas, mas principalmente, na irrevogável disposição à mentira desse pessoal. Bem sei que a mentira é um recurso baseado no cálculo, mas a mentira em favor de Bolsonaro é emocional porque não é que os bolsonaristas façam tentativas sofisticadas ou grosseiras de manipular calculadamente a realidade; não — o caso deles é o de quem simplesmente desconsidera a realidade, sem qualquer preocupação com a verossimilhança, numa mistura de falta de caráter, ignorância e delírio que só pode se mostrar assim influente numa sociedade que empilha eras de deseducação.

Os lulopetistas insistem em fazer da inaceitável arbitrariedade contra Lula uma lona para cobrir suas próprias responsabilidades na crise — e o professor Haddad joga nisso um papel vergonhosamente harmônico; os bolsonaristas pretendem fazer da inaceitável agressão contra Bolsonaro mais um falso argumento em favor de uma saída autoritária para a crise — e o general Mourão não poderia estar mais à vontade.

Postos para fora do jogo pela ação de terceiros que violaram as regras do jogo (Moro e o esfaqueador), tanto Lula como Bolsonaro terão de fazer o resto da campanha na pessoa de seus vices, dois “intelectuais” que se merecem. Terão êxito?

Se depender da reação das campanhas, que nada mais fazem do que seguir o bom-mocismo predominante nas redações convencionais, haverá uma avenida larga para Bolsonaro, tão larga que poderá permitir até a passagem de Haddad.

Nada poderia ser mais danoso nessa hora do que tentar esconder o óbvio como essa gente está fazendo: Bolsonaro, infelizmente, colheu, sim, de uma forma especialmente bárbara, o fruto amargo da barbárie que vem semeando há mais de vinte anos.

A forma foi especialmente bárbara porque Bolsonaro teve sua integridade física inaceitavelmente violada quando estava desprotegido, no meio da rua, de braços abertos, confraternizando entre os seus; e ele colheu o que plantou porque no curso de nada menos do que 27 anos Bolsonaro não perdeu nenhuma oportunidade de apresentar, na mídia ou em reuniões públicas, sejam suas “soluções” violentas contra quem pensa diferente, em formas que vão do insulto ao tiro; seja sua repugnante defesa da tortura, um suplício físico e mental que sempre é aplicado contra quem, desprotegido, de braços e pernas amarrados, já se encontra subjugado em meio hostil.

O ânimo belicoso de Bolsonaro é tão arraigado que, mesmo esfaqueado, já no hospital e tendo perdido muito sangue, ele alocou energia para se medir com o agressor, se autoafirmando contra um desconhecido, dizendo-o imperito, como se a tentativa do próprio assassinato tivesse sido um duelo!

Assim como no caso de Lula, as escolhas de Bolsonaro fizeram dele um alvo e, dessa perspectiva, ambos foram vítimas de si mesmos — o que poderá funcionar como mais um reforço perverso à polarização fajuta entre ambos se os oponentes continuarem a se recusar a esclarecer a opinião pública acerca do que realmente se passa e está em jogo.

O RELIGIOSO FARDADO EM TRAJE CIVIL

Carlos Novaes, 06 de setembro de 2018

[com acréscimo às 17:55h, em Fica o Registro]

Geraldo Alckmin é o mais consistente dos candidatos, e o mais daninho, quando se tem em mente o combate à desigualdade na perspectiva de alcançarmos um Estado de Direito Democrático no Brasil.

Desses últimos trinta anos em que a forma política paisana que nos foi legada pela ditadura promoveu essa longa jornada da democracia para dentro da noite, Alckmin emerge como o candidato mais consistente porque concatena os elementos conservadores da cena política num projeto de governo antidemocrático que, sem precisar recorrer aos disparates e vulgaridades eleitoreiras de um Bolsonaro, dá sobrevida ao Estado de Direito Autoritário — fiz aqui a conexão entre o perigo de Alckmin assumir a presidência da República (gestão) e a perniciosa reeleição infinita para o Legislativo (representação).

E é o mais daninho porque deu às facções estatais mais reacionárias, saídas dos dispositivos paisano e militar da ditadura, uma perspectiva de poder desde antes da eleição, sendo que o apoio antecipado do chamado Centrão faz de Alckmin o Cunha que pode dar certo. Alckmin é de saída um projeto presidencial para o exercício faccioso dos poderes institucionais acoplado ao Congresso (privilégios, abusos e mais repressão), e com o objetivo de sempre: manter a desigualdade para benefício dos negócios dos muito ricos e daqueles que os servem via manejo da coisa pública.

O fato de ter sido com a plumagem de tucano que Alckmin chegou aonde está não é desprovido de sentido profundo: como ala dissidente do paisano dispositivo oposicionista da ditadura (o p-MDB), o PSDB não deixou de trazer, misturado à carga de bons tijolos que reuniu para participar da construção da democracia reclamada pela maioria da sociedade, um tanto do barro de que fora feito. O tenaz e paulatino êxito de Alckmin na luta entre os tucanos paulistas e, depois, com a desgraça de Aécio, sua ascensão à presidência do PSDB, dão a medida e permitem ver a trajetória do velho que se revitaliza por dentro do que em dia longínquo pôde parecer ser o novo.

No manejo dos imensos recursos de poder disponíveis ao governador do mais rico estado da federação por longos 15 anos, Alckmin reuniu uma experiência perniciosa no favorecimento dos grandes negócios pelo trato combinado dos dispositivos paisano e militar que a ditadura nos legou: pelo lado paisano, manteve sob restrito controle a Assembléia Legislativa de São Paulo e a politicagem interiorana municipal, de onde ele provem; pelo lado militar, concedeu à PM uma lealdade de mafioso: só dança quem for flagrado de maneira inacobertável, do contrário, pé na tábua que serve de porta e bala para frente, pois São Paulo não pode parar.

Mais recentemente, com a emergência da guerra entre facções estatais, Alckmin vem tendo oportunidade de mostrar suas habilidades no trato com facções e vem singrando o mar revolto mobilizando aliados no Judiciário e recolhendo o que pode da carga de políticos processada pela Lava Jato que ainda boia (segundo ele, os melhores) e assegurando resoluta lealdade aos subordinados caídos, como fez na entrevista que deu ao Jornal Nacional (dias depois, Gilmar Mendes agraciou o subordinado mencionado na entrevista com mais um dos seus habeas corpus a jato).

A devoção ao conservadorismo religioso arruma o perfil de um modo especialmente consistente com os tempos de treva que se anunciam e que os bolsonaristas tanto anseiam, junção que pode ser resumida numa frase de Alckmin, — “quem não reagiu, tá vivo” — proferida para revestir com a legitimação precária do mandatário mais uma ação em que a truculência da PM poderia ter sido evitada se os policiais não viessem sendo treinados para a morte (do outro e deles próprios, vítimas inscientes que também são — exemplo dessa conexão macabra são as simetrias entre o assassinato bárbaro da PM Juliane dos Santos Duarte, em SP, e a execução não menos bárbara da líder Marielle Franco, no Rio).

Aquela frase de Alckmin repisa o que sabemos desde Abraão, o patriarca primordial dos implacáveis: os inocentes são sacrificados exatamente para que os algozes possam se exibir como implacáveis. O ex-governador de SP faz da religião lastro para uma implacabilidade que, justamente por ser religiosa, nada tem de republicana e, por isso mesmo, só pode se exibir assim serena porque, facciosamente, é exercida apenas contra os mais fracos — no manejo com os fortes, só mesuras de interiorano devoto.

Não fossem essas práticas tão visíveis, e mesmo que não se soubesse de seu apoio às mais “impopulares” reformas de Temer, a truculência por traz da presumida  serenidade de Alckmin seria traída até pelo seu modo de falar: sua mania de expor uma ideia batendo o indicador nos dedos trai a convicção religiosa de quem tem como certo o que é melhor para o interlocutor; um interlocutor a quem ele se dirige não para convencer, muito menos para persuadir, mas para submeter — Alckmin fala como se mastigasse os próprios dentes, como se quisesse triturar o interlocutor.

A junção de religião, truculência policial e grandes negócios faz de Alckmin o presidente dos sonhos da bancada BBB (bíblia+bala+boi), cujos interesses requerem da maioria da sociedade uma submissão bovina aos preceitos reificados da tradição e da ordem — Alckmin propõe um lograr sereno do que Bolsonaro quer arrancar no berro. Uma vitória de Alckmin seria o triunfo da abertura lenta (durou 40 anos), gradual (sempre simulou dar dois passos à frente para dar um atrás) e segura (assegurou que os ricos e seus serviçais não perderiam).

Para azar de Alckmin e, talvez, sorte da maioria de nós, os tempos são de emoção, não de razão — a maioria das pessoas quer expor afetos, não argumentos. Não falo de uma possível “sorte” porque prefira a contraposição afetiva (a motivação fraca) ao racionalismo enganador de Alckmin, que é Bolsonaro. Não. A sorte pode estar em que ao ter de jogar seu imenso tempo de TV  num apelo à razão contra seu adversário siamês, pois no segundo turno não há lugar para os dois, Alckmin pode acabar por ajudar a criar condições de conversa que levem a maioria do eleitorado a ponderar motivos para jogar fora a ambos.

Fica o Registro:

  • Diante dos salamaleques de Haddad ao p-MDB, Boulos declarou ao UOL que “parece que a relação PT e MDB virou caso de divã, caso de masoquismo. Não é possível, depois de ser golpeado, depois de tudo isso, recompor com essa turma e estar no mesmo palanque”. Diante de uma evidência tão escancarada da vigência profunda do facciosismo que articula o PT com o sistema político velho, a única coisa que resta a Boulos é improvisar uma psicanálise de botequim. É que se ele, para fazer a crítica dessa cena velha, invocasse mesmo que só o marxismo vulgar que costuma manejar, não poderia deixar de escancarar o oportunismo que o levou a alisar o lulopetismo até poucos dias atrás. O eleitorado que mais cresce na campanha do PSOL é o dos que têm saudades da Luciana Genro.
  • Embora todos os partidos falem em mudança, o que prevalece mesmo é a repetição do que já está aí, como fica claro quando se observa o uso que os velhos políticos fazem do novo fundo eleitoral, desde o PSOL até o p-MDB, passando pelo Centrão e adjacências: o grosso do nosso dinheiro está sendo distribuído aos que já têm mandato e querem se reeleger. Tudo ao contrário da indispensável renovação do Congresso, como já tratei aqui, aqui, aqui e em outros posts deste blog.
  • [17:55h] O esfaqueamento de Bolsonaro no meio da rua, em meio a multidão de apoiadores, é uma barbaridade que de imediato intensifica o emocionalismo da campanha, mas, com o passar dos dias, a depender também das consequências do ferimento e de uma criteriosa apuração dos fatos, pode fazer pensar, até mesmo ao próprio Bolsonaro, que no passado defendeu “matar uns 30 mil”  e outro dia atualizava esse ânimo belicoso falando em “metralhar petralhas”, além de defender a prática da tortura, que atinge a integridade física e psíquica de pessoas já despojadas de meios de se defender.

TRANSFERÊNCIA DE VOTOS

Carlos Novaes, 02 de setembro de 2018

[Com acréscimos em Fica o Registro, em 03/09]

A situação de Lula põe o tema da “transferência de votos” no centro da eleição presidencial de 2018. O tema é interessante porque, além dos contornos circunstanciais do caso, se trata de uma situação, em si mesma, banal: quando alguém, A, pretende transferir uma intensão de voto em si para determinada outra pessoa, B, o que A pretende é influir decididamente no percurso do eleitor que vai desde um desejo seu (votar em A), passa pela frustração desse desejo (não poder votar em A) e, dela, chega a um novo desejo (votar em B). Grosso modo, trata-se de uma situação social que todos, mesmo uma criança ao tentar levar outra a trocar de brinquedo, já vivemos.

Para entender os parâmetros que regem esse mecanismo complexo no ato de trocar o candidato em quem votar, é necessário explorar, antes da “transferência” do voto para B, a motivação para o voto em A.

Há muitos anos desenvolvi um metodologia de pesquisa para explorar a motivação para o voto. Para abreviar a exposição, vou explicar essa metodologia  tão esquematicamente quanto possível, deixando de lado certos refinamentos.

COMO É FEITA E PROCESSADA A PESQUISA ELEITORAL

  1. Logo depois da pergunta estimulada sobre em quem o pesquisado votaria se eleição fosse hoje, vem a pergunta aberta: “por que você dá seu voto a fulano?” (pergunta aberta é aquela em que o entrevistador deve anotar exatamente as palavras do entrevistado, inclusive com eventuais erros de português e incoerências manifestas).
  2. Depois, todas as respostas à pergunta aberta são transcritas num programa de computador.
  3. Em seguida, tendo em mãos todas as respostas, o especialista passa a buscar agrupa-las em tipos, de modo a obter uma classificação nova que permita reduzir o leque de motivações para o voto o mais possível e de um modo analiticamente profícuo.

Com base na repetição desses três passos acima sobre o resultado de muitas pesquisas eleitorais, desenvolvi uma grade de motivações que está dividida em quatro hemisférios, cada um deles subdividido em rubricas, como a seguir.

COMO É FEITA A CLASSIFICAÇÃO DAS RESPOSTAS À PERGUNTA ABERTA

Hemisfério_1: Emocional/moral/afetivo

Aqui são reunidas todas as respostas em que os entrevistados disserem votar no seu candidato segundo emoções, valores e/ou afetos que não vierem acompanhados de qualquer cálculo custo-benefício imediato ou distante; por exemplo:

1.1. Menções à honestidade, coragem, autenticidade do candidato.

1.2. Menções à relação do candidato com aspectos afetivos, tais como: “é da minha terra”, “é da minha raça/cor”, “é do meu gênero”

1.3. Outras menções emocionais partilháveis.

Hemisfério_2: Racional/instrumental

Aqui são agrupadas todas as respostas que indicam um cálculo custo-benefício, imediato ou distante; por exemplo:

2.1. Menções ao programa e/ou a propostas do candidato

2.2. Menções ao preparo técnico do candidato

2.3. Menções a benefício recebido do candidato em troca do voto (um saco de cimento, uma consulta médica)

2.4. Menções às realizações passadas do candidato (foi um bom prefeito/deputado; fez uma ponte no meu bairro,  etc)

Hemisfério_3: A inserção política do candidato

Aqui são agregadas todas as referências feitas ao partido do candidato (ou a partido ao qual ele se contraponha), a seus aliados/desafetos e/ou à sua história política em geral; por exemplo:

3.1. “É do partido tal, que eu apoio” — ou “é contra o partido tal, que eu detesto”

3.2. “É aliado/parente/adversário do político tal, a quem admiro/rejeito”

3.3. “Troca sempre de partido, não tem rabo preso” ou “é fiel, nunca trocou de partido”

Hemisfério_4: Motivações Idiossincráticas

Aqui são reunidas respostas tão pessoais que o eleitor não teria como, dentro do razoável, pretender convencer outra pessoa a acompanhar seu voto com base no mesmo motivo; por exemplo:

4.1. “Voto nele porque sou chegada num coroa”; “porque se parece com a minha mãe”, “porque soube que ele mora numa casa amarela como a minha” e por aí vai…

Note-se, de antemão, duas coisas: primeiro, que não se perca de vista que essa separação razão-emoção não pretende que haja uma razão pura, sem emoção, ou vice-versa (uma complexidade que não é o caso enfrentar aqui); segundo, nessa variada classificação acima eu não faço diferença entre quem escolheu o candidato dizendo que “gosto muito da proposta dele para enfrentar o problema do déficit fiscal”, e quem o fez dizendo que “voto porque ele me deu 300 tijolos”. Muito pelo contrário, para mim essas duas respostas têm o mesmo valor, ou seja, ambos os eleitores tem uma motivação muito clara, fundamentada num cálculo custo-benefício inequívoco. Ambas as respostas são classificadas por mim como “racional/instrumental”.

Na mesma linha, são classificadas como “moral/afetiva” tanto aquela resposta que deu como motivação para o voto a “honestidade” de um candidato, quanto a que partiu da consideração de que ambos têm a “mesma cor da pele”. Procedimento que se repete quando num outro hemisfério alguém diz que vota porque o candidato é do partido tal, ou, pelo contrário, porque ele combate o partido tal: o importante, aqui, é o fator partido.

A VARIAÇÃO DAS MOTIVAÇÕES NO CURSO DA CAMPANHA

Minha experiência com pesquisas mostra que as motivações acima variam no curso de uma eleição: no princípio, quando ainda não há propriamente campanha na rua, as motivações são mais epidérmicas e, com isso, prevalecem as respostas dos hemisférios 1 e 4, especialmente o 1. Mais adiante, quando passa a haver campanha e o eleitor passa a se interessar e, principalmente, a falar da eleição, há um movimento que chamo de “troca de motivação”, e os eleitores motivados pelos hemisférios 2 e 3 passam a predominar nas pesquisas, especialmente o 2.

Por isso, as motivações do primeiro e do quarto hemisférios são chamadas de fracas; e as do segundo e do terceiro são chamadas de fortes. Isso quer dizer que quando motivado por 2 e/ou 3 o eleitor tem uma preferência mais sólida, mais difícil de mudar — já quando motivado por 1 e/ou 4 o eleitor pode mais facilmente ser levado a trocar de motivação e, no embalo dessa troca, pode também ser levado a trocar de candidato, descartando a preferência a que fora levado pela motivação (fraca) anterior.

O CASO DE LULA NO PRIMEIRO TURNO DE 2018

Embora não disponha de nenhuma pesquisa atual com dados sobre motivação para o voto, vou tentar, com base na experiência pregressa, oferecer elementos para que você, leitor, possa fazer um juízo melhor acerca das chances da manobra de Lula.

Em 2010 Lula não fez propriamente uma “transferência de votos” para Dilma, pelo menos não como tenta agora, pois naquela eleição Lula não poderia mesmo ser candidato. Ou seja, o eleitor não foi levado a uma motivação para votar em Lula e, depois, a teve frustrada. Dilma não foi beneficiada por uma transferência de votos, mas por uma transferência de prestígio.

Em 2018 é bem diferente, pois há dois tipos básicos de eleitores com motivação para votar em Lula: primeiro, aquele eleitor que prefere mesmo Lula, e tendo desenvolvido uma motivação de votar nele descobre, agora, que não poderá fazê-lo; segundo, aquele eleitor que desenvolveu a motivação para declarar voto em Lula exatamente porque antecipou que o ex-presidente teria sua candidatura barrada. Embora o primeiro contingente deva ser significativamente superior ao segundo, este não deve ser desprezível, como o crescimento recente nas pesquisas parece mostrar.

PROBLEMAS PARA TRANSFERIR O VOTO DO ELEITOR QUE PREFERE LULA

Dos que desenvolveram a vontade original de votar em Lula, certamente há motivações em todos os hemisférios apresentados acima. Por exemplo: seus governos o credenciam no grupo 2; sua trajetória e seu partido o credenciam no 3; sua condição de ex-operário e nordestino o credencia no 1 e sua figura controversa e amplamente conhecida deve suscitar apoios pela motivação 4.

Em razão dessa sólida distribuição das motivações tanto pelo grupo das fortes (2 e 3), quanto pelo das fracas (1 e 4), Lula deveria ter construído um processo de transferência negociada com o seu eleitor, uma negociação que respeitaria o fato de que o que predomina no final são as escolhas racionais, não as emocionais.

Mas Lula fez a opção oposta: ele pretende que tudo isso seja dirigido para Haddad de última hora, sob um registro quase puramente emocional, como reparação pelo impedimento da sua candidatura; o que põe problemas sérios.

Primeiro, Lula já não desfruta do prestígio que transferiu para Dilma em 2010 e para o próprio Haddad em 2012. Pelo contrário, Lula está sob o juízo desfavorável da corrupção havida em seus governos, sendo poucos, muito poucos, os que acreditam que ele “não sabia”. Como a pecha de corrupto é típica do hemisfério emocional (1), Lula candidato poderia suplanta-la com as suas realizações governamentais (2), tal como Maluf já fez. Entretanto, não é ele o candidato e a tarefa de vincular Haddad ao prestígio dos seus governos a ponto de neutralizar os danos da Lava Jato no hemisfério 1 não é simples, porque depende de que se acredite que Lula é inocente e de que seus governos justificam o voto em quem ele apontar.

Segundo, Lula não pode simplesmente pretender que o fracasso do governo Dilma (2) não lhe diga respeito. Por isso mesmo, para Lula o melhor é que a discussão propriamente racional não se faça, mas da qual Haddad não poderá escapar, por mais tarde que comece sua participação na campanha.

Terceiro, o próprio Haddad tem um passivo sério no hemisfério 2, pois seu controverso governo na cidade de SP, junto com os desdobramentos da Lava Jato, levou-o a uma derrota em primeiro turno na sua tentativa de reeleição, quando contou com o engajamento de Lula, que agora aparece tentando repetir a manobra… É bem verdade que agora há uma diferença: naquela altura Lula não estava como vítima. Mas, de novo, se trata de um movimento contrário à experiência comprovada: o emocional favorável (Lula) pretendendo suplantar o racional desfavorável (Haddad). E mais: o emocional favorável, mais fraco, vem daquele que transfere, e o racional desfavorável, mais forte, está com aquele que recebe a transferência.

Quarto, o PT, embora conserve 24% das preferências partidárias, não conta com outros 76% de indiferentes, indecisos ou distraídos diante da questão partidária. Não. A Lava Jato motivou na maioria uma rejeição pelo PT, na qual estão eleitores que poderiam votar em Lula, dado o lugar único ocupado por ele na opinião pública. Não há razão para supor, entretanto, que boa parte desses eleitores vá simplesmente transferir para o petista Haddad um voto que estiveram dispostos a dar ao Lula. (Por isso, lá atrás (bem entendido), me parecia mais racional para ele apoiar Ciro. Lula sente a dificuldade e está tentando transpô-la fazendo um arremedo de diálogo racional, dizendo que Haddad foi seu melhor ministro etc).

 A INJUSTIÇA CONTRA LULA COMO ATMOSFERA DA ELEIÇÃO

Já explorei em textos recentes a condição de vítima em que Lula está eleitoralmente envelopado. Além do que já foi dito em uns e outros desses textos, parece oportuno analisar a contribuição que essa circunstância dá ao prolongamento da fase propriamente emocional da campanha, um prolongamento que ao adiar o ajuizamento racional, pelo eleitor, do que está em jogo, veio beneficiando a polarização fajuta entre Lula e Bolsonaro.

Se Lula não tivesse sido preso com base num julgamento sem provas, há muito ele seria um candidato sob severo escrutínio. A prisão arbitrária dele e o impedimento da sua candidatura levaram a que se instalasse e perdurasse um ambiente predominantemente emocional, que recebe a ajuda da, e se coaduna muito bem com a, desorientação mais geral que caracteriza a maioria da sociedade brasileira diante da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário: a desorientação é um desvio da razão e favorece o emocionalismo. Há como que uma trava emocional a impedir que a campanha passe da fase emocional (hemisfério_1, fraca), para a fase racional (hemisfério_2, forte), situação para a qual o despreparo dos outros candidatos contribui muito.

Essa atmosfera emocional engoliu até os que se julgam “formadores de opinião” e tem beneficiado não apenas Lula, mas, eu diria, sobretudo, Bolsonaro que, apoiado em Lula, tem sido o grande campeão das motivações emocionais para o voto. A dificuldade para o limitado ex-capitão deveria ser conservar esse eleitor ao ser confrontado com os desafios da governança. Entretanto, diante do despreparo dos jornalistas (vide, por exemplo, o Roda Viva e o Jornal Nacional), que têm se concentrado em discutir com o candidato temas que lhes parecem espinhosos, mas nos quais Bolsonaro não poderia deixar de se sentir à vontade, ele tem não só confirmado e motivado seus eleitores, mas também conseguido parecer melhor do que os outros — se bem que dada a fragilidade deles… Bolsonaro está conseguindo levar adiante uma candidatura presidencial que só tem perna emocional, o que é um caso único na história da redemocratização eleitoral brasileira.

De modo que Lula e Bolsonaro têm alimentado um ao outro com emoções contrapostas, sendo a maior evidência de desrazão o fato de nessa polarização a urgência social estar do lado oposto ao da urgência por ordem, quando as duas deveriam estar juntas, pois os recursos para financiar o social só poderão vir de uma nova ordem, que golpeie essa ordem desordeira que tão bem faz aos ricos e na qual as facções estatais envolvidas na corrupção; na manutenção do arbítrio e dos abusos funcionais, salariais e previdenciários do setor público; e na bandidagem penitenciária não cessam de favorecer o exercício faccioso dos poderes institucionais.

Por tudo isso, só haverá uma segundo turno entre Haddad e Bolsonaro, as duas marionetes, se a maioria da sociedade persistir no engajamento emocional para o voto, fazendo um primeiro turno inédito, no qual, pela primeira vez, não terá havido a passagem da fase das motivações chamadas fracas para as motivações chamadas fortes. Se for assim, o segundo turno será dramático, pois quando chegarmos lá a ficha cairá — ou não?

