Carlos Novaes, 20 de abril de 2023
Com acréscimos em 21/04 e ++ acréscimos em 22/4, na seção Fica o Registro
Com dois vídeos bem recentes: o caso do GSI e Política como Profissão
Lula insiste no figurino de “pacificador”, equívoco que o levou à rendição tanto no front interno como no front externo da atuação de seu governo.
No front interno, depois de engolir afrontas militares que deveriam ter sido repelidas com exonerações e novas nomeações, o Lula “pacificador” precisou de 37 ministérios para agradar as mais díspares facções estatais e, por isso mesmo, montar um governo disfuncional — observe, leitor, que o governo de Lula é ainda mais heterogêneo do que o arco de adesões que recebera na campanha. Lula está no comando de um governo ao qual não consegue dar um vetor e se vê amarrado por todo lado, sem margem para atuar.
No front externo, Lula atua com uma desenvoltura sem lastro, que até parece a busca inconsciente por alguma compensação às limitações do front interno. Toda a vontade tolhida na política interna se derrama em voluntarismo megalomaníaco na política externa, onde Lula volta a atacar de “pacificador” como se tivesse força para isso. Acabou por se mostrar, a um só tempo, rendido aos interesses imediatos da Rússia (que quer parar a guerra de modo a consolidar territórios ocupados), e manobrado ao sabor dos interesses estratégicos da China (que pretende reincorporar Taiwan e ganhar terreno contra os EUA na construção de esferas de influência em âmbito mundial).
Nos últimos dias, a falta de rumo do governo — provocada pelo impulso “pacificador” de agradar a todos — apareceu tanto no recuo da decisão de revogar isenção fiscal para compras via internet até 50 dólares, quanto na falta de pulso para resolver o caso do vazamento das imagens que mostram o general do GSI omisso diante de vândalos agindo dentro do Palácio do Planalto no 8 de janeiro. No caso do recuo na taxa de importação, Lula preferiu ouvir palpiteiros e decidir segundo “pesquisas” do que seguir o penoso e pensado programa de sua área econômica. No caso do general, Lula, ao invés de impor razões de Estado para encaminhar uma solução, se rendeu a tal ponto às relações facciosas (indevidamente classificadas como “corporativismo”), que abriu mão até de figurar como líder diante da crise e endossou que o omisso general Gonçalves Dias deixasse o cargo “porque quis”!
Pesquisas nessa fase do governo podem informar, mas não devem orientar a ação governamental. Afinal, um governo seguro de seus propósitos e resoluto em suas escolhas deveria absorver contrariedades atuais na opinião pública em prol de medidas que venham a dar frutos no futuro, pois há tempo de sobra. Além de corrigir distorções de mercado, o fim da isenção na taxa de importação elevaria a arrecadação e, portanto, ajudaria a financiar políticas que agradariam a opinião pública num momento posterior — além de fortalecer a equipe econômica e mostrar que o governo tem algum rumo.
O caso do general Dias reforça a impressão de governo sem rumo, pois Lula, além de se mostrar desinformado (ele não vira as imagens gravadas pelas câmeras do próprio palácio!?), teve escancarada a sua falta de pulso para debelar o que houve de participação militar na cumplicidade com a baderna do 8 de janeiro, em ainda acabou por se render à instalação da CPI para investigar o ocorrido, uma CPI que, segundo ele, só iria “criar tumulto”.
O caso da posição de Lula diante da guerra da Rússia contra a Ucrânia foi discutido aqui faz mais de dois meses e, nesse período, Lula conseguiu piorar o que já era muito ruim. É que, agora, Lula acrescentou inabilidade e, parece, oportunismo à sua pregação estapafúrdia pela “paz” entre atores “igualmente responsáveis pela guerra”. A pregação é estapafúrdia porque desconsidera que a guerra se passa exclusivamente em solo ucraniano, cuja população arca sozinha com os custos do massacre promovido por Putin. A inabilidade está na forma como Lula tratou os EUA e a Europa. Afinal, criticar o envio de armas à Ucrânia como uma atitude contrária à paz é desconsiderar que sem armas o país invadido seria simplesmente subjugado pelo invasor.
O oportunismo está no fato de que Lula apresenta como “solução” para a guerra a cessão da Criméia à Rússia. Ora, qualquer pessoa informada sabe que esse é o desfecho provável, pois a Ucrânia não tem condição nenhuma de retomar a Criméia. Por isso mesmo, um chefe de Estado que se diz defensor da “independência, inviolabilidade territorial e autonomia” dos Estados soberanos não poderia jamais apresentar tal inescapável realidade cruel como “çábia” proposta sua, especialmente quando tal desfecho é dado como certo depois de uma guerra sangrenta! Será vergonhoso se Lula vier a reivindicar que “tinha razão” quando, finalmente, a guerra parar com a Rússia mantendo a Criméia ocupada.
