Carlos Novaes, 02 de setembro de 2018
[Com acréscimos em Fica o Registro, em 03/09]
A situação de Lula põe o tema da “transferência de votos” no centro da eleição presidencial de 2018. O tema é interessante porque, além dos contornos circunstanciais do caso, se trata de uma situação, em si mesma, banal: quando alguém, A, pretende transferir uma intensão de voto em si para determinada outra pessoa, B, o que A pretende é influir decididamente no percurso do eleitor que vai desde um desejo seu (votar em A), passa pela frustração desse desejo (não poder votar em A) e, dela, chega a um novo desejo (votar em B). Grosso modo, trata-se de uma situação social que todos, mesmo uma criança ao tentar levar outra a trocar de brinquedo, já vivemos.
Para entender os parâmetros que regem esse mecanismo complexo no ato de trocar o candidato em quem votar, é necessário explorar, antes da “transferência” do voto para B, a motivação para o voto em A.
Há muitos anos desenvolvi um metodologia de pesquisa para explorar a motivação para o voto. Para abreviar a exposição, vou explicar essa metodologia tão esquematicamente quanto possível, deixando de lado certos refinamentos.
COMO É FEITA E PROCESSADA A PESQUISA ELEITORAL
- Logo depois da pergunta estimulada sobre em quem o pesquisado votaria se eleição fosse hoje, vem a pergunta aberta: “por que você dá seu voto a fulano?” (pergunta aberta é aquela em que o entrevistador deve anotar exatamente as palavras do entrevistado, inclusive com eventuais erros de português e incoerências manifestas).
- Depois, todas as respostas à pergunta aberta são transcritas num programa de computador.
- Em seguida, tendo em mãos todas as respostas, o especialista passa a buscar agrupa-las em tipos, de modo a obter uma classificação nova que permita reduzir o leque de motivações para o voto o mais possível e de um modo analiticamente profícuo.
Com base na repetição desses três passos acima sobre o resultado de muitas pesquisas eleitorais, desenvolvi uma grade de motivações que está dividida em quatro hemisférios, cada um deles subdividido em rubricas, como a seguir.
COMO É FEITA A CLASSIFICAÇÃO DAS RESPOSTAS À PERGUNTA ABERTA
Hemisfério_1: Emocional/moral/afetivo
Aqui são reunidas todas as respostas em que os entrevistados disserem votar no seu candidato segundo emoções, valores e/ou afetos que não vierem acompanhados de qualquer cálculo custo-benefício imediato ou distante; por exemplo:
1.1. Menções à honestidade, coragem, autenticidade do candidato.
1.2. Menções à relação do candidato com aspectos afetivos, tais como: “é da minha terra”, “é da minha raça/cor”, “é do meu gênero”
1.3. Outras menções emocionais partilháveis.
Hemisfério_2: Racional/instrumental
Aqui são agrupadas todas as respostas que indicam um cálculo custo-benefício, imediato ou distante; por exemplo:
2.1. Menções ao programa e/ou a propostas do candidato
2.2. Menções ao preparo técnico do candidato
2.3. Menções a benefício recebido do candidato em troca do voto (um saco de cimento, uma consulta médica)
2.4. Menções às realizações passadas do candidato (foi um bom prefeito/deputado; fez uma ponte no meu bairro, etc)
Hemisfério_3: A inserção política do candidato
Aqui são agregadas todas as referências feitas ao partido do candidato (ou a partido ao qual ele se contraponha), a seus aliados/desafetos e/ou à sua história política em geral; por exemplo:
3.1. “É do partido tal, que eu apoio” — ou “é contra o partido tal, que eu detesto”
3.2. “É aliado/parente/adversário do político tal, a quem admiro/rejeito”
3.3. “Troca sempre de partido, não tem rabo preso” ou “é fiel, nunca trocou de partido”
Hemisfério_4: Motivações Idiossincráticas
Aqui são reunidas respostas tão pessoais que o eleitor não teria como, dentro do razoável, pretender convencer outra pessoa a acompanhar seu voto com base no mesmo motivo; por exemplo:
4.1. “Voto nele porque sou chegada num coroa”; “porque se parece com a minha mãe”, “porque soube que ele mora numa casa amarela como a minha” e por aí vai…
Note-se, de antemão, duas coisas: primeiro, que não se perca de vista que essa separação razão-emoção não pretende que haja uma razão pura, sem emoção, ou vice-versa (uma complexidade que não é o caso enfrentar aqui); segundo, nessa variada classificação acima eu não faço diferença entre quem escolheu o candidato dizendo que “gosto muito da proposta dele para enfrentar o problema do déficit fiscal”, e quem o fez dizendo que “voto porque ele me deu 300 tijolos”. Muito pelo contrário, para mim essas duas respostas têm o mesmo valor, ou seja, ambos os eleitores tem uma motivação muito clara, fundamentada num cálculo custo-benefício inequívoco. Ambas as respostas são classificadas por mim como “racional/instrumental”.