[em 03/09] Fica o Registro:

  • A insistência do PT na suposta candidatura de Lula, com anuência de Haddad, mostra que eles não querem, mesmo, fazer qualquer gesto que quebre o elo emocional que parte do eleitorado mantém com Lula até aqui. O problema é que a hora H vai chegar,  e a possibilidade de não haver a troca das motivações fracas pelas motivações fortes nada tem de garantida.
  • Aliás, a imprensa traz hoje pesquisas que mostram a campanha de Alckmin na TV já conseguindo abalar o emocionalismo em torno de Bolsonaro. Alckmin reúne as motivações fortes (racionais) do mesmo repertório de apelos conservadores do qual Bolsonaro é o campeão das motivações fracas (emocionais). Se, como a experiência mostra, o tucano corroer o limitado ex-capitão, não há razão para supor que Haddad vá simplesmente surfar na onda emotiva gerada por Lula; afinal, Lula e Bolsonaro estão polarizados com base na mesma fragilidade: o elo entre o emocionalismo e a desorientação da maioria da sociedade diante da crise de legitimação. O tempo é curto, mas, ainda assim, não vou ter motivos para surpresa se nem Haddad, nem Bolsonaro estiverem no segundo turno.
  • O desafio analítico dessa reta final de campanha é entender como a maioria da sociedade vai preferir iniciar a construção de uma saída para uma crise de legitimação que ela não enxerga (não obstante sofra tremendamente por causa dela) em circunstâncias em que ela própria, por não enxergar a crise, não construiu alternativas transformadoras e, assim, dispõe de um leque de candidaturas presidenciais muito frágeis, muito aquém da encrenca em que estamos metidos (o incêndio do Museu Nacional é mais do que uma metáfora precisa).

 

 

ENTRE A FARSA E O DRAMA

Carlos Novaes, 01 de setembro de 2018

Desde a sua fundação o PT abrigou um contraste entre as preferências do carisma de Lula e as ambições da burocracia partidária, constatação que fundamentei há 25 anos, explorando suas contradições em análise que pode ser lida aqui.

O mundo girou, a Luzitana rodou, e esse contraste ganha contorno novo quando a decisão do TSE tira Lula da disputa presidencial e faz de Haddad o candidato do PT.

Tal como na escolha de Dilma para sucedê-lo quando a lei o impedia de concorrer a um terceiro mandato, também agora, quando novamente a lei o impede de concorrer a um terceiro mandato, Lula transpôs qualquer dinâmica propriamente partidária e empregou a força do carisma para impor ao PT um nome da sua preferência — com a repetição de um detalhe que mostra a orientação anti-máquina de Lula: na vez de Dilma, a escolha recaiu sobre alguém que só entrara no PT em 1992; na vez de Haddad, a escolha recaiu sobre alguém que fez toda a sua trajetória como minoria interna que se contrapunha à hegemonia da máquina.

Em 2009, Lula exerceu contra a máquina petista a desenvoltura que ganhara depois do mensalão; em 2018, Lula exerce contra o que restou do partido a desenvoltura que ganhou com os descaminhos facciosos do petrolão.

Em 2009, Lula ganhou desenvoltura porque o mensalão permitira que ele afastasse a sombra ambiciosa de José Dirceu, afirmação que para se entendida requer que se leia a análise que fiz aqui. Desde o mensalão o PT se tornou um mero instrumento dos desígnios políticos de Lula.

Em 2018, Lula manteve intacta sua desenvoltura contra a máquina porque enquanto o PT foi levado a um beco sem saída pela Lava Jato; Lula, titular do carisma e tendo recebido uma condenação sem provas (na qual o próprio juiz reconhece que não se estabeleceu relação jurídica do triplex com o petrolão), foi transformado em vítima pela mesma Lava Jato.

A vítima Lula é tudo o que a máquina petista tem e, para contrariedade dela, Lula ungiu Haddad, dando seguimento, numa antecipação de plano seu que começara a ficar claro quando impôs ao PT seu ex-ministro da Educação como candidato à prefeitura da capital paulista. Em suma, a prisão não levou Lula a mudar de método, nem o afastou de seu roteiro, apenas o obrigou a antecipar as coisas e Haddad se tornou sucessor mais cedo.

É mais que batida, eu mesmo já a empreguei, a sentença de que “a história se dá por assim dizer duas vezes, na primeira como tragédia, na segunda como farsa”. Dilma foi uma tragédia antecipada, como naquela altura sustentei aqui; mas não creio que o gênero de Haddad possa ser resolvido por antecipação: tem tudo para ser uma farsa, mas pode se revelar um drama tremendo.

Me vem à memória o filme chinês “Adeus, minha Concubina”, de Chen Kaige. Nele há uma triangulação amorosa que serve de metáfora para as assimetrias de gênero entre a farsa (o rei-Shitou_Xiaolou), a tragédia (a concubina-Douzi_Dieyi) e o drama (a prostituta-Juxian), que, por sua vez, projetam não menos metaforicamente os engajamentos e as ilusões (bem como a decorrência de ambos: os sofrimentos) do povo da China nos tempos em que o país foi submetido à guerra com o Japão, às ondas das revoluções lideradas por Mao e ao pragmatismo de Deng.

Não sendo o caso de explorar a riqueza dessas sobreposições, que o leitor mesmo já deve ter admirado nesse belíssimo filme, é bem o caso de registrar que o sentido mais alto do filme está em que, na vida real do homem comum, o drama é sempre o que se impõe depois da dança de véus entre a tragédia e a farsa.

O Brasil vive um tempo dramático, mas em lugar de revolução, é o vácuo que está à vista: nosso Estado de Direito Autoritário está em crise de legitimação, mas a maioria da sociedade não encontra meios de se fazer maioria na hora de produzir uma saída para as suas duas urgências fundamentais: a urgência social (emprego, saúde, educação) e a urgência por ordem (corrupção, banditismo convencional e abuso estatal). Não conseguimos encontrar um arranjo novo, em que a ordem esteja orientada para o combate à desigualdade e, por isso, estamos a contrapor o tema do “social” ao tema da “ordem”.

Se Haddad virar pó já no primeiro turno, terá prevalecido tudo o que há de farsa na candidatura dele. Se passar ao segundo, a farsa terá sido transposta, via carpintaria de telenovela, para dentro de um drama tremendo, que jogará o país num vórtice imprevisível.

Fica o Registro:

  • O ministro Facchin deu o voto favorável à candidatura de Lula que eu aventei fosse o voto do relator, o ministro Barroso que, mais uma vez, deu parecer formal contra Lula, mas ressalvando, de novo, que não estava a apreciar a sentença proferida por Moro e agravada pelo TRF-4 (como a indicar que discorda dela…).
  • Não há muito o que dizer, mas, atendendo a pedidos: nas entrevistas dos candidatos à Globo, a dupla do Jornal Nacional conseguiu a proeza de se mostrar mais despreparada do que os entrevistados — sequer tiveram competência para desempenhar o papel de algozes que equivocadamente escolheram. Bonner, sem agilidade para enfrentar o cinismo dos candidatos, tentou escapar ao próprio despreparo com uma postura particularmente impertinente: buscou sempre dar a última palavra para a conclusão de cada tema, como se os candidatos à presidência da República fossem jornalistas subordinados seus, como se alguém lhe tivesse dado o posto inexistente de “editor-chefe” da campanha presidencial — e nenhum dos candidatos o colocou no devido lugar; e isso por uma razão verdadeira: todos vivem no íntimo a evidência de que não estão à altura do desafio.

HADDAD JÁ ESTÁ NO SEGUNDO TURNO?

Carlos Novaes, 26 de agosto de 2018

Vai se alastrando pelas redações e pelas campanhas a ideia precipitada de que Haddad já estaria no segundo turno, sendo a outra vaga disputada entre Bolsonaro e os demais. Essa precipitação decorre, sobretudo, de análises erradas sobre o crescimento de Lula nas pesquisas – o que se diz por aí pode ser resumido assim: “mesmo preso, Lula tem conseguido crescer nas pesquisas e já tem percentuais equivalentes aos de eleições que venceu”. Chega a dar preguiça.

Ao acharem que a força de Lula está tolhida pela cadeia, esses analistas ficam a fantasiar sobre o que o ex-metalúrgico não faria se estivesse solto… e, por isso, imaginam que essa força irá desaguar como um jorro de cântaro sobre Haddad. A premissa é falsa, e a conclusão, incerta.

Antes de enfrentarmos a pergunta do título, há que responder uma outra: por que Lula cresceu?

Lula cresceu não apesar de estar preso; Lula cresceu porque está preso. Isso faz toda diferença, especialmente quando se pensa em “transferência de votos”.

Lula cresceu porque vão se alastrando tanto o entendimento de que ele foi vítima de uma injustiça, quanto, sobretudo, o sentimento de que ele é a vítima solitária de uma ilegitimidade.

Primeiro, mais e mais pessoas vieram se convencendo do óbvio: o processo que pôs Lula na cadeia é uma fraude — eis a injustiça.

Porém, mais significativo é o fato de que o arbítrio seletivo, faccioso, sobre Lula o tornou a vítima solitária e, por isso, mais visível, do facciosismo que ele próprio praticou no Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação — eis a ilegitimidade.

Nesse desenho, Lula figura como vítima da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, não como um personagem que aderiu a esse Estado e cujas escolhas e práticas foram decisivas para precipitá-lo na crise atual. Na verdade, Lula e o PT foram derrotados numa das batalhas da guerra de facções estatais em curso, e lutam para dar o troco. Isso nada tem que ver com compromisso com os pobres, que entram na história como exército eleitoral de reserva.

Nada de suas escolhas e práticas nefastas tem aparecido na campanha, ou nos debates. Lula se beneficia triplamente da própria ausência: só aparece como vítima; não tem como ser questionado pelos adversários e, por isso mesmo, vem sendo poupado pela covardia oportunista desses mesmos adversários, todos querendo ficar bem com o eleitorado que lhe é fiel enquanto robustecem a narrativa esperta do ex-presidente, fazendo dele o beneficiário de uma bolha de intenções de voto. Uma pantomima digna dessa crise de legitimação sem vetor promissor.

Essas circunstâncias tiraram do foco de parte da opinião pública o que houve de criminoso nos governos de Lula, e vêm permitindo que ele e seu PT alardeiem um suposto compromisso contra a desigualdade e, de maneira ainda mais fraudulenta, uma disposição de enfrentar elites a quem, até recentemente, Lula se gabava de ter levado a ganhar dinheiro como nunca antes neste país.

Como não há debate esclarecedor, como a crise não dá trégua, como Lula é vítima e como não se produziu alternativa crível, declarar voto num Lula que não será candidato virou, para muitos (num paradoxo aparente), uma forma de protesto contra uma eleição em que não se apresentam saídas para as duas urgências do Brasil atual: a urgência social e a urgência por ordem. Troquemos isso em miúdos.

Embora não identifiquem analiticamente a crise de legitimação em que está mergulhado o Estado que os infelicita, aqueles que sofrem na pele o exercício faccioso dos poderes institucionais se vêem, todo o tempo, impelidos a dar o troco: se não para superar a crise de legitimação (uma crise que não enxergam), ao menos contra aqueles a quem dirigem sua revolta surda, uma revolta que tem tons de ressentimento.

Daí Lula e Bolsonaro estarem desde o início liderando as pesquisas: numa eleição em que a sofrida maioria da sociedade está desorientada pela extensão da ruína social e institucional em que se vê e, em razão dessa desorientação, não conseguiu forjar/encontrar uma saída, Lula, o “campeão” do social, se beneficia do sentimento anti-elite (embora ele tenha abandonado a luta contra a desigualdade e se associado às elites); e Bolsonaro, o “campeão” da ordem, se beneficia do sentimento anti-sistema (embora ele seja parte do que há de mais primitivo no sistema, sua truculência).

Como, por razões óbvias, Lula e seu PT não podem se engajar na luta anti-corrupção, estão impedidos de se apresentarem contra o sistema; já Bolsonaro, como um “anticomunista” e “liberal” recém-convertido, não pode se apresentar como anti-elite, não pode ter discurso social, e fica confinado ao discurso da ordem.

A prova maior de que a maioria da sociedade sucumbiu à desorientação provocada pela crise é o fato de os dois candidatos mais bem posicionados na disputa para a presidência da República serem aqueles que não podem reunir programaticamente as duas qualidades subjacentes à preferência da maioria: pró-social e anti-sistema. Mais uma vez, nossa desorientação desembocou na preferência nacional: uma polarização fajuta!!

Sendo assim, as possibilidades de Haddad ser beneficiado por uma enxurrada desses “votos” da bolha de Lula diminuem bastante, afinal, o eleitor terá de passar a um nível adicional de desorientação: escolher um preposto que, na figura do relativamente desconhecido Haddad, receberá, com toda justiça, toda a crítica represada contra Lula.

É também por isso que Lula arrasta sua pseudo-candidatura e Haddad não parece muito empenhado em ir aos debates — sabem que suas chances estão todas no risco de disputar o primeiro turno de supetão, com o mínimo de esclarecimento e confronto com a realidade.

Se houvesse um segundo turno Haddad X Bolsonaro teríamos a fajutice das fajutices: uma polarização entre duas marionetes*. Logo saberemos.

* Desenvolvi aqui a ideia de que Bolsonaro é um caso único de político que, ao invés de fazer das massas marionete, se fez ele próprio a marionete delas — daí ficar indo e vindo nos posicionamentos. O caso de Haddad não requer explicação, ainda que hajam detalhes aqui e aqui.

NÃO ME PERGUNTARAM, MAS… – 9 — Entrevista de brasilianista na Folha de hoje

Carlos Novaes, 26 de agosto de 2018

A Folha de S.Paulo publica hoje uma entrevista com Bryan McCann, professor da Universidade Georgetown. Quando não erra, o historiador faz o tipo de análise convencional que agrada àquele segmento da intelectualidade brasileira que acredita “nas conquistas dos últimos trinta anos” porque enxerga nessas “conquistas” uma não menos ilusória obra sua: uma democracia consolidada num Estado democrático de direito.

Folha – A eleição presidencial está sendo chamada de a mais imprevisível da história recente no país. Concorda ou acha que as coisas estão começando a se desenhar de forma mais clara?

MacCann — Sim, concordo. Não só imprevisível, como acho angustiante. E devemos fazer uma reflexão sobre os últimos 30 anos. Sim, é verdade que ao longo dos últimos três anos o Brasil está em crise, mas ao longo de três décadas o Brasil alcançou avanços enormes por causa da consolidação e da construção de uma democracia plural. A eleição é um momento angustiante para a democracia brasileira.

Novaes — Os termos em que esta eleição se dá não são uma decorrência dos últimos três anos. Tanto a eleição como os últimos três anos são uma decorrência das últimas três décadas. As incertezas da eleição são o modo de apresentação de uma incerteza que foi construída nos últimos 30 anos, enquanto brincávamos de democracia por cima e deixávamos a desigualdade fazer seus estragos por baixo. A conta chegou e não há o que comemorar.

Em que sentido? 

MacCann — Uma democracia plural tem que ter representação de várias tendências no governo, mas o momento atual é angustiante porque surgiu um setor da população brasileira que não respeita essa democracia plural, que não valoriza as conquistas dos últimos 30 anos e pensa apenas na crise mais recente. A candidatura de Jair Bolsonaro é fruto desse pensamento.

Novaes — Os últimos 30 anos foram a tentativa de consolidar uma equação que não fecha: combinar a manutenção pétrea da desigualdade com democracia eleitoral. Os políticos profissionais fizeram das eleições democráticas rituais vazios, uma encenação para distraídos no intervalo de mandatos consagrados à manutenção de privilégios via corrupção (prática que igualou a todos, salvo exceções que de nada adiantam) e uso da força contra os pobres.

Isso é ruim para a democracia?

MacCann — Ele é um risco para a democracia brasileira. Como não sou cidadão brasileiro, não tenho um candidato para apoiar na eleição, mas eu votaria em qualquer um contra Bolsonaro. Ele não respeita essa democracia e fala abertamente que respeita mais o tipo de regime que o Brasil tinha durante a ditadura.

Novaes — O que ameaça a democracia eleitoral não é esse “setor que não respeita essa democracia”, de cujos anseios Bolsonaro é a marionete. A ameaça está em não enxergar que a crise é uma crise de legitimação do próprio Estado de Direito Autoritário. Nessa crise, as alternativas são mais autoritarismo ou mais democracia. Bolsonaro e Alckmin são os representantes mais vistosos dos que querem mais autoritarismo; Lula e seu PT abandonaram a luta contra a desigualdade e aderiram ao exercício faccioso dos poderes institucionais, com destaque para a corrupção, e querem nos convencer de que ainda podem empunhar as bandeiras que traíram; Ciro e Marina não sabem o que estão fazendo. A sociedade, aturdida, espera um milagre. Não vai dar em boa coisa.

A revista The Economist diz que Bolsonaro é um perigo para a democracia. Qual a percepção internacional a respeito da candidatura dele?

MacCann — Mais recentemente ele tem recebido uma maior atenção, sendo comparado a Donald Trump e ao [presidente das Filipinas] Rodrigo Duterte, alguém que tem possibilidade de fazer muito estrago. A cobertura jornalística nos EUA tem sido muito crítica a Bolsonaro, mostrando ele como alguém que concorre em uma eleição democrática, mas com saudade da ditadura.

Novaes — A força de Bolsonaro decorre da naturalização de um tipo de “exercício faccioso dos poderes institucionais”, a violência policial, que é antidemocrática na raiz e não cessou sob governos tucanos ou petistas. Os dispositivos militares legados pela ditadura paisano-militar estiveram ativos nesse 30 anos de Estado de Direito Autoritário. Há poucos dias, em mais uma de suas inócuas operações, agora apoiados pelo Exército, policiais militares do Rio mais uma vez seguiram a sua rotina invadindo casas sem mandato judicial, fazendo prisões arbitrárias de gente claramente inocente, provocando tiroteios sem preocupação com danos “colaterais”. Essas práticas sempre foram antagônicas a qualquer democracia — a novidade é que a crise de legitimação do Estado que tem essas práticas pôs a nu esse antagonismo e, agora, temos de escolher entre mais autoritarismo e mais democracia.

Considerando o quadro atual de coligações entre partidos, em que Bolsonaro vai receber pouca verba e vai ter pouco tempo de TV, acha que ele tem chances reais de vencer a eleição?

MacCann — Acho que sim. Depois da vitória do ‘brexit’ e da eleição de Trump, o que temos visto nos últimos anos é um mundo político em que um movimento populista que simplesmente quer acabar com a situação atual e quebrar a casa pode vencer, sim.

Novaes — Acho que não. É que a desigualdade extrema põe para o Brasil duas urgências: a urgência social (fundamentalmente, emprego, saúde, educação, moradia e fome), e a urgência da ordem (fundamentalmente corrupção, banditismo convencional e arbítrio estatal). Bolsonaro aparece como alguém que só tem “resposta” para a urgência da ordem, e, mesmo aí, tem como principal bandeira transferir o problema para o próprio cidadão, a quem quer ver reagindo a tiros contra a bandidagem de rua…

O ex-presidente Lula está preso e foi anunciado oficialmente como candidato a presidente. Como isso se encaixa na história política dele no Brasil?

MacCann — Lula tem uma importância histórica imensa para o Brasil. A questão principal agora é tentar entender como essa importância dele vai ter influência na eleição. Acho que a candidatura dele vai ser barrada, mas acredito que ele tenha grande poder de transferência de votos. E mesmo se o candidato dele não conseguir passar ao segundo turno, Lula ainda terá capacidade de transferir votos no segundo turno, para o candidato que tiver mais proximidade.

Novaes — Ao contrário de Bolsonaro, Lula é o candidato que se apresenta como tendo “resposta” para a urgência social, mas, por razões óbvias, não pode oferecer resposta para a urgência por ordem. O fato de os dois liderarem as pesquisas mostra o impasse brasileiro, pois não há candidato capaz de, primeiro, articular as duas urgências e, depois, apresentar uma alternativa clara de enfrentamento delas. O caso de Lula é grave porque seu alardeado compromisso social é para brasilianista ver, pois, como sabemos, ele e seu PT se acomodaram à desigualdade e jamais sequer cogitaram uma política de Estado para mudar a PM, por exemplo.

O momento atual tem paralelo na história do país?

MacCann — Para os historiadores, lembra a eleição de 1945, quando Getúlio Vargas teve poder de transferência de votos que acabou com o resultado da eleição do Dutra. Foi Getúlio que levou à eleição de Dutra. Lula vai ter este tipo de poder em 2018, e falta saber para quem vão acabar indo esses votos.

Novaes — O professor MacCann está muito atrasado. Lula já teve seu Dutra, e deu no que deu, como expliquei aqui e aqui. As condições para a transferência de votos são agora muito menos propícias, a começar pelo fato de que o apoio a Lula tem crescido quanto mais claro fica que ele não será candidato, contraste intrigante, a ser desenvolvido em outro post.

Há quem compare o momento atual à eleição de 1989. O que acha?

MacCann — Há semelhanças com 1989, sim. Na época, [Leonel] Brizola e Lula acabaram dividindo o voto da esquerda. Hoje em dia é até mais difícil, pois não tem um candidato claro da esquerda.

Novaes — Comparar 2018 a 1989 é besteira da grossa, como já expliquei aqui, a começar pelo fato de que naquela altura saíamos de um regime autoritário e, agora, estamos em vias de entrar em um…

A manobra do PT que isolou Ciro Gomes [PDT] pode ser vista como uma lição para evitar a divisão de 89?

MacCann — A esquerda brasileira aparentemente não aprendeu a lição. Não vemos agora uma união de forças contra o Bolsonaro, por exemplo. Vemos Ciro e Lula disputarem, e mesmo dentro do PT tem tendências disputando espaço.

Novaes — O que une a autointitulada esquerda brasileira é o empenho em continuar agarrada ao Estado de Direito Autoritário como um marisco. Por isso, ela se divide e se une como qualquer outra facção desse Estado.

Como tem sido vista fora do Brasil a candidatura de Lula, que está preso?

MacCann — Isso gera um pouco de dúvidas e incertezas. Não existe uma percepção geral de que Lula foi injustiçado, entretanto. Mesmo entre as pessoas bem informadas sobre política global. O que há é uma incerteza sobre o que está acontecendo, como ele pode ser candidato, e uma ideia de que no fim ele não vai poder concorrer, então o partido dele vai ter que apoiar outro nome.

Novaes — Lula está na prisão por uma condenação sem provas, vítima da guerra de facções em que ele próprio se empenha na tentativa de voltar a ter poder, o que faz dele um político inconfiável quando se almeja um Estado de Direito Democrático, cujo rumo requer um combate sem trégua à desigualdade.

ONU AUMENTA PRESSÃO SOBRE BARROSO

Carlos Novaes, 17 de agosto de 2018

Há poucos dias fiquei surpreso e intrigado com o voto do ministro Luis Roberto Barroso acompanhando parecer do relator Alexandre de Moraes, que favorecia a prescrição para crimes de improbidade administrativa. Fiquei surpreso porque o voto dele contrariava tudo o que me parece republicano; e fiquei intrigado porque não conseguia encontrar nexo faccioso nesse alinhamento com Moraes, cuja facção em matérias de fundo é, sempre, outra – e oposta à de Barroso.

Mas não tive de elucubrar por muito tempo: para o bem da causa pública, dias depois, na retomada do julgamento da matéria, Barroso, tal como já fizera o ministro Fux, reviu o seu voto e o entendimento de Moraes foi derrotado – sobre o que se passou de um dia para o outro não tenho elementos para especular, mas no segundo voto reconheci o Barroso que imagino ter identificado.

Mais lá atrás, por ocasião da decisão de um habeas corpus para o Lula, apresentei aqui meu entendimento de que Barroso votaria favoravelmente ao ex-presidente, voto que acabou não se verificando. Então como hoje, fui e sou levado a supor que Barroso votou contra o líder petista naquela altura porque não houve a separação entre o caso de Lula e a matéria de fundo misturada na questão, que é a benéfica possibilidade de prisão após condenação em segunda instância (desde que a condenação tenha sido justa, evidentemente).

Pois bem. Barroso agora é o relator tanto do registro da candidatura de Lula à presidência da República, como das ações que pedem ao TSE que barre essa mesma candidatura.

Estou entre os que consideram que a prisão de Lula se deu com base em uma condenação sem provas. Entendo, portanto, que nada deveria obstar a candidatura dele à presidência, deixando a cada eleitor fazer, como eu, seu próprio juízo sobre a culpa ou a inocência políticas de Lula nesse pântano da Petrobrás – sem prejuízo no prosseguimento das investigações policiais e dos processos em curso contra ele.

A resolução de hoje do Comitê  de Direitos Humanos da ONU é um elemento novo de grande importância. Resta saber se Barroso vai continuar a se ater ao rito formal, sem levar em conta a precariedade jurídica da decisão de Moro contra Lula, ou se ele vai fazer valer o sentido republicano do seu facciosismo e — aproveitando a deixa da ONU, que não pode deixar de mexer com suas veleidades de jurisconsulto com audiência internacional — permitir a candidatura do ex-metalúrgico.

