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MARIELLE COMO MEMÓRIA E ESPERANÇA

Carlos Novaes, 20 de março de 2018

Sendo ela um dispositivo do cérebro, a memória, como sabemos, é plástica como ele: ela assume formas e contornos variados no transcurso do tempo de nossas vidas, essa vida que cada um de nós luta para preservar, enriquecer, atribuir sentido. Essa plasticidade da forma não se dá apenas no espaço, portanto, ela se dá sobretudo no tempo. Resumindo muito: nossa memória retroage e dá significados novos ao passado — recorrer à memória já é, por assim dizer, alterar o passado. E nós o alteramos para ter esperança, que é o vestíbulo para um futuro que nasça da escolha, não da inércia.

A leitura quase ininterrupta de tudo o que tem saído sobre a execução de Marielle e o assassinato de Anderson tem tido sobre mim o efeito de reavivar esperanças que estavam quase mortas. E veja bem, leitor: embora as matérias e o os artigos de opinião venham sendo fundamentais, não é exatamente sobre o conteúdo deles que se erguem minhas esperanças novas, ainda que seja maravilhoso ver tanta gente, com preferências tão diferentes, se ocupar do que é valioso para o bem comum – minhas esperanças estão a ser nutridas graças às reações indecentes, na forma de comentários raivosos e da mentira pura e simples, que os fatos em si e aquele volumoso material decente vem suscitando em certos segmentos. E isso por quatro razões principais:

Em primeiro lugar, o contraste entre as mentiras atiradas às redes sociais e a diligente ação da mídia convencional no sentido de preservar um solo mínimo para a construção de uma memória não facciosa acerca da execução de Marielle e do assassinato de Anderson abre uma oportunidade valiosa para que se entenda a diferença que há entre se informar pelas redes sociais e pela chamada grande imprensa, em favor desta última. Assim, todos estão tendo a oportunidade de aprender que se a mídia convencional nunca é, de fato, neutra ou mesmo imparcial como pretende nos fazer acreditar, ela certamente sobrevive da verossimilhança do que publica, e isso é meio caminho andando na direção da verdade, embora não a garanta (quem acha possível alcançar essa garantia acaba propondo o controle da mídia…). Por outro lado, está a ficar claro para qualquer um que não seja um completo idiota que as redes sociais estão infestadas de raiva e de mentira elaborada. Os raivosos estão a tentar abafar para si mesmos a tremenda complexidade da realidade em que supunham ter aninhado suas limitadíssimas expectativas de acomodação; os mentirosos estão a reagir ao fato de que o que se move sob seus pés não é a prancha com que sonhavam surfar a onda reacionária que parecia estar ao seu dispor.

O material publicado na mídia convencional, provida de mediações, é totalmente diferente do material publicado numa mídia sem mediações como as redes sociais. Na mídia com mediações temos o Sujeito que tem de informar; na mídia sem mediações temos o EU que pode inventar. Na primeira, o indivíduo está contido pelas mediações e não pode simplesmente mentir; na segunda, o indivíduo está livre de mediações e pode mentir à vontade. E mais: a natureza do comportamento daqueles que mentem na mídia sem mediação diz muito da natureza do apego deles pelo homem de Estado que também despreza as mediações, que, como eles, faça e aconteça sozinho, sem freios.

Veja bem o que quero agarrar, leitor: na mídia convencional, uma informação só é transmitida depois de passar por mediações, pois há o repórter, o redator, o editor, o chefe dos editores, o chefe geral da redação e, no limite, o dono do veículo, os quais, juntos, formam o Sujeito da informação; já nas redes sociais, pelo contrário, pode haver apenas o EU superlativo do perdedor isolado, que só presta contas à sua própria raiva. Essas duas formas têm tudo a ver com as formas de exercício do poder político que lhes correspondem: à mídia convencional, cujas informações são submetidas a mediações, corresponde um poder de Estado sujeito ele também a mediações; já ao abutre solitário que faz das redes sociais plataforma para simplesmente mentir como bem entender, só pode corresponder a preferência simplista por um poder de Estado igualmente arbitrário, liberto de qualquer mediação. Eles preferem o Bolsonaro pela mesma razão que os faz preferir mentir: a ilusão de que a sociedade pode ser submetida ao que EU quero.

Em segundo lugar, a marca da invencionice nessas calúnias contra Marielle é tão evidente, seu caráter forjado é tão óbvio, que fica estampada a sua infantilidade conspiratória, ridículo que, a contrapelo, permite que nos libertemos da memória de que o que está em marcha contra a maioria de nós seja uma grande conspiração (chamo a ideia de conspiração de memória porque essa ideia está tão arraigada que funciona como um verdadeiro pano de fundo para o que pensamos). Não há conspiração totalizante alguma. O que há é a reunião de facções no âmbito do Estado, que se fazem e refazem em meio a conspirações, é certo, mas conspirações rivais umas às outras; e também por serem rivais não têm o poder de ditar o resultado final do processo – ainda bem. O “também” grifado antes se explica assim: o final do processo não pode ser antecipado por conspiração alguma porque além da rivalidade entre as facções do Estado em crise de legitimação, há, do outro lado, ainda de forma insipiente, é verdade, a movimentação imprevisível da sociedade, especialmente daqueles segmentos que atuam de forma totalmente independente das facções conflagradas nessa luta pelo controle do Estado de Direito Autoritário ilegítimo (embora seja legal – ele está cheio de leis e conta com o Judiciário respectivo!). Quem teria previsto uma movimentação como a que está havendo em nome de Marielle e de Anderson?

