Carlos Novaes, 02 de novembro de 2022
Com acréscimos sobre negociatas em curso na seção Fica o Registro, em 03/11
O criminoso governo Bolsonaro piorou a vida da maioria dos brasileiros, tendo degradado mais a dos assalariados e, especialmente, a dos pobres — dentro de pouco tempo teremos números a demonstrar que Bolsonaro aumentou a desigualdade. Compondo essa maioria descontente há minorias que tiveram as vidas destroçadas, basta pensar nas vítimas da Covid, nas populações indígenas, nos que foram mortos pela violência policial, nos que tiveram suas vidas inviabilizadas pelo desemprego, ainda mais quando acompanhado da fome, ou ainda nos que sofreram a violência oriunda do recente incentivo ao porte de armas de fogo.
Nas linhas a seguir, vou tentar demonstrar que classificar a vitória eleitoral obtida contra Bolsonaro por essa maioria descontente como uma “vitória da democracia” não apenas (i) negligencia o potencial emancipatório do esforço feito, mas faz dessa negligência uma manobra para (ii) encobrir a derrota que essa vitória traz embutida para a maioria de nós, e da qual muito rapidamente começaremos a sentir o gosto, embora isso vá se dar mais como sentimento do que como entendimento sobre o que se passa.
Só teria havido uma “vitória da democracia” se a democracia tivesse passado por alguma ameaça séria. Ela não passou. Embora tenha blefado à vontade, nada do que Bolsonaro fez ameaçou as franquias democráticas, que sempre estiveram aí — sem qualquer contestação precisamente porque são a própria vigência da democracia em movimento e a serviço de um Estado de Direito Autoritário –, a tal ponto rotinizadas, essas franquias democráticas, que jamais deixaram de receber o elogio protocolar, mas apropriadamente enfunado, de Lyras, Gilmares e Alexandres, como deu exemplo a querela em torno do voto impresso ou a adequada defesa do papel desempenhado pela imprensa.
Se a democracia tem sempre estado aí, contando com defensores até mesmo na base dura de Bolsonaro (como o presidente da Câmara dos Deputados, ou o Ministro da Casa Civil do governo dele), não há porque falar em vitória da “defesa” dela (aliás, é como “defensores da democracia” que Lyra e Ciro Nogueira vão abrir caminho para se acertarem com Lula…). Celebrar a derrota eleitoral de Bolsonaro como uma “vitória da democracia” (i) negligencia o potencial emancipatório do esforço feito porque — ao desconsiderar as motivações reais que levaram os eleitores, em sua repulsa aos sofrimentos oriundos da desigualdade, a votarem contra Bolsonaro — tal celebração dilui aquelas motivações a ponto de torná-las estranhamente compatíveis com o que motiva os democratas Lyras e Ciros em seu empenho para manter a desigualdade!
Bolsonaro foi derrotado pelo governo que fez, e em cujos crimes e mazelas, que incrementam a desigualdade, estão implicados muitos dos “defensores da democracia”, num conjunto de complexidades que procurei explicar detalhadamente aqui, aqui e aqui.
A negligência explicada acima serve como manobra para (ii) encobrir a derrota que no fundo sofremos porque o que não faltam são inocentes bem-intencionados para serem manobrados por espertalhões. Toda essa alaúza em torno da “ameaça à democracia” se nutriu inocentemente de paralelismos históricos precários que a nossa autointitulada esquerda (com os progressistas a reboque) gosta de fazer para atrair para si a aura dos grandes momentos da existência humana, soberba que, dessa vez, chegou até mesmo a comparar atabalhoadamente o Brasil atual com a Alemanha dos anos 30, onde Bolsonaro seria um Hitler, cabendo à nossa autointitulada esquerda posar afetando ora a lucidez de um Trotsky (domesticado a ponto de virar um obediente lulopetista), ora o refinamento democrático de um Habermas (amassado a marteladas até servir à preservação “frentista” do nosso Estado de Direito Autoritário).
Com o espantalho da grande ameaça a um suposto Estado democrático de direito, mito ao qual aderiram inocentes e espertalhões, criaram-se as condições para encobrir o fato de que todas as ações e omissões governamentais que levaram aos sofrimentos havidos sob Bolsonaro estiveram abrigadas pelo “de Direito” do Estado de Direito Autoritário e, por isso mesmo — exatamente por não ter passado de degradação do ruim que já estava abrigado nessa forma estatal (na qual o “Autoritário” garante a vigência facciosa do “de Direito”) –, nada desse horror levou ao afastamento do responsável, que permaneceu “de Direito” no cargo, e ali ficará até que se cumpra, “de Direito”, o prazo para a posse do novo presidente escolhido pelo exercício pleno das franquias democráticas que Bolsonaro jamais teve condições para impedir de funcionarem.
