SE BLEFAR É RUIM; TEIMAR NO BLEFE É PIOR

Carlos Novaes, 01 de novembro de 2022

Evidentemente, a guerra da Ucrânia não é uma guerra mundial. Mas, após mais de oito meses de intensa atividade bélica, haveria o risco real de estarmos caminhando para a terceira guerra mundial?

Se é verdade que nenhuma das guerras mundiais anteriores teve início como mundial, não é menos verdade que uma guerra sempre é iniciada por quem supõe que pode vencê-la, ou seja, que irá tirar proveito final das perdas infligidas e sofridas. As duas guerras da era moderna que se fizeram mundiais foram iniciadas por quem julgava poder vencê-las. No caso da Segunda Guerra, essa certeza já embutia a hipótese, e até a aposta, de que a guerra se faria, de algum modo, mundial – Hitler, contudo, julgava ter elementos para nutrir a convicção de que, fosse como fosse, sairia vitorioso do conflito.

As coisas mudaram desde 1945, depois que a Segunda Guerra Mundial terminou com o uso unilateral de bombas nucleares pelos EUA. Desde então, à medida que mais e mais países passaram a contar com armas nucleares, ficou claro que, com o fim da unilateralidade, uma guerra nuclear seria necessariamente uma guerra mundial da qual ninguém poderia ter certeza de sair em vantagem, constatação que orientou a chamada “guerra fria”, e veio impedindo potências nucleares de fazerem uso do seu arsenal atômico nas guerras de que participaram. Por isso mesmo, desde 1945 não houve guerras em que potências nucleares tivessem confrontos diretos.

Na verdade, uma das características do envolvimento dessas potências em guerras tem sido, justamente, a obediência à cláusula amplamente aceita de que, embora fazendo guerra para vencer países sem armas nucleares, elas não farão uso da sua “vantagem” nuclear, mesmo quando diante de derrota para oponente mais fraco, uma vez que não poderiam dosar aquele uso apenas contra o adversário direto, necessariamente pondo em risco a si mesmas e/ou, sobretudo, a terceiros. Foram exemplos notórios disso as participações dos EUA ou da hoje Rússia nas guerras do Vietnã, da Chechênia, do Afeganistão, da Geórgia, do Iraque e da Síria. Em suma, se não pretende desencadear um conflito mundial, uma potência nuclear não pode entrar em guerra sem, de pronto, oferecer evidências de que não fará uso de armas nucleares.

Tendo em mente o que foi dito acima, podemos avaliar melhor a extensão do erro de cálculo cometido por Putin ao invadir a Ucrânia, e mais: podemos entender os erros posteriores a que ele tem sido levado justamente em razão da extensão da surpresa dele ante os reveses saídos do erro inicial, que jamais haviam sido imaginados, que dirá previstos.

Putin iniciou a guerra contra a Ucrânia não apenas porque supôs que poderia vence-la, mas, mais importante, porque imaginou que seria fácil ter êxito com um custo quase insignificante para si e seu país. Ou seja, a facilidade com que o êxito viria já indicaria que não se cogitava do uso de armamento nuclear. Imaginando-se lastreado nessas garantias, Putin calculou que – com a complacência dos ucranianos e sob olhar atônito e impotente do resto do mundo – iria anexar parte da Ucrânia e, ainda por cima, colocar o que restasse dela sob controle de um governo obediente a ele, como ocorre com a Bielo Rússia. Foi por isso que a invasão se deu com aquela dispersão de forças inicial: as tropas de Putin ocuparam territórios limítrofes e ainda marcharam alegremente para Kiev no fito de simplesmente depor o governo que, no julgar dele, cairia quase por si. Tudo parecia tão favorável que Putin deveria ter desconfiado, especialmente considerando a própria história da Rússia.