Por incipiente que ainda seja, a movimentação da sociedade vai ajudando a dificultar acordos entre as facções (ainda não conseguiram abafar a Lava Jato, por exemplo), pois até mesmo os acertos muito bem escondidos entre governadores de Estado e líderes de facções nas penitenciárias vão ficando claros para a opinião pública. E note bem, leitor: esses acertos, e sua divulgação, também são expressão da crise de legitimação do Estado, pois desafiados pelas cada vez mais desagregadoras consequências sociais e políticas da desigualdade, os governadores, que devem suas eleições (em última instância…) ao compromisso com a manutenção da mesma desigualdade, precisam se acertar com as facções penitenciárias para tentar neutralizar o potencial explosivo do conjunto ilegítimo, com o que formam um cipoal cada vez mais difícil de esconder e pelo qual todas as facções estatais (penitenciárias, policiais, institucionais e representacionais) tiram proveito relativo do sofrimento absoluto que impõem à maioria da sociedade através do poder de Estado, isto é, segundo o exercício faccioso dos poderes institucionais.

Em terceiro lugar, as ações e reações à execução de Marielle e ao assassinato de Anderson nos permitem abandonar a memória de uma polarização fajuta que aprisiona nosso potencial para a criação política do novo. Esse crime medonho, nas circunstâncias dessa crise de legitimação do Estado, suscitou realinhamentos políticos que podem nos levar a procurar algo mais rico do que a polarização esquerdaXdireita, providência que daria uma chance para a reconfiguração das noções de “nós” e “eles” – veja bem, leitor: estou a sustentar que a polarização esquerdaXdireita é tão sem sentido quanto uma outra que até muito pouco tempo apaixonou multidões e, agora, vai sendo convenientemente esquecida, pois ficou nua em toda a sua fajutice, e sua vacuidade já não se presta às ilusões de ninguém que tenha juízo: PTxPSDB (aliás, não é à toa que como resultado da crise Dória tenha se tornado o verdadeiro líder do PSDB e o PT não tenha para onde correr sem o Lula — e com a horda boçalnara correndo por fora a vituperar que esses dois outros são iguais por serem ambos “comunistas”!! kkkkkk).

Em quarto lugar, a insistência dos mentirosos em vincular Marielle às facções do crime comum trouxe à tona o debate sobre a quem interessaria a execução dela. E o resultado é que resta como plausível que Marielle tenha sido executada a mando do tráfico, da milícia, da banda podre da PM ou de alguma facção paisana da política carioca ou federal. E é exatamente por ser plausível para qualquer um de nós (esteja você de que “lado” esteja) que a responsabilidade do ato possa ser de quaisquer das facções mencionadas, é exatamente por isso que já não se pode ter dúvidas acerca da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário brasileiro: a luta pelo poder igualou a todos e se faz contra a, e às custas da, maioria da sociedade. Essa evidência exige reconfigurar a memória que viemos reunindo sobre a crise em que o país se encontra, pois nos permite dar sentido novo aos acontecimentos e sofrimentos até aqui experimentados, e compreender de outra maneira as atitudes dos diferentes agentes implicados.

Marielle vem sendo o que sempre foi: um ponto articulador para a usinagem mediada de memórias diferentes e, até, conflitantes, mas sempre excluindo a mentira, pois uma memória é, por definição, o oposto da mentira — a mentira é urdida naquilo que não foi, a mentira é o nada da memória.

O QUE APRENDER DOS ASSASSINATOS DE MARIELLE E ANDERSON? — 2 DE 2

Carlos Novaes, 17 de março de 2018

Mas o trágico assassinato de Marielle e Anderson também tem se prestado a mistificações do chamado “outro lado” – tem gente que vai acordando para a enormidade da encrenca em que estamos metidos, mas resiste a enxergar que se trata de uma crise de legitimação do Estado de direito. E resiste porque tendo vaidosamente se convencido de que o resultado da luta contra a ditadura paisano-militar (para estes vaidosos, apenas militar) foi a conquista de um Estado democrático de direito, acha que dizer ilegítimo esse Estado de direito seria dizer ilegítima a democracia em que, a duras penas, temos sobrevivido.

Ora, se fizermos a distinção que proponho entre Estado de Direito Autoritário e Estado de Direito Democrático, e entendermos, pelas razões expostas numa série de posts iniciada aqui, que, na verdade, o que construímos depois da ditadura paisano-militar foi um Estado de Direito Autoritário, então já não teremos porque recusar enxergar na crise uma crise de legitimação do Estado de direito que nos infelicita. Naturalmente, para esse reconhecimento teremos de, como já desenvolvi aqui, encarar toda a extensão da nossa derrota, que no curso de trinta anos se fez lenta, gradual e segura e na qual PT e PSDB têm papel central, como também argumentei longamente aqui.