Na mesma linha, são classificadas como “moral/afetiva” tanto aquela resposta que deu como motivação para o voto a “honestidade” de um candidato, quanto a que partiu da consideração de que ambos têm a “mesma cor da pele”. Procedimento que se repete quando num outro hemisfério alguém diz que vota porque o candidato é do partido tal, ou, pelo contrário, porque ele combate o partido tal: o importante, aqui, é o fator partido.
A VARIAÇÃO DAS MOTIVAÇÕES NO CURSO DA CAMPANHA
Minha experiência com pesquisas mostra que as motivações acima variam no curso de uma eleição: no princípio, quando ainda não há propriamente campanha na rua, as motivações são mais epidérmicas e, com isso, prevalecem as respostas dos hemisférios 1 e 4, especialmente o 1. Mais adiante, quando passa a haver campanha e o eleitor passa a se interessar e, principalmente, a falar da eleição, há um movimento que chamo de “troca de motivação”, e os eleitores motivados pelos hemisférios 2 e 3 passam a predominar nas pesquisas, especialmente o 2.
Por isso, as motivações do primeiro e do quarto hemisférios são chamadas de fracas; e as do segundo e do terceiro são chamadas de fortes. Isso quer dizer que quando motivado por 2 e/ou 3 o eleitor tem uma preferência mais sólida, mais difícil de mudar — já quando motivado por 1 e/ou 4 o eleitor pode mais facilmente ser levado a trocar de motivação e, no embalo dessa troca, pode também ser levado a trocar de candidato, descartando a preferência a que fora levado pela motivação (fraca) anterior.
O CASO DE LULA NO PRIMEIRO TURNO DE 2018
Embora não disponha de nenhuma pesquisa atual com dados sobre motivação para o voto, vou tentar, com base na experiência pregressa, oferecer elementos para que você, leitor, possa fazer um juízo melhor acerca das chances da manobra de Lula.
Em 2010 Lula não fez propriamente uma “transferência de votos” para Dilma, pelo menos não como tenta agora, pois naquela eleição Lula não poderia mesmo ser candidato. Ou seja, o eleitor não foi levado a uma motivação para votar em Lula e, depois, a teve frustrada. Dilma não foi beneficiada por uma transferência de votos, mas por uma transferência de prestígio.
Em 2018 é bem diferente, pois há dois tipos básicos de eleitores com motivação para votar em Lula: primeiro, aquele eleitor que prefere mesmo Lula, e tendo desenvolvido uma motivação de votar nele descobre, agora, que não poderá fazê-lo; segundo, aquele eleitor que desenvolveu a motivação para declarar voto em Lula exatamente porque antecipou que o ex-presidente teria sua candidatura barrada. Embora o primeiro contingente deva ser significativamente superior ao segundo, este não deve ser desprezível, como o crescimento recente nas pesquisas parece mostrar.
PROBLEMAS PARA TRANSFERIR O VOTO DO ELEITOR QUE PREFERE LULA
Dos que desenvolveram a vontade original de votar em Lula, certamente há motivações em todos os hemisférios apresentados acima. Por exemplo: seus governos o credenciam no grupo 2; sua trajetória e seu partido o credenciam no 3; sua condição de ex-operário e nordestino o credencia no 1 e sua figura controversa e amplamente conhecida deve suscitar apoios pela motivação 4.