MONTADOS NA (SUA) GRANA PARA A REELEIÇÃO

Carlos Novaes, 11 de agosto de 2018

A Folha de S.Paulo publicou nesse final de tarde uma matéria muito reveladora sobre o uso do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral pelos partidos políticos. Quem acompanha este blog sabe que defendo o fim dos dois fundos, pois garantir dinheiro do contribuinte para as traficâncias dos políticos profissionais é um verdadeiro nó contra a mudança: eles usam o nosso dinheiro para continuarem a manter partidos tão fortes quanto fajutos e para alcançarem mandatos contra nós.

Mas passemos adiante. O que há de mais interessante na matéria é a poupança do Fundo Partidário que os partidos do Centrão fizeram para gastar na eleição. Como eles não têm projeto ou atividade mais importante do que as próprias reeleições, guardaram o dinheiro para o que lhes interessa. Vão somar ao Fundo Eleitoral mais de 80 milhões de reais.

Note bem, leitor: esse apego à reeleição vem desde os tempos da ditadura paisano-militar, pois a ditadura não impediu a continuação da escolha dos deputados pelo voto. Pelo contrário, a manutenção da rotina eleitoral profissional para a Câmara no curso de toda a ditadura foi o fundamento principal para a transição lenta, gradual e segura: a Arena (depois PDS/PFL, DEM) e o p-MDB — com suas respectivas sublegendas (facções internas que disputavam eleições para prefeito umas contra as outras) — tudo fizeram para projetar Nova República adentro as práticas eleitorais, os interesses e as prerrogativas de mando que os caracterizavam desde sempre: eles vieram para a democracia com a boca tão torta quanto era na ditadura (sobre esse legado paisano nefasto, além de já ter escrito aqui em mais de um texto, também dei um depoimento detalhado, que está no YouTube).

Logo, não é, como diz um cientista político na matéria, que o Centrão poupou recursos e está de olho na reeleição para a Câmara porque

“é a vaga na Câmara que vai definir a distribuição futura dos recursos. O fundo partidário é decidido lá, o fundo eleitoral, também, e o tempo de TV é distribuído lá [conforme o número de deputados]. Não querem saber de governar, de ganhar Executivo.”

Não. Pensar assim é típico de quem analisa a política tentando entrar na cabeça dos políticos e, pior, levando a sério o que os políticos dizem! O fato de o fundo partidário, o fundo eleitoral e o tempo de TV serem decididos na Câmara; bem como o fato de esses partidos não fazerem questão nenhuma de ganhar diretamente o Executivo, são decorrência de eles terem mantido a estrutura e as práticas (a forma de atuar) que já tinham na ditadura: não podiam disputar o Executivo e, por isso, se especializaram em se reelegerem para, na miúda, fazerem as traficâncias graúdas. Foi assim que a ditadura selecionou sempre os piores: se acomodavam ao arbítrio, abriam mão de pensar o país, de propor saídas para os sofrimentos do povo, e cuidavam só do próprio vidão, que os mandatos na Câmara já proporcionavam – trouxeram tudo isso para a Nova República.

Peço a sua licença para ser didático no limiar da deselegância: o recentíssimo Fundo Eleitoral, que é de 2017, é um privilégio que eles somaram a uma outra novidade menos recente, o Fundo Partidário. Essas novidades não poderiam explicar um comportamento que vem desde a ditadura! É o contrário: essas novidades apareceram do jeito que apareceram, foram aprovadas do modo como o foram, precisamente porque o jogo na Câmara é velho como o diabo! São apenas decorrências de um apego à Câmara que vem de longe, pois foi ali que eles aprenderam a ser como são. Em suma: não fazer questão de disputar o Executivo, de governar diretamente, é uma preferência muito anterior, e não pode ser vista como consequência do apego que os profissionais de carreira têm por privilégios que mais recentemente garantiram a si mesmos na Câmara.

Por que é tão importante entender isso e não inverter algo tão básico em ciência como a relação causa-efeito, como fez o desorientado “cientista” político da USP?

Porque sem entender esse esquema a gente deixa escapar o fundamental e, aí, acaba comprando outras bobagens desses cientistas políticos que pensam a governabilidade como um jogo de mercado entre um presidente imperial e uma Câmara com partidos fracos. É justo o contrário, leitor: a presidência é fraca e os partidos são fortíssimos, arrancando do presidente tudo o que dele precisam. Não é que os partidos sejam programatica ou ideologicamente fortes, claro que não. Eles são fortes enquanto máquinas facciosas apegadas aos próprios interesses. O presidente só é “forte” enquanto existem duas condições:

  1. O que o presidente consegue “dar” é suficiente para receber maiorias na Câmara
  2. A sociedade se mantém dócil apesar dos sofrimentos que essa ordem malsã impõe à maioria de nós.

Temer já está sozinho porque já não consegue “dar” e os profissionais da reeleição já estão de olho no próximo. Se deixarmos de lado as diferenças entre os dois, Dilma e Collor caíram porque o que podiam “dar” não compensava o prejuízo de mantê-los diante de uma opinião pública convulsionada.

Então, voltando: o Centrão economizou porque desde a ditadura obedece à mesma forma de fazer política: ter mandatos na Câmara não apenas pelos mundos e fundos dela, mas sobretudo para arrancar o que puder de um Executivo que está lá para “dar”. Na época da ditadura, eles não tinham poder para ameaçar o mandato do presidente-ditador; na transição fizeram o aprendizado de usar em proveito próprio a pressão da sociedade para constranger o presidente-ditador e, em seguida, tornar marionete o presidente-tampão; com a volta da escolha eleitoral direta, continuaram a não ter projeto para o país e a exercer a sua especialidade: pressionar o presidente eleito, vendendo caro o seu “apoio” ao projeto vitorioso nas urnas, sempre inviabilizando mudanças que atinjam seus interesses e os dos muito ricos, a quem defendem.

A democracia eleitoral foi vivida por eles como uma oportunidade, pois continuaram a agir como antes, só que agora diante de um presidente muito mais fraco – por isso já conseguiram derrubar dois, pois iludem a sociedade de que os problemas estão na presidência. Usam presidentes inadequados (por incompetência, roubo e/ou traição) como biombos para encobrir a si mesmos (sua incompetência, seus roubos, suas traições), ou como espantalhos, tangendo contra o Executivo a ira da sociedade (provocada por essas mazelas), quando, na verdade, nossos problemas fundamentais estão principalmente no Congresso, que é o coração da forma política herdada da ditadura e que moldou nosso Estado de Direito Autoritário, cuja atual crise de legitimação é uma decorrência dessas práticas.

Tendo sofrido com presidentes ditatoriais inamovíveis, a maioria da sociedade vem sendo manipulada, por políticos profissionais saídos dos mesmos esquemas que serviram aos ditadores, para se entregar, agora, à catarse de poder afastar um presidente de que não goste — e há quem nisso comemore a “robustez das nossas instituições democráticas”.

E há, ainda, quem diga que nossos problemas resultam de uma Constituição “parlamentarista” que, contraditoriamente, manteve o presidencialismo. Não. Nossos problemas são anteriores: eles decorrem de termos passado a escolher o presidente da República pelo voto direto, mas mantendo os dispositivos paisanos da ditadura no comando do Congresso — resultado: por mais mudancista que seja o presidente eleito pela maioria via democracia eleitoral, ele sempre fica à mercê da maioria congressual anti-mudança que nos foi legada pela ditadura, eleita e reeleita pelas rotinas a que nos abandonamos.

A verdadeira importância de mais essa eleição não está na escolha de mais um presidente (até porque a oferta de candidatos…), mas na oportunidade de não reeleger essa corja que está aboletada no Congresso. Há quem mostre números “provando” que temos tido renovação congressual. Isso é falso. Esses números mostram reposição de estoque, não renovação: é mais do mesmo, com a mesma validade, pois saídos das mesmas facções.

Fica o Registro:

– Fiquei estarrecido com o que vi no debate. Alckmin repetindo o figurino de todas as outras eleições, como se nada tivesse acontecido de 2013 para cá; Ciro até que tentou se apresentar à altura da situação, mas essa oferta Spam de “tiro seu nome do SPC” foi, como disse uma amiga minha, “uma saída a Silvio Santos” (e não por ser inexequível, mas pelo absurdo de fazer disso uma proposta presidencial); e Marina, sempre em apuros para gastar o tempo, respondia toda pergunta com uma descrição tão geral quanto óbvia do problema que lhe foi apresentado, sem qualquer indicação de como resolve-lo. Quanto aos demais…

– Com a ausência do PT no debate, a novela do Lula (uma engenhosa tentativa que depende de a maioria se abandonar à fantasia) começou a ser triturada pela realidade. Vai ficando claro que Lula foi longe demais na sua certeza da transferência de votos, e o PT passou a exibir ao público a sua tragédia: não tem para onde correr e, como é comum nessas situações, aferra-se na negação da única chance que ainda poderia existir porque a alternativa Haddad escancara que a máquina não é capaz de enfrentar a situação com base em si mesma.

O METALÚRGICO DE MONTE CRISTO

Carlos Novaes, 07 de agosto de 2018

[com acréscimo em 17/08, em Fica o Registro]

No Brasil, poder e TV andam de mãos dadas porque ambos são formas requintadas de mistificação, como já explorei detalhadamente em série de artigos iniciada aqui e, tempos depois, continuada aqui. Pois bem, para obter êxito em sua estratégia eleitoral, Lula,  apoiado em verossimilhanças que todo narrador deve saber explorar, está a depender que a maioria do eleitorado se abandone à fantasia — só assim ele alcançará uma solda final entre sua ficção e a realidade terrível que ela tenta encobrir.

Uma condenação sem provas impediu Lula de continuar a apresentar o programa de auditório em que ele – como já dito aqui — se sentiria à vontade e no qual, como todo apresentador despótico, sempre distribuiu prêmios e microfone a quem se comportava segundo a sua vontade, a começar pela obediência à regra de que a atração principal é sempre o apresentador, regime do qual Fernando Haddad se fez o recruta mais caxias.

Dotado de talento e determinação incomuns, mesmo posto arbitrariamente atrás das grades o ex-metalúrgico não desanimou e voltou ao seu torno: e eis que, lá do fundo do calabouço, arrancado da vista de seus seguidores, tirado do palco em que mesmo os distraídos não lhe negavam alguma atenção, banido da liça direta pelos inimigos que o temem, Lula trocou o lugar de animador de auditório pela oficina de dramaturgia e se fez alvo da atenção de todo o público ao leva-lo a divisar em seu infortúnio um drama inédito, pois não há como deixar de fundir na figura encarcerada de Lula o autor, o personagem central e o principal ator dessa autêntica novela que faz a saga dele ganhar audiência à medida que se aproxima do desfecho.

Essa mimetização do gênero televisivo de maior sucesso no país chega ao requinte de imitar a “arte” no seu aspecto fundamental: tal como a telenovela, a obra de Lula é uma obra aberta, na qual o autor aceita que não pode determinar o percurso sozinho, pois o sucesso também depende da prudência de dividir a autoria com a audiência. Como a audiência brasileira é treinada e exigente, há que oferecer elementos que conduzam às duas amarrações básicas para o sucesso: o engajamento emocional, que leva à torcida para que o mal seja derrotado pelo bem, e o engajamento cognitivo, que leva à fidelização oriunda de uma história bem encadeada.

O êxito requer que o enredo entremeie a moral e o cálculo, com a primeira precedendo o segundo, pois o engajamento emocional é o vestíbulo do engajamento cognitivo. Ajudado pelas circunstâncias, Lula, como todo bom dramaturgo, partiu da vida real para a ficção, fazendo do arbítrio contra si, que é real, o chamariz moral para um enredo novelesco ao qual não falta nenhum dos ingredientes que fazem uma história bem contada: depois da injustiça contra o herói, se sucedem encontros e desencontros, reviravoltas implausíveis, traições, cartas secretas, revelações bombásticas, conflito de paternidade e, claro, um tão manjado quanto magistralmente bem construído triângulo amoroso, a ser resolvido só no final.

Todo bom enredo para “drama de superação” deve ter o cuidado de apresentar o injustiçado personagem principal como vítima transparente, deixando aos seus inimigos a pecha de conspiradores, pois a conspiração sempre é a artimanha do mal para interromper o livre curso do bem. Impedido de falar e de se movimentar com a desenvoltura que lhe é própria, vigiado em sua cela, submetido a um regime que controla com rigor suas visitas, desprovido de meios de comunicação remota, Lula aparece sob o registro da transparência: todos estão seguros de saber onde ele está, o que ele faz e com quem ele conversa. Seus adversários diretos estão na mão contrária, pois a frenética atividade conspiratória deles tem desenho novelesco, no qual o público pode divisar até a conspiração entre os facciosos de tribunal, como recentemente tratei aqui.

Como a telenovela é um gênero de dramaturgia que vem há tempos formatando a percepção da realidade pela maioria da sociedade brasileira, a carpintaria dramática necessária ao êxito da novela de Lula não é, portanto, o resultado de um desenho de prancheta – ela é decorrência de um processo fragmentado, que se beneficia do próprio interesse que vai despertando, no qual os capítulos vão construindo uma verossimilhança que não pode deixar de embutir contradições, contradições que até mesmo parte do público, indo no embalo, ajuda a encobrir, pois não pode abrir mão do sonho, por mais implausível que ele se revele.

É nessas contradições, que parte do público se recusa a ver, que Lula e os seus podem esconder o principal: que Lula traiu a confiança nele depositada ao fazer governos aderidos ao Estado de Direito Autoritário, acomodados à desigualdade (na qual, frise-se, ele não mexeu), e cuja governabilidade para o pouco que fez em compensações acomodatícias foi alcançada graças a uma corrupção tão abrangente que, aliada a outros erros, solapou até as condições políticas, jurídico-constitucionais e econômicas em que essa acomodação vinha se dando.

Como o desfecho de uma história, ao fim e ao cabo, só é bom se agrada ao público, e como o agrado do público não vem apenas do final em si, mas, sobretudo, da sensação criada nele de que tudo foi escolha sua, pois não há sensação mais sólida de que se fez justiça do que quando o desfecho tido como justo contempla os desejos do observador, por tudo isso, o desafio para o autor é esconder as contradições e plantar antes o que quer colher depois.

Ao escolher Haddad para comandar a elaboração do seu programa de governo, Lula já antecipava o, dava a dica do, desfecho pretendido. Por isso mesmo, no programa de governo coordenado por Haddad há de tudo, menos uma autocrítica por terem, como teorizou o mesmo Haddad, se acomodado às cadeiras em que, desde sempre no Brasil, o poder político e o poder econômico sentam-se a uma mesa redonda. Não há vítimas, a não ser os que não estão à mesa; há negócios.”

Por que deveria o eleitor esclarecido comprar essa história ou confiar nesse programa de governo? Só cego!

Pensando bem, nem cego. Mesmo o pior cego tem que ter é estômago de avestruz para engolir todo esse embuste.

[17/08 — Fica o Registro:

  • Atendendo a pedidos, esclareço o que me parece evidente: nas linhas acima não estou a atribuir a Lula a construção consciente de uma situação na forma de telenovela (assim como o Chacrinha, suas chacretes e seu júri não estavam deliberadamente empenhados em mimetizar, pela ordem, o general Médici, suas tropas e seu parlamento); antes pelo contrário, estou a identificar uma forma que se impõe independentemente do que se passa na cabeça do protagonista, à qual, por óbvio, não se pode ter acesso.]

NÃO HÁ CANDIDATURA TRANSFORMADORA

Carlos Novaes, 05 de agosto de 2018

Definidas as chapas para a disputa presidencial, a maioria da sociedade brasileira não tem na eleição nenhuma alternativa que abra uma perspectiva de superação da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário; pelo contrário, o que está à vista é, no máximo, uma reacomodação das forças políticas tradicionais empenhadas na luta de facções. No Brasil, a consulta à vontade da sociedade através do voto popular direto continua sendo um método democrático sequestrado à democracia para arbitrar o lugar de cada uma das facções na apropriação dos poderes de Estado.

De toda a movimentação havida desde o impeachment resultou apenas o seguinte: os três protagonistas políticos dos embates havidos entre as facções foram impedidos de exercer o protagonismo natural que a crise original lhes teria reservado: Lula, Aécio e Temer. Em condições normais, Lula, por ser quem é, seria o candidato natural do PT; Aécio, pela votação obtida em 2014, seria o candidato natural do PSDB e Temer, via golpe, seria candidato natural à reeleição. Mas os três acabaram sucumbindo à Lava Jato, embora apenas Lula esteja a sofrer uma interdição propriamente judicial (claramente arbitrária). Os outros dois foram interditados pela maioria da sociedade via Lava Jato, ainda que não tenham sofrido nenhuma condenação judicial, e isso apesar das muitas provas materiais e testemunhais existentes contra ambos. O preço para poder condenar Lula sem provas e tirá-lo da eleição acabou sendo interditar pela via propriamente política Aécio e Temer, cujo papel na eleição tornou-se marginal.

O prestígio de Lula é pessoal, não havendo no lulopetismo nenhuma liderança intermediária em condições de protagonizar o projeto – todos ali dependem exclusivamente dos votos que Lula for capaz de transferir. Ainda que, como suponho, Lula venha a transferir muito menos do que muitos apostam que conseguirá, o percentual de partida do seu candidato deverá ser suficiente para empatar com a candidatura tucana, hoje por volta dos 7%. Como no curso de todo o processo a maioria da sociedade permaneceu fiel à inércia de esperar do sistema político a solução, esse empate poderá ser suficiente para levar a campanha ao leito de rotina: uma polarização fajuta entre PT e PSDB, agora mais fajuta do que nunca.

Quem mais contribuiu para esse estado de coisas foi Ciro Gomes, que começou dando a entender que viria por fora do sistema político, mas logo tentou a mágica de ser, ao mesmo tempo, tanto o candidato da recusa da sociedade ao sistema político quanto a saída de emergência desse mesmo sistema político em busca de se safar da ira da sociedade. Primeiro, Ciro alardeou um veto ao p-MDB; depois, fez um primeiro recuo e restringiu o veto “aos ladrões do p-MDB” (interpondo um filtro incerto para definir quem é, e quem não é, ladrão ali) e, finalmente, atirou-se no valão da disputa pelo apoio do chamado Centrão, que usou as ofertas de Ciro para melhor negociar com Alckmin, seu candidato natural, herdeiro direto dos dispositivos paisanos e militares que nos foram legados pela ditadura.

Ao se obstinar em sua pseudocandidatura e não compor com Ciro, Lula precisava que o pedetista se rendesse, pois um Ciro viável dificultaria a transferência de votos que Lula pretende fazer de última hora, pois muitos desses eleitores iriam espontaneamente para Ciro, num movimento parecido ao ocorrido em 1989, quando os eleitores de Brizola migraram para Lula antes do comando do líder. A errática movimentação de Ciro gerou incerteza na opinião pública e o impediu de crescer nas pesquisas, o que facilitou o trabalho de Lula para reter seus próprios eleitores e afastar de Ciro o apoio do PSB.

Ao final da caminhada para se viabilizar por dentro do sistema político faccioso, Ciro viu as facções se fecharam contra ele. Isolado, inconfiável e estagnado nas pesquisas, restou a ele a condição de vice. Ao não aceitar esse resultado imposto por suas próprias escolhas, Ciro entra em campanha no limiar da inviabilidade, uma situação muito mais difícil do que de início seria de supor.

Nesse aspecto Marina Silva fez movimento oposto ao de Ciro: evitou qualquer negociação com as facções, persistindo na defesa de uma suposta “nova política”, não obstante o pouco que vem expondo de propostas esteja repleto de tergiversações e velharias (vamos ver o que será o seu programa de governo). A aposta de Marina está num alinhamento cego ao que entende por Lava Jato, como se a operação ainda pudesse ser tomada como o dínamo de orientação republicana que de início se apresentou, como se a Lava Jato não tivesse sido transformada num campo de batalha entre facções.

Depois de ter apoiado o golpe de Temer, Marina finge não ver, não dá tratamento público, às contradições facciosas das decisões legais das diferentes instâncias do Judiciário implicadas na Lava Jato e, só por isso, imagina poder ficar a repetir o mantra de que “a lei é para todos”, como se a aplicação da lei não estivesse claramente conturbada, não apresentasse contradições flagrantes e não estivesse enviesada contra Lula — o que faz dele uma vítima, não uma alternativa.

Fica o Registro:

  • A chapa Bolsonaro-Mourão não deixa de ser emblemática: um suposto intelectual de alta patente submetido a um subalterno hierárquico sabidamente despreparado. Sinal dos tempos.

ÚNICA SAÍDA PARA CIRO É SER VICE – DO PT OU DE MARINA

Carlos Novaes, 02 de agosto de 2018

Ao levar essa ensaboada final no banho de profissionalismo que lhe foi dado por Lula, Ciro vem falar em “desonestidade” e apontar que “eles não querem que eu seja o candidato que vai representar a renovação do campo progressista”. Como assim?! Ao aceitar as negociações com o Centrão, Ciro mergulhou de cabeça na luta bruta das facções, valorizou o que há de pior na política brasileira e escancarou o convencionalismo da sua própria candidatura, tudo isso como arremate de uma trajetória de declarações complexadas e estapafúrdias, nas quais o que não faltou foram palavrões (sobre o uso de palavrões em público e em privado já discorri aqui).

Renovar o campo progressista requer uma ação de fora para dentro, não de dentro para fora, muito menos se misturando ao que há de pior no campo anti-progressista! Quando falo “de fora para dentro” não me refiro apenas a de fora do autointitulado campo progressista, mas especialmente de fora do Estado, de fora da luta de facções, ou seja, uma nova alternativa progressista terá de sair da sociedade contra o Estado, da vida política real contra as facções políticas. O chamado campo progressista que atua na sustentação do Estado de Direito Autoritário é tão faccioso quanto os outros “campos” que ali com ele se digladiam em busca de poder para fazer dinheiro. Uma renovação dele terá de sair da experiência democrática que a maioria da sociedade brasileira tem contraposto a esse Estado, não de um remanejamento das alianças entre as facções estatais que dependem da chancela eleitoral para continuarem o seu joguinho.

De início, Ciro pode ter dado a impressão de que havia compreendido a situação e de que estava a apostar na sociedade. A pouco e pouco foi se enrolando em seus próprios complexos e limitações, passou a desprezar a opinião pública média, exercendo contra ela uma necessidade de autoafirmação que, se mesmo aos 60 anos de idade não conseguiu superar, deveria ter dirigido contra o sistema político. Mas não, ficou a fazer declarações inconvenientes, estapafúrdias e grosseiras, que nada somavam, ao mesmo tempo em que se abismava no jogo político convencional do toma lá da cá, no qual rejeitou de boca os “ladrões do p-MDB”, para buscar de fato o apoio dos “ladrões do Centrão”, a quem ajudou a vender mais caro o apoio a Alckmin.

Se ainda lhe sobrou um mínimo de racionalidade deveria estar claro que, ao optar pela adesão à luta das facções, a saída é ser vice do PT, o que tornaria a chapa apoiada por Lula ainda mais competitiva. Se suas idiossincrasias emocionais lhe turvarem a mente e o levarem a recusar a oferta de Lula, ou se seu alegado pendor progressista finalmente predominar, talvez reste clareza suficiente para entender que se Marina o aceitasse como vice haveria uma chance de se formar uma terceira via, programaticamente frágil, politicamente fraquíssima, mas com apelo eleitoral efetivo e não faccioso para a disputa da presidência da República, solução que poderia levar a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário a um patamar tão periclitante quanto auspicioso.

Fica o Registro:

  • Em comentário no UOL, o professor Romano Romano classifica a operação Lula-PSB que isolou Ciro como “desastrada”, pois enfraqueceria o próprio campo da “centro-esquerda”, ou progressista, e reforçaria a estrutura oligárquica dos partidos. Ora, esse raciocínio desconsidera que mais do que oligárquicos, esses partidos estão empenhados em uma luta de facções. Uma luta assim já não leva em conta esquerda, centro ou direita, está muito além disso, como mostra, entre outras evidências, a disposição de Lula de se aliar não só a notórios corruptos como a facções que participaram do golpe.
  • A disputa entre partidos é fachada para a luta de facções, pois o que os líderes facciosos almejam é reconfigurar as facções continuamente, sempre na busca de mais poder de Estado para fazer dinheiro — nesse processo, os partidos oligárquicos são arrastados a alterarem suas alianças, que nada têm de programáticas. As minorias do PT pagam mais uma vez ( e merecidamente!!) o preço por se manterem fiéis a essa máquina tão formidável quanto infernal que é o lulopetismo. Bem feito!

RESUMO DA ÓPERA

AVISO: no dia 21 de julho publiquei aqui no blog um artigo com o título RESUMO DA ÓPERA. Horas depois, houve um incidente no DataCenter que hospeda o provedor deste blog e ele saiu do ar. A situação ainda não foi inteiramente normalizada, mas já é possível algum acesso. Não consegui, porém, recuperar aquele post publicado no dia da pane. Abaixo, publico uma outra versão do texto, feita com base num rascunho que fora salvo. 24/07/2018.

