Carlos Novaes, 22 de agosto de 2017
Folha – De que reforma política o Brasil precisa?
Luís Roberto Barroso – O Brasil precisa desesperadamente de uma reforma que, no sistema eleitoral, tenha três objetivos: baratear o custo das eleições, aumentar a representatividade no Legislativo e facilitar a governabilidade. O sistema atual é muito ruim, frauda a vontade do eleitor.
Folha – De que reforma política o Brasil precisa?
Novaes – O Brasil conta com um dos melhores sistemas eleitorais do mundo: voto proporcional individual com a opção de voto em lista (o voto na legenda partidária), contemplando as duas preferências básicas do eleitor: voto no indivíduo em quem confia, ou voto no partido que prefere. O problema está na combinação de desigualdade com o incentivo financeiro (fundo partidário) à multiplicação de partidos, combinados à reeleição infinita para o Legislativo. A multiplicação partidária dificulta a governabilidade. A reeleição leva ao distanciamento da sociedade. Sem fundo partidário não precisaria de cláusula de barreira, que é antidemocrática. Sem reeleição, viriam as mudanças que a sociedade quer, impedindo mais uma transição fajuta, como dito no artigo de ontem.
Folha – Qual seria a solução?
Barroso – Acho boa a proposta do voto distrital misto. Divide a circunscrição em quantos distritos forem o número de cadeiras na Câmara. São Paulo, por exemplo, terá 70 distritos, e aí o político faz campanha num espaço delimitado. Acredito que pode ser a salvação da política no Brasil. Barateia a eleição e você pode verificar como foi o desempenho do seu candidato.
Além disso, o Senado já aprovou a cláusula de barreira e a proibição de coligação em eleições proporcionais. É preciso contar com o patriotismo dos parlamentares da Câmara para aprovarem essas duas providências, indispensáveis para que a política recupere a sua credibilidade. Numa democracia, política é gênero de primeira necessidade. Tudo o que eu falo, ainda que em tom crítico, é a favor da política.
Folha – Qual seria a solução?
Novaes – Acabar com qualquer financiamento público aos partidos, obrigando-os a correr atrás da própria sustentabilidade. Acabar com a reeleição para o Legislativo, mesmo para cargos diferentes. Isso levaria ao fim da política como profissão, arrancando-a da divisão social do trabalho. Política não é uma carreira vetorial, é uma atividade transversal, mais detalhes aqui e aqui.
Falar em voto distrital misto é besteira da grossa. Barroso não entende nada do assunto, pois, se é misto, não seriam 70 distritos em SP, mas 35. O “misto”, ministro, significa que só metade das cadeiras seria eleita em distritos, a outra metade seria eleita pelo voto proporcional (em lista, ou não). Tal como Delfim Neto, Barroso ouviu o galo cantar mas não sabe onde e, então, além de erros primários, deixa escapar detalhes do seguinte tipo: São Paulo teria 35 distritos para a escolha de metade dos seus 70 deputados federais; mas como ficaria a escolha de seus 94 deputados estaduais? Como o número 94 não é múltiplo de 70, teríamos de desenhar outros 47 distritos para estadual. Nesse caso, um mesmo eleitor estaria em dois distritos, um para escolher o seu representante estadual, outro para escolher o federal. Cada um deles reuniria realidades diferentes, confusão que, ademais, acabaria com as tradicionais e benéficas dobradinhas partidárias e é oposto da clareza que os defensores do novo modelo apregoam. Para inúmeros outros detalhes, veja aqui e aqui.
Folha – Para quando devem ser feitas essas mudanças?
Barroso – Cláusula de barreira e o fim das coligações defendo que valham para o ano que vem. O distrital misto eu desejaria [também], porém a demarcação dos distritos talvez seja complexa demais. Eu até tentaria. No entanto, se passar para 2020, já estou satisfeito.
Novaes – Como não faz nenhum sentido fazer apelos ao “patriotismo dos deputados” (um apelo desses ultrapassa até o cinismo), minha proposta pode ser posta em prática pela mera adesão do eleitor: basta não votar em quem detém ou já deteve qualquer mandato legislativo.
Folha – Mas uma das propostas mais cotadas é a do distritão.
Barroso – O distritão é péssimo. É caro, enfraquece mais ainda os partidos e empodera os deputados para um tipo de negociação individual que vai tornar o sistema mais corrupto. Como eles vão chegar à Câmara sem nada dever aos partidos, porque não vai haver distribuição de voto por legenda, a negociação com o Executivo não será feita partidariamente, mas isoladamente.
Novaes – O distritão é péssimo: dificulta a mudança, pois valoriza quem já é conhecido, sem dar chance às novidades que, a duras penas, ainda surgem dentro dos partidos; joga fora o voto de milhões de eleitores, especialmente o voto de opinião das inúmeras minorias; faz da eleição um todos contra todos, o que tornará ainda mais difícil fazer da política uma ação coletiva.
