Carlos Novaes, 10 de setembro de 2021, às 18:59h
Depois do Day after e de suas primeiras consequências, na vertigem do dia 09, chegamos ao dia 10 de setembro. Bolsonaro continua a ser a questão por uma razão simples: este imbecil é o presidente da República. Quer dizer, não é que Bolsonaro seja tão genial que nos mantenha fixados nele, seguindo a pauta ditada por ele. Não. Tudo decorre de um erro monumental cometido pela maioria da sociedade brasileira, que o elegeu. Gênio ou imbecil, ele não poderia senão ocupar o centro das atenções.
Como é o presidente da República, e como o protagonismo derivado do exercício do cargo o coloca no centro das atenções, somos levados a vê-lo como forte. Como ele atua sobretudo provocando danos e sofrimentos, não podemos deixar de vê-lo pelo que é, um mal. Mas disso não decorre que ele esteja a se fortalecer como um genial agente do mal. Por mais poder que ele detenha por força do cargo, ele não está mais forte agora do que estava no dia 7 de setembro. Pelo contrário, ele está mais fraco. Esse é o ponto. Como antecipado aqui: Bolsonaro saiu do fiasco do 7 de setembro ainda mais longe dos seus objetivos.
Na verdade, se o objetivo dele for tornar-se um ditador, ele nunca teve chance. Se o objetivo dele for a reeleição, ele se fez derrotar no curso do último ano e meio de incompetência, desumanidade e blefes. Se o objetivo dele for livrar da cadeia a si e aos seus, ele ainda tem chances, que derivam da capacidade de ele explorar a suposta ameaça que representa à democracia — e explorar nas duas vias: (i) junto àqueles que o apoiam, que julgam estar num projeto ditatorial, mas estão servindo de massa de manobra na luta do besta contra (ii) as facções adversárias que fazem dele o principal problema a enfrentar e têm o poder de colocá-lo na cadeia. Em suma: ele usa o gado para negociar com as facções adversárias um modo de escapulir.
Não é o caso de tentar entrar na cabeça de Bolsonaro (que fedor!) para saber a qual desses três objetivos ele está, a cada vez, conscientemente perseguindo. Qualquer pessoa sensata pode considerar que o besta navega em delírio (e ao sabor dos fatos) entre esses três portos, tentando não afundar num impeachment e buscando garantir proteção mínima no final. Quando muito delirante, ele acha que tornar-se ditador está visível da proa do veleiro. Quando em seu estado normal, obtuso, ele não enxerga os danos e sofrimentos que provocou, e fantasia embarcar na chalana de uma candidatura eleitoral viável. Quando obrigado ao pragmatismo pelo jogo das facções, ele maneja o bote salva-vidas para escapulir das consequências das malas-artes da família. Vem dessa navegação alucinada a impressão de que é louco ou gênio. Nem uma coisa, nem outra. Bolsonaro é limítrofe e, por isso, é inútil, por exemplo, tentar saber se ele pensa o próprio recuo como uma tática: seja como for, o recuo se impôs e o tornou ainda mais fraco.
A crença de que Bolsonaro é um gênio do mal depende de uma outra: da crença de que ele representa uma grande ameaça à democracia, ou a um suposto Estado democrático de direito. Esmiuçemos isso.
O primeiro passo é compreender que nessa crença, as duas suposições giram em falso: nem Bolsonaro é uma ameaça real às franquias democráticas, nem há um Estado democrático de direito a que ele pudesse ameaçar.
Bolsonaro não é uma ameaça real às franquias democráticas não porque não tenha uma ditadura como objetivo, mas porque esse objetivo é completamente inviável. Desde as lutas contra a ditadura paisano-militar de 1964, a maioria da sociedade brasileira persevera na preferência pela democracia, preferência que, no curso de trinta anos, se fortaleceu enquanto (a um só tempo) decorrência e alimento da sua diversidade e complexidade. Embora a democracia não tenha transitado completamente para o aparato estatal, transição truncada que assumiu a forma desse Estado de Direito Autoritário, a maioria da sociedade sabe bem a diferença entre uma democracia almejada, a deformação sob a qual vive, e o que seria uma outra ditadura.