Carlos Novaes, 21 de julho de 2018

Estamos em vésperas de eleição, o país não produziu uma alternativa crível para a transformação política de que precisa, mas as candidaturas manjadas que estão aí dão a impressão de que tudo pode acontecer. Como é possível que o marasmo possa carregar tanta incerteza?

É simples: dado o abismo entre a maioria da sociedade e o Estado ocupado e disputado pelas facções estatais, abismo esse que é a própria crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, o jogo político está a ser feito apenas dentro do Estado conflagrado, enquanto a sociedade assiste para ver no que vai dar.

Tudo pode acontecer precisamente porque as facções não têm compromisso, sequer laços minimamente consistentes, com a maioria da sociedade. Se houvessem compromissos ou laços, o jogo seria mais previsível porque a organicidade da política, seu caráter programático ou ideológico, vem das relações que a política constrói na sociedade para orientar a disputa pelo poder de Estado.

Como não há essas relações, como os políticos profissionais sequestraram a política, como os partidos são meras fachadas para as facções conflagradas entre si em busca de reunir poder para fazer dinheiro, não há diferenças programáticas ou ideológicas para valer, que servissem de baliza para as disputas entre eles – a disputa por poder pelo dinheiro iguala a todos.

O resultado mais visível é esse aparente paradoxo: numa eleição presidencial e congressual que deveria ser decisiva, pois a crise é imensa, a sociedade está à margem do processo político e o jogo dos políticos profissionais se fez totalmente imprevisível, pois dos arranjos entre eles pode sair qualquer tipo de variação – e isso não porque eles sejam diferentes, mas porque eles são parecidíssimos: qualquer combinação é possível. A eleição só é previsível num aspecto: ela não vai produzir uma saída para o país.

Uma evidência de que a eleição não produzirá uma saída para o país, uma evidência de que, pelo contrário, ela produzirá no máximo uma saída para as facções conflagradas, está no papel central que o chamado Centrão vem tendo no processo. O Centrão é um amontoado incerto de partidos que faz um movimento pendular faccioso entre os dois dispositivos que a Nova República herdou da ditadura paisano-militar, o DEM (ex-ARENA/PDS/PFL) e o p-MDB. Por isso, ele tanto pôde ser “liderado” por Cunha, como agora pode ser “liderado” por Maia.

Na época da ditadura, só eram permitidos dois partidos, a ARENA e o MDB, que para acomodar suas disputas internas tinham sublegendas, isto é, facções internas, que podiam disputar as eleições umas contra as outras. Com a chamada redemocratização, essas sublegendas foram se reconfigurando e dando origem a vários partidos, que trouxeram os mesmos comportamentos que já tinham sob a ditadura. Na mesma redemocratização, a maioria da sociedade produziu duas alternativas que a levassem para longe da ditadura, o PSDB e o PT, a foi a esses partidos que ela favoreceu, pois confiava neles.

Como a transição foi lenta, gradual e segura, os antigos dispositivos paisanos da ditadura (PDS/PFL/DEM e p-MDB) continuaram funcionando, senhores supremos da política miúda para negócios graúdos. É por isso que o Centrão oscila entre ser liderado pelo DEM e pelo p-MDB, a depender das vantagens oferecidas, todos se revezando como o marisco da vez no casco do Estado de Direito Autoritário em cujo topo vieram se revezando, por sua vez, os dois partidos aos quais a maioria da sociedade imprudente e comodamente delegara o seu destino: o PSDB e o PT.

Ou seja, esses trinta anos da chamada redemocratização foi o tempo necessário para que as velhas forças cooptassem, corroessem e, por fim, descartassem os dois partidos que a sociedade havia favorecido na busca pela consolidação democrática num Estado de Direito Democrático.

Ficamos atolados num Estado de Direito Autoritário porque os partidos saídos dos dispositivos paisanos da ditadura jamais deixaram de manejar o processo político, negociando a chamada governabilidade na base de vantagens arrancadas do Executivo federal e do manejo de postos de mando nos entes federados. Essas vantagens dependem da ocupação dos cargos de confiança e dos benefícios que conseguem do orçamento federal.

É esse arranjo que está na base do nosso presidencialismo de coalizão, uma coalizão que oscila conforme os cálculos que esses partidos fazem acerca do que podem receber – essa é a base do nosso sistema, celebrado pela nossa ciência política acadêmica como um modelo de bom funcionamento do nosso multipartidarismo.

Para essa gente, o fato de dos quatro últimos presidentes eleitos, dois terem sofrido impeachment pela ação desses fisiológicos insurgidos (Collor e Dilma) e os outros dois (FHC e Lula) terem traído completamente seus programas de mudança e/ou transformação para se acomodarem a esse mesmo fisiologismo regado a corrupção, que condena o país ao atraso e o povo ao sofrimento, são prova inquestionável de que o sistema político brasileiro é sólido!

Eles celebram como um caso de sucesso democrático o fato de a eleição não fazer diferença, pois o resultado é sempre o mesmo: um acerto entre os políticos que lhes permite desfrutar do poder para fazer dinheiro. Acredite, leitor: tem muita gente que fez e faz carreira acadêmica no Brasil sustentando essa tese esdrúxula.

Sabe como eles provam isso? Eles pegam os números saídos das votações congressuais (fora as dos impeachments, claro) e mostram como os parlamentares são obedientes ao que o presidente da República enviou ao Congresso. Como os números se mostram semelhantes aos de outros países, eles imaginam ter provado que nosso sistema funciona.

Ou seja, para esses cientistas políticos, não importa como a linguiça é feita, seus custos ou se ela provoca ou não indigestão em quem a consome, o que importa é que o jeitão dela se parece muito com a linguiça estrangeira – é mais ou menos como o LamborgUNO, o Lamborghini feito por um brasileiro através da transformação habilidosa de um Fiat Uno…ficou igualzinho…

Para essa ciência política, pouco importa se o voto do congressista favorável ao presidente tem as seguintes origens:

– o presidente consultou antes, e envia o que sabe que agrada ao parlamentar (como a maioria dos parlamentares é eleita através de esquemas eleitorais e de interesse que vêm desde a ditadura, imagine o que agrada a eles…);

– o presidente ofereceu ao parlamentar cargos, obras ou verbas, e recebe o voto em troca — isso se não estiver pedindo demais (e pedir demais é pedir qualquer coisa que, por exemplo, enfrente a desigualdade ou provoque alterações políticas que dificultem a reeleição do parlamentar…);

– o presidente deu ao parlamentar, direta ou indiretamente, dinheiro saído da corrupção e recebe de volta a governabilidade (uma governabilidade que dura enquanto não surja uma crise maior do que o arranjo pode digerir, o que sinaliza que é hora da manobra do impeachment…).

Num sistema assim, só não obtém governabilidade quem for inepto, certo? Por isso, Collor e Dilma caíram. A diferença é que na queda de Collor ainda haviam esperanças em PSDB e PT; já a queda de Dilma arrastou para a vala comum PSDB e PT. No pós-Collor a maioria da sociedade se acomodou à expectativa de consolidar a democracia num Estado de Direito Democrático pelo protagonismo de PSDB e PT; no pós-Dilma a maioria da sociedade vive a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário a que PSDB e PT se acomodaram para poderem brincar de protagonismo.

Com isso, chegamos em frangalhos a uma eleição presidencial em que o protagonista é o Centrão – o cachorro alcançou o próprio rabo.

Veja bem, leitor: o Centrão era uma arregimentação confinada ao jogo intra-muros, longe do eleitorado. O Centrão nunca foi uma força propriamente eleitoral, foi sempre uma fenômeno do jogo pós-eleitoral, do jogo que se faz no Congresso depois das eleições, um jogo destinado a submeter aos interesses congressuais atrasados o que quer que tenha saído da escolha da maioria da sociedade na eleição presidencial.

A crise é de tal ordem, a desorientação da maioria da sociedade é tamanha, que o Centrão está a acreditar que pode fazer a encomenda desde já! Ou seja, para que esperar a trabalheira congressual se podem obter desde já o presidente que lhes vai atender? Com a ruína de PSDB e PT o facciosismo deixou o Estado e busca colonizar a própria dinâmica pela mudança que, mal ou bem, as eleições presidenciais vieram significando no curso desses trinta últimos anos.

Já não contentes em roer a carga, os ratos subiram do porão para o convés e querem assumir diretamente o comando do navio, numa consagração do “parlamentarismo de ocasião” enjambrado por Temer, cuja “exitosa” governabilidade exibe números de fazer inveja a Obamas e Trumps.

Pelo andar da carruagem, nossos cientistas políticos de carreira vão obter números consagradores para suas teorias novidadeiras — pelo menos até que a crise recrudesça.

Fica o Registro:

  • Ciro e Alckmin se mostraram faces da mesma moeda, ambos saídos do que outrora foi o PSDB e, por isso mesmo, ambos disputando o apoio do Centrão “liderado” pelo DEM, inteiramente imersos na luta de facções, que pouco caso faz da maioria da sociedade.
  • Lula, que também queria o apoio do Centrão, alardeia compromisso com bandeiras há muito esquecidas para obter coesão de incautos à esquerda. Ao mesmo tempo, fica enviando recados aos de cima, como se ainda fosse necessário sublinhar que não é bem assim…

FACCIOSISMO FEZ DE LULA UM PRESO POLÍTICO

Carlos Novaes, 08 de julho de 2018

[Com acréscimos em 09/07 e em 10/07, em Fica o Registro]

Como já dito, detalhado e explicado: embora não tenha nenhuma simpatia política por Lula, entendo que a condenação que o levou à prisão foi exarada sem provas. A prisão dele foi uma decorrência não do funcionamento da Justiça, mas do fato de que Lula chefia uma facção estatal que foi desalojada da condição de protagonista no exercício faccioso dos poderes institucionais pela ação convergente das facções concorrentes no âmbito desse teatro de operações em que a Lava Jato se transformou faz tempo. Por isso mesmo, todo o esforço de Lula e dos lulopetistas que sabem o que estão fazendo está voltado não para transformar o Brasil, mas para voltarem à condição de protagonistas no exercício do mando em nosso Estado de Direito Autoritário, como ficou claro nas circunstâncias em que se deu a prisão do petista, discutidas aqui e aqui.

Diante desse esforço do lulopetismo, as facções adversárias têm reações diferentes, conforme tenham mais ou menos razões para temer que Lula tenha êxito. As facções mais orientadas pelos interesses eleitorais tucanos atuam de modo a manter Lula na prisão, temendo mais os prejuízos eleitorais de uma volta dele ao cenário do que os prejuízos evidentes infligidos ao país por uma prisão assim arbitrária. As facções que sabem poder compor eleitoralmente com Lula, nas quais o p-MDB tem papel articulador, têm dado sinais crescentes, embora não unânimes, de que aceitariam um rearranjo em torno do petista.

Girando para além do eixo propriamente eleitoral, braços mais ajuizados das facções estatais estão cientes não apenas de que a eleição programada, tenha o resultado que tenha, não resolverá a crise de legitimação do Estado, mas também de que a situação de Lula fragiliza ainda mais o exercício faccioso dos poderes institucionais. E isso por duas razões: primeiro, Lula preso mantém na ordem do dia a exigência de que outros implicados também sejam presos, o que impede a reestabilização do arranjo mais geral; segundo, a força do prestígio de Lula, revigorada pela prisão sem provas, torna impossível simular para a sociedade, sem a participação do petista, que a crise de legitimação do Estado foi superada.

Em outras palavras, para os facciosos que querem manter o status quo e têm juízo o impeachment deu tão errado que o ideal, agora, seria poder voltar à situação pré-eleitoral de 2014: tentar a sorte optando por se alinhar contra ou ao lado de Lula, buscando os arranjos de poder que a escolha implicar (tal como teria sido possível se Lula tivesse assumido a Casa Civil sob Dilma). São essas circunstâncias complexas e os cálculos não menos complexos delas decorrentes que explicam sejam as decisões em série da maioria facciosa da segunda turma do STF, determinada a tamponar as vias transformadoras que foram abertas contra o autoritarismo do Estado de direito brasileiro; sejam as movimentações dos militares, que não estão dispostos a “matar os 30 mil” do Bolsonaro para manter vantagens que podem conservar se repavimentarem as pontes com Lula; seja a concatenação facciosa escancarada entre Fachin, TRF-4 e Moro, que insistem em manter um programa máximo unilateral que torna uma piada de mau gosto o que quer que se possa entender com uma causa republicana.

A movimentação ocorrida neste domingo em torno do habeas corpus de Lula deve ser examinada à luz do entendimento exposto acima. A frenética concatenação entre Moro e o TRF-4 escancara uma articulação facciosa que já fora possível perceber quando Fachin recebeu celeremente do mesmo TRF-4, como que por encomenda, a decisão que lhe permitiu evitar a votação de um pedido de soltura de Lula na mesma segunda Turma. Como a decisão de soltar Lula também foi facciosa, a conflagração das facções estatais atingiu um ponto que torna ridículo que alguém ainda fale em Estado democrático de direito, como fazem as facções em disputa, cada uma reivindicando sua própria causa como um resgate ou afirmação dessa quimera.

Como quer que você se alinhe, leitor, o fato é que hoje Lula obteve um triunfo inegável: viu explicitar-se para o observador recalcitrante a sua condição de preso político. A crise de legitimação só faz crescer, o que apequena a eleição e deixa cada vez mais clara a fraqueza dos candidatos à presidência.

Em 09/07 — Fica o Registro:

  • O tom predominante do que hoje aparece na mídia sobre esse episódio do habeas corpus do Lula é o de que houve falha jurídica, trapalhada, palhaçada, atropelo de hierarquia, bizarrice, partidarismo jurídico e por aí vai:  puro escapismo de quem não vê ou finge não ver a gravidade do que se passa no Estado brasileiro. Todas essas “análises” tem em comum o fato de se concentrarem improdutivamente na conduta particular dos personagens envolvidos (e, até, no caráter deles!), como se a enormidade do que se passa pudesse ser explicada pelas escolhas desses indivíduos, como se fosse possível não estabelecer conexão direta entre esse episódio e todas as outras decisões mais recentes no STF pró e contra Lula e outros réus e suspeitos da Lava Jato, ou mesmo as mais recentes decisões pestilentas do Congresso sobre agrotóxicos, ou ainda a manutenção de vantagens estatais para facções estatais, como o auxílio-moradia aos juízes — a crise também é crise de legitimação ali onde as facções enxergam oportunidades, leitor. Enfim, olhados em seu conjunto, esses embates nada têm de personalizados e deixam claro que está a ficar a cada dia mais aguda a guerra de facções no curso da crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário — como já foi dito há tempos, só na rua o Brasil tomará o rumo de um Estado de Direito Democrático.
  • 10/07 — Mais claro, nem por encomenda: a imprensa traz hoje relato detalhado de como deputados do PT, inclusive à revelia da defesa técnica de Lula, agiram para exibir deliberadamente a guerra de facções estatais em que se movem os lulopetistas e seus adversários, justificando inteiramente o texto publicado aqui quando Lula se entregou sem se fazer prender: Lula dobrou sua aposta na guerra de facções. Tal como as outras facções, os lulopetistas tentam manejar a opinião pública que já é, e que pode vir a ser, favorável à causa deles não para tirá-la da inércia, mas apenas para aumentar-lhes o cacife tanto na guerra faccional em si quanto nessa eleição ridícula, voltada a simular a superação da crise de legitimação que engolfou a todas as facções. Como é próprio de situações assim agônicas, em que a marca dos protagonistas é a cegueira para o abismo em cuja borda estão a dançar, essas facções estatais não param de ver oportunidades ali onde abrem portas para o caos: as facções no Judiciário (judicação) querem incorporar o auxílio-moradia aos salários; as facções nos presídios (violação) se mostram mais sangrentas do que nunca em sua própria luta por hegemonia; as facções no Executivo (gestão) prevaricam na selva e na cidade em troca de vantagens imediatas, pouco se lixando para o futuro (em que já estarão mortos); e as facções no Congresso (representação) têm aprovado toda sorte de legislação retrógrada e nociva, ao mesmo tempo em que se redistribuem entre as candidaturas presidenciais, garantindo interlocutores seguros por toda parte para, naturalmente, voltarem a se acertar depois das eleições no intuito de mostrar quem manda ao novo presidente da “República”, que docemente constrangido aceitará a canga — a menos que a maioria da sociedade se mexa.

SOCIEDADE DEMOCRÁTICA CONTRA ESTADO DE DIREITO AUTORITÁRIO

Carlos Novaes, 09 de junho de 2018 – 21:59H

[com acréscimos em Fica o Registro, em 13/06]

 

Em junho de 2013 o estopim para que a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário ganhasse as ruas foi o aumento de R$ 0,20 no transporte de gente; em junho de 2018 estamos às voltas com uma redução de R$ 0,46 para o transporte de cargas: assim como os 0,20 não resolveram, os 0,46 também não resolverão — é que o veículo que transporta a equação que há trinta anos não fecha precisa de uma troca de eixos, leitor, e em movimento.

Em 1989, em pleno impulso democrático para deixar a ditadura para trás, realizamos eleições presidenciais solteiras com ampla representação das motivações e interesses presentes na sociedade brasileira de então; em 2018, em plena crise de legitimação do Estado de direito enjambrado em 1989, realizaremos, além de eleições presidenciais, eleições para todos os outros cargos eletivos estaduais e nacionais. Não obstante essa profusão de cargos em disputa, não há em 2018 nada que se compare ao intenso engajamento eleitoral havido para a disputa de um único cargo em 1989 – é que os políticos profissionais que em 1989 arremedavam representar as preferências e interesses saídos do pendor democrático da maioria da sociedade estão hoje entrincheirados em facções na defesa de preferências e interesses autoritariamente contrários ao pendor democrático da maioria da sociedade (eles levaram 30 anos se unindo e agora atuam afinados, ainda que disputando uns contra os outros os postos de mando, estejam em palácio ou em presídio).

Produziu-se assim uma situação a que os louvadores de um suposto “Estado democrático de direito” a ser preservado estão a chamar de paradoxo: uma sociedade que vive a crise da sua democracia e precisa de mudança para ir adiante se mostra desinteressada de uma eleição geral a se realizar daqui a menos de seis meses. Mas não há paradoxo algum, pois não só a crise não é da democracia (que vai muito bem, obrigado), mas do Estado de Direito Autoritário, como também a maioria da sociedade está a se dar conta de que o buraco real é muito mais embaixo do que a boca virtual da urna: mais uma eleição no formato da política tradicional não nos serve, pois nesse formato a política vai continuar a ser essa engenhoca com o eixo das facções estatais a girar na vertical (feito moenda), e o nosso, o da sociedade, a rodar na horizontal (empurrado sem proveito comum), nos condenando a continuar a marchar em círculos cada vez mais torturantes – sendo “de legitimação”, a crise é muito maior do que uma eleição no Estado ilegítimo pode dar conta! Nem sobre os trilhos da bitola militar esse veículo esdrúxulo poderá ir adiante.

A equação que não fecha (dimensão social, política e econômica da crise) e o facciosismo político conflagrado (dimensão estatal da crise) foram sendo armados no curso desses trinta anos em que, de um lado, a maioria da sociedade brasileira tirou consequências do seu pendor democrático e, de outro lado, a minoria que se adonou do Estado de direito tirou proveito do exercício faccioso dos poderes institucionais. Correndo por baixo desses dois movimentos opostos (um vindo de baixo, da sociedade; outro vindo de cima, do Estado), mas dando solda contraditória a eles, a desigualdade deu fundamento ao que só poderia desembocar nessa crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário: à vivacidade de luta democrática da maioria da sociedade contra os sofrimentos impostos pela desigualdade correspondeu o apego crescente das facções estatais às regalias oferecidas pela mesma desigualdade – embaixo se lutava por direitos democráticos (todo o rol conhecido: educação, saúde, moradia, reconhecimento, emprego, terra, expressão de si etc.); de cima, com a força, se negavam à maioria os seus direitos, e, com a caneta, se defendiam privilégios e roubo (salários acima do teto, auxílios, bonificações, corrupção, previdência própria etc.).

Enquanto a desigualdade corria (e corroía) por baixo, adejava por cima a fantasia vampira do “Estado democrático de direito”, pela qual se tentou precisamente esconder esse abismo entre a sofrida disposição de luta dos de baixo e a regalada locupletação bruta dos de cima. É a esse Estado imaginário que querem que a gente defenda nessa hora tão pouco propensa à fantasia — como disse Riobaldo, “quem mói no aspro não fantaseia”.

Ilusão chama fantasia. Uma fantasia nociva do momento se parece muito com uma outra, de há não muito tempo: em junho de 2013, se disse fantasiosamente que o movimento contra o aumento das tarifas do transporte de gente se desdobrou daquele modo em razão da fraqueza do governo Dilma; em junho de 2018 estão a dizer que o movimento em favor do aumento das tarifas do transporte de carga está a se desdobrar desse jeito em razão da fraqueza do governo Temer. Não. Ambos os movimentos são expressão de algo que não apenas está além, mas explica a fraqueza desses governos: a crise de legitimação de um Estado de Direito Autoritário em profunda incongruência com a dinâmica democrática da maioria da sociedade que ele oprime para manter a desigualdade que a infelicita. Veja bem, leitor, essa incongruência está muito clara: num país de população ainda moça, com mais de 150 milhões de eleitores, tentaram manter uma desigualdade de burro de carga junto com liberdades de opinião, imprensa, manifestação, organização e voto!!

Fica claro, portanto, que houve nesses 30 anos dois movimentos contrapostos saídos da luta contra a ditadura paisano-militar: um dinâmico, rico e maravilhoso empuxe por direitos vindo da sociedade (que vai da parada gay aos sem-terra, sem-teto, sem-nada, passando por toda sorte de demandas econômicas, comportamentais, sociais, ambientais, étnicas e culturais); e uma reação resiliente, engenhosa, corrupta e brutal vinda do Estado (que vai do atrelamento da economia ao Mercado à matança dos pobres nas favelas, passando por toda sorte de arbitrariedades saídas do exercício faccioso dos poderes institucionais, exercício este que também serviu para cooptar e degenerar as duas forças políticas em que a sociedade havia confiado justamente para se contrapor a esse estado de coisas: PSDB e PT).

Como é que alguém pode dizer que é a democracia que está em crise, que um quimérico Estado democrático de direito está ameaçado?! Não. Encarar a crise desse modo é desviar as energias para um combate errado e implausível, é pretender que as pessoas se mobilizem para salvar esse Estado, que elas, finalmente, estão em vias de enxergar que é o problema, não a solução, pois até a Constituição já foi rasgada. Dizer a democracia em crise é jogar fora todo o esforço de luta feito pela sociedade no curso desses trinta anos.

Querer salvar o Estado de Direito Autoritário vai ajudar a que nossos adversários encontrem uma saída, e essa saída só poderá ser pela, aí sim, diminuição das franquias democráticas que nutrimos até aqui, pois se permitirem a continuidade do nosso dinamismo democrático eles não conseguirão a re-estabilização que pretendem com essa eleição ridícula, com esses candidatos ridículos, que há menos de seis meses para a eleição, numa hora grave dessas, comparecem a entrevistas e sabatinas para dizerem que ainda estão pensando no que propor para problemas com os quais o país está a lidar faz décadas. Tem gente que está na segunda ou terceira tentativa de chegar à presidência e ainda não deu conta de fazer um diagnóstico claro, com propostas claras, tudo está “aberto ao debate” – por que diabos deveria o eleitor incauto acreditar que farão nos próximos três meses o que não deram conta de preparar nos últimos dez anos?!

Em suma, na Nova República saída da luta contra a ditadura paisano-militar, a democracia deu certo, pois ela dependia do povo; e o Estado de direito deu errado, porque ele foi deixado nas mãos dos políticos profissionais e hierarcas. Esse Estado de direito já não dá conta de viver com essa democracia, está sem legitimidade, e as pessoas estão a se dar conta disso. Essas instituições não nos servem e os políticos e hierarcas que gravitam nelas também não, precisamos transitar para uma nova ordem institucional.

Que essa crise tenha ganho as ruas em 2013, e volte a elas em 2018 pela mesma razão não é casual. Esses movimentos tarifários remetem, ambos, diretamente, à fonte energética básica da economia e, com ela, da sociedade: o petróleo – uma riqueza mineral que é de todos e sem a qual o país não anda. Como a economia está centrada na manutenção e reiteração da desigualdade, sua fonte básica de energia não poderia deixar de, um dia, refletir as contradições acumuladas, e nos dois módulos do ir e vir: o das gentes, tão sofridas na luta por bens; e o dos bens, tão desigualmente distribuídos entre a gente. Esse dia chegou e resolver o problema está além de improvisos na boca do caixa ou na estrutura tributária. Precisamos de outra ordem econômica, com outra arrumação para o petróleo.

