VOTO “PELA DEMOCRACIA” E ANISTIA A BOLSONARO

Carlos Novaes, 21 de setembro de 2022

Com acréscimo em Fica o Registro para comentar a importante nota lançada por Fernando Henrique Cardoso, em 22/09.

A conjuntura política ficou frenética e, por isso, há muitas linhas abertas requerendo análise. Todo o esforço cognitivo deve, portanto, se concentrar naquilo que pode convergir para uma compreensão mais completa do que se passa, especialmente quando cogitamos sobre os obstáculos e as tarefas para a construção de um Estado de Direito Democrático.

A campanha pelo chamado “voto útil” ganhou as redes e se alastra em velocidade e intensidade que tornam praticamente certa a vitória de Lula já no primeiro turno. Como dito, há velocidade e intensidade, mas não há diversidade, pois o texto é o mesmo para todos: a assim chamada “defesa da democracia”.

O frentismo levou à adesão a Lula com base na defesa da democracia e, agora, cada um dos novos apoiadores faz o mesmo. Ou seja, não há sequer menção a qualquer conteúdo efetivamente programático. Um apoio desses é, sim, um cheque em branco para Lula, pois a vitória dele já significará para essas pessoas a realização de uma meta: defender a democracia. Ou seja, a maioria de nós está se empanturrando por antecipação: encomenda a Lula a mera remoção desse bode fétido que a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário-EDA pôs na sala.

Ora, já vimos detalhadamente aqui e em outros muitos posts deste blog que a democracia não está ameaçada por Bolsonaro, que este imbecil tem sido nocivo não pelo que diz contra a democracia, mas pelo que faz contra a maioria de nós utilizando os poderes do EDA. Quer dizer, deveríamos estar apoiando Lula com base em um programa sobre o que fazer com a democracia que já temos; ou seja, deveríamos estar discutindo o que fazer com a democracia que a maioria de nós garantiu contra as fantasias golpistas de Bolsonaro.

Ao não fazermos nenhuma exigência para votar em Lula, estamos dando um cheque em branco para que ele se faça prisioneiro das suas próprias limitações, sendo a maior delas a ilusão de poder restaurar circunstâncias havidas em seus mandatos anteriores, coisa que, na verdade, é impossível, quando mais não fosse porque, dessa vez, Lula está ainda mais cercado de interesses contrários ao que realmente interessa: enfrentar a desigualdade na perspectiva de construir um Estado de Direito Democrático.

Assistindo ao que vimos aqui, bem como lendo posts mais antigos deste blog, você pode entender que a aliança “frentista” entre Lula e Alckmin não passa de encenação anacrônica para uma necessidade antiga, mas que caducou: lá atrás, em 1993, Lula e Jereissati apontaram para a possibilidade de uma aliança PT-PSDB que, então, era uma demanda não explícita, mas real, da maioria da sociedade brasileira. Trinta anos depois, essa aliança Lula-Alckmin não passa de metáfora perversa daquela necessidade: é metáfora porque versão simbólica (anacrônica) de algo que já foi real; e é perversa porque em lugar de atender a uma demanda da sociedade (que há trinta anos foi real), essa aliança atende agora uma demanda das facções estatais. E isso justo na hora em que a maioria da sociedade repudia as facções dos profissionais da política, que manejam o Estado de Direito Autoritário que a infelicita.

Lula-Jereissati teriam conduzido o Brasil a uma transformação, derrotando as forças residuais da ditadura (mas eles preferiram a moleza de ficar um contra o outro numa polarização fajuta, para a qual se apoiaram em pedaços do que deveria ser derrotado); Lula-Alckmin tentam conduzir o país a mais uma acomodação com os interesses das facções estatais que sobreviveram à ditadura e vicejaram nesse Estado de Direito Autoritário-EDA a que nos conduziu a traição de PSDB e PT.

Esse EDA está em crise de legitimação, como já expliquei aqui e em outros posts deste blog. As facções empenhadas na vitória de Lula têm no apoio a ele a sua esperança de contornar essa crise de legitimação, tudo sob a camuflagem de defender a democracia. Eleger Lula é, para eles, a possibilidade de relançar o EDA, estancando a crise que o sentimento antissistema deixa ver, ainda que sem nitidez. O ápice dessa acomodação viria com uma anistia a Bolsonaro e seus asseclas.