Quando a polícia invade o Jacarezinho, a população sabe que os moradores não estão sendo vítimas da democracia, embora também saiba que a polícia age amparada num Estado de direito. Quando as facções políticas fazem o exercício faccioso dos poderes institucionais, roubando, criando privilégios, protegendo os muito ricos, perseguindo ou discriminando, a população sabe que eles agem se valendo do Estado de direito cujo autoritarismo manejam em proveito próprio, e mais: sabe que eles invocam a democracia que dizem defender justamente para encobrir o uso malsão que fazem do direito. Quer dizer, nessas práticas nefastas há direito, e há autoritarismo; situação típica da deformação sob a qual vivemos no Brasil: o Estado de Direito Autoritário. É por isso que não faz sentido falar em “nossas instituições democráticas”. As nossas instituições são “de direito”, não “democráticas”. Elas funcionam arbitrariamente, distribuindo ou sonegando direitos conforme se é pobre ou rico, forte ou fraco, autoridade ou homem comum.
Bolsonaro venceu a eleição porque parecia antissistema, ou seja, contra esse estado de coisas. Mas ao pretender derrotar o Estado de Direito Autoritário (o “sistema”) propondo uma ditadura, Bolsonaro ficou derrotado de saída: esbarrou na preferência pela democracia da maioria da sociedade e, ao mesmo tempo, deu de cara com a força do Estado de direito construído e manejado pelas facções estatais. O Estado de Direito Autoritário é forte para conter Bolsonaro e fraco para satisfazer a preferência da maioria da sociedade precisamente porque é “de Direito” (tem os instrumentos para conter Bolsonaro e prevê as franquias democráticas para seu próprio funcionamento malsão) e “Autoritário” (suas práticas agridem a maioria da sociedade e também podem ser usadas contra Bolsonaro).
Bolsonaro nunca teve chance precisamente porque delirou transpor o Estado atual com mais autoritarismo, quando a maioria da sociedade quer se livrar do autoritarismo, completando a transição da democracia. Como dito mais de uma vez neste blog, o Estado de Direito Autoritário está em crise de legitimação não por ser de Direito, mas por ser Autoritário; logo, não há um Estado democrático de direito a defender. O que precisamos defender e ampliar sãos as franquias democráticas que nos permitem seguir na luta por um Estado de Direito Democrático. Nossos inimigos principais são as facções dos políticos profissionais e hierarcas do Estado, não este imbecil do Bolsonaro, por mais danoso que ele seja (e é!!).
O que tem dado tração a essa contraposição fajuta entre Bolsonaro e um suposto Estado democrático de direito é o fato de que esse parafuso sem rosca vem sendo “apertado” pelas duas extremidades ao mesmo tempo, uma girando na direção contrária à da outra. Nenhum dos dois lados quer quebrar o parafuso, mas ambos se valem do aumento da tração para alcançar seus objetivos sem que o país saia do lugar. Discutimos mais acima os objetivos de Bolsonaro. O objetivo das facções, aquele que une a todas elas, já foi explorado em vários posts deste blog: restaurar o velho normal, fazendo da derrota de Bolsonaro uma alavanca para relançar o Estado de Direito Autoritário, empurrando com a barriga a crise de legitimação como se ela fosse uma crise entre poderes, uma crise institucional — ou seja, as facções têm Bolsonaro como o bode a ser retirado da sala, mas para isso o fantasiam de fera ferida.
Ora, “fera ferida” é exatamente o que Bolsonaro não é. A fera ferida é perigosa precisamente porque além de preservar todas as suas forças e capacidades, ainda tem o incremento da adrenalina fornecida pelo ferimento que não a debilitou, mas irritou. Acreditar que Bolsonaro ficou mais perigoso decorre da crença contrafactual de que ele vem se fortalecendo como ameaça real ao Estado de Direito Autoritário…
Novaes,
Qual a sua leitura sobre as manifestações do dia 12 de setembro, tendo-se que elas estão sendo organizadas por ex-apoiadores do governo Bolsonaro? Será que, em reunindo número muito maior que a do dia 7, elas conseguem ir além do meramente simbólico, mobilizando forças políticas e deslegitimando o discurso bolsonarista de que o POVO está com o governo?
O discurso de que o povo está com o governo é ilegítimo de saída e a maioria da sociedade tem isso claro. É um discurso para dentro, não para fora. Tenha o tamanho que tiver, a manifestação de hoje na Paulista será mais uma de muitas iniciativas no âmbito da campanha eleitoral aberta prá valer com o 7 de setembro. No plano do Estado, está em curso mais uma etapa do acordão entre as facções estatais (aí incluía a facção chefiada por Bolsonaro), movimento que a maioria da sociedade ainda não entendeu e, por isso, há pressão vã para que o Congresso, covil de facções, encaminhe o impeachment…