Folha – E o “semidistritão”, que combinaria elementos dos dois modelos e tem sido cogitado?
Barroso – É muito ruim também, ligeiramente menos ruim [do que o distritão].
Novaes – É ainda pior, pois como os Estados não seriam subdivididos, haveria uma disputa maluca para estar nas duas pontas: na lista e no voto individual. Barroso está, definitivamente, completamente por fora.
Folha – Como vê o fundo eleitoral?
Barroso – Esse fundo, que para o meu gosto não é democrático, primeiramente não pode ter R$ 3,6 bilhões. É inaceitável neste momento em que as pessoas estão perdendo o emprego, não estão recebendo aposentadoria; o Supremo demitiu os ascensoristas.
Gastar esse dinheiro é a questão simbólica da falta de sintonia com a sociedade. Se o preço a pagar pela transição para o distrital misto for um fundo com valores decentes, eu aceitaria pagar o preço. Mas tem que ser de R$ 1 bilhão para baixo.
Folha – Como vê o fundo eleitoral?
Novaes – Tem de acabar com o Fundo Partidário e não tem de haver Fundo Eleitoral. Ambos são um mau emprego para o dinheiro público, já tão escasso. Os políticos têm de correr atrás do voto e do dinheiro. Eles já não querem fazer nem isso!
O ministro Barroso vai tão confuso que mistura modelo eleitoral com financiamento de campanha, quando não há ligação necessária entre as duas coisas. O voto tem de ser individual proporcional com opção em lista (como já é), mas sem qualquer dinheiro público.
Folha – Que modelo o sr. defende?
Barroso – Sou contra o financiamento por empresas. Não consigo imaginar uma forma de regulamentação que impeça a extorsão, o achaque, a corrupção. Os dois símbolos desse modelo, tanto na iniciativa privada quanto no Congresso, estão presos [casos de Marcelo Odebrecht e de Eduardo Cunha].
Já existe financiamento público, com o fundo partidário e o horário na TV. O ideal é o financiamento com doações de pessoas físicas.
Folha – Que modelo o sr. defende?
Novaes – Sou favorável ao financiamento voluntário privado por pessoas físicas e jurídicas, mantendo-se o esquema atual de difusão pública por rádio e TV. Como já disse aqui, ambos teriam o mesmo teto nominal, baixo, algo como 100 mil reais (nenhuma relação com renda ou faturamento, portanto). Ambos seriam exclusivos, ou seja, a pessoa ou a empresa deverão escolher apenas um partido para contribuir e, nele, apenas um candidato em cada tipo de mandato em disputa. Com pouco dinheiro para todo mundo, uma campanha com caixa 2 destoaria muito, facilitando a fiscalização seletiva e a denúncia pública.
A ideia de que a contribuição de empresas leva à corrupção é falsa de ponta a ponta: primeiro, os políticos inventaram que as campanhas caras levam à corrupção. Mentira. Isso é álibi. A corrupção resulta da vontade de ganhar dinheiro – só uma parte dele vai para as campanhas. É a existência da corrupção que leva a haver dinheiro para campanhas caras. Elas encareceram porque a corrupção só faz aumentar e traz dinheiro a rodo!
Segundo, a corrupção eleitoral não está no dinheiro lícito que as empresas alocam. A corrupção está no caixa2, que já é proibido… logo, se não se consegue fiscalizar o caixa2, não faz sentido acreditar que proibir o caixa1 vá resolver alguma coisa.
Finalmente, partidos são instituições privadas e têm de ser capazes de se sustentarem como tal – com dinheiros privados.
Folha – O sr. está confiante na aprovação dessas mudanças?
Barroso – A população hoje tem mobilização para evitar retrocessos. Mesmo com toda a “operação abafa”, a Lava Jato subsiste, empurrada por uma sociedade que se cansou da velha política e da velha ordem.
Novaes – Não. A população assiste. Ela sequer escolheu lado na barafunda do teatro de operações da Lava Jato (Barroso repete a leitura errada do procurador Deltan Dellagnol, que já refutei aqui). Estamos à mercê de uma luta de facções. Os políticos estão fazendo o que querem e, por enquanto, o futuro não parece ser uma consolidação da democracia.
Folha – Há essa mobilização em relação à reforma política?
Barroso – A reforma política é o tema mais importante em discussão no Brasil, mas o cidadão comum não tem tempo para entender esses meandros, não tem a dimensão da relevância. Tecnicalidades não mobilizam a população, é assim em qualquer lugar do mundo.
Novaes – Não. O tema mais importante é o fim da reeleição para o Legislativo. Em todo o mundo há uma crise da representação legislativa, que tem levado a alguma reação, mais vigorosa aqui e ali, como na Espanha e na França, com sentidos diferentes, mas que devemos acompanhar para ver no que dá. No Brasil a crise é mais grave porque a desigualdade levou a uma dinâmica política especialmente perversa, autônoma em relação à sociedade em geral. Desorganizada, ela assiste.