Como não poderia deixar de ser, nesse acordar precipitado alguns passam de um polo ao outro, e, então, sem sequer se ocuparem do caráter do Estado brasileiro, vão logo entregando os pontos no que diz respeito à democracia. De fato, já há quem veja no assassinato de Marielle o fim da democracia que imaginava consolidada num Estado democrático de direito. É provável que a nota patética insuperável dessa chorumela venha a ser o artigo do professor André Singer publicado na Folha de S.Paulo de hoje, no qual ele, depois de pomposamente intitular seu mimimi de “O fracasso da democracia”, vai, sem aviso, discorrer sobre “o fracasso da minha geração” – mas justo ele, que, não faz muito tempo, depois de deixar a condição de porta-voz da presidência da República, e em busca de justificação para as próprias escolhas coniventes, “teorizou” sobre a era Lula como governos na marcha de um claudicante “reformismo fraco” no rumo do socialismo?!?!

O professor vai ter de rever muita coisa, não é não? Afinal, depois de buscar salvação individual para os próprios erros num socialismo fantástico, agora se vê aloprado a invocar uma presumida derrota geracional para revestir de teoria política confusões individuais não menos fantásticas (fale por você!). Que os mortos enterrem seus mortos, pois o professor André Singer precisa entender que o seu PT é vítima interna recentíssima do Estado de Direito Autoritário que reforçou com sua adesão e que, agora, em crise de legitimação, se apresenta conflagrado numa luta de facções de que Marielle e Anderson são vítimas externas antiguíssimas.

Numa linha bem diferente de Singer, mas também equivocadamente, o respeitável prof. Vladimir Safatli escreveu ontem, na mesma Folha de S.Paulo, que:

“Não é difícil imaginar o que deve acontecer depois desse crime: nada, absolutamente nada. Pois ele não é uma exceção. Ele é o modo normal de funcionamento do governo brasileiro. […] O que vemos agora é apenas a consolidação de uma estrutura de fato. Um país comandado por uma casta de indiciados e criminosos que se apoia em poder militar anabolizado e em poder policial descontrolado que há muito se degradou à condição de setor organizado do banditismo nacional. […] esse não é um crime isolado, nem será o último. […] Pois esse país é, antes de qualquer coisa, uma forma de violência.”

Na fusão que fiz acima de trechos do artigo de Safatli se pode ver, creio, o que pode ser chamado propriamente de essencial: para o autor, governo e país estão fundidos na mesma forma, a forma da violência. Não creio que se possa ir muito longe com esse tipo de abordagem, pois ela passa por cima do que realmente importa: o caráter autoritário do nosso Estado de direito, que abriga um governo golpista e submete uma sociedade inerte, mas não se confunde com nenhum dos dois nem, principalmente, reúne os dois.

Por isso mesmo, ao contrário do que diz Safatli, não estamos diante da “consolidação de uma estrutura de fato”; é justo o contrário: os assassinatos (que se deram no bojo de uma luta de facções estatais) e a reação a eles (que se dá em meio a um processo de alarme e, oxalá, de esclarecimento na sociedade), são evidências de que estamos diante de uma crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, que é o oposto da consolidação do que quer que seja! Naturalmente, como já salientei aqui e em muitos outros posts deste blog, podemos assistir, como desdobramento dessa crise de legitimação, a uma regressão a formas ainda mais autoritárias, mas não há evidência de que essa situação já se tenha configurado.

Ainda na linha das elaborações pouco esclarecedoras, embora motivadas por uma justa e louvável indignação com os assassinatos de Marielle e Anderson, oportuno comentar artigo de Vinicius Torres Freire, também publicado na Folha de ontem. Segundo ele,

“Até por haver indícios, é difícil de acreditar que representantes do crime institucional não tenham chegado a postos mais altos nos três Poderes. Depois de dominarem territórios e corromperem ou cooptarem parte das polícias, começam a ocupar partes do comando do Estado; contam com tropas e terroristas.”

De novo, o defeito está em não enxergar o Estado conflagrado numa luta de facções. Tudo se passa como se houvessem instituições hígidas, num Estado legítimo, no qual agentes do mal “começam a ocupar partes do comando”… Ora, a gravidade da situação já escancarou que estamos muito além desse ponto de “começo” – estamos em plena crise de legitimação, e as facções estão a medir forças, sabedoras de que não há hegemonia estatal que as possa conter. Estão em busca de uma nova hegemonia.

Nessa linha de ideias, não vejo diferença estrutural  (veja bem, leitor, estrutural) nenhuma entre a busca pelo controle da distribuição de gás numa favela pelas milícias policiais e a busca pelo controle da boca de fumo que paga propina à polícia civil para funcionar na mesma favela; ou entre a expropriação de apartamentos do Minha Casa Minha Vida por milícias e/ou traficantes e a briga facciosa do Judiciário pela manutenção, contra nós, desse imoral auxílio-moradia; ou entre o indulto natalino de Temer ao arrepio do bom direito (pelo qual ele mandou recado aos parceiros já apanhados na Lava Jato, inclusive a Lula) e a reformulação inconstitucional desse mesmo indulto pelo ministro Barroso do STF (pela qual ele mandou recado populista à opinião pública revoltada).