Em razão dessa sólida distribuição das motivações tanto pelo grupo das fortes (2 e 3), quanto pelo das fracas (1 e 4), Lula deveria ter construído um processo de transferência negociada com o seu eleitor, uma negociação que respeitaria o fato de que o que predomina no final são as escolhas racionais, não as emocionais.
Mas Lula fez a opção oposta: ele pretende que tudo isso seja dirigido para Haddad de última hora, sob um registro quase puramente emocional, como reparação pelo impedimento da sua candidatura; o que põe problemas sérios.
Primeiro, Lula já não desfruta do prestígio que transferiu para Dilma em 2010 e para o próprio Haddad em 2012. Pelo contrário, Lula está sob o juízo desfavorável da corrupção havida em seus governos, sendo poucos, muito poucos, os que acreditam que ele “não sabia”. Como a pecha de corrupto é típica do hemisfério emocional (1), Lula candidato poderia suplanta-la com as suas realizações governamentais (2), tal como Maluf já fez. Entretanto, não é ele o candidato e a tarefa de vincular Haddad ao prestígio dos seus governos a ponto de neutralizar os danos da Lava Jato no hemisfério 1 não é simples, porque depende de que se acredite que Lula é inocente e de que seus governos justificam o voto em quem ele apontar.
Segundo, Lula não pode simplesmente pretender que o fracasso do governo Dilma (2) não lhe diga respeito. Por isso mesmo, para Lula o melhor é que a discussão propriamente racional não se faça, mas da qual Haddad não poderá escapar, por mais tarde que comece sua participação na campanha.
Terceiro, o próprio Haddad tem um passivo sério no hemisfério 2, pois seu controverso governo na cidade de SP, junto com os desdobramentos da Lava Jato, levou-o a uma derrota em primeiro turno na sua tentativa de reeleição, quando contou com o engajamento de Lula, que agora aparece tentando repetir a manobra… É bem verdade que agora há uma diferença: naquela altura Lula não estava como vítima. Mas, de novo, se trata de um movimento contrário à experiência comprovada: o emocional favorável (Lula) pretendendo suplantar o racional desfavorável (Haddad). E mais: o emocional favorável, mais fraco, vem daquele que transfere, e o racional desfavorável, mais forte, está com aquele que recebe a transferência.
Quarto, o PT, embora conserve 24% das preferências partidárias, não conta com outros 76% de indiferentes, indecisos ou distraídos diante da questão partidária. Não. A Lava Jato motivou na maioria uma rejeição pelo PT, na qual estão eleitores que poderiam votar em Lula, dado o lugar único ocupado por ele na opinião pública. Não há razão para supor, entretanto, que boa parte desses eleitores vá simplesmente transferir para o petista Haddad um voto que estiveram dispostos a dar ao Lula. (Por isso, lá atrás (bem entendido), me parecia mais racional para ele apoiar Ciro. Lula sente a dificuldade e está tentando transpô-la fazendo um arremedo de diálogo racional, dizendo que Haddad foi seu melhor ministro etc).
A INJUSTIÇA CONTRA LULA COMO ATMOSFERA DA ELEIÇÃO
Já explorei em textos recentes a condição de vítima em que Lula está eleitoralmente envelopado. Além do que já foi dito em uns e outros desses textos, parece oportuno analisar a contribuição que essa circunstância dá ao prolongamento da fase propriamente emocional da campanha, um prolongamento que ao adiar o ajuizamento racional, pelo eleitor, do que está em jogo, veio beneficiando a polarização fajuta entre Lula e Bolsonaro.
Se Lula não tivesse sido preso com base num julgamento sem provas, há muito ele seria um candidato sob severo escrutínio. A prisão arbitrária dele e o impedimento da sua candidatura levaram a que se instalasse e perdurasse um ambiente predominantemente emocional, que recebe a ajuda da, e se coaduna muito bem com a, desorientação mais geral que caracteriza a maioria da sociedade brasileira diante da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário: a desorientação é um desvio da razão e favorece o emocionalismo. Há como que uma trava emocional a impedir que a campanha passe da fase emocional (hemisfério_1, fraca), para a fase racional (hemisfério_2, forte), situação para a qual o despreparo dos outros candidatos contribui muito.