Assim como apoiou o movimento dos transportadores até o limite em que entre eles apareceu a demanda ditatorial, a maioria da sociedade brasileira pode ser levada a entender que chegou a hora de uma desobediência civil que exija eleições gerais constituintes sem limitações de ordem partidária, com igual oportunidade para todos, muito além da bitola estreita dessa eleição acanhada que estão a nos impor. Do contrário, a crise ressurgirá com força total depois da eleição, se não for antes…

[13/06] Fica o Registro:

  • Em artigo na Folha de hoje, Vinicius Torres Freire traduz de modo muito instrutivo a média do desespero que corre pelas redações com a situação do país, especialmente quando se leva em conta o que venho dizendo aqui sobre a crise de legitimação do Estado e o divórcio respectivo entre a guerra das facções estatais entre si e contra a maioria da sociedade. Freire aponta o que chama de “vale tudo” (sem notar que não é bem “vale tudo”: para eles, não vale dar força ao que há de republicano nas facções — contra isso eles se unem); diz que “nosso buraco é muito mais embaixo”; afirma dos políticos que a “atitude preponderante é saquear”; nos diz em “um ambiente de desagregação partidária e sociedade desorientada”… Entretanto, a despeito de todas essas constatações, nas quais o leitor deste blog pode ver aspectos da guerra de facções que caracteriza a face propriamente estatal da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, Freire fica a oscilar entre a fantasia e a desistência: ou sonha com um entendimento entre o Congresso atual e o próximo presidente, no que seria uma antecipação da governabilidade… ou entrega os pontos, se rendendo aos “defensores das trincheiras econômicas”… A desorientação de Freire é a mesma de todos os que não enxergam a crise de legitimação do Estado — não querem ver que não há a quem recorrer olhando para o alto, simples assim. Essa “antecipação da governabilidade” seria o sinal de que o  próximo presidente já estaria engolido pela lógica das facções antes mesmo da posse, arranjo que só poderia dar certo com um aprofundamento do exercício faccioso dos poderes institucionais, na linha de transpor a crise de legitimação com mais autoritarismo, não mais democracia. Uma “antecipação” dessas seria, aliás, a solução dos sonhos para os tais “defensores das trincheiras econômicas”. Quanta cegueira!
  • Em um outro artigo, também na Folha de hoje, Paula Martins, Camila Barroso e Mariana Rielli apontam minuciosamente o recrudescimento, desde junho de 2013, das ações do Estado contra o direito democrático de manifestação da sociedade. Elas demonstram que “a articulação entre Executivo, Legislativo e Judiciário se tornou mais orgânica” e constatam que “a repressão a protestos urbanos de massa – que, vale dizer, reproduz a prática corriqueira da violência estatal em espaços periféricos do país – nunca cessou”. Não obstante, as autoras não articulam esse estado de coisas tão bem descrito com o fato de que essa “coesão orgânica” se dá em meio a uma luta de facções no âmbito do mesmo Estado que vêem mais coeso. E não o fazem porque não enxergam que essa “articulação mais orgânica” do Estado contra a sociedade é uma resposta regressiva e precária, dele, à sua própria fragilidade estrutural, à sua crise de legitimação. Ou seja, a tal “coesão orgânica” é só do guichê para fora, pois para dentro é pau puro, pelo menos até que se resolva uma nova hegemonia para o exercício faccioso dos poderes institucionais. Um dia se dirá que o cavalo passou encilhado e só Carolina não viu.

A INÉRCIA TEM SENTIDOS…

Carlos Novaes, 31 de maio de 2018 – 17:38h

[com acréscimos em 01 de junho, em 02 de junho — e em 03 de junho]

Ao final do artigo de ontem acrescentei uma interpretação rápida dos números da pesquisa telefônica do DataFolha sobre a paralisação dos transportadores rodoviários de cargas – infelizmente, não disponho do banco de dados da pesquisa e, assim, estou impedido de explorar os números em sua efetiva riqueza. Não obstante, nas linhas a seguir, vou tentar desenvolver aquelas observações sumárias, ajustando-as com mais precisão (suponho) ao que venho escrevendo sobre a situação brasileira. Sigamos a passo.

Faz tempo, muito tempo, que venho apontando o curso por assim dizer paralelo entre a progressão da crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário e a inércia da maioria da sociedade que sofre desde sempre sob o exercício faccioso dos poderes institucionais desse mesmo Estado, facciosismo este que, como já expliquei aqui e em muitos outros artigos, se estende dos presídios até o palácio do Planalto, engolfando todas as instituições de Estado do país, inclusive o STF – de Marcola a Temer, de Beira-Mar a Gilmar, passando pelos bem intencionados, mas não menos facciosos, Janot, Facchin, Barroso & Cia. A conflagração é geral porque já não há solo institucional comum e o Estado democrático de direito não existe nem jamais existiu, foi uma ilusão cujo véu se rompeu quando a crueza do facciosismo, apoiada nos dispositivos paisanos e militares herdados da ditadura paisano-militar, se espraiou das favelas para os palácios e seus jardins.

Uma crise assim prolongada e escancarada pode, como estamos a ver, deixar de ser enfrentada, mas não pode deixar de ser sentida. É o que mostra a pesquisa DataFolha: 87% dos entrevistados disseram apoiar a paralisação e nada menos do que 56% entenderam que o movimento devia continuar, mesmo diante da cobertura contrária da mídia (que foi mudando de sentido segundo crescia a virulência do movimento – nunca se sabe…). Não obstante essa expressiva “adesão” de opinião, não houve engajamento, ou seja, a inércia permaneceu. Num primeiro momento, ontem, me deixei levar pela inércia das minhas próprias reflexões e tomei essa inércia da maioria da sociedade como mais um sinal da sua inconsequência: vê, mas não quer enxergar; ou, quando enxerga, não quer se dar ao trabalho de lutar. Talvez não seja bem assim, ou melhor, talvez não seja só isso.

Uma “adesão” de opinião tão maciça não decorre de uma mera solidariedade com as dificuldades dos transportadores, afinal, eles não vivem nenhuma tragédia, seus sofrimentos nada têm de inauditos, que justificassem uma solidariedade propriamente de massas, como houve. Antes pelo contrário, a adesão resultou justamente do caráter comum, generalizável, dos sofrimentos vividos por mais esse segmento da atividade laboral no país. Ou seja, ao adotarem opinião favorável ao movimento as pessoas estavam falando de si, estavam expressando o modo como sentem em suas vidas a erosão do pacto do Real, que pretendeu levar adiante um país de 200 milhões de habitantes mantendo uma desigualdade de harém sob um Estado de Direito Autoritário ao qual aderiram as duas forças traidoras saídas da luta contra essa mesma desigualdade, PT e PSDB. Como a equação não fecha, 87% apoiaram o movimento.

Temer, esse golpista mafioso, do p-MDB, claro, está na presidência, mas não governa, pois já não há governo faz tempo (e, atenção, isso não é força de expressão): a crise de legitimação do Estado chegou a um ponto em que a conflagração das facções já não permite gestão (Executivo), nem representação (Legislativo), sendo que a judicação (Judiciário) que persiste é facciosismo escancarado, como dão exemplo, entre outros, a desfaçatez deletéria de Gilmar e o voluntarismo benéfico de Barroso. Pois bem, numa situação assim, qualquer reação (esse é o termo) estatal a reivindicações da sociedade será sempre recebida como insuficiente, pois a suficiência só seria atingida com a capitulação definitiva da ordem malsã, isto é, com a superação da crise de legitimação do Estado que já não tem como acertar. É por isso que a resposta às enormes concessões de Temer aos transportadores foi de recusa – nada que ele fizesse seria bem recebido, porque não se trata da resposta, mas do que ela simboliza (a permanência da (des)ordem).

Nada mais errado, portanto, do que interpretar os 77% e os 96% de desaprovação à reação do golpista como reflexo do desprestígio do seu governo, como dizem equivocadamente hoje os próprios analistas do DataFolha. Não. A crise já está um passo adiante: já não é o governo Temer que está em questão, mas o Estado de Direito Autoritário, ainda que as pessoas não tenham clareza disso, é óbvio. Afinal, de que outra forma interpretar os 96% que entenderam que Temer demorou a responder, se a maioria absoluta (56%) acha que o movimento deve continuar, e se 87% o apoiam?! Não se pode querer maciçamente resposta rápida para dissipar movimento benéfico que se quer ver continuar! Ou seja, os números não são contraditórios se entendermos que é como se a maioria das pessoas dissesse “apoio e quero que continue porque o que interessa no movimento não é exatamente o que pedem os transportadores, mas a contestação enquanto tal”.

Primeira conclusão: 87% apoiaram o movimento porque sentem a encruzilhada do fim do pacto do Real e 56%, 77% e 96% queriam, respectivamente, a continuidade do movimento e criticaram a resposta de Temer porque estão a se dar conta, com maior ou menor clareza, de que estão imersos numa crise de Estado, numa crise de legitimação, para a qual intuem, mas não encaram, que só há saída se a sociedade se puser em movimento.

Ao não encarar a exigência de agir, ao aferrar-se à inércia, a maioria se limitou a “apoiar” o movimento, mas recusando pagar-lhe a conta (outros 87%). Coerentemente, a maioria absoluta não deixou de registrar que os mais prejudicados são “os brasileiros em geral” (56%). Considerando que a ninguém pode escapar a evidência de que resolver um movimento desse porte não pode deixar de ter custos, a recusa em “pagar a conta” não é mera irracionalidade: as pessoas estão, por via indireta, indicando que solução para o transporte de cargas no país não virá de subsídios ao diesel ou de ajustes tributários precários, ou seja, elas intuem que será necessário um rearranjo mais geral, algo que não está ao alcance deste Estado, fundado nesse pacto falido, aferrado à manutenção da desigualdade. Mais uma vez, a crise de legitimação está no limiar de vir a furo e a recusa em “pagar a conta” pode não ser só inércia.

A virulência danosa do movimento emparedou as facções estatais e a facção palaciana não obteve das facções policiais e, sobretudo, militares, a obediência que teria recebido se o Estado de Direito Autoritário estivesse em condições de fazer um uso legítimo da força. Em outras palavras, o fato de a PRF e o Exército terem pipocado, a ponto de terem assistido, ao vivo e em cores, a pura e simples manutenção de bloqueios e até a destruição de caminhões, não fala propriamente da fraqueza do governo Temer, mas da crise de legitimação do Estado: cada facção está fazendo seus próprios cálculos, pois não sabe o dia de amanhã. E é aqui que entramos no que de mais difícil apreensão houve nesse episódio.

Mesmo depois de dias de turbulência — com a imprensa (vide o Jornal Nacional) tendo deixado de flertar com o movimento pelo que viu nele de anti-Temer, e passado a combatê-lo pelo que havia nele de além-Temer – e de o governo ter feito generosas concessões, os entrevistados não hesitaram em dar preferência à negociação se o movimento continuasse: 88% disseram preferir a negociação e apenas 9% declaram preferir o uso das FFAA e da polícia.

Uma recusa tão abrangente ao uso da força não deixa de intrigar quando pensamos na deriva autoritária de parte do movimento, que foi crescentemente expondo a demanda por “intervenção militar já”. Ora, se o apoio não-ativo da maioria fosse apenas inércia, seria natural que houvesse uma adesão mais expressiva à ideia de uma ação militar, ou seja, seria de esperar que mais gente inerte aderisse aos apelos para que “alguém”, no caso, as FFAA, fizesse alguma coisa. Mas não foi assim. Como já explorado no artigo de ontem, as expectativas de sentido democrático com a eleição de outubro jogaram aqui o seu papel, mas talvez não tenha sido só isso. Talvez a maioria das pessoas não tenha apoiado mais ativamente o movimento precisamente por ter sentido seu viés autoritário – nessa leitura, o distanciamento das pessoas se deu exatamente porque elas sentiram que reforçar o movimento seria incrementar a demanda por “intervenção militar já”.

Segunda quase-conclusão: o apoio da maioria da sociedade aos transportadores de carga teria parado ali onde o movimento deles indicou a abertura de uma via autoritária para a superação da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário; situação que, a contrapelo, indica que a crise brasileira está desfalcada de liderança democrática resoluta e transformadora, que possa dirigir auspiciosamente a opinião pública, o que dá ocasião a todo tipo de oportunismo “democrático”.

Dessa perspectiva, as declarações de Bolsonaro, cujo sentido busquei agarrar já no artigo de ontem, merecem tratamento mais detido.

Ao fazer profissão de fé pela democracia, mas indicando a meta de trazer os militares de volta pelo voto, o ex-capitão explicitou um movimento estratégico que está em curso pelo menos desde que os arroubos golpistas do general Mourão foram suavemente contidos (hoje ele é candidato a deputado – vão vendo…): tal como apontado aqui e aqui, os militares descobriram, na prática, que podem voltar à situação pré-redemocratização eleitoral sem precisarem reinstaurar uma ditadura (ainda que facções minoritárias entre eles venham atuando por um golpe puro e simples).

Na verdade, eles estão sonhando com uma situação em que além de ampliarem no Congresso (representação) os contingentes paisanos com que já contam (bancada BBB, bala+boi+bíblia), poderão também alcançar a presidência da República (gestão orçamentária) através de uma marionete, o que lhes proporcionaria cada vez mais desenvoltura para atuar na cena cotidiana. Daí terem pipocado na repressão ao movimento dos transportadores e não terem embarcado na insânia da “intervenção militar já”, não obstante aproveitem o alarido boçal como banho-maria para o “prestígio dos militares” medido pelas pesquisas, “prestígio” esse que se deve antes ao conservadorismo de quem responde às pesquisas de avaliação institucional sentindo que não tem para onde correr do que a uma presumida confiança neles.

Num cenário desses, o lulopetismo não tem como escapar de ficar brincando de autoafirmação, pois não pode ver como oportunidade emancipatória a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que ele próprio ajudou a conservar segundo a mais baixa das formas de adesão ao establishment: a corrupção. De braços dados com isso, numa prova de indigência intelectual e covardia política, o restante da autointitulada esquerda fica a paparicar o líder decaído dessa traição histórica e a se pavonear como defensora de uma Constituição que já foi rasgada, revestindo essa capitulação de toda uma parafernália conceitual que já de nada serve, enquanto se descredencia como agente transformador, ficando à margem do afloramento raro de contradições que gerações de militantes jamais viveram, embora ele tenha povoado os seus melhores sonhos.

É quase desesperador, pois enquanto não há no horizonte movimento capaz de indicar uma saída não-autoritária para a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, as forças reacionárias e conservadoras contam com vários candidatos para levar a cabo um simulacro de legitimação nas eleições de outubro.

[01/06] Fica o Registro:

  • Os soldados de baixa patente que tentaram impedir o acesso de três mulheres à confeitaria Colombo que fica na área do forte de Copacabana dão um pequeno exemplo do que será a rotina do cidadão comum em caso de vitória de Bolsonaro, Alckmin ou assemelhados na eleição de outubro — qualquer um que envergue uma farda vai ser arvorar em intérprete e executor de normas estúpidas.
  • Artigo de Vladimir Safatle publicado na Folha de hoje pode parecer convergente com o que venho dizendo, e, de certa forma, é, mas há uma diferença fundamental: para Safatle, há que fomentar o sentido anti-institucional da inércia (como se fosse possível fomentar uma revolução); para mim esse seria o caminho certo da derrota e, assim, entendo que o fundamental é explorar na inércia seu sentido de criar novas instituições. Em outras palavras: Safatle raciocina de um modo que embrulha no mesmo pacote de inservíveis tanto o Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação quanto as franquias democráticas de que a sociedade brasileira ainda faz uso; para mim, separar essas duas instâncias é fundamental: quero explorar o sentido democrático da inércia no âmbito das franquias igualmente democráticas ainda existentes para superar a crise de legitimação do Estado numa perspectiva emancipatória. Dizendo o mesmo de ainda outro modo: Safatle supõe ser possível zerar a memória do que há e está disposto a correr os riscos autoritários de mais uma tentativa desse tipo; eu entendo que não há como ir adiante sem alguma memória do que há, e prefiro correr o risco de mudar menos do que gostaria, mas evitando dar o flanco ao inimigo.
  • [02/06] – O artigo de André Singer na Folha de hoje é uma pérola do besteirol covarde a que foram condenados os “teóricos” da autointitulada esquerda lulopetista depois que abandonaram a luta contra a desigualdade e aderiram ao Estado de Direito Autoritário: tal como Haddad, Singer não vê senão ameaças a um quimérico “Estado democrático de direito” em toda e qualquer movimentação social que não esteja sob o domínio das burocracias oligárquicas com as quais conviveu acriticamente no curso dos últimos 30 anos. Como se recusa a encarar que o lulopetismo é parte do entulho a ser deixado para trás, é para ele impossível enxergar alguma virtualidade emancipatória em movimentações contraditórias, cujo sentido poderia estar mais claramente em disputa (mas está) se a autointitulada esquerda brasileira não tivesse se deixado arrastar no roldão de desmoralização que atingiu o lulopetismo. Como um verdadeiro conservador, Singer viu nas incertezas do movimento “o mais perigoso vazio”, a tudo viu como conspiração e, junto com Temer, deu “graças a Deus” que tenha terminado como terminou.
  • Na mesma edição da Folha, Demétrio Magnoli, fazendo par conservador com Singer, mais uma vez mobiliza contra manifestações públicas a bobajada de sempre sobre a agressão delas ao “direito de ir e vir”. Como sabe qualquer liberal ilustrado, se esse direito estivesse em questão em obstruções circunstanciais do tráfego os engarrafamentos de nossas grandes cidades teriam de, há muito, ter se tornado matéria de nossa Corte constitucional. Enfrentando um aspecto que espertamente Singer evitou, Magnoli não vê no apoio da maioria da sociedade ao movimento senão uma forma de pensamento mágico em que uma suposta “dissociação absoluta entre causa e efeito faz parte do raciocínio”. Triste figura faz quem subestima aquele cujo desígnios não alcança, pois se é o caso de não desprezar as forças fascistas que atuaram no movimento (e é!), também não se deve classificar como irracionais as complexas escolhas que nosso povo está obrigado a fazer sozinho — por isso mesmo, quando tudo tiver dado errado, não terá sido por termos deixado de defender um presumido Estado democrático de direito, quimera que só tem servido para esconder o cotidiano exercício faccioso dos poderes institucionais contra esse mesmo povo.
  • [03/06] Francisco Bosco, em artigo publicado na Ilustríssima de hoje, dá uma prolixa volta para nos advertir de que a greve dos transportadores rodoviários de carga pode ter sentido oposto às manifestações de 2013. Chega a dar preguiça. Depois de ter feito o esforço de compadrio para comprar como boas todas as análises “amigas” da situação brasileira contemporânea (esforço no qual mistura o equivocado “pemedebismo” de Marcos Nobre e o risível “lulismo” de André Singer), Bosco vai concluir que ainda é muito cedo para avaliar junho de 2013, como se conhecer o sentido de junho de 2013 fosse um resultado intelectual definitivo, não uma tarefa prática aberta que nunca termina, pois a memória refaz o passado. Ora, o sentido de junho de 2013 sairá da capacidade que tivermos, ou não, de dar sentido emancipatório para a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que vem em curso, da qual junho de 2013 foi sintoma tanto quanto a manifestação dos transportadores acaba de sê-lo. Nessa disputa pelo sentido da crise, tem pouca valia se contrapor diretamente ao afeto antipetista, pois não só o lulopetismo deu motivo de sobra (a traição, a corrupção e seus conexos) para essa insânia como ela é uma resposta proporcional ao desfazimento da fantasia coletiva da decolagem nacional que o mesmo lulopetismo tinha encenado (também daí o ódio). Não dá para ser emancipatório e, ao mesmo tempo, se empenhar em salvar Lula e o PT — eles se tornaram definitivamente parte do problema, não da solução. Olhada com atenção, essa floreada abordagem de Bosco, assim como outras que ficam se refugiando na interpretação de junho de 2013, reflete o cagaço diante da radicalização da crise que naquela altura estava a dar apenas os seus primeiros sinais de rua — vamos perder essa parada porque nossa vanguarda bem pensante ficou defendendo o ilusório Estado democrático de direito a que se acomodou ao invés de contribuir para a generalização da compreensão de que estamos diante de uma benfazeja clássica crise de legitimação do Estado que, na outra ponta, gente como Sheherazade, Kataguri e Villas Boas quer manter em sua forma de Estado de Direito Autoritário (daí compartilharem o cagaço).

CRISE DE LEGITIMAÇÃO, INÉRCIA E ELEIÇÕES

No contexto da paralisação do transporte de cargas

Carlos Novaes, 30 de maio de 2018 — 01:13h

[com acréscimos às 13:00h]

Quem acompanha este blog está familiarizado com a articulação que vejo entre o caráter prolongado da crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário e a inércia da maioria da sociedade brasileira diante das tarefas que essa crise impõe. Quero crer que também já deixei claro que essa crise de legitimação só se resolverá se a maioria da sociedade de mexer em desobediência civil contra o Estado, ou se as facções estatais agora conflagradas lograrem resolver sua crise de hegemonia para voltar à rotina do exercício faccioso dos poderes institucionais conferidos pelo Estado de Direito Autoritário àqueles que alcançam seus postos de mando, seja por via eleitoral, seja por concurso ou nomeação. É evidente que se enveredarmos por um caminho francamente autoritário, via intervenção militar, a crise de legitimação será abolida pela entronização da própria ilegitimidade do Estado, que, então, já não será “de direito”.

De novo: a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário brasileiro vem prolongada porque nem as facções estatais conflagradas têm como encontrar por si mesmas um novo arranjo de arbitragem para a própria locupletação (pois elas já não contam com laços sociais que possam invocar umas contra as outras para, então, parar a sangria); nem a maioria da sociedade tem claro que essa dificuldade vivida pelas facções estatais é a evidência mesma de que já não há o que esperar delas para sequer um arremedo de bem comum.

O fio no qual vêm precariamente se equilibrando essa conflagração (no Estado) e essa inércia (na sociedade) é o respeito ao calendário eleitoral – um respeito que embora tenha orientação democrática e venha inflado de expectativas, não deixa de carregar uma forte dose de frustração antecipada, pois fora a horda boçalnarista, são poucos os que chegam a se entusiasmar com qualquer das outras candidaturas (o que é outra maneira de exibir a crise de legitimação: as pessoas querem algo mais, mas não sabem o que é).

Assim, tudo vem sendo adiado em nome da eleição de outubro de 2018 e qualquer ação anterior à eleição que traga a furo a crise de legitimação, seja pela via da sociedade (se uma desobediência civil generalizada emparedar a malsã rotina estatal que nos infelicita), seja pela via do Estado (se alguma facção estatal reunir a força necessária para submeter as outras), qualquer ação dessas, eu dizia, ou alterará profundamente a natureza do pleito ou simplesmente o abolirá. Alterar profundamente seria, por exemplo, realizar eleições realmente democráticas, que não nos obriguem a votar segundo as regras e candidaturas atuais; abolir o pleito seria, por exemplo, acabar com a democracia, impondo ao país mais uma ditadura paisano-militar.

Nas linhas a seguir vou tentar articular o conteúdo dos parágrafos acima com a paralisação do transporte de cargas por todo o país. Vou buscar fazer a articulação mencionada discutindo a paralisação tanto à luz da crise de legitimação do Estado, que postulo estar em curso, quanto à luz da inércia prolongada que enxergo na maioria da sociedade brasileira.

Um Estado em crise de legitimação prolongada é como um animal ferido: tenta se manter, até luta, mas a perda de sangue tanto o enfraquece sem parar como atiça os adversários (sejam eles oportunistas ou guerreiros), combinação adversa que reclama solução: ou vence, ou morre.

A paralisação do transporte de cargas tensiona ainda mais o equilíbrio precário de que falei mais acima porque o contraste entre a virulência danosa do movimento e a falta de resposta econômica ou política a ele torna o conjunto um êmbolo a aumentar a pressão da crise, mesmo que se simule uma “solução”: nem as facções estatais conflagradas estão em condições de dar resposta econômica sólida às reivindicações propriamente profissionais do movimento, nem a sociedade está em condições de apoiar ou repudiar ativamente possíveis desdobramentos propriamente políticos do mesmo movimento.

Não há como dar resposta econômica às reivindicações porque ela supõe um novo pacto, pois estamos a viver os estertores do pacto do Real, cuja clausula pétrea é a manutenção da desigualdade, ou “os ricos não podem perder” – qualquer solução no quadro do Estado atual seria um arremedo do que Temer fez e vêm daí as tergiversações dos presidenciáveis sobre como resolver o problema (repetir que o Temer é um incompetente golpista idiota não chega a ser uma alternativa). Ou seja, o aspecto propriamente econômico do movimento está, por si só, a apontar a crise de legitimação do Estado, pois para enfrentar um problema central como o transporte de carga será necessário discutir muito mais do que os preços do diesel e dos pedágios (tem gente falando que o que faltou foi competência aos arapongas da Abin…).