Finalmente, parece útil comentar o informado artigo de Bruno Carazza, também na Folha de ontem, também escrito em reação aos assassinatos de Marielle e Anderson. Depois de nos apresentar como epígrafe do seu artigo essa fala do capitão Nascimento, personagem do filme Tropa de Elite-2:

“O sistema é muito maior do que eu pensava.
Não é à toa que os traficantes, os policiais e os milicianos
matam tanta gente nas favelas.
Não é à toa que existem favelas.
Não é à toa que acontece tanto escândalo em Brasília.
E que entra governo, sai governo, a corrupção continua.
Pra mudar as coisas, vai demorar muito tempo.
O sistema é foda.
Ainda vai morrer muito inocente.”

Depois da epígrafe acima, Carazza traz um arrazoado tão bem informado quanto moralmente bem posicionado sobre Marielle, mas tudo para concluir que o brutal assassinato dela:

“É como se fosse um recado para o cidadão de bem que aos poucos volta a se interessar pela política: tome cuidado, o sistema aqui é bruto.”

Ou seja, mais uma vez se apresenta uma leitura que supõe um Sistema operando inteiriço sobre tudo e todos, capaz de mandar recado unificado. Infelizmente, trata-se da mesma perspectiva ficcional limitadíssima, e conspiratória, do pobre capitão Nascimento, um agente, por definição, desprovido de uma visão de conjunto. Ignora-se, assim, a luta de facções que, precisamente, impede a vigência de qualquer Sistema, pois ela se dá nas entranhas mesmas do Estado de Direito Autoritário em disputa.

A nossa desgraça, leitor, é precisamente a ausência de qualquer princípio ordenador, uma situação que está a exigir de cada um de nós um engajamento lúcido na busca de uma solução, que terá de ser inovadora. Não haverá novidade se não pensarmos diferente, se não buscarmos saídas diferentes, para além dessa polarização fajuta em torno de estéreis ideologias inatuais, que sequer são realmente defendidas por seus arautos: uma direita liberal que diz defender o livre mercado, mas chafurda na corrupção de modo a obter lucros enquanto hipocritamente instrumentaliza o Estado contra a concorrência que seria a consagração do livre mercado “idealizado” por ela; e uma burocracia autointitulada de esquerda que reforçou as estruturas corruptas do Estado e nada fez contra a desigualdade, mas fica a se pavonear como herdeira de uma controvertida tradição socialista.

Nessa busca pela novidade, aquilo de que não podemos abrir mão é justamente das franquias democráticas já conquistadas, estando as eleições de 2018 no centro articulador delas, cuja campanha será uma oportunidade para fazermos a conversa sobre a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, na perspectiva de, a partir das eleições, iniciarmos a construção institucional de um Estado de Direito Democrático, que permitirá consolidarmos a democracia.

Num ânimo desses, quase desnecessário dizer que na disputa para os Executivos-gestão (presidente da República e governadores) deveremos não apenas repudiar a direita Boçalnara, mas negar o voto a qualquer candidato do PT, do PSDB ou dos dispositivos paisanos da ditadura de que eles se valeram em sua polarização fajuta (p-MDB e DEM). No tocante aos Legislativos-representação (Congresso e Assembleias), trata-se não apenas de seguir a orientação anterior, mas sobretudo de promover uma profunda e abrangente renovação, sem a recondução nem mesmo de quem quer que seja reputado como bom, como já argumentei aqui.

O QUE APRENDER DOS ASSASSINATOS DE MARIELLE E ANDERSON? — 1 DE 2

Carlos Novaes, 17 de março de 2018

Depois de escrever o artigo anterior no calor da hora, saído da tristeza, da raiva e da impotência que caracterizam a constatação de uma injustiça que sabemos não poder reparar, passei a tentar acompanhar tudo o que vem sendo dito na mídia sobre essa verdadeira tragédia, que reúne como vítimas diretas um homem branco comum (tão confusamente questionado em nossos dias) e uma mulher negra incomum (tão merecidamente valorizada em nossos dias).

Desde logo há que reconhecer o inextrincável vínculo material e simbólico entre os dois assassinatos. Vínculo este que vem sendo reconhecido por praticamente todos os segmentos de interessados que se debruçam sobre a tragédia, menos um. Não obstante a grande mídia, acordada pelos tiros para a gravidade da hora, venha dando extensa cobertura à personalidade das duas vítimas, há um segmento que, a pretexto de denunciar uma inexistente indiferença diante da morte de Anderson, não se cansa de negar a importância simbólica do assassinato de Marielle, esforço no qual já se empenharam o comandante da Polícia Militar do Paraná, uma desembargadora do Rio e todo gênero de desclassificados que empesteiam as redes sociais.

A desonestidade dessa gente é tão evidente quanto instrutiva: ela é evidente porque está a repetir uma mentira; ela é instrutiva porque mostra o medo deles diante do potencial do episódio para virar a maré em que eles julgam estar a surfar. O ponto de articulação dessa mentira instrutiva está na insistência deles em combinar a defesa jactanciosa da necessidade de tratar a todas as vítimas como iguais com a descaracterização de Marielle como alvo almejado. Essa manobra é insustentável, uma vez que, se de um lado, parecem valorizar, na figura de Anderson, todas as vítimas de assassinatos que desaparecem sem destaque e sem investigação; de outro lado, e ao mesmo tempo, porém, para desvalorizar Marielle, desdenham todas as mortes que fingiam valorizar classificando a jovem líder como “cadáver comum”, até a ser lamentado, mas, ainda assim, “comum”.