Veja bem, leitor, assim como lá atrás, o Estado de Direito Autoritário foi fundado com base na concessão de uma anistia para torturadores, o que ficou sendo o símbolo máximo da capitulação da luta por um Estado de Direito Democrático; agora, uma anistia a Bolsonaro (que fez do país uma câmara de tortura) aparece como um lance faccioso coerente e nada surpreendente, quando entendemos que eles buscam salvar o mesmo EDA — sendo especialmente coerente que essa ideia tenha vindo a público na boca de Temer, um político do p-MDB desde os tempos da ditadura que serviu à polarização fajuta entre PSDB e PT e, ademais, é uma espécie de dublê de Alckmin, como há mais de vinte anos mostrei aqui, ao vivo, diante do próprio Temer.

Insistir na ideia vazia de que a vitória de Lula salva a democracia abre caminho para essa anistia inaceitável. Já vejo os argumentos deles: “para salvar, mesmo, a democracia, temos de pacificar o país; para pacificar o país temos de conter o (suposto) comportamento antissistema de Bolsonaro (no qual há quem veja ímpeto revolucionário – a que ponto chegamos!!); para conter a ‘besta antissistema’, nada melhor do que anistiar a ele e à sua família”…

Tudo no parágrafo anterior é falso, leitor. Repitamos: a democracia não está ameaçada, justamente porque o besta não tem força para ameaçá-la, como vimos detalhadamente neste vídeo aqui; não temos de pacificar o país, pelo contrário, temos de ser capazes de divergir acerca do que fazer com a democracia que já temos e garantimos, como vimos nesse vídeo aqui; Bolsonaro não é antissistema, ele é cria e atua dentro do velho normal e não passa de um blefador; anistiar Bolsonaro para contê-lo, além de ser um ataque à democracia, é um gesto vazio, pois Bolsonaro não vai ter a menor condição de ameaçar o que quer que seja depois de derrotado — ao contrário do que dizem 11 entre 10 analistas da mídia convencional, sustento que Bolsonaro vai desaparecer no curso da longa noite em que ele entrará com a derrota (com ou sem anistia).

Em poucas palavras: votemos em Lula, mas tendo claro que votar nele “em defesa da democracia” já é um primeiro passo para reforçar a condição de Lula como mediador de facções estatais e, com isso, encaminhar a anistia para Bolsonaro — ambas são ações de Estado contra os interesses da maioria da sociedade.

Fica o Registro:

– Está em curso a “cristianização” da candidatura de Ciro. Para quem acompanha este blog, essa situação foi antevista, de maneira fundamentada, há mais de um ano, como se pode ler aqui.

– Começa a ficar clara a deserção dos bolsonaristas das redes sociais. Bem, essa reação foi antecipada aqui ainda antes do mais recente 7 de setembro desmoralizante para o besta. Como vimos, o enfraquecimento nas redes do bolsonarismo raiz pode levar a uma deserção no voto dos eleitores menos convictos de Bolsonaro. Não ficarei surpreso se Bolsonaro chegar ao final do primeiro turno abaixo dos 30% de votos.

22/09:

– Fernando Henrique Cardoso lançou uma nota sobre as eleições que diz assim:

Peço aos eleitores que votem no dia 2 de outubro em quem tem compromisso com o combate à pobreza e à desigualdade, defende direitos iguais para todos independentemente da raça, gênero e orientação sexual, se orgulha da diversidade cultural da nação brasileira, valoriza a educação e a ciência e está empenhado na preservação de nosso patrimônio ambiental, no fortalecimento das instituições que asseguram nossas liberdades e no restabelecimento do papel histórico do Brasil no cenário internacional.

Segundo o UOL/Folha e muitos outros, “FHC defende voto pró-democracia”. Ora, foi justamente isso que ele não fez!! Leia e julgue por si mesmo: sequer há a palavra democracia na nota. Depois de enfrentar problemas substantivos, cuja resolução nos falta, como a desigualdade, FHC defendeu o “fortalecimento das instituições que asseguram nossas liberdades”, ou seja, fortalecer (não defender) as franquias democráticas de que já dispomos. Enfim, além de manifestar indiretamente repúdio a Bolsonaro, FHC deixou claro que está olhando lá adiante e, seja lá por quais caminhos, também desprezou a pauta boboca que orienta o frentismo – por isso mesmo, não nomeou Lula. Gostei.

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