Note, leitor, como é profunda a desorientação de Lula: no front interno, ele insiste em chamar de “luta pela democracia” sua imersão nesse jogo de facções estatais em busca de poder para fazer dinheiro, e ainda tenta esconder isso atrás do espantalho de um golpe ditatorial que já vimos ser inviável; no front externo, porém, abandona a democracia e a aversão à ditadura e (ao contrário do que disse na campanha) se alinha com os interesses de Bolsonaros que “deram certo” (Putin, Xi Jinping, Ortega, Maduro) e põe sob tensão desnecessária e contraproducente nossas relações com os EUA e as democracias europeias, que foram importantes no combate a Bolsonaro.
21/04
Fica o registro:
Não poderia haver exemplo mais claro do jogo entre facções estatais que paralisa em desorientação o governo Lula do que os desdobramentos dessa crise do GSI. De um lado, temos notícias de que, segundo o ministro à frente do GSI interinamente, Ricardo Cappelli, Lula determinou “acelerar a renovação” e “despolitizar” o gabinete. De outro lado, temos o ministro da Defesa, José Múcio, se apressando em declarar que a interinidade de Cappelli (um civil) deverá durar pouco, pois, na opinião dele, “não é hora de mudar o perfil do comando”, ou seja, Múcio, na trilha dos acertos facciosos desde a transição, se apressa em garantir que o comando continuará sob um militar. Ora, além de tardia, a tal aceleração já começa a ser freada pela Defesa — tudo em nome de acertos facciosos.
A aceleração é tardia porque deveria ter começado no dia 02 de janeiro. Se Lula tivesse compreendido o que se passara na transição, teria iniciado o governo substituindo os três comandantes militares nomeados por Bolsonaro naquela pantomima facciosa em que José Múcio se enrolou. Pergunta: como foi possível que o GSI tivesse permanecido repleto de militares leais a Bolsonaro, mas com chefia de um general de Lula? Resposta: o jogo de facções explica isso, pois tudo se faz com acertos, que não levam em conta as diferenças, que são realçadas apenas para o jogo deles de faz de conta com a sociedade. Uma vez lá, eles sempre acham que vão se acertar. Foi deixado ao general fazer, na maciota, o que deveria ser feito com resolução e até espalhafato. Foi tão na maciota que, só agora, mais de 100 dias depois da posse e de tudo o que houve no dia 8 de janeiro, Lula manda acelerar…
Ao contrário do que quer Múcio, que está freando também a revisão do artigo 142 da Constituição, Lula tem de desmilitarizar completamente o GSI, mantendo Cappelli ou outro civil na chefia do gabinete. Na verdade, dentro da lógica contra-facciosa que defendo, Lula deveria nomear uma mulher civil para a chefia do GSI.
22/04:
O governo Lula e a autointitulada esquerda estão a reclamar, com razão, da edição evidentemente manipulada do vídeo da CNN com imagens do que se passou no Palácio do Planalto no dia 8 de janeiro. Entretanto, se há um evento em que “os dois lados são igualmente responsáveis” é exatamente este, afinal, foi o governo Lula que decidiu esconder essas imagens da sociedade, dando espaço para manipulação, se elas vazassem… (e, felizmente, vazaram, pois, do contrário, jamais saberíamos da extensão facciosa do ocorrido). Foi o governo Lula que abriu mão de fazer a luta política aberta, dando à sociedade elementos para compreender por si mesma o que se passou naquele dia do blefe final do mito do golpe. E Lula nos sonegou essas informações depois de ele próprio ter declarado que assistiria às gravações, pois estava convencido de que tinha havido conivência por parte dos militares do Planalto!
Por que no dia 8 o general Dias ainda tinha sob “seu” comando no GSI militares nomeados por Bolsonaro? Não estamos falando de estruturas territorialmente ramificadas e complexas como a PF ou a PRF, mas de um gabinete que trabalha dentro do Palácio do Planalto, com acesso direto ao dia-a-dia do governo, espaço, evidentemente, reservado apenas a um punhado de pessoas de estrita confiança. Lula e Dias tiveram todo o período da transição para escolher os novos funcionários do GSI e planejar o que fazer nos dois primeiros dias de governo. As exonerações e nomeações poderiam ter se iniciado no dia de 02 de janeiro. Mas não: Lula levou seu cálculo errado sobre os militares para dentro da cozinha do Planalto e fez de Dias mais um agente da política inercial do jogo de facções, no estilo amador de que “os militares se entendem”. Deu no que deu: o general vagando omisso pelos corredores do Planalto invadido, sem pulso sequer para dar ordens aos seus subordinados bolsonaristas.