Ora, o que há de comum em Anderson em nada o desvaloriza. Pelo contrário, o assassinato dele, um dano material não almejado pelos assassinos, faz desse jovem pai de família o verdadeiro representante de todas as vítimas produzidas pelas chamadas “balas perdidas” nessa rotina da banalização do assassinato entre nós – diante da (des)ordem estabelecida, ele não passa de “mais um”, como amarga e sagazmente constatou sua jovem viúva.

O que há de incomum em Mariella em tudo a distingui. Ela era o alvo direto e simbólico dos assassinos, condição que faz dela a legítima representante de todos aqueles que, mesmo não seguindo a sua liderança, tem a aspiração de uma sociedade menos desigual, menos preconceituosa e menos violenta – uma sociedade na qual a vida humana tenha valor por si só, como um verdadeiro direito do homem.

É de notar que ao contrário desse segmento repelente que busca diminuir Marielle enquanto finge solidariedade para com outras vítimas, a moça da Maré se notabilizou, se tornou líder, se fez símbolo justamente porque denunciava a morte das ditas pessoas comuns, que são as principais vítimas da desigualdade, eliminadas não ao acaso, mas segundo uma lógica que agencia perversidades pessoais (elas próprias também fruto da desigualdade) em ações paramilitares para manter o povo pobre sob terror, num circuito interminável de misérias conexas que se engalfinham — sem atinar que o fazem em benefício da desordem que favorece os privilegiados no comando.

Denunciemos a execução de Marielle para manter viva a luta por ideias que, institucionalizadas, impedirão a rotina de assassinatos como o de Anderson.

QUE TIRO FOI ESSE?

Carlos Novaes, 15 de março de 2018

O assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) não é mais um episódio da chamada violência que assola o Rio.

O fato de a vítima ser uma mulher valente, em pleno vigor de moça madura, negra, da periferia, mão solteira, que teve de fazer das tripas coração para tomar o próprio destino nas mãos, não é um acaso. Marielle simbolizava aquilo que o Brasil do mando faccioso não aceita, não reconhece, não tolera e, sobretudo, teme. Essa morte vem sendo tecida, fio a fio, desde o Brasil mais longínquo.

Quem não morrer um pouco do tiro que matou Marielle, estará pronto a morrer por inteiro na próxima bala “perdida”.

Quem não chorar diante desse tiro, não vai chorar diante de mais nenhum.

Quem não disser intolerável esse tiro, não o dirá de mais nenhum.

Quem não ficar alerta ao som desse tiro, estará surdo para qualquer outro.

Morta, Marielle se faz símbolo da inércia da maioria da sociedade diante da luta de facções deflagrada no âmbito da crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário brasileiro.

O assassinato de Marielle se fez ponto de convergência de quatro vetores facciosos, cada um deles plural, por sua vez:

primeiro, as facções milicianas saídas do dispositivo militar que nos foi legado pela ditadura paisano-militar na forma da Polícia Militar (que, não obstante, ainda conta com gente de bem em suas fileiras);

segundo, as facções criminosas que vêm se organizando a partir das entranhas da estrutura penitenciária do Estado de direito;

terceiro, as facções paisanas que controlam o Estado do Rio há décadas e, agora, se veem ameaçadas pela ação não dos bandidos, mas das

quarto, facções federais que não hesitam em sacrificar seus ex-sócios locais em prol de uma reconfiguração que a crise de legitimação do Estado está a impor, mobilizando, para isso, as FFAA, o dispositivo militar cabal da ditadura de 1964-1989.

Tivesse eu esperanças, diria que essa morte tem de se fazer mortalha da nossa indiferença social, da nossa inércia política, da nossa burrice ideológica.

[Acréscimo às 22:40]:

Fica o Registro:

  • Enquanto isso, a marcha facciosa do baronato do Judiciário seguiu em frente na defesa desse escandaloso “auxílio moradia”, tendo o descaramento de tentar vincular essa aberração remuneratória à força do Judiciário e à autonomia dele. São uns caras de pau!

 

DE VOLTA AO COLÉGIO ELEITORAL — COMO NÃO DESPERDIÇAR A TRANSIÇÃO? — 3 DE 3

Carlos Novaes, 27 de maio de 2017 — 23:31

Foi dito no início do artigo anterior que nossa crise é crônica. Entender este aspecto da crise pode nos ajudar a pensar alternativas para a transição. Nossa crise é crônica porque no decurso do tempo ela, a cada vez, coleciona tanto o que foi escamoteado na “transição” da crise precedente, quanto o que foi necessário engendrar institucionalmente para acomodar as contradições do que fora acumulado até então – não é por outra razão que estamos a ter a impressão de que esta é uma crise de extensão e profundidade jamais vistas no Brasil.