De fato, a história russa tem formidável exemplo anterior de uma guerra que, partindo de pressupostos assemelhados, acabou se dando ao contrário do esperado. Foi a chamada Guerra da Criméia (1853-1856), iniciada pelo Tsar Nicolau-I para expandir o território russo para áreas do Império Otomano em que já havia populações russófonas. Tal como Putin, Nicolau imaginou que suas tropas seriam recebidas com adesão do povo invadido e sem que potências europeias viessem a se importar muito com a anexação… Deu tudo errado: o povo não se levantou favoravelmente, a Áustria, tida como parceira, se posicionou duramente contra a Rússia, e a França e a Inglaterra entraram diretamente na guerra ao lado do Império Otomano. Sentindo o revés, Nicolau tentou recuar, mas os adversários não lhe deram chance precisamente porque constataram que estavam diante de uma oportunidade para tirar vantagem de um conflito que não haviam buscado. De fato, como a inferioridade bélica da Rússia revelou-se notável (o alcance dos seus fuzis, por exemplo, era 1/5 do alcance dos fuzis europeus), o resultado foi uma derrota tão humilhante que teve consequências nefastas até para a continuidade da dominação interna dos Romanov*.

O erro fundamental de Putin foi acreditar que seu desprezo pelo nacionalismo dos ucranianos tinha base real, isto é, ele fantasiou que os ucranianos se sentiam, literalmente, como “pequenos russos”, denominação com que os russos, desde a Rússia Imperial, se referem aos povos eslavos assentados na região que veio a ser definida como a Ucrânia atual (antiga Pequena Rússia**). Putin se deixou embalar pela mitologia eslava que lhe era conveniente e, raciocinando com os próprios desejos, desconsiderou o apego dos ucranianos à sua autonomia e independência, como se eles não fizessem questão de ter um país para si. E pior: Putin não levou em conta que esse nacionalismo ucraniano se definiu e incrementou, antes de tudo, por contraposição, justamente, ao quase milenar chauvinismo despótico da Rússia – se havia alguém contra quem os ucranianos defenderiam seu torrão natal, esse alguém eram justamente os russos.

O brio com que os ucranianos se levantaram contra a invasão pegou Putin desprevenido e logo levou as potências adversárias de Moscou a calcularem que, mutatis mutandis, poderiam estar diante de oportunidade como aquela da Guerra da Criméia. Fecharam-se contra a Rússia em sanções crescentes, passaram a armar a Ucrânia, abriram-se para uma acelerada adesão à OTAN de Suécia e Finlândia e o resultado está aos olhos de todos: o que parecera aos russos um desenvolto passeio por campos vizinhos virou uma medonha decida pelos círculos do inferno. Com isso podemos compreender o aturdimento de Putin diante do contraste entre a certeza da vitória que embalara o início da sua “operação especial” e os reveses crescentes colhidos no curso da guerra que se viu ter de fazer contra um adversário cuja capacidade de resposta subestimara.

A desorientação suscitada por esse aturdimento recebeu um ingrediente adicional: o erro de cálculo fora de tal monta que Putin não se viu em condições de admiti-lo sequer para si mesmo, o que dirá para o resto do mundo (e, menos ainda, para a sociedade russa). Vieram daí os blefes iniciais, com Putin pretendendo fazer parecer que tudo saia como previsto, como se os improvisos crescentes para fazer frente à situação adversa inesperada fossem resultado de cálculo antecipado. Não eram, e isso começou a ficar claro não apenas pelos reveses crescentes no campo de batalha e pela convocação de reservistas, mas, sobretudo, pela retórica nuclear que começou a ser ambiguamente emitida por autoridades russas, pois a situação se revelara de tal maneira atrapalhada que Putin precisou dar a entender que, no limite, sempre contara com o arsenal nuclear de que a Rússia dispõe.