Em razão da erosão dos fundamentos do pacto, esse aspecto econômico reúne indevidamente, pelo lado da sociedade, sofrimentos reais e espertezas conjunturais: os caminhoneiros autônomos lutam para sobreviver; os empresários do transporte de carga fazem de seus motoristas agentes para o aumento de seus lucros – ambos viram na crise de legitimação do Estado (que eles confundem com a fraqueza do “governo Temer” a sangrar) uma deixa para agir, mas as motivações são muito diferentes e o fato de essa diferença não ser levada em conta é parte da inércia mental de quem observa os acontecimentos. É de registrar que nas entrevistas dadas às redes de TV as queixas dos caminhoneiros parados eram os preços do diesel e dos pedágios, enquanto os motoristas assalariados de empresas de transporte se queixavam do frio, da falta de comida, de banho, de roupa limpa…

Não há como tirar consequências prático-políticas imediatas do movimento precisamente porque elas exigiriam discernir e escolher lado nessas diferenças – teríamos de inscrever o movimento numa visada democrática para além dessa expectativa acomodada pela eleição. Não foi por outra razão que a “solidariedade” havida se resumiu à caridade de levar comida aos manifestantes e a vociferar nas redes sociais, duas formas de covardia política que apontam para o que há de fundamental na inércia e, por isso mesmo, dialogam com a deriva autoritária de parte do próprio movimento que investiu contra a inércia: quem leva comida e vocifera dá apoio malandro a quem está a agir, assim como quem pede intervenção militar está malandramente a querer que outro haja em seu lugar – esse é o fundamento da inércia dessa crise de legitimação: estamos a esperar que “alguém” faça alguma coisa.

Até aqui, a frustração com as candidaturas presidenciais oferecidas pelo calendário eleitoral em que a sociedade aposta as suas últimas fichas democráticas é um sinal subterrâneo de que a crise exige mais do que meramente esperar pela eleição. Não conseguimos enxergar nos candidatos alguém que possa agir em nosso nome precisamente porque identificamos sem querer ver que o tamanho e a qualidade da crise requerem nos darmos ao trabalho de criar a condições para forjar lideranças sintonizadas com a luta contra a desigualdade e pela consolidação da democracia num Estado de Direito Democrático.

Nos dois artigos mais recentes deste blog, e em resposta a leitor de um deles, foi dito que, embora o cenário seja marcado pela incerteza, não se via sinais de que o curso do calendário eleitoral pudesse ser alterado… Bem,  esse movimento dos transportadores deu concretude à incerteza da situação e deu indicação de que a crise de legitimação do Estado talvez não caiba no calendário eleitoral tal como se apresenta. Entretanto, não vi sinais de que a coisas pudessem ir na direção de uma crítica ao Estado de Direito Autoritário, pelo contrário (até porque, em geral, o caminhoneiro, do ponto de vista político, não é senão um taxista de grande porte…).

Por outro lado, aqueles que se manifestaram contra as reivindicações autoritárias o fizeram de um modo que fortalece a ilusão de que vivemos sob um Estado democrático de direito: ficaram, como Barroso, do STF, a defender a democracia, “o feito da sua geração”, como se não houvesse crise de legitimação do Estado. Até Bolsonaro fez profissão de fé na democracia, dizendo que “se [o poder militar] tiver de voltar um dia, que volte pelo voto”. Esse é o perigo que o ex-capitão defensor de torturadores representa: resolver a crise de legitimação do Estado com a instauração, pelo voto, de um renovado Estado de Direito Autoritário com hegemonia da facção militar, num reforço sem paralelo do exercício faccioso dos poderes institucionais, mas com democracia eleitoral.

Como já disse em outro artigo: não devemos confundir a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário com a confiança na democracia, afinal, duvidar se vai haver eleições é duvidar do Estado de direito como garantidor do calendário eleitoral (fronteira última de sua relação com a democracia), não da democracia como forma de escolher alternativas para arbitrar conflitos no âmbito da sociedade. As dúvidas que temos sobre o respeito ao calendário eleitoral advém das incertezas da guerra de facções estatais, onde há até insubordinação militar, não das diferenças de interesse existentes na sociedade.

Tomado em seu conjunto, o estado atual da crise está a indicar que, quando muito, a inércia nos empurrará para o realismo de uma polarização eleitoral entre, de um lado, as candidaturas dos que pretendem uma reconfiguração do Estado de Direito Autoritário e, de outro, quem tem compromisso com a luta contra a desigualdade e por um Estado de Direito Democrático — essa regressão medonha terá sido o legado dos trinta anos de um presumido Estado democrático de direito em que PT e PSDB protagonizaram uma polarização fajuta enquanto soerguiam os dispositivos paisanos da ditadura (p-MDB e DEM). Logo saberemos.

Fica o Registro:

  • Foi divertido ver os defensores do livre mercado, do Estado mínimo, das privatizações, atacarem a Petrobrás (por sua conduta rigorosamente empresarial, de mercado, na definição dos preços dos seus produtos) exigindo providências do Estado contra a estatal que, não obstante, querem privatizar!
  • A reivindicação de zerar impostos sobre combustíveis diz muito sobre a junção de ignorância com descompromisso com o bem comum.
  • [13:00h]  Acabo de ler no UOL resultado de pesquisa telefônica realizada pelo DataFolha. Nada de surpreendente: esmagadora maioria (87%) apóia a paralisação (sente a crise de legitimação do Estado), maioria absoluta (56%) apóia a continuidade do movimento (percebe que há na manifestação um caminho para enfrentar a crise), mas outra maioria esmagadora (87%) se recusa a pagar a conta (se mantém inerte diante das tarefas impostas pela crise), sendo que, como não poderia deixar de ser, 77% desaprovam a condução que Temer deu ao enfrentamento do problema (qualquer governo está aquém de dar resposta convincente para uma crise de legitimação do Estado que finge governar); finalmente, vale registrar que metade dos entrevistados alterou sua rotina em razão do movimento e outra metade diz sequer tê-la alterado. Em suma, o movimento foi um espasmo da crise no sentido de romper a inércia, não o fez, mas deu materialidade às incertezas e, com isso, tornou mais perceptível o contraste entre o tamanho da crise (afinal, é uma crise de legitimação do Estado) e as alternativas oferecidas pela forma e pelo cardápio da eleição de outubro (forma e cardápio típicos de uma eleição de rotina, sem crise).
  • Em entrevista à Folha de hoje, o general Heleno, ex-comandante das tropas da intervenção no Haiti, vê semelhanças entre a situação atual e a de 1964, se diz lisonjeado com as solicitações de intervenção militar, mas faz profissão de fé no respeito ao calendário eleitoral, dizendo da formação do oficialato. Bem, todos sabemos o que vale esse padrão de formação quando a tropa se inquieta na direção contrária a ele. Esse é um dos riscos que corremos: a tropa resolver agir na direção dos clamores saídos da inércia da sociedade inconsequente.

IRRACIONALIDADE POLÍTICA

Carlos Novaes, 12 de maio de 2018

[com acréscimo em 15/05]

Em artigos recentes, tratei da situação de Lula em três passos:

primeiro, explorei o que ainda havia de vivo na ambivalência da sua liderança: de um lado, o Lula que ainda simboliza para muitos uma reorientação da política no sentido dos mais fracos (razão de seus altos índices de intenções de votos, ou até do sentimento de injustiça que sua condenação traz, por exemplo); de outro, o Lula como uma das peças centrais da luta de facções que caracteriza a crise de legitimação do nosso Estado de Direito Autoritário (razão dos votos para livrá-lo da prisão no STF, com clara simpatia de Temer&Cia, por exemplo);

segundo, tratei dos sinais de que Lula já se fechara em si mesmo: jogou com a solidariedade popular para se cacifar para a aposta que realmente faz, a luta de facções estatais, de onde espera que venha uma saída para si, pois jamais apostou para valer na mobilização dos de baixo, como seus oitos anos na presidência deixaram claro para quem ainda tinha alguma dúvida;

terceiro, apontei que, diante das circunstâncias, a única saída politicamente racional para Lula é apoiar Ciro, com Haddad de vice.

Nos últimos dias, porém, Lula deu sinais de que, ao invés de buscar a composição com Ciro, vai insistir em se arrastar como pseudo-candidato. Nas próximas linhas, vou discutir a irracionalidade dessa escolha de Lula à luz tanto de situações anteriores vividas por ele quanto da complexidade da situação brasileira atual.

Apontar o quanto Lula pode ser irracional não é inédito, pois a irracionalidade dele já apareceu com força quando escolheu Dilma para sucedê-lo e, depois, quando permitiu que ela tentasse a reeleição – e não estou a dizer isso só agora. Em dois artigos escritos na passagem de 2008 para 2009, apontei as limitações e riscos que via na escolha de Dilma:

A preferência de Lula [por Dilma] decorre de duas limitações: da natureza instrumental do vínculo dele com o PT e, dela, de sua inclinação por substituir o petismo pelo lulismo; e da tendência, pode-se dizer natural, de ver a si mesmo como o limite a que a esquerda brasileira pode atingir.

Lula arma para o Brasil experimento ainda mais precário [do que Putin fizera na Rússia] do ponto de vista da rotina institucional: se entregar a faixa presidencial a quem deseja [Dilma], Lula abrirá a caixa de Pandora onde espremeu o p-MDB e a burocracia petista – que vêm aceitando a compressão da mola e a tudo suportam no antegozo de que o dia de amanhã lhes pertence – mergulhando o país num vórtice que engolirá o próprio Lula.

Mais adiante, em meados de 2013, quando ainda não ficara claro que Lula deixaria que Dilma concorresse à reeleição, dobrando sua aposta na irracionalidade, ponderei que:

O que impediria  Lula de ser candidato a presidente em 2014 é sua recusa pessoal a entrar na disputa, situação que, entre outras coisas, expõe a fraqueza de Dilma como eventual candidata: ela jamais teve, tem ou teria qualquer condição de impedir uma candidatura de Lula em substituição à sua própria. […]. …nada há de sólido no caminho de Lula para ser candidato a presidente em 2014, salvo ele mesmo;

se […] Lula insistir em pedir votos não para si, mas para Dilma; só numa situação assim, propícia à irracionalidade, e plena dela, com a ordem política de ponta cabeça, é que Serra poderia sonhar com uma remotíssima chance de chegar à presidência.

As coisas se passaram como sabemos e chegamos à eleição presidencial de 2018 com Lula na cadeia. Ao amarrar o que resta do PT às grades da sua cela, Lula leva ao ápice a natureza instrumental da sua relação com o partido, pois depois de tê-lo degradado a instrumento político seu (em 2009), agora está a impedir que o partido faça qualquer política, proferindo a sentença de morte: “nem comigo, nem sem mim”. Ao se recusar a liderar o lulopetismo na direção de uma candidatura viável, Lula leva até o fim a ideia esdrúxula de que ele é o máximo a que a autointitulada esquerda pode aspirar, fazendo da própria prisão a negação da política para os outros – precisamente o contrário do que deveria fazer, se estivesse preocupado com algo além da própria sorte. Lula só pode se dar ao luxo de ser irracional porque o PT se entregou faz tempo.

Depois de aceitarem sacrificar a diversificada “sociedade civil petista” comprometida com a luta contra a desigualdade para alcançarem o poder com a solda precária entre o carisma e a máquina já descompromissados com aquela luta, os maiorais do PT sucumbiram à dimensão populista do carisma do seu líder e hoje se agarram a um lulopetismo que é menos do que um peronismo. Assim, depois de mais de trinta anos, e embora tenha construído uma máquina política formidável, organizada numa burocracia de âmbito nacional num país de 150 milhões de eleitores e com a oitava economia do mundo, o PT chega a uma eleição presidencial sem poder deliberar segundo mecanismos democráticos (já indisponíveis) uma alternativa institucional para si mesmo — como resumiu a presidente (?) do partido: “se, no final, tudo der errado, Lula saberá o que fazer”.

[em 15/05 —  O problema é que no final, quando tudo tiver dado errado, Lula irá descobrir que já não há o que fazer, pois ele muito provavelmente sequer contará com um eleitorado a transferir a quem quer que seja — é que eleitores não se transferem como numa operação bancária, ao toque de um botão. Não. Para transferi-los há que engajá-los no processo político da transferência e, mesmo assim, nada é garantido. Lula está a acreditar na ilusão de que existe um “lulismo”, “sou uma ideia”, quando já ficou claro, faz tempo, que isso nunca existiu, como mostrei longamente aqui. Ou Lula se engaja desde já na construção de uma candidatura alternativa à sua própria, dividindo a construção dela com seu eleitorado, ou acabará como mais uma candidatura irrelevante bem posicionada em pesquisas].

Assim como a imensa maioria da militância lulopetista está inerte diante da irracionalidade de Lula, a imensa maioria da sociedade brasileira está inerte diante da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, situação que configura uma irracionalidade mais ampla, pois, salvo melhor juízo, não há qualquer sinal de que algo poderá quebrar essa inércia antes das eleições de 2018, quando novos simulacros de legitimação entrarão em cena.

Até as candidaturas alternativas dão testemunho dessa inércia, pois nenhuma delas nasceu de qualquer movimentação social efetiva e, por isso mesmo, malograram sozinhas em sua inconsistência e artificialismo, frustrando quem equivocadamente supõe que estamos a reviver 1989, quando a sociedade fervia por alternativas de mudança na direção da consolidação democrática. O malogro de cada uma das candidaturas externas ao mundo da política profissional, desde o narigudo SS júnior, passando pelos empresários bocós e chegando ao honrado Barbosa, ilustra não a força dos profissionais da política, nem apenas a covardia pessoal dos desistentes, mas a inércia da sociedade, que lateja por transformação, mas se recusa ao trabalho de fazê-la, prisioneira do mesmo transe bovino em que se acha o lulopetismo diante de seu líder decaído.

Com essa margem de manobra que lhes foi dada, os políticos profissionais estão fazendo suas apostas na redistribuição do poder das facções estatais ali onde ele depende da chancela eleitoral, operação que vai permitindo uma diminuição sensível no número de candidaturas presidenciais, pois a inércia da sociedade deixou o jogo no plano propriamente estatal, “calmaria” que vai possibilitando acertos prévios. Em outras palavras, o que há de trabalhoso nesse processo de rearranjo de facções e candidaturas não é uma decorrência da dificuldade de responder aos sofrimentos vividos pela maioria insatisfeita da sociedade, mas é produzido pelas dificuldades de coordenação dos apetites aflorados da luta entre facções inscientes de que protagonizam uma crise de legitimação do próprio Estado cuja hegemonia para o exercício faccioso dos poderes institucionais disputam.

Fica o registro:

  • Enquanto isso, a luta de facções no âmbito da chamada Lava Jato prossegue: Gilmar acaba de mandar soltar o canário dos governos tucanos, enquanto facções da PF, junto com a PGR e Barroso, prosseguem na investigação contra Temer, baseados na interpretação facciosa de que a Constituição proíbe processar o presidente, mas não proíbe investigá-lo… (melhor assim!).
  • Na dança acima pode haver, ao fim e ao cabo, uma variante de convergência contra nós: é que talvez a ruína de Temer (e, quem sabe, até a de Aécio) já estejam precificadas e venham a servir — ainda que contrariando muitos dos empenhados em levar as punições a cabo — de cortina de fumaça para a escapadela de quem ainda pode servir de saída para o establishiment, como Alckmin. Vamos acompanhar.

NOTAS SAÍDAS DO REALISMO A QUE A INÉRCIA NOS ARRASTA

Carlos Novaes, 25 de abril de 2018

Embora os sinais ainda sejam fracos, e não se possa antecipar quanto da burocracia petista se engajaria no acerto, parece que caminhamos para assistir à benção de Lula à candidatura de Ciro, com Haddad de vice. Dadas as circunstâncias ameaçadoras em que se encontra o país, talvez não haja como pôr de pé, no curto prazo, um arranjo menos frágil do que esse para mantermos, em meio à crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, condições mínimas para continuarmos a lutar pelo Estado de Direito Democrático que almejamos desde a ditadura paisano-militar. Com realismo amargo e, portanto, sem entusiasmo, os parágrafos a seguir serão uma tentativa de explicar, pela ordem, essas observações.

É incerto, mas há sinais de que a maioria da burocracia petista pode engolir essa solução. A prisão do Lula mudou o jogo e do dia prá noite transformou a combatividade de Gleisi Hoffmann e de Lindbergh em um estorvo. Atrás das grades, o lulopetismo envelheceu décadas em poucos dias. Lida com cuidado, a entrevista em que José Dirceu usou a experiente Mônica Bergamo para mandar vários recados pode ser vista como uma prévia antecipação pública do seu aceite ao arranjo que foi insinuado, posteriormente, por esta emblemática reunião entre o mais saliente nome paisano da ditadura ainda em atividade, Delfim Neto; dois expoentes do PSDB original que não se corromperam, Bresser e Ciro; e aquele que se tornou depositário do que muitos ainda têm como crível no farisaísmo do lulopetismo, Haddad.

Do muito que Dirceu disse, isolemos três movimentos fundamentais: primeiro, na desenvoltura com que concatenou a realidade da prisão de Lula com a orientação acerca do que se passa além dela, Dirceu deixou claro que ao ser preso Lula decaiu ao mesmo patamar a que há tempos fora rebaixado este comandante da máquina petista, como que restaurando a dualidade entre carisma e burocracia que fora perdida no mensalão, ocasião em que Lula pôde deixar Dirceu para trás e adonar-se do PT, como analisei aqui (o mensalão tirou Dirceu do calendário eleitoral; o petrolão fez o mesmo com Lula). Em outras palavras, se nenhum dos dois desistir da política nem sofrer um emburrecimento súbito, este nivelamento na adversidade os fará mais unidos do que antes.

Segundo, a minuciosa descrição que Dirceu fez da dura realidade humana da prisão — da força que ela tem, por isso mesmo (isto é, pelo que há de duro e humano nela), para como que zerar as diferenças entre a criminalidade das condutas que ela pune, bem como para aproximar os contrários — é uma abordagem que além de dialogar com o que há de nobre no homem comum, mostra a convergência de duas resignações, uma na vida privada, outra na vida pública: na primeira, Dirceu aceita a perda da liberdade pessoal (mas para continuar a fazer política); na segunda, Dirceu aceita a perda do protagonismo petista (o carisma e a máquina estão agrilhoados). Terceiro: a concatenação dessas resignações com disposição para analisar a cena política com frieza, invocando uma tão anacrônica quanto coerentemente aplicada “ciência da história”, mostram a disposição de convocar os seus a dar um passo atrás, mas na perspectiva de vir a dar dois passos adiante mais lá na frente. Sob circunstâncias tão adversas, Dirceu poderá ser levado ao entendimento de que, por gordo que seja, o protagonismo subalterno de Haddad se torna o menor dos sapos que a máquina petista terá de engolir.

Ao se entregar obedientemente depois de ameaçar resistir, Lula dirigiu para o âmbito do Estado toda a potência do que a sociedade via de injusto na condenação sem provas de que ele foi vítima, neutralizando mais uma possibilidade de a crise de legitimação vir a furo, emergência que abriria para o país um período de incerteza auspiciosa: mais uma vez, Lula fez uso dos de baixo enquanto mandava recado para os de cima. Ele preferiu tanger a sociedade para se acomodar à luta de facções, que estão a se reorganizar para disputar as eleições, evento do calendário democrático que lhes permitirá reencenar o ritual da ligação entre o Estado de Direito Autoritário e a democracia, ainda que sem consagrar, por óbvio, um Estado democrático de direito (sob o qual muitos fantasiam que estamos a viver desde o fim da ditadura paisano-militar).

Até onde consigo enxergar, para poder sonhar que a prisão seja uma curta interinidade, Lula não tem saída melhor do que apoiar Ciro, pois sua aposta na luta de facções o tornou refém de um acerto propriamente estatal, que só poderá acontecer se contar com o apoio do presidente da República que sair das eleições de 2018 (pois, como se viu, eventuais indultos de Temer têm tudo para serem barrados pelo STF — cujo protagonismo irá declinar depois das eleições, assim como o do Judiciário em geral). Dentre os candidatos viáveis, Ciro é o único com que Lula poderá contar, mesmo, para conduzir esse arranjo salvador – Haddad como vice é o atrativo indispensável para fazer a solda entre, de um lado, as esperanças dos que ainda supõem que o lulopetismo seja uma vertente contra a desigualdade e, de outro, as ambições de restauração da máquina petista, animada de farisaísmo ante essa mesma desigualdade.

As circunstâncias empurram à aceitação desse arranjo porque a maioria da sociedade brasileira não encontrou outra maneira de sair da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário sem cair nas soluções medonhas de uma ditadura ou de um Estado de direito ainda mais autoritário, ameaças que estão simbolizadas nas candidaturas de Bolsonaro e Alckmin/Doria (daí eu dizer que fomos levados à situação pré-64: naquela altura, a ameaça da desordem era a deposição do presidente legítimo; agora é ou o cancelamento da eleição presidencial, ou coloca-la a serviço de mais autoritarismo, riscos tipo ruptura autoritária que não haviam em 1989, mas eram os do pré-64).

A inércia desorientada da maioria da sociedade é compreensível, pois tendo sido vítima de uma traição tremenda por parte das forças em que depositara suas esperanças (PSDB e PT) — uma traição que para se configurar precisou encenar uma polarização cuja fajutice o arranjo em curso mais uma vez desnuda (pois ele é a versão amputada de uma unidade que teria de ter sido feita há 25 anos contra o que restara da ditadura) –, ela, a maioria da sociedade, sofreu a perda simultânea dos seus líderes (arruinados pela corrupção), e do tabuleiro em que se desenvolvia o jogo (conflagrado numa luta de facções), jogo no qual ela credulamente se engajara, com as variações de intensidade e comprometimento próprias da rotina das democracias eleitorais ancoradas na perniciosa reeleição infinita para o Legislativo.

O Estado de Direito Democrático que almejamos desde as lutas contra a ditadura paisano-militar jamais poderia sair do jogo malsão em que PSDB e PT fizeram uso periódico da democracia eleitoral para simular uma polarização política que desfaziam na convergência de propósitos que reafirmavam na prática diária do exercício faccioso dos poderes institucionais típico dos Estados de direito autoritários, pelo qual promoviam a corrupção e se apoiavam nos dispositivos paisano (p-MDB e PFL) e militar (PM) legados pela ditadura, e sempre em obediência à cláusula pétrea fundamental do Estado de Direito Autoritário: os ricos não podem perder. Os abonos sociais que deram aos pobres foram um simulacro de medidas contra a desigualdade, até porque, além de não virem acompanhados de alteração tributária convergente, tampouco deixaram de ser reforçados em seu papel neutralizador pelas matanças pacificadoras que facções estatais (presidiarias e policiais: outra polarização fajuta) convenientemente insubmissas continuaram a promover contra os pobres, sem qualquer ação contrária efetiva, seja do PT, seja do PSDB.

Há entrecruzamento inconclusivo entre a conflagração das facções estatais e o aturdimento da sociedade. A fragmentação de pré-candidaturas sai dessa fratura, que a eleição em si simulará resolver. Não há projeto em disputa porque as facções estão em luta pela sobrevivência propriamente estatal e a sociedade não tem clareza do que está em disputa no terreno social, econômico e político. Dessa reorganização eleitoral das facções talvez resulte uma fragmentação bem inferior àquela que as pré-candidaturas atuais sugerem, e que chegou a levar a comparações impertinentes com 1989. Enquanto naquela altura a fragmentação resultava da disputa entre projetos alternativos mais ou menos voltados para a consolidação da democracia; agora, porém, a fragmentação resulta da crise de legitimação do Estado de direito saído da diluição daqueles projetos.

Comparada com 1989, a fragmentação de agora é o oposto: antes, ela resultava da busca por corresponder às expectativas da sociedade por uma consolidação democrática; agora ela resulta da conflagração gerada numa crise de legitimação decorrente de que não apenas não se alcançou aquela consolidação,  como os políticos profissionais perderam o solo comum em que se acertavam em práticas daninhas à consolidação democrática, para crescente contrariedade da maioria da sociedade, que sofre desde sempre sob o exercício faccioso dos poderes institucionais.

Não é para menos, afinal, seria estranho que tendo todos os principais agentes da consolidação sucumbido à manutenção da desigualdade e à corrupção correspondente, ainda assim houvesse um Estado democrático de direito – seria como ter condenado o trabalho de engenheiros, pedreiros e empreiteiros e, mesmo assim, atestar que o prédio construído está consolidado para habitação. PT e PSDB foram o Sérgio Naya da consolidação da democracia brasileira – o prédio ruiu e ainda estamos sob a nuvem de poeira que a subsequente implosão engaiolada levantou.

Talvez a dobradinha Ciro-Haddad não se configure. Mas, ainda mais improvável do que ela encarnar uma proposta de transformação é que se forme em torno do honrado Barbosa (a quem essa dobradinha também seria uma resposta) algo mais do que um ajuntamento oportunista para dar sobrevida ao que há de mais acomodatício, embora não imediatamente autoritário, no establishment. Vamos acompanhar e conversar.