Essa característica de herdar sem resolver é o desenho do nosso pendor para a acomodação, não para a transição. Para transitar é preciso resolver os problemas, não fingir que eles não existem. Os crimes que hoje se cometem impunemente contra os índios estão diretamente ligados àqueles que foram cometidos no passado e ficaram sem punição; ninguém ignora que a situação de pobreza e violência em que está imersa a imensa maioria da população brasileira afrodescendente resulta do fim acomodatício da escravidão, que não criou obrigações para os senhores nem previu reparação para os escravos; nossos atuais problemas no campo são filhos diretos da grilagem de terras, protegida, quando não promovida, pelo Estado no curso de décadas; chegamos por muitas vias a essa vida urbana precária, sendo a principal delas o descaso com o espaço público e com os equipamentos públicos, como é próprio da ordem política que considera o público como “coisa para pobre”, deixando toda excelência para a chamada iniciativa privada.

Talvez seja proveitoso, nesse limiar de mais uma transição, buscar orientação na chamada Justiça de Transição, sobre a qual o leitor encontrará informação preliminar segura, aqui. Muito resumidamente, trata-se de um arcabouço conceitual que visa oferecer instrumentos para que um Estado de Direito que suceda regimes autoritários possa fazer justiça aos injustiçados pelo arbítrio. Para o nosso caso atual, quando se trata de superar pela transição uma crise crônica, entendo que a ênfase deve estar nas noções de memória e transformação, não nas de anistia e reparação. De fato, diante de uma crise cujos sofrimentos e injustiças vão tão longe quanto a memória se recuse a recalcar, não parece apropriado falar em reparação, seja pela distância no tempo, seja pela magnitude dos danos sofridos colecionados: não teríamos pernas para reparar. Por outro lado, precisamente porque para transitar é preciso lembrar, não esquecer, não cabe falar em anistia, especialmente quando os anistiados seriam criminosos sobre cuja conduta não pairam dúvidas de que se destinava a obter vantagens pessoais pelo desvio fraudulento de recursos públicos. Não é por acaso que já se fale no Congresso numa anistia…

Quando se pensa nos problemas a enfrentar com ajuda do ferramental da Justiça de Transição em prol da construção de uma maioria social, não parece haver ponto mais sensível na nevralgia da injustiça social saída da desigualdade do que a questão da Segurança. Trata-se de uma área que não poderá ficar de fora no rol das reformas necessárias à transição para um Estado de Direito Democrático. Vivemos uma guerra interna. Ela se arrasta há tempos, devora vidas e recursos públicos numa magnitude desumana e irracional, e não permite registro nem de vencidos, nem de vencedores. É um moto-contínuo sem sentido. Na linha de frente dessa guerra se antagonizam segmentos do nosso povo pobre, uma parte fardada, outra parte esfarrapada. Nossos policiais militares são treinados com recursos públicos sob maus-tratos, levam uma vida estressante e mal remunerada, tudo para garantirem uma ordem que maltrata aqueles a quem deveriam defender – o prêmio que recebem é a proteção da hierarquia para as ilegalidades cometidas pela minoria deles. A população pobre das periferias recebe dos bandidos, na forma de benefícios privados, compensação parcial pelo muito que deixa de receber do Estado em serviços e equipamentos públicos. Como alcançar coesão social para o bem comum numa situação dessas?

Assim como no âmbito da representação política o dispositivo paisano (o p-MDB) que nos foi legado pela ditadura paisano-militar vem sendo desmontado (embora não possamos antecipar a extensão do desmonte), uma transformação na área da Segurança Pública vai precisar desmontar o dispositivo militar que também nos foi legado pelo regime autoritário. Ao incluir a Segurança Pública entre as reformas a serem discutidas na transição, teremos de começar por dar outro desenho à luta pelos Direitos Humanos, incluindo resolutamente a defesa dos direitos dos policiais ao treinamento justo e à remuneração digna, condições básicas para a sua desmilitarização, desvencilhando-os de cadeias de comando remotas e aproximando-os da sociedade pela subordinação ao poder local.

Fica o Registro:

– Se antes das delações dos donos da Friboi se tinha como certa a vitória de Temer na decisão do TSE sobre a chapa Dilma-Temer, agora já se cogita um alinhamento diferente dos mesmos juízes, não obstante a questão jurídica seja também a mesma. Eis outra evidência de que estamos ao sabor de maiorias facciosas ocasionais, a variar segundo os desdobramentos da crise.

– O pedido de Temer para que seu processo saia das mãos de Fachin mostra que há uma tentativa de redesenhar o próprio teatro de operações da Lava Jato. Pretende-se que por Lava Jato se entenda apenas a investigação da corrupção na Petrobrás, quando está mais do que claro que aspectos técnicos já foram superados pela organicidade política que todo o jogo da corrupção está a evidenciar.

– Em mais uma demonstração do alinhamento político que a condição de réu na Lava Jato prevê e obriga, Lula ataca os delatores da Friboi, no que ajuda Temer em seus esforços para safar-se via desqualificação dos indefensáveis, mas úteis, colaboradores do MP.

– As declarações corajosas do Ministro Luís Roberto Barroso, do STF, sobre as tentativas facciosas de levar o Supremo a desfazer o que vem dando certo no teatro de operações da Lava Jato alimentam a esperança de que, talvez, haja uma chance de alcançarmos uma transição para um patamar superior de civilização. Além de afinadas com a preferência pela transformação que, apesar da inércia, se pode sentir na sociedade brasileira, as posições do Ministro — contra pôr em revisão os acordos de delação, e sobre a prisão de réus condenados em segunda instância – nada têm de facciosas, pois refletem um entendimento do funcionamento institucional compatível com a almejada vigência de um Estado de Direito Democrático.