Dizendo o mesmo de outro modo: para encobrir a evidência de que se enganara sobre a facilidade de invadir e submeter a Ucrânia, Putin improvisou a cortina de um suposto cálculo pelo qual o armamento nuclear sempre estivera subentendido como recurso a empregar na superação de dificuldades surgidas no campo de batalha – como a dizer “não precisamos nos preocupar tanto, uma vez que temos as nossas bombas”.

Ora, o problema com essa retórica é que ela não podia ser recebida senão como blefe, pois contraria a cláusula pétrea de que potências nucleares não podem empregar bombas atômicas se não estiverem dispostas a iniciar uma guerra mundial. Essa trapalhada narrativa dificilmente poderia ser menos verossímil, e os governos da OTAN não foram enganados: para inflar o blefe nuclear de Putin e aumentar o desgaste dele quando, finalmente, recuasse, passaram a simular ao público levar a sério as ameaças atômicas, ou seja, como se elas, embora improváveis, pudessem sim ser possíveis, enquanto vieram tomando providências na mão contrária, ou seja, providências de quem está certo de que a situação se resolverá num campo de batalha convencional: aumentaram a coesão entre si, vêm incrementando seus gastos em defesa, intensificaram a entrega de armas à Ucrânia, adotaram sanções crescentes contra a Rússia e, ainda, providências para embutir os prejuízos, bem como transpor as dificuldades, da decisão já tomada de não mais ter o país de Putin como parceiro comercial para a compra de energia. Não levou muito tempo para que o déspota russo – ao descobrir, mais uma vez tardiamente, que perdera tempo – viesse a público, como esperado, para declarar, pessoalmente (embora insistindo em afetar que “tudo caminha como previsto”), que o uso de armas atômicas contra a Ucrânia “não tem sentido, nem político nem militar”; não diga…

A essa altura já se pode ver que não há elementos para que se ponha sequer no horizonte longínquo a hipótese de que a guerra da Ucrânia leve a uma terceira guerra mundial. O que se passa são modificações profundas na OTAN e na União Europeia, todas implicando perdas severas para a Rússia. A OTAN logo será ampliada, com a entrada de Finlândia e Suécia, e fortalecida como gastos em defesa adicionais dos seus membros, o que levará a uma benéfica diminuição da dependência ante os EUA, tudo isso num cenário em que todos passaram a entender a Rússia como um país inimigo. A União Europeia também está a fortalecer seus laços internos em pesquisa e comércio, especialmente para buscar alternativas de energia, o que levará à reconfiguração de políticas comerciais, tudo isso tendo a Rússia como país não confiável para relações desse tipo.

Depois desses quase nove meses de guerra, nos quais um Putin crescentemente surpreso se viu obrigado a blefar até sobre justamente aquilo que jamais pretendeu ou poderia ter pretendido, a elite governamental da Rússia está a reaprender contra si uma velha lição da história: guerras são eventos de que se controla apenas o início.

***

* – O escritor russo Ivan Turguêniev deu tratamento literário aos eventos e desdobramentos da Guerra da Criméia nos três contos cronológicos que incluiu tardiamente em seu clássico Notas de um caçador. No primeiro deles, O fim de Tchertopkhánov, ele trata metaforicamente da Guerra da Criméia; no segundo, Relíquia viva, ele faz o mesmo com as circunstâncias do fim da servidão na Rússia; e no terceiro, Pancadas! , ele antecipa, antevendo mais de 40 anos, os desdobramentos que levarão à aliança operário-camponesa contra o tsarismo. A análise que realizei para fazer aflorar o até então inédito sentido político oculto de cada uma dessas três obras pode ser lida entre as páginas 180 e 228 do meu livro LITERATURA CONTRA IMOBILISMO NA RÚSSIA DO SÉCULO XIX, que pode ser encontrado em formato .pdf aqui.

** – Essa denominação deve ter surgido do desenho cartográfico daquela região, pois mesmo o mapa do que hoje é a Ucrânia continua a parecer uma reprodução, em tamanho menor, do mapa que traz o desenho cartográfico atual da gigantesca Rússia.

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