Fica o Registro:

– Um artigo na Folha de S.Paulo traz ponto de vista que considero inadequado à compreensão do que se passa. Para o autor, a esquerda estaria perdendo a confiança na democracia por acreditar que foi vítima do golpe de uma elite que não tolera nem mesmo um governo reformista tímido. Crer na relevância disso exige dois erros: primeiro, supor que os líderes do lulopetismo realmente acreditam que estavam a governar segundo um reformismo contrário às elites. Ora, todo lulopetista bem informado sabe que o Mercado resistiu ao impeachment de Dilma a maior parte do tempo, e o golpe foi obra do braço político-profissional oposicionista que também servia ao Mercado, mas que se fez abertamente autônomo ao ver uma oportunidade de voltar a comandar o exercício faccioso dos poderes institucionais no Executivo federal — é que os golpistas apostaram em um rápido acerto posterior, pois não enxergaram a crise de legitimação em que se abismariam. Segundo, o autor ajuda a confundir a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário com a confiança na democracia, afinal, duvidar se vai haver eleições é duvidar do Estado de direito como garantidor do calendário eleitoral (fronteira última de sua relação com a democracia), não da democracia como forma de escolher alternativas para arbitrar conflitos no âmbito da sociedade. As dúvidas que temos sobre o respeito ao calendário eleitoral advém das incertezas da guerra de facções estatais, onde há até insubordinação militar, não das diferenças de interesse existentes na sociedade que estariam a deixar inquietos representantes de projetos opostos.

NÃO HÁ SEMELHANÇA RELEVANTE ENTRE 1989 E 2018

Carlos Novaes, 15 de abril de 2018

Diante da fragmentação de preferências trazida pela nova pesquisa DataFolha, a mídia convencional está repleta de “análises” vendo semelhanças entre as eleições presidenciais de 1989 e de 2018. Nada poderia ser mais errado.

Primeiro, em 1989 o eleitorado foi às urnas na perspectiva de consolidar uma democracia, crente que estava de ter passado a viver sob um Estado democrático de direito. Em 2018 iremos às urnas para nos defendermos da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que tentaram consolidar via corrupção justo aqueles que nos haviam prometido a democracia. O fato de estarmos cada vez mais cientes de que se trata de nos defendermos desse Estado de Direito Autoritário é uma evidência a mais da sua crise de legitimação.

Segundo, em 1989, o grande número de candidatos resultava do embate entre diferentes projetos sobre a democracia que se queria consolidar. Por consistentes ou inconsistentes que fossem (havia para todo gosto), esses projetos traduziam todo o período anterior de engajamento e, por isso, naquela altura a oposição esquerda-direita fazia todo sentido, pois traduzia uma fronteira de fundo, demarcada pela posição diante da desigualdade. Em 2018, a fragmentação resulta da ausência de projetos sobre o que quer que seja e a polarização esquerda-direita é uma anacrônica piada sem graça, até porque não há vertente relevante na luta contra a desigualdade, pelo contrário.

Terceiro, em 1989, a eleição foi solteira, isto é, só estava em disputa o cargo de presidente da República; circunstância que jogou um peso decisivo para que os finalistas fossem duas novidades: Collor e Lula. As máquinas políticas tradicionais não se engajaram, pois elas dependem do esforço interessado dos candidatos a deputado, senador e governador. O p-MDB deixou Ulisses Guimarães a ver navios, por exemplo. Naquele cenário, foram favorecidos, de um lado do espectro político, o candidato que contava com o megafone da Globo, Collor, e, do lado oposto, o candidato que contava com uma burocracia partidária e sindical que não precisava de dinheiro para mobilizar nacionalmente uma militância que, naquela época, trabalhava de graça.

Aquela polarização foi clássica, pois nela estava alojado o sentido que daríamos à nossa luta pela consolidação da democracia, o que nos leva à segunda razão para explicar que os finalistas tenham sido Collor e Lula: o eleitor os escolheu precisamente porque nenhum dos dois estava ligado às forças políticas que nos haviam sido legadas pela ditadura (PFL, PDS, p-MDB e PSDB) – sendo de notar que Brizola foi superado por Lula exatamente porque não contava com uma militância nacional entusiasmada.

Em 2018, estão em disputa todos os cargos eletivos estaduais e federais. As máquinas partidárias profissionais convencionais, agora incluindo a do PT, vão jogar toda a sua força em busca da sobrevivência. A lógica propriamente eleitoral da campanha não tem qualquer semelhança com a de 1989, portanto. Além disso, em razão das traições de PT e PSDB (que, na contramão do esforço da maioria da sociedade, nutriram a volta das forças legadas pela ditadura para sustentarem uma polarização fajuta entre si), que desembocaram nessa crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que eles ajudaram a construir, o país regrediu à situação pré-golpe de 1964 e, agora, em razão da cegueira geral para a crise de legitimação do Estado, o eleitorado está sendo empurrado a escolher entre o candidato da ditadura e os do Estado de Direito Autoritário.

Por isso mesmo, temos, de um lado, Bolsonaro, o Collor da vez, sem o megafone da Globo (por enquanto…), mas contando com a rede da mentira (que trabalha de graça como a militância petista em 1989). De outro lado, ainda que com diferenças entre eles, estão todos os presumidos defensores da preservação de uma fantasia, daquilo que não existe, o Estado democrático de direito.

Todos repetem a arenga do respeito à Constituição – qual? Nenhum deles vê nas arbitrariedades e acertos facciosos da Lava Jato, na insubordinação militar, no espraiamento escancarado das milícias, nas manifestações autoritárias e intolerantes que se alastram na Web e no Funk, nas escabrosas disputas internas do Supremo, no espraiamento da corrupção como modo de operar a política até nos pequenos municípios, nas aberrações legais saídas do Congresso, no arbítrio sanguinário da polícia, na crescente insubordinação dos presídios, na gestão ruinosa da coisa pública pelo Executivo, na descrença geral do brasileiro nas instituições, nenhum dos candidatos vê nesse conjunto o sintoma cabal da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário.

Tendo enfiado a cabeça na areia, todos os candidatos repetem o mantra de que as instituições estão funcionando. Alguns com um misto de covardia, oportunismos e descaramento chegam a se calar diante de fatos graves como a insubordinação militar e dizem positiva e inteiramente aceitável qualquer decisão saída da Lava Jato ou do Supremo, como se essas instituições não estivessem atravessadas por preferências facciosas, como se a prática delas pudesse ser tomada por evidência de um Estado democrático de direito em funcionamento, quando é justo o contrário.

Tal como o sobrevivente que só decide enfrentar a realidade depois de procurar entre os escombros de uma catástrofe algo em que apoiar a memória, vagueando entre um braço de sofá, uma roupa ou um brinquedo, sendo levado por esses resíduos à extensão da sua perda; também o Brasil só poderá atravessar 2018 com proveito se entender inútil mariscar entre as ruínas do que imaginou que começara a construir em 1989 — quanto mais procurar semelhanças, mais se abismará no retrocesso.

GUERRA DE FACÇÕES, TRIBUNAL E TIROS

Carlos Novaes, 31 de março de 2018

Se a democracia se consolida em uma forma estatal denominada “Estado democrático de direito”, qual é a forma estatal das democracias não consolidadas?

Sustento que as democracias não consolidadas ganham forma estatal em um Estado de Direito Autoritário. Nele, diferentemente do Estado de Direito Democrático, a forma do direito é instável enquanto norma e arbitrária enquanto prática, sendo que os graus de instabilidade e arbitrariedade variam segundo o atrito entre facções pela primazia no exercício faccioso dos poderes institucionais em busca de poder para fazer dinheiro. Ou seja, o caráter não consolidado da democracia fala mesmo é do Estado, das tensões e fissuras provocadas nele pelo atrito das ambições; não exatamente da sociedade, da vivacidade das suas diferenças de quinhão e opinião.

A um Estado de Direito Autoritário corresponde, necessariamente, algum grau de democracia na vida política. Esse caráter necessário de alguma democracia deriva da preferência da sociedade pela democracia, uma preferência queembora não tenha se mostrado informada e determinada a ponto de levar a ordem político-institucional a se consolidar numa democracia, ganhando a forma de um Estado de Direito Democráticosubsiste na maioria da sociedade como aspiração negligente. Logo, para ser de direito um Estado tem de agir de modo a levar a sociedade a acreditar que está a viver um processo de consolidação da democracia, não de negação dela. No curso do tempo, essa crença será confirmada ou fraudada, pois se trata de um jogo de forças.

Naturalmente, as forças em presença têm grau variado de percepção acerca da complexidade da situação em que estão metidas e, por isso, o resultado de suas ações por vezes não só não é o que foi buscado por elas no nível das metas miúdas como também ganha no plano mais geral sentido diferente do, e até oposto ao, que elas teriam preferido se pudessem tê-lo previsto (ou teriam escolhido, se estivessem em condições materiais e, sobretudo, subjetivas, de fazê-lo). Como é da própria natureza da situação impedir uma conspiração totalizante, a normalidade das coisas vai depender de que as contradições da ordem social não sejam de monta a impedir uma calibrada arbitragem das ambições por parte dos próprios ambiciosos (justamente o que tem faltado às facções estatais do Brasil pelo menos desde o processo do impeachment de Dilma).

É precisamente porque o Estado de Direito Autoritário vive entre a confirmação e a fraude da democracia que sua legitimidade é precária: ele é legítimo enquanto nutre, na prática, a crença da maioria da sociedade de que se caminha no rumo da democracia; ele passa a ilegítimo quando sua prática é identificada pela maioria da sociedade como oposta à democracia. Na passagem de uma situação à outra se instala a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário (que é o que entendo estar a acontecer no Brasil).

Instalada a crise de legitimação, ela, por longa que se faça, acabará por ter de se resolver por uma de três vias: (a) ou se caminha para a ilegitimidade pura e simples, obtendo à força um novo arranjo entre as facções estatais vitoriosas, agora sem Estado de direito; (b) ou as facções estatais vitoriosas se reacomodam em um relançamento do Estado de Direito Autoritário, necessariamente mais autoritário do que o anterior; (c) ou o que ainda há de democracia se firma como alternativa preferida, com a derrota total ou relativa de cada uma das facções no transcurso do tempo que se fizer necessário para se alcançar um Estado de Direito Democrático.

Tal como em ocasião anterior, me parece instrutivo traçar uma comparação entre a Rússia e o Brasil.

A Rússia é um Estado de Direito Autoritário no qual as contradições da ordem social não estão a ameaçar a normalidade do mando faccioso e, assim, o Estado russo desfruta de toda a legitimidade possível em situações assim. Com mais de 80% de aprovação na opinião pública e com maioria quase pétrea no Legislativo, Putin é, a um só tempo, representante e símbolo: de um lado, ele representa para as facções do Estado de direito da Rússia um ponto sólido de arbitragem calibrada das próprias ambições delas; de outro lado, ele simboliza para a maioria da sociedade russa o que ela entende como o ideal a que poderia realisticamente aspirar transcorridos esses quase trinta anos desde a queda do muro de Berlin: um Estado de direito que provê ordem, não embarga alguma prosperidade e mantém acesa a chama de sonhos de grandeza ancestralmente acalentados.

O Brasil é um Estado de Direito Autoritário no qual as contradições da ordem social, vetorizadas na desigualdade, levaram à conflagração das facções estatais e, assim, se explicitou o caráter antidemocrático do seu mando, o que desencadeou uma crise de legitimação do Estado brasileiro. Por isso mesmo, com seus mais de 80% de desaprovação na opinião pública, rendido às chantagens do Legislativo e dependente de parceiros facciosos no STF, Temer é o exato oposto de Putin: de um lado, Temer representa, quando muito, um ponto fugaz de apoio para as ambições de quem logrou se alojar no palácio, sendo visto como inimigo por todas as outras facções, que estão ora mais ora menos insurgidas contra ele; de outro lado, ele simboliza para a maioria da sociedade toda a derrota que lhe foi imposta no curso desses quase trinta anos decorridos desde a promulgação da Constituição de 1988: a Constituição foi rasgada pela luta de facções, a desordem estatal só faz piorar, a desigualdade mostra todo seu potencial regressivo e ninguém crê que a ordem atual aponte para um futuro longínquo compensador dos sacrifícios vividos no passado ou no presente.

Dado o caráter autoritário dos Estados de direito da Rússia e do Brasil — e a despeito da grande diferença apontada acima na situação político-institucional dos dois países na hora presente –, a sociedade russa e a sociedade brasileira vivem a mesma angústia, fazendo a pergunta típica das sociedades que não fizeram das franquias democráticas um meio de consolidar a democracia: o que virá depois? Na Rússia, o ainda organizado caráter subterrâneo da luta de facções mantém incerta a sucessão de Putin, por isso mesmo visto desesperadamente pela maioria como insubstituível; no Brasil, a desordem já aberta trazida pela conflagração das facções em guerra tornou incerta a sucessão de Temer, a quem a maioria quer desesperadamente ver pelas costas.

Portanto, alcançar uma saída para o Brasil na figura de um homem forte seria, quando muito (se tudo corresse muito bem para quem pensa assim), ficar com a mesma angústia e trocar um desespero por outro ou, como é muito mais provável, ter como resultado uma situação que não só nos afastará ainda mais da consolidação democrática como nos levaria ao risco de perder até mesmo o Estado de direito enquanto tal. Dessa perspectiva, nossa tarefa não é, ainda, identificar um nome, mas encontrar um propósito comum pelo qual lutar e o método que lhe corresponda. A precipitação por um nome vai nos levar a más escolhas.

Lula

Lula é um símbolo esgotado, uma liderança exaurida, mas apoiado na falta de lucidez generalizada, que impede a maioria da sociedade de escolher um rumo novo a tomar, ele conseguiu transformar seus problemas com a lei num problema para o país. Lula se tornou definitivamente uma rolha que impede o surgimento do novo.

Tenho claro que os problemas de Lula com a lei decorrem também da aplicação facciosa das leis: no caso do tríplex Lula foi condenado sem provas. Entretanto, não é de hoje que estou convencido de que Lula comandou, participou e foi leniente com a roubalheira que se deu no curso de seus governos. Convicções não são suficientes para que se mande alguém para a cadeia; mas são suficientes para que se dê politicamente as costas a alguém – esta é, em última instância, a diferença entre a decisão judicial (que só  pode ser tomada no âmbito do Estado) e a opinião pública (que se exerce no âmbito da sociedade).

Ao se deixar amarrar politicamente à situação legal de Lula, a autointitulada esquerda brasileira que não é petista, e mesmo aquela parte do petismo não comprometida com os malfeitos, perdeu qualquer possibilidade de fazer um diagnóstico independente da crise e, com base nele, apontar um rumo alternativo para o país. Ao dar a si mesma um papel subalterno no curso da crise, essa autointitulada esquerda deixou aberto o campo em que o protofascismo vem se alastrando.

É próprio de uma crise de legitimação do Estado que cada um se sinta fraudado a cada vez que o Estado se inclina numa direção diferente da que o observador preferiria. Para quem foi contrariado, toda decisão pública é recebida como uma ofensa pessoal. Mas se não há nenhuma força política suficientemente independente para esclarecer que a decisão foi tomada não exatamente pelo Estado, mas por uma das suas facções, à desordem no Estado se soma a confusão desorientadora na sociedade, terreno ideal para soluções de força.

Numa situação assim, reunir espírito aberto com a busca do bem comum requer uma obstinada recusa ao cinismo, combinada com a disposição inquebrantável de buscar formas políticas novas, pois se alinhar com qualquer das forças que nos levaram a essa crise é uma forma de cinismo.

Bolsonaro

Quem repudia a liderança de Lula e escolhe Bolsonaro não está optando por uma liderança contra outra. Quem escolhe Bolsonaro está a repudiar também a ideia de liderança.

Bolsonaro é sintoma de um fenômeno perverso gerado pela crise de legitimação: ao invés de as massas servirem de marionete para um candidato, elas estão a produzir sua própria marionete na forma de um candidato – eis um fenômeno tão novo quanto ameaçador. Não à toa, portanto, Bolsonaro é o campeão das redes sociais: desde a solidão de seus cubículos com câmera e conexão à internet, lá no mais privado dos mundos privados, longe da esfera pública, mas em rede, cada um de seus adeptos sente que tem o boneco nas mãos. Daí se alastra, na forma de fenômeno de massas, a identificação visceral com ele, uma identificação que não vem propriamente do que ele representa ou, muito menos, do que ele propõe: a mediação e a troca são irrelevantes no caso de Bolsonaro.

A identificação individual (massa feita EU) se fundamenta primordialmente na ilusão de cada um acerca do poder que detém por estar a manejar os cordões do boneco – daí ser muito difícil convencer os adeptos de Bolsonaro mediante argumentação. Eles só serão demovidos por uma iluminação imprevista; do contrário, terão de ser derrotados ou por uma das forças oponentes, ou pela realidade adversa desencadeada pela sua própria vitória.

O fato de nessa altura da crise de legitimação a adesão a Bolsonaro estar a crescer não resulta da força dele em se contrapor à crise. Essa adesão resulta da inépcia dele diante da crise, uma inépcia que a massa compartilha, impotente que se sente. Bolsonaro é a marionete estridente dos que se sentem impotentes. Ele não oferece resistência alguma aos sentimentos mais bestiais, que são justamente os mais simples, os mais fáceis de a massa-EU mobilizar em si mesma, sem precisar fazer o engajamento cognitivo que uma escolha pensada para sair da crise requer – toda elaboração, toda mediação, toda ponderação são vividas como adversárias, coisa de “comunista”. Daí a enorme e mentirosa reação deles à execução da Marielle, um crime que abriu uma janela que eles correram para fechar porque a luz iluminou a cena.

É um erro enxergar qualquer familiaridade simbólica entre os tiros que executaram Marielle e os disparos que atingiram a caravana de Lula. Marielle foi vítima de uma guerra entre facções estatais que estão dispostas a impor à sociedade todo sacrifício que se fizer necessário à restauração de um  equilíbrio de mando no âmbito do Estado. Morta, Marielle simboliza a potência ainda adormecida da sociedade brasileira diante da crise de legitimação do Estado. Os tiros contra os ônibus da caravana, embora inaceitáveis, não passam de provocações marginais que se esgotam na polarização fajuta que pretendem favorecer. Quando essa polarização se dissolver começará a batalha decisiva.

Fica o Registro:

  • Fernando Haddad apontou em entrevista o caráter seletivo da indignação que certos setores da sociedade têm exibido contra a corrupção. Ele tem toda razão e entendo como fundamental apontar que essa hipocrisia é parte do que há de fraudulento no jogo de poder em curso. Entretanto, entendo como igualmente fundamental registrar que a escolha de Haddad não é melhor: ele não mostra nenhuma indignação com a corrupção… A outra face dessa fleuma conveniente é a esperteza contida nessa forma de tergiversar sobre o caso de Lula: “Eu tenho a convicção de quem leu o processo”… – como se convicções políticas se formassem da mesma maneira como se fazem as convicções jurídicas… Por isso mesmo, Haddad abre mão de toda luta política contra Alckmin nesse assunto, como se apontar a convergência entre Paulo Preto e os governos tucanos fosse algo a ser feito apenas no plano jurídico! Não à toa, Haddad declara preferir a palavra de Alckmin à palavra “de quem quer que seja que esteja aí, enrolado com a justiça”, como se enrolados com a justiça não estivessem todos, inclusive Lula. Haddad escolheu esconder-se da crise acocorado sob um telhado de vidro, mas de microfone na mão.
  • Na mesma entrevista, Haddad anacronicamente salientou convergências que vê entre PT e PSDB, como se fosse possível saltarmos os últimos trinta anos (no curso dos quais eles montaram uma polarização fajuta) e covardemente esquecermos que as convergências se deram sobretudo na acomodação à desigualdade, na revitalização dos dispositivos paisanos da ditadura (p-MDB e DEM) e na adesão à corrupção como método de reunir poder para fazer dinheiro. Perdidos no tempo, o PT e o PSDB que ele tem na cabeça são personagens de fábula.
  • É que, tal como naquele cinema pobrinho dos faroestes fajutos dos anos sessenta, onde as cenas perigosas recusadas pelos dois protagonistas “adversários” eram encenadas pelo mesmo dublê, nessa pantomima anacrônica para reavivar a união FHC+Lula Haddad tem a pretensão de ser “descoberto” como o dublê ideal, o que nos leva ao risco de assisti-lo a pregar a união nacional contra o “patrimonialismo moderno” vestindo um macacão emporcalhado de petróleo e montado num jegue – ficcionista nenhum anteciparia que a realidade pudesse descaracterizar D. Quixote e Hamlet a ponto de ser possível desfigurá-los numa fusão tão impertinente.
  • Metido no pântano até a linha dos olhos, o prof. André Singer sucumbiu, em artigo na Folha de S.Paulo de hoje, ao que há de pior: a ideia de que a sociedade brasileira é vítima de uma conspiração, pela qual “tentam nos impingir” alguma coisa (só faltaram as “forças ocultas”). Depois de começar o artigo misturando indevidamente os tiros profissionais que executaram Marielle aos inaceitáveis disparos provocadores feitos contra a caravana de Lula, nosso autor faz um artigo em que tenta apresentar como pardos todos os gatos dessa noite que nos aterra: desconfia de Dodge, indigita Gilmar, ataca Barroso e faz alerde acerca de um suposto “extenso planejamento”.
  • Em mais uma tentativa de sustentar o insustentável, ou seja, que vivemos sob um Estado democrático de direito, Oscar Vilhena Vieira ataca mais uma vez e, claro, como nem pode reconhecer a guerra entre as facções estatais, nem pôde deixar de aprender alguma coisa, improvisou o que chamou de “guerra dos estamentos”. Depois de algumas cambalhotas históricas e alguma contradição, conclui com essa pérola: “não seria uma surpresa, no entanto, a concessão do HC de Lula, sem que se alterasse a regra da execução provisória (menos ainda da Lei da Ficha Limpa). Uma contradição jurídica, sem sombra de dúvida. Mas uma tentativa de distensionar o conflito entre direito e política”. Dá até preguiça, mas em nome da clareza, comentemos essa douta “conclusão”: para fantasiar que há um “conflito entre o direito e a política” é necessário cometer dois erros: do lado do direito, considerar que existe hoje no Brasil um, e somente um, lado do direito, ignorando que o Judiciário-judicação está escancarada e grosseiramente dividido em facções, divisão que já os levou a rasgarem a Constituição e ameaça leva-los a rasgar as togas; do lado da política, o erro requerido está em considerar que ela é, literalmente, uma reserva de mercado dos profissionais da política aboletados no Legislativo-representação e no Executivo-gestão, como se a tarefa que nos desafia não fosse, justamente, fazer outra política contra a desses aí que estão em conflito não com um direito imaginário, mas com a própria sociedade. Vilhena Vieira, como de costume, tropeça a cada parágrafo: num adverte Tófolli de que há mais de uma política; no outro funde a política numa coisa só e a opõe a um direito cerúleo – enfim, mais um liberal que está perdidinho. Se eles aceitassem que o Estado democrático de direito, orgulho da sua geração, não existe, doeria mais, mas parariam de dar vexame.
  • Faz tempo que apontei aqui que a dobradinha Lula-Temer, mais o que eles representam, iniciada desde antes que o golpista fosse vice de Dilma, não se esgotara (embora tenha sofrido o soluço do impeachment). É que a crise de legitimação do Estado que sobreveio ao impeachment (sem ter nele propriamente uma causa) alterou completamente o jogo, que teve três fases: na primeira, antes da crise, os dois eram adversários “históricos” momentaneamente aliados; na segunda, em meio ao golpe, eles trouxeram de volta a fajuta desavença “histórica”; na terceira, consumado e golpe e aberta a crise de legitimação, eles começaram o tango da proteção mútua, cujos lances mais notórios vêm sendo: Dilma teve os direitos políticos preservados; o PT votou em Maia para a presidência da Câmara; Temer visitou Lula quando da internação de dona Marisa; Lula elogiou Temer por superar uma “tentativa de golpe”; Temer fala em “barragem de candidaturas” e, agora, o PT está pronto a ver problemas graves numa queda de Temer. Nessa guerra entre facções que se fazem e refazem, Lula, Temer e o que eles representam podem estar tão separados quanto unidos, ao sabor da luta pela sobrevivência. Essa união facciosa entre Lula e Temer tem sua correspondência fidelíssima no Supremo, numa já antiga concatenação facciosa entre Gilmar, que é Temer, e Tóffoli, que é Lula. A explicação para tudo isso me parece simples: dado que a crise desaguou numa crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário construído pela política profissional deles, a fragilidade de ambos, de Lula e de Temer, não permite que a derrota de um seja a vitória do outro – estão num abraço de afogados.

Sobre as decisões do Supremo que afetarão Lula

A mim parece evidente que qualquer decisão será facciosa, tal como têm sido todas as decisões tomadas pelo Supremo em relação aos políticos profissionais e seus aliados pelo menos desde a prisão de Delcídio e a posterior proteção a Aécio, passando pela prisão de Cunha, as devoluções de Maluf e Picciani aos respectivos domicílios, os habeas corpus ao Barata e a suspensão da inelegibilidade de Demóstenes Torres – chegou a vez do Lula, bem na hora de mais uma rodada de apertos contra Temer.

No momento, sou levado a imaginar os seguintes desdobramentos:

A facção mais pró-establishment, que foi levada a concluir como transtorno indesejado tudo o que acabou por ser desencadeado pela Lava Jato, reúne os dois aparentes extremos da crise, Lula e Temer, representados no Supremo respectivamente por Tófolli e Gilmar, ao lado dos quais, em alinhamento fluído, figuram Lewandowski e Marco Aurélio. Logo, estão reunidos na mesma facção parte do governo e parte da oposição (daí o PT renovar seu desinteresse em derrubar Temer), assim como pedaços do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Nessa ordem de ideias, Gilmar e Tófolli vão votar pela proibição da prisão com condenação em segunda instância, pois estão empenhados em livrar da prisão outros além de Lula. Se perderem essa votação, vão votar, coerentemente, pela concessão de habeas corpus ao Lula. Lewandowski deverá acompanha-los, enquanto Marco Aurélio deve negar o HC ao Lula se perder a primeira votação.