Essa atmosfera emocional engoliu até os que se julgam “formadores de opinião” e tem beneficiado não apenas Lula, mas, eu diria, sobretudo, Bolsonaro que, apoiado em Lula, tem sido o grande campeão das motivações emocionais para o voto. A dificuldade para o limitado ex-capitão deveria ser conservar esse eleitor ao ser confrontado com os desafios da governança. Entretanto, diante do despreparo dos jornalistas (vide, por exemplo, o Roda Viva e o Jornal Nacional), que têm se concentrado em discutir com o candidato temas que lhes parecem espinhosos, mas nos quais Bolsonaro não poderia deixar de se sentir à vontade, ele tem não só confirmado e motivado seus eleitores, mas também conseguido parecer melhor do que os outros — se bem que dada a fragilidade deles… Bolsonaro está conseguindo levar adiante uma candidatura presidencial que só tem perna emocional, o que é um caso único na história da redemocratização eleitoral brasileira.
De modo que Lula e Bolsonaro têm alimentado um ao outro com emoções contrapostas, sendo a maior evidência de desrazão o fato de nessa polarização a urgência social estar do lado oposto ao da urgência por ordem, quando as duas deveriam estar juntas, pois os recursos para financiar o social só poderão vir de uma nova ordem, que golpeie essa ordem desordeira que tão bem faz aos ricos e na qual as facções estatais envolvidas na corrupção; na manutenção do arbítrio e dos abusos funcionais, salariais e previdenciários do setor público; e na bandidagem penitenciária não cessam de favorecer o exercício faccioso dos poderes institucionais.
Por tudo isso, só haverá uma segundo turno entre Haddad e Bolsonaro, as duas marionetes, se a maioria da sociedade persistir no engajamento emocional para o voto, fazendo um primeiro turno inédito, no qual, pela primeira vez, não terá havido a passagem da fase das motivações chamadas fracas para as motivações chamadas fortes. Se for assim, o segundo turno será dramático, pois quando chegarmos lá a ficha cairá — ou não?
[em 03/09] Fica o Registro:
- A insistência do PT na suposta candidatura de Lula, com anuência de Haddad, mostra que eles não querem, mesmo, fazer qualquer gesto que quebre o elo emocional que parte do eleitorado mantém com Lula até aqui. O problema é que a hora H vai chegar, e a possibilidade de não haver a troca das motivações fracas pelas motivações fortes nada tem de garantida.
- Aliás, a imprensa traz hoje pesquisas que mostram a campanha de Alckmin na TV já conseguindo abalar o emocionalismo em torno de Bolsonaro. Alckmin reúne as motivações fortes (racionais) do mesmo repertório de apelos conservadores do qual Bolsonaro é o campeão das motivações fracas (emocionais). Se, como a experiência mostra, o tucano corroer o limitado ex-capitão, não há razão para supor que Haddad vá simplesmente surfar na onda emotiva gerada por Lula; afinal, Lula e Bolsonaro estão polarizados com base na mesma fragilidade: o elo entre o emocionalismo e a desorientação da maioria da sociedade diante da crise de legitimação. O tempo é curto, mas, ainda assim, não vou ter motivos para surpresa se nem Haddad, nem Bolsonaro estiverem no segundo turno.
- O desafio analítico dessa reta final de campanha é entender como a maioria da sociedade vai preferir iniciar a construção de uma saída para uma crise de legitimação que ela não enxerga (não obstante sofra tremendamente por causa dela) em circunstâncias em que ela própria, por não enxergar a crise, não construiu alternativas transformadoras e, assim, dispõe de um leque de candidaturas presidenciais muito frágeis, muito aquém da encrenca em que estamos metidos (o incêndio do Museu Nacional é mais do que uma metáfora precisa).