Acréscimo em 28/05, às 08:41:

– O prof. José Murilo de Carvalho, em artigo na Folha de S.Paulo de hoje, atribui “a instabilidade de nossos governantes no poder à incapacidade de processar a entrada tardia do povo na política.” Concordo, mas, como disse aqui, entendo que o problema está na contradição fundamental entre, de um lado, esta expansão do eleitorado popular e, de outro, a manutenção da desigualdade, com a expansão da parafernália institucional conexa necessária ao equilíbrio instável dessa contradição — daí a corrupção. Não é uma coincidência que se aloje na contradição mencionada a polarização entre Legislativo-representação e Executivo-gestão, fase última da instabilidade de que trata o prof. J. M. de Carvalho em seu instrutivo artigo e da qual tratei detalhadamente há cerca de um ano, aqui e, ainda mais, aqui.

 

É TANTA BESTEIRA QUE DÁ ATÉ DESÂNIMO… MAS PERSEVEREMOS

 Carlos Novaes, 15 de abril de 2015

(atualizado em 16 de abril de 2015)

BESTEIRA 1: O financiamento de campanhas eleitorais por empresas é causa da corrupção; por sua vez, o principal problema do país. Portanto, precisamos de uma reforma política que institua o financiamento público de campanhas eleitorais.

1.1. –   A) As empresas financiam campanhas eleitorais não apenas para obterem vantagens compensatórias via corrupção. Elas financiam políticos para garantirem o status quo e, sempre que possível, o alterarem de maneira controlada, segundo seus interesses. É um erro supor que os políticos que fazem o jogo dos grandes empresários são simplesmente venais (embora sejam também venais), e que o façam simplesmente por dinheiro. Não. Eles tem a mesma visão de mundo. Se fosse apenas uma questão de dinheiro, seria possível comprar políticos venais para aprovar políticas igualitárias. Mas isso é impossível porque eles estão lá selecionados pela peneira da ordem como ela é. A eleição deles é parte de uma imensa rotina, rotina essa ancorada na reeleição infinita para o legislativo.

B) Os montantes de dinheiro oriundo de corrupção revelados nos casos mais recentes deveriam ser suficientes para que se percebesse que uma corrupção dessa monta não se destina a campanhas eleitorais, por mais caras que sejam. Veja o dinheiro que as empreiteiras deram para campanhas: são quantias muito menores do que as envolvidas nos desmandos em que elas se enfiaram depois. O dinheiro da corrupção não é retribuição de financiamento de campanha, é dinheiro destinado a enriquecer os envolvidos, ou seja, dinheiro para políticos e lucros para as empresas  – de novo: dinheiros esses que vão muito além do que se gasta em campanhas. Nessa engrenagem, o financiamento de campanha é o de menos. Suponhamos que conseguíssemos acabar com o financiamento privado de campanha (com todo mundo respeitando a lei aprovada…e não houvesse caixa dois…), por que razão isso acabaria com a corrupção se a corrupção, nesse caso, resulta da vontade de ser rico às custas do dinheiro público? Eles continuariam a roubar, leitor! Na verdade, o financiamento público seria o povo pagando a campanha de políticos que, uma vez eleitos, vão continuar fazendo o jogo dos grandes empresários, casando poder (política, Estado) com dinheiro (empresas, mercado), como sempre.

1.2 – O principal problema do país é a desigualdade e é ela que articula a máquina política como ela é, tal como discuti em série de quatro artigos recentes, iniciada neste aqui.

1.3 – A única reforma política de que realmente precisamos é o fim da reeleição para o poder legislativo, como já argumentei aqui, aqui, aqui, aqui e, sobretudo, aqui. Se mudar modelo eleitoral fosse solução, não haveria problemas nos países que adotam o que querem introduzir aqui…Ou o leitor acredita que na França, nos EUA, na Alemanha, na Espanha ou na Itália as coisas são muito diferentes? Cada um deles tem seu próprio sistema eleitoral…

1.4. – A) O financiamento das campanhas tem de ser privado. Temos de obrigar os políticos a correrem atrás do dinheiro como correm atrás do voto. Quem não consegue reunir um mínimo de apoio financeiro vindo de forma autônoma e espontânea da parte de cidadãos engajados não tem legitimidade para querer ser representante. Financiamento público só vai facilitar para que as coisas não mudem, pois os políticos vão ter a garantia do dinheiro público (o nosso) para as despesas básicas, e vão continuar com o caixa dois. Afinal, porque o financiamento público levaria ao fim do caixa dois, se hoje, com a legislação proibindo, o caixa dois impera? Se for para mudar alguma coisa, seria para instituir um teto nominal fixo e exclusivo (apenas para um candidato/partido) de contribuição, para pessoas e empresas, mas sem ilusões de que isso acabaria com o caixa dois.