Evidentemente, a baderna do 8 de janeiro, assim como as omissões no combate a ela, são de exclusiva deliberação do bolsonarismo, e todos os “golpistas” têm de ser exemplarmente punidos. Mas, observe, leitor, como esse caso do GSI ilustra o jogo de facções estatais contra a maioria da sociedade: Lula reclama da polarização, mas quer esconder sob a fantasia de “pacificador” o fato de não integrar a sociedade no que há por fazer contra o bolsonarismo; pelo contrário: esconde intramuros estatais tudo o que pode, tentando até evitar uma CPI sobre o 8 de de janeiro, à qual, só agora, se rendeu. Ou seja, ao invés de chamar a sociedade à luta contra o bolsonarismo, Lula não para de fazer acertos faccisosos contraproducentes — escolha que nos permite perceber que, no fundo, Lula não acredita nessa polarização que, não obstante, alardeia… isto é, Lula sabe que não há (como nunca houve) risco de golpe, e só alimenta essa quimera para manter a maioria da sociedade cativa desse alarmismo, muito confortável para quem quer nos fazer engolir um governo que é a casa da mãe Joana das facções estatais. Note bem: a suposta ameaça de um impeachment contra Lula é a nova peça do alarmismo.
Diante do vazamento das imagens, Alexandre de Moraes, mais uma vez, não perdeu tempo e correu para tomar a frente do processo com providências que ele já deveria ter tomado faz tempo. Veja bem, leitor: só agora Moraes requereu a entrega das imagens dos militares envolvidos no apoio explícito aos arruaceiros — enquanto puderam, evitaram integrá-las ao processo, tendo sido deixadas para tratamento de uma sindicância interna do Planalto…
Por quê? Resposta: porque os agentes do Estado estão empenhados em um jogo de facções estatais para tentar (em vão) estancar a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, empenho no qual é fundamental refazer as relações entre as facções, reintegrar militares e outros desgarrados do bolsonarismo, adubar e regar novamente o solo comum, tão danificado pela avacalhação do golpe contra Dilma e pelas tensões adicionais trazidas pela ascensão e queda de Bolsonaro.
No front externo, Lula declara em Portugal o contrário do que declarou na China sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia. Ao que parece, Lula está com esperanças de tirar proveito do oportunismo de Macron, cujo ziguezague sobre a guerra já apontamos aqui. Macron está novamente a desdizer o que disse sobre “derrotar Putin” para, junto com outros, apresentar como “plano de paz” um rol de medidas que já foram antecipadas neste blog faz mais de um ano! O problema é que naquela altura Putin ainda não havia massacrado as cidades e a população civil ucraniana, como fez depois. Além disso, um analista como eu está em seu papel quando especula alternativas; ao passo que um chefe de Estado não pode fazer o mesmo, pois está invadindo competência do país invadido!! Definitivamente, ninguém poderá se exibir como “pacificador”, nem, muito menos, “visionário”, quando essa guerra acabar com a Ucrânia cedendo algum território à Rússia. Agora, neste momento, quem está agindo certo são os EUA e o Reino Unido.
Se posicionar com neutralidade e por diplomacia parece mais acertado do que por lenha na fogueira num conflito que opõem ucranianos a ucranianos russófonos. Segundo consta, foi esse o motivo da intervenção russa na Ucrânia, já que os territórios ocupados são habitados por maioria de origem russa que estariam sendo massacrados desde 2014.
Historicamente, todos os conflitos armados só acabaram com negociações. Nesse caso, antes cedo do que tarde contribuindo assim com o fim da matança e destruição que todo ser humano deplora, pelo menos a maioria.
Esperemos que outros governantes e personalidades responsáveis se juntem a essa iniciativa de pacificação de um conflito que pode num gesto de loucura levar senão à destruição total do planeta, no mínimo ao sofrimento de bilhões de pessoas. Há políticos alemães e franceses que propuseram também a pacificação desse conflito.
Sei, sei: pacifismo, neutralidade e diplomacia enquanto a Ucrânia é massacrada numa guerra não provocada e que se dá apenas em território ucraniano. As razões de Putin não têm nenhum amparo na realidade, pois não havia massacre algum de populações russófonas. Esse seu “segundo consta” é muito desinformado. À medida que seus supostos motivos são desmascarados, Putin vai mudando a prosa: entrada na OTAN, terras histórias da Rússia, populações russófonas e, mais recentemente, a existência da própria Rússia estaria ameaçada. Ele pula de galho em galho, pois o motivo real era tomar terras férteis do país vizinho — mas cometeu vários erros de cálculo.
Reuniões de acerto entre vencidos e vencedores em uma guerra não caracterizam término “por negociação”. Por favor, não repita aqui disparates que viu na mídia. São poucas as guerras que terminam com negociações. A segunda guerra mundial acabou no campo de batalha, assim como a primeira, bem como a do Iraque e muitas outras.
Fazer a paz agora seria dar 20% do território ucraniano para a Rússia. Ou seja, premiar o agressor criminoso por sua agressão. Políticos que propõem isso são aliados de Putin, ou irrelevantes no cenário internacional, ou ainda estão fazendo luta política interna em seus países contra governos europeus responsáveis, que entendem o que está em jogo numa guerra de invasão russa em solo europeu. Lula (em quem votei) está cheio de si e passando vergonha, até pelo grau de desinformação sobre o que está em jogo.
Enfim, a posição pacifista é sempre a mais fácil, pois não tem de estudar a situação nem sequer pensar na realidade, fica apenas manejando valores abstratos, ingenuamente.