Entre os transformadores há, nessa matéria, facciosos de tipo variado: há um tipo como Barroso, de longe o mais voluntarista de todos; secundado por Fachin, o relator da Lava Jato no STF, que vem jogando com orientação facciosa republicana deste a parceria com Janot, na qual contornaram a Constituição algumas vezes . Ambos devem votar pela manutenção da prisão em segunda instância, mas devem se dividir na decisão sobre Lula: Barroso deve votar pelo HC e Fachin, contra. Cármen Lúcia já deu seguidas declarações contra a revisão da matéria principal, mas deve votar pelo HC a Lula, no que será seguida pela ministra Rosa Weber. Em conexão frouxa com esses quatro ministros transformadores vem Fux, que tem servido como ninguém aos interesses facciosos do próprio Judiciário na crise atual, sendo dele as seguidas decisões em prol desse escandalosamente injusto “auxílio-moradia”. Esse alinhamento propriamente corporativo deve jogar seu papel no voto do ministro, pois há forte movimento intra muros em prol da possibilidade de prisão em segunda instância – mantida a prisão, ele deve votar em prol do HC a Lula.

Em sintonia propriamente facciosa com esses cinco ministros vem Alexandre de Moraes que, ligado a Alckmin, tem uma adesão ao establishment especialmente interessada e, assim, está determinado a tirar Lula do páreo de vez. Tenho como certo que ele votará contra Lula nas duas matérias.

O ministro Celso de Mello deve fechar o placar perdedor contra a prisão em segunda instância e, nesse caso, deverá ser um voto a mais para a vitória de Lula na obtenção do HC.

Claro está que não verei contradição alguma se o STF fizer o combinado faccioso que estou a supor que fará: manterá a possibilidade da prisão após condenação em segunda instância e dará um HC ao Lula.

O FETICHISMO DA GOVERNABILIDADE

Carlos Novaes, 02 de novembro de 2017

 

Artigo recente do cientista político Carlos Pereira, publicado e celebrado em editorial na Folha de S.Paulo, é besteirol puro, mas, enfeitado com “índice” próprio e o gráfico correspondente, vem sendo recebido como ciência dura. Pereira, prof. da FGV e de Stanford, imagina ter chegado a um índice e a um gráfico que demonstrariam e ilustrariam a eficiência ou ineficiência do Executivo (gestão) na relação com o Legislativo (representação); mas o que o índice dele demonstra é a indigência intelectual que se alastra na ciência política brasileira; já o gráfico ilustra duas coisas: que o Congresso brasileiro é venal e que essa venalidade tem limites. (Sugiro que o leitor se familiarize com os argumentos e com o gráfico de Pereira antes de prosseguir).

Pereira supõe ter apresentado a prova empírica de que Temer é o presidente cuja governabilidade é a mais barata da história mais recente do país; quando o que ele demonstrou é que Temer é o presidente da “governabilidade” mais cara dentre os quatro que foram comparados.

Para chegar às suas tolices ele fez uma operação simples: converteu à forma mercadoria imutável tanto as proposições enviadas à aprovação do Congresso por qualquer presidente, quanto o apoio da maioria do Congresso (base da chamada governabilidade) a estas mesmas proposições. Ou seja, tudo se passa como se o apoio do Congresso ao que quer que venha da presidência da República estivesse sempre à venda pela maioria ali aboletada, o êxito do presidente sendo função de sua habilidade ao regatear o preço.

As principais moedas aceitas nessa feira seriam as que compõem o tal “índice sintético de custos de governo (ICG)”: cargos de ministro, dinheiro para os ministérios e dinheiro para as emendas parlamentares. Tendo feito as contas, nosso sábio descobriu que Temer conseguiu aprovar mais proposições enviadas ao Congresso do que seus três predecessores, não obstante tenha distribuído menos cargos de ministro, tenha dado menos dinheiro aos ministérios e pago menos emendas parlamentares – conclusão: é o mais eficiente dos quatro, pois comprou mais pagando menos…

Estamos em pleno fetichismo da governabilidade, e ele consiste no seguinte: para Pereira, a qualidade, o teor, do que o presidente propõe à aprovação da maioria do Congresso não têm nenhum papel nem na governabilidade, nem na análise da eficiência das relações do presidente com o Congresso – ou seja, nosso autor supõe que o jogo Executivo-Legislativo é uma troca simples, em que o Congresso entra com apoio e o presidente entra com cargos e dinheiro — uma operação tipica de quem pretende fazer ciência política sem a sociologia da política.

Ora, até os tapetes do Congresso sabem que a imensa maioria dos parlamentares se conduz em relação às nomeações e proposições do Executivo segundo a combinação dos três parâmetros seguintes:

  1. O que contempla ou agride seus interesses e suas preferências ideológicas de fundo, partilhados com seus financiadores e em sintonia com sua inserção na ordem social enquanto tal.

Ou seja, por mais que pudesse pagar, presidente nenhum conseguiria, por exemplo, comprar maioria no Congresso para a aprovação de proposições realmente voltadas a enfrentar a desigualdade, ou ao relaxamento da severidade dos costumes em matéria sexual, religiosa etc. A venalidade congressual tem limites — o apoio deles não é uma mercadoria como outra qualquer.

  1. O que promove ou atrapalha seu interesse em obter poder para fazer dinheiro.

Nesse âmbito, há duas frentes principais:

2.1. A obtenção de cargos para si e para os seus.

2.2. A aprovação das tais emendas parlamentares, que destinam recursos governamentais para território do seu interesse.

E, especialmente em ano eleitoral:

  1. O que promove ou atrapalha seu interesse pela reeleição.

Nesse âmbito, duas outras frentes:

3.1. Segundo aquilo que impacta a motivação do eleitor para o voto.

3.2. Segundo aquilo que impacta a motivação do financiador da campanha pela qual o candidato quer obter o voto.

Frequentemente essas duas motivações são conflitantes, daí o aspecto mirabolante, quase sempre mentiroso, das promessas de campanha: a maioria do Congresso faz campanha agradando ao eleitor, para depois decidir no parlamento de acordo com o Mercado.

Para a maioria do Congresso, trata-se, sempre, de manter o status quo.

Tendo em mente o que se acaba de esmiuçar, não é difícil entender porque Temer vem obtendo com o Congresso mais êxito do que seus predecessores:

A. Temer não precisou “enfrentar” com sua suposta habilidade uma maioria difícil ou mesmo hostil no Congresso (como foi o caso de FHC e, depois, de Lula e Dilma). Ele simplesmente se ajustou à maioria disponível saída daquela que facciosamente engendrou para o impeachment, precisamente porque a afinidade conservadora e reacionária entre ele e essa maioria está dada desde sempre, tendo sido como que atualizada pelo impeachment. Se habilidade houve, foi a que lhe permitiu obter êxito no golpe do impeachment.

B. Em outras palavras, a situação ficou especialmente mais fácil para Temer porque ele não recebeu seu mandato do eleitor, mas precisamente deste Congresso, via impeachment… Ou seja, através do “parlamentarismo de ocasião” Temer ficou liberado da ginástica que FHC, Lula e Dilma ficaram obrigados a fazer, pois a maioria do eleitorado votou em seus programas de mudança, mas não lhes deu um Congresso com maioria pela mudança.

C. As proposições de Temer ao Congresso pouco, ou mesmo nada, têm de conflitivas com a maioria ali aboletada – são todas afinadas com os itens de interesse vistos mais acima (com algum senão para o item 3.1, como já veremos), e não apenas obedecem ao sentido geral de manutenção da desigualdade, como apontam para um aumento dela.

Diferentemente do que pensa o prof. Pereira, contar com uma base congressual mais afinada ideologicamente e/ou mais homogênea não depende fundamentalmente da “habilidade” ou da “eficiência” do presidente. O presidente recebe do eleitor não apenas o seu próprio mandato, mas os mandatos do Congresso! Temer se dá bem no Congresso porque suas propostas conservadoras e reacionárias correspondem aos interesses e preferências da maioria ali consolidada faz décadas, inclusive de alguns que votaram contra ele nas denúncias criminais submetidas à Câmara, como é o caso notório de metade da bancada do PSDB, que votou pela abertura de processo criminal contra Temer precisamente em razão de 3.1. acima, embora concorde com as chamadas “reformas impopulares”.

Na verdade, pelos critérios de Pereira, Temer é o menos eficaz dos quatro presidentes, pois paga e tem uma trabalheira danada para obter da maioria do Congresso o que ela deveria entregar de graça: apoio à manutenção do status quo combinado à melhoria das condições para os ricos fazerem dinheiro em detrimento do bem estar dos menos aquinhoados. O fato de eles cobrarem por isso, e o fato de Temer pagar sem denunciá-los à sociedade, mostra tanto a venalidade quanto o isolamento deles.

Mesmo tendo abandonado seus programas máximos, FHC, Lula e Dilma contrariavam, em graus variados, interesses e preferências da maioria conservadora e reacionária do Congresso e, assim, tinham mais dificuldade relativa para aprovar o que queriam. No caso do PT a questão é especialmente cabeluda porque em razão da sua história, das expectativas geradas no eleitorado e da sua estrutura burocrática, a vitória presidencial implicou uma troca muito mais abrangente dos funcionários de livre nomeação pelo Executivo e, por isso mesmo, privou a maioria conservadora do Congresso de postos que ela de uma forma ou de outra sempre contara como seus (os quais recuperou com Temer).

Mesmo sob o mudancismo de FHC não chegou a ser necessária uma troca de gente como a do PT, pois o tucano chegou à presidência com uma história política e uma estrutura de alianças que levou a uma certa acomodação natural com as forças conservadoras que sempre lotearam entre si os postos estatais. Como já foi dito aqui (no item II), a chegada do PT ao poder federal levou a uma troca da guarda – em alguns casos, mesmo ministros de outros partidos tinham de aceitar a nomeação de petistas para cargos em seus ministérios. Ora, essa troca teve de ser compensada com a distribuição de outras benesses aos parlamentares dos outros partidos da base, o que explica parte do ICG dos governos de Lula e Dilma: não é que eles foram inábeis, é que havia mais bocas a alimentar, pois a junção de governabilidade com resposta à sociedade obrigava o Executivo a satisfazer tanto as exigências de obter maioria(s) num Congresso majoritariamente conservador e reacionário, quanto aos reclamos da sociedade civil organizada que queria mudança (e empregos!).

Esse problema Temer não tem, pois além de distribuir todos os cargos que arrancou ao PT, deu as costas à sociedade e como que abolindo a governabilidade soldou a fratura Executivo-Legislativo, brindado e blindado que foi pela maioria congressual que enjambrou e à qual paga regiamente, em troca de poder presidir com meros 5% de aprovação popular (depois de ter dito que Dilma não poderia governar com apenas 13%) esse Estado de Direito Autoritário conflagrado em facções e em crise de legitimação. Essa é a explicação para o falso enigma de Pereira sobre a “popularidade” congressual do Temer impopular na sociedade!

O êxito jornalístico do artigo de Carlos Pereira é uma proeza digna da que ele atribui a Temer: depois de entregar o que de antemão sabia agradar a plateia que lhe interessa, recebe os louros pelo suposto trabalho duro,  “contraintuitivo”, de convencê-la daquilo em que ela já queria acreditar. Pereira desponta como solista no coro dos institucionalistas liberais de plantão, que celebram o funcionamento e a maturidade das nossas instituições, não obstante não parem de se horrorizar com o que se passa nelas.

Vamos ver no que isso vai dar nas eleições de 2018 – o que nos leva a considerar 3.1. acima, pois ao dar tão claramente as costas para a sociedade, a maioria do Congresso, que sustenta Temer, está a fazer uma aposta. Parece evidente que nenhum desses profissionais é tonto o bastante para fazê-la por ter sido envolvido pela habilidade do golpista…

O desafio é entender o que os políticos profissionais estão a considerar como efeito eleitoral mais provável seja do rentável apoio à impopular manutenção de Temer na presidência, seja da aprovação congressual das suas reformas não menos impopulares, já que, como digo, a aspiração à reeleição é parte do que orienta as escolhas dos políticos profissionais diante das proposições do Executivo, especialmente em anos eleitorais. Há quem julgue sem risco a aposta em curso, outros a julgam arriscada e poucos a entendem como suicida. Como quer que seja, parece improvável que Temer emplaque mais alguma das suas reformas, por mais que os apostadores contem com o pouco discernimento do eleitor. Se eles estiverem com a razão, quem deseja transformar o Brasil viverá dias sombrios depois das eleições de 2018.

Como sabe quem acompanha este blog, não vejo coisa mais importante e oportuna a fazer do que fomentar o fim da reeleição para o Legislativo. Chega dos mesmos!

REGRESSÃO AUTORITÁRIA COMO AMEAÇA

Carlos Novaes, 02 de outubro de 2017

Duas entrevistas publicadas hoje pelo UOL são muito relevantes para quem busca entender onde poderá desembocar a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário que a ditadura paisano-militar nos legou, um arranjo institucional que no curso da confusão dos últimos trinta anos veio sendo erroneamente defendido como se fosse um Estado democrático de direito, como se democracia eleitoral bastasse para fixar um Estado de Direito Democrático.

Enquanto o pacto pela desigualdade pôde prosseguir em sua marcha nefasta, na qual primeiro incluiu (agora sabemos até o preço) e depois levou ao topo, em sucessão, o PSDB e o PT; enquanto não vieram à tona as contradições entre um sistema eleitoral aberto e uma desigualdade sem paralelo, que infelicita a grande maioria dos votantes, foi possível fingir estar sob um Estado democrático de direito, e isso graças principalmente a dois dispositivos: primeiro, quem sofria o autoritarismo aberto das ações de Estado eram “apenas” as populações pobres, da periferia, que jamais deixaram de receber o pé na porta ou de serem achadas pela balas perdidas; segundo, o pacto pela desigualdade, em sua versão liderada por PSDB e PT, “compensava” os mais pobres com políticas de “inclusão”. Esses dois dispositivos acomodavam as coisas na medida para que formadores de opinião da classe média bem pensante enaltecessem o que julgam ter sido a grande conquista saída das lutas da sua geração: o Estado democrático de direito – esse fetiche engoliu a autointitulada esquerda, inclusive boa parte daquela que jamais lutara propriamente por democracia.

Agora, quando a chamada crise econômica tornou impossível continuar a empurrar a desigualdade com a barriga e explicitou toda a insustentabilidade dos benefícios recém-distribuídos; agora, quando cálculos políticos errados (próprios de um mercado político em ação plena, onde todos estão incluídos no jogo, mas sem suspenderem suas rivalidades) acerca das vantagens partidárias que poderiam ser obtidas dessa crise econômica levaram a que um impeachment desastrado e desastroso explicitasse uma crise de representação e, de roldão, desencadeasse uma crise de legitimação do próprio Estado, obrigando seus ocupantes a trazerem para suas próprias entranhas o exercício faccioso dos poderes institucionais que rotineiramente castigam, desde sempre, a franjas mais pobres da sociedade; agora, quando a implosão engaiolada fez da luta de facções o método para arbitrar perdas e ganhos no jogo bruto pelo poder de Estado, um jogo do qual a Constituição é uma peça, não a regra, podendo ser suprimida ou devolvida ao tabuleiro segundo o andamento do jogo; agora já não dá para sustentar que havíamos construído um Estado democrático de direito.

Mas nossos analistas convencionais não se dão por achados e insistem em ver a situação como uma crise “institucional” e, então, ficam a fazer a defesa do “nosso Estado democrático de direito”, rogando às facções em luta que respeitem a Constituição, tal como se fosse razoável pedir aos chefões do tráfico de drogas que respeitem o código penal! Tudo se passa como se fosse possível, a um só tempo, deplorar a ação institucional dos titulares dos mais altos postos dos três poderes da República, registrar suas arbitrariedades, reclamar do seu desrespeito à Constituição, e, depois, celebrar o fato de que “as instituições democráticas estão funcionando”, como se esse funcionamento não se desse justamente na exata medida da vigência daquilo que censuram, com toda sorte de decisões arbitrárias, danosas e ilegítimas! Veja bem, leitor: nem PSDB, nem PT, nem os intelectuais que orbitam à volta deles, podem reconhecer a crise de legitimação do Estado brasileiro, nem reconhecer que ele entrou em crise precisamente porque é um Estado de Direito Autoritário, sem mecanismos para a solução democrática dos seus conflitos, mormente os distributivos; e não o podem porque fazê-lo exigiria que os dois partidos reconhecessem a própria ilegitimidade e que seus intelectuais finalmente reconhecessem como vieram enganados na guerra de trinta anos que julgavam ter vencido.

Portanto, essa convocação estapafúrdia para que preservemos um Estado que jamais tivemos é especialmente danosa nessa crise. Ela nos desvia das duas tarefas principais dessa hora tão difícil: constatarmos que o perigo de regredirmos a uma forma estatal ainda mais autoritária só faz crescer (o inimigo avança em todas as frentes) e, então, lutarmos para fazer da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário uma oportunidade para criar mecanismos de construção de um Estado de Direito Democrático.

É nessa ordem de ideias que encaixo minha análise das duas entrevistas mencionadas no início deste artigo. Se você veio até aqui, aguente mais um pouco.

A primeira entrevista é do general Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército (aquele que “escolheu”, sob o silêncio de Temer, não punir o general Mourão, que recentemente opinou por uma saída militar para a crise). A segunda é do pesquisador alemão Christoph Harig, que recentemente defendeu no King’s College de Londres sua tese de doutorado sobre o uso de tropas em ações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO, como no caso da Rocinha e da presença militar brasileira no Haiti). As duas entrevistas se complementam pelo que trazem de esclarecimento tanto sobre o que está em jogo, quanto sobre nossa cegueira diante do seu desenvolvimento.

COMENTÁRIO À ENTREVISTA DO GENERAL

O que está em jogo é a volta do protagonismo militar no Brasil. As incursões no Rio, tenham ou não sido pensadas desse modo, vão se fazendo um treino para uma prática mais aberta da tutela militar que a Constituição ambiguamente já prevê (o que é ambíguo em teoria, ganha seu caráter inequívoco via escolhas práticas, de uso).  No artigo de anteontem, aludi a uma entrevista do general secretário da comunicação do Exército. Hoje, as palavras dele são não apenas inteiramente retomadas pelo comandante da Força, como ampliadas: os militares estão a reclamar mudanças drásticas no ordenamento legal do país de modo a dar desenvoltura ao seu papel de polícia. Estão a ver um oportunidade na junção da crise de legitimação do Estado com a chamada crise da Segurança na sociedade, uma oportunidade que depende, claro, de que não se reconheça que ambas as crises têm o mesmo fundamento: a desigualdade.

Por isso, as demandas são tipicamente facciosas:

– permissão para violar direitos civis (de pessoa e domicílio).

O general não poderia ter sido mais claro, pois defende o “estabelecimento de instrumentos legais que priorizem o direito coletivo sobre o individual, possibilitando um emprego mais eficiente das tropas no combate à criminalidade”. É ou não é uma nova versão para as abordagens diferenciadas do comandante da ROTA? Estou curioso para ouvir o que têm a dizer nossos liberais sobre essa proposta “comunista” do comandante do Exército, para quem os cidadãos das comunidades parecem não ser propriamente indivíduos…

Ou seja, pretendem tornar legal o que a PM já faz na marra, numa regressão autoritária para lá de atrevida. Fazendo coro com os defensores do nosso suposto Estado democrático de direito, os generais entendem que para consultar a sociedade sobre essa legalização de violações basta submeter ao Congresso, a este Congresso — que não nos representa e ao qual eles próprios, quando convém, criticam –, um projeto de lei que as autorize, uma vez que a “própria possibilidade de ocorrência de danos colaterais envolvendo civis inocentes, deve ser avaliada atentamente pela sociedade”.

– tribunal próprio para julgar os “efeitos colaterais” dessas violações.

O que só pode ser interpretado como a busca por uma franquia para a impunidade. Segundo Villa Bôas, a “Força é equipada com armas e munições com alto grau de letalidade, alcance e capacidade de transfixação, e vem sendo empregada em áreas civis urbanas, densamente povoadas”, o que põe o militar em ação sob “elevado nível de estresse”. E completa: “A dinâmica recente do clamor social pelo emprego de forças militares parece apontar para a necessidade de um incremento das ações militares no combate ao crime organizado”.

Ou seja: ao invés de encarar o que há de impróprio no uso urbano de suas armas e munições, o general quer usar o que há de histérico nos apelos por segurança e pela volta dos militares como argumento para legalizar a insegurança que a presença da sua Força nas ruas vai gerar! Tenha sido planejada ou não, está dada, na prática, a largada para uma regressão autoritária que reunirá protagonismo militar com a manutenção da atual rotina eleitoral para a escolha de todos os mandatos da República. É urgente que se obrigue os pré-candidatos à presidência a se posicionarem nessa matéria, pois, a continuar assim, consagraremos outro perfil para as Forças Armadas, tornando parte da paisagem a presença delas nas ruas para impor a ordem, o que é uma ameaça direta ao direito de manifestação.

– incremento orçamentário

Os generais enxergam na crise uma oportunidade de defender ganhos para si em detrimento do restante da sociedade. Mas o general vai além, pois reveste sua demanda de um arremedo de preocupação social: segundo ele, “uma maior destinação de recursos para o combate ao crime organizado, em uma época de dificuldade econômica, deixando de priorizar outras áreas importantes para o país” é uma escolha que a sociedade tem de fazer – como se o aumento das oportunidades para o engajamento dos adolescentes e jovens no crime que ele se propõe a impropriamente combater com recursos adicionais não fosse função direta dessa falta de prioridade em “outras áreas importantes para o país”.

– a solução final

Ao final da entrevista, o comandante do Exército brasileiro chama o uso da força de argumento: “o emprego de tropas em GLO não pode se tornar uma ação trivial. Há que se lembrar de que o Exército é o último recurso do Estado. Como último argumento, ele não pode falhar!”

Assim, com exclamação, o general criou a figura esdrúxula do “argumento” que não pode falhar, quando o que é próprio do argumento é precisamente a sua falibilidade. É nesse rumo que estamos indo…

COMENTÁRIO À ENTREVISTA DO DR. HARIG

Não obstante faça uma rica e persuasiva análise sobre o aumento das operações de GLO, pelas quais, desde Lula, os presidentes da República vieram imprudentemente incrementando a presença das FFAA nas ruas, Harig parece comprar pelo valor de face as declarações dos militares e, por isso, depois de constatar que

“desde 2010, os governos federais aumentaram continuamente sua dependência dos militares em relação à segurança pública, o que, sem dúvida, aumentou a visibilidade das forças armadas no país. A Minustah [operações no Haiti] desempenha um certo papel neste processo, pois os políticos parecem ter percebido a utilidade de usar os militares em ambientes urbanos –ou pelo menos a possibilidade de usá-los para fins de marketing político”,

Christoph Harig opina que “apesar da justificada indignação pelo discurso do general Mourão, ainda considero improvável uma intervenção militar. Eu argumentaria que as pessoas que têm poder de decisão dentro das Forças Armadas não estão interessadas em uma intervenção, e ainda menos em governar o país.”

Ora, a questão, naturalmente, não é saber acerca de em que a FFAA estão “interessadas”, mas sim de antecipar que tipo de interesses elas podem passar a ter depois de experimentarem certas práticas, especialmente quando se considera o ambiente faccional em que estamos. Afinal, nada garante que o interesse marqueteiro que orientou os políticos tenha mantido a sua vigência depois de um uso tão prolongado e cada vez mais amiúde da prática de convocar as FFAA, uma vez que os militares não estão aí para obedecerem ao papel de figurantes em peças de propaganda… Por outro lado, essas novas práticas estão a mostrar que as FFAA podem aumentar seu grau de tutela sem propriamente uma intervenção e, nesse caso, pode ser até muito mais confortável, para elas e para o establishment, que se conserve a rotina eleitoral para a escolha de governos civis.

Harig argumenta que Mourão não foi punido também porque Temer é fraco e não está em condições de entrar em atrito com os militares, o que é verdade; entretanto, esse argumento está em contradição com a opinião dele de que os militares estão insatisfeitos com as convocações para a GLOs, uma vez que elas são determinadas pelo mesmo presidente fraco… Se eles não as quisessem, mesmo, poderiam impor isso a Temer. Ou seja, o analista pode estar deixando escapar um “interesse” novo dos militares pelas GLOs, que os leva ao ponto de defender incisivamente alterações no marco legal do país, bem como um incremento orçamentário.

Finalmente, mas não por ser menos importante, vale mais uma vez salientar que essas incursões militares no Rio têm sido tão onerosas quanto inócuas, o que por si só deveria deixar claro que já não há apenas marketing político em jogo, pois ninguém quer propaganda contrária. Vamos ver.