A vitória de Lula foi uma vitória nossa porque era necessário derrotar Bolsonaro, uma vez que não poderíamos permitir que esse facínora continuasse a empregar o “de Direito” de maneira tão acentuada e descaradamente “autoritária”, voltada a aumentar a desigualdade. Mas essa vitória já passa a se exibir como derrota quando vemos que o governo Lula se anuncia, como já sabíamos, como mais uma tentativa de preservação do Estado de Direito Autoritário, sem reconhecer sua crise de legitimação, com Lula figurando como grande articulador dos interesses das facções, todas voltadas para o objetivo de reunir poder para fazer dinheiro através do exercício faccioso dos poderes institucionais.
A primeira evidência disso, pelo que traz a mídia, é a notícia de que teremos mais de trinta ministérios — quer dizer, ao invés da força do Estado como agente de combate à desigualdade, vamos ter o Estado como abrigo a infortunados pela desigualdade — e tudo para preservar os interesses dos que ganham com a desigualdade, afinal, os ricos não podem perder. Ao invés de tonificar a capilaridade do Estado em um fluxo de transformação recíproca com a sociedade, vamos ter a abertura dos poros do Estado para mais um esforço de cooptação despolitizante, que muitos julgam ser a qualidade “agregadora” de Lula — como celebrou Haddad recentemente no Flow, Lula seria “tão agregador” que mesmo com seu governo avaliado como bom e ótimo por 87% nas pesquisas, ele se perguntava como agradar os 4% de ruim e péssimo, ou seja, Haddad festeja como qualidade justamente um defeito de Lula: ao invés de discriminar para transformar, quer agradar a todos, o que o impede de enfrentar o problema central (isso é muito bom para a carreira de um líder carismático, mas é péssimo para o país).
Em suma, ao invés de um Estado forte, vamos ter um Estado flácido, versão degradada do Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação, afinal, precisamente porque vai abrir os poros, esse Estado ficará sem tônus para arbitrar as perdas necessárias ao combate à desigualdade, única maneira de desatar as amarras que impedem o desenvolvimento do país.
Fica o Registro:
– Aos que me cobram análises sobre o que se passa nas rodovias, informo que não vou fazê-las porque tudo está correndo como previsto há muito tempo: essas arruaças só servem ao blefador, e, mais uma vez, contra os próprios participantes, coitados, pois Bolsonaro está repetindo o seu “estelionato ideológico como método”, usando seus extremistas para preparar sua própria “anistia”, num acerto de facções.
– Uma anistia a Bolsonaro, seja ela direta ou, mais provável, por debaixo do pano, vai nos levar de volta à situação do final da ditadura paisano-militar de 64: mais uma vez, o jogo das facções estatais vai trair a maioria da sociedade, que será levada a engolir como vitória a derrota pela qual a contemporização entre elites vai, mais à frente, nos obrigar a reencontrar os mesmos problemas.
– A separação entre espertalhões e inocentes úteis fica muito clara nas redes sociais: os inocentes se ocupam dessa irrelevância que se passa nas rodovias, como se isso tivesse alguma importância, e chovem comentários indignados, imagens, memes, vídeos — quanta bobagem, quanta energia desperdiçada. Enquanto isso, os espertalhões promovem os acertos entre as facções estatais. De modo que o que se passa nas rodovias tem mão-dupla livre: distrai bolsonaristas e a autointitulada esquerda, cada grupo fazendo a sua catarse ali onde não interessa.
– Aliás, está explícito que esse acerto de facções já começou, com o encontro havido hoje entre Bolsonaro e Alckmin, do qual o vice de Lula saiu fazendo deferências exageradas ao besta. Tudo vai se armando para que Bolsonaro se sinta protegido a ponto de não atrapalhar (muito) o início do próximo governo.
– O fato de o STF, depois de todos os insultos e afrontas, ter feito aquela pantomima de receber Bolsonaro trazendo para si um reconhecimento da derrota que deveria ter partido dele já havia mostrado como já vai longe o acerto das facções estatais — nada conspirado, a coisa toda flui por música, afinal, trata-se de uma coreografia de séculos.
– Em sua independência costumeira, o jogo das facções no Estado de Direito Autoritário vai cumprindo por si o que os teóricos do frentismo sonharam como obra de sua engenharia política de prancheta: assim como facções militares foram fortalecidas no período Bolsonaro sem que fosse necessário um novo pacto e, mais adiante, foram desmoralizadas porque apostaram do lado errado da guerra de facções em torno da urna eletrônica; também agora a teoria da construção de uma “direita civilizada” já vai dando certo sem precisar dos teóricos da engenharia política: Tarcísio venceu em SP e Alckmin avança como figura oportuna seja na relação com o que resta do governo Bolsonaro, seja nas operações de acomodação para o governo que vai se formando. Quem precisa de teoria para fazer isso?!!