B) O fato de os políticos divergirem sobre o fim do financiamento por empresas não deve nos confundir. Políticos de partidos com burocracias consolidadas e hierarquizadas sob seu controle (o PT é, de longe, o melhor exemplo), defendem o financiamento público porque o dinheiro público entraria via partido e, assim, ficaria sob controle dos hierarcas da burocracia. Políticos de partidos com máquina, mas sem cultura burocrática centralizada (o PMDB é, de longe, o melhor exemplo), recusam o fim do financiamento de empresas e a troca pelo financiamento público justamente porque isso diminuiria muito o poder individual que cada um ainda tem dentro da imensa máquina partidária, dando mais poder aos chefes do momento, os quais, por sua vez, sabendo do arranjo precário em que seu mando repousa (veja-se o poder repentino que um Eduardo Cunha ganhou contra mandões antigos, tipo Renan e Temer), preferem manter as válvulas de escape que a relação individual com as empresas garante. Ou seja, os dois lados só se unem se for para adotar o financiamento público complementar: nós, os contribuintes, entramos como trouxas e eles mantém a traficância com as empresas na ordem legal (sem prejuízo de algum caixa dois, claro) e ainda recebem o nosso dinheiro para satisfazer a raia miúda que os importuna pedindo algum para a campanha.

RESUMO 1: A corrupção em grande escala não resulta de um arranjo contábil inspirado na reciprocidade (como no caso do suborno do guarda de trânsito), mas da disposição de ser rico a qualquer preço, e de isso ser possível. A ideia de que todo desvio é a mesma corrupção é falsa e é uma maneira de naturalizar a coisa. Com o financiamento público de campanhas eleitorais vão bater sua carteira, leitor.

 

BESTEIRA 2: A terceirização de mão-de-obra se destina a aumentar a competitividade dos produtos brasileiros, sendo um modelo novo em que todos ganham.

2.1. – A competitividade dos produtos brasileiros não é baixa porque a mão-de-obra é contratada diretamente pelas empresas. Ela é baixa porque nossos produtos são fabricados de modo atrasado, desnecessariamente oneroso, caráter oneroso esse que não deriva de os salários e/ou os custos de mão-de-obra serem muito altos, mas de os processos de produção serem pouco rentáveis em razão dos baixos investimentos de proprietários que preferem entesourar a investir. A terceirização se destina a compensar as perdas com produção obsoleta via diminuição de custos com mão-de-obra. Ou seja, jogar a carga do atraso do país nas costas dos mais fracos, e continuar atrasado.

2.2. – Duas coisas básicas: primeiro, toda desregulamentação torna mais forte quem já é forte e ainda mais fraco quem já é fraco; segundo, toda mercadoria fica mais cara a cada intermediário pelo qual passa. Assim, primeiro, se a mão-de-obra é o pólo fraco do mercado de trabalho, não há como ela aumentar seu poder de barganha num modelo em que ela não negocia com quem compra sua capacidade de fazer alguma coisa, mas com quem compra a mera possibilidade de alocar essa capacidade; segundo, para que o intermediário da mercadoria “mão-de-obra” ganhe algum será necessário que um dos outros dois (patrão e empregado) perca: ou o patrão paga mais pela mão-de-obra ou a mão-de-obra passa a ganhar menos…

2.3. – O avanço dessa proposta na Câmara dos Deturpados é a primeira demonstração na arena política federal de que o pacto instituído pelo Real acabou: os muito ricos enxergaram na confusão instalada pelos escândalos de corrupção uma oportunidade de darem um passo adiante, saindo do jogo contemporizador do pacto que FHC iniciou e Lula continuou, como tenho discutido em vários posts deste blog, como aqui, aqui e sobretudo aqui. É por isso, porque essa proposta escancara que o pacto acabou (afinal, terceirizar é beneficiar os muito ricos às custas diretamente dos pobres), que Lula veio a público pedir o veto de Dilma. É por isso também que o PSDB se mobiliza contra a terceirização: ambos tem claro que o naufrágio é comum e que Eduardo Cunha está a serviço dos muito ricos, CONTRA os pobres. Agora o leitor tem mais elementos para entender porque defendi aqui que PT e PSDB se unissem contra a pretensão de Cunha de presidir a Câmara dos Deturpados.

RESUMO 2: A proposta de terceirização prospera porque os políticos profissionais entenderam que sua sobrevivência política depende muito dos laços com os grandes empresários e quase nada dos vínculos com o eleitor, uma vez que a rotina da reeleição infinita mantém todos sob inércia: os políticos na inércia de beneficiar a si e aos ricos; os eleitores na inércia de votar por votar, na qual se dá bem quem já é conhecido, sem relação com o que faz ou deixa de fazer. Por isso, duas coisas: primeiro, e mais uma vez, a grande mudança é acabar com a reeleição para o legislativo; segundo, a proposta de coincidência de mandatos de cinco anos é a deformação mais nefasta que poderia acontecer, pois dá mais mandato aos políticos e menos possibilidades de troca ao eleitor, que passaria a votar só de cindo em cinco anos, não de dois em dois, como hoje [e pensar que essa proposta, agora abraçada pelo PMDB (claro), foi lançada por Marina Silva, que dizia defender uma nova política!!].

 

BESTEIRA 3: A diminuição da maioridade penal para 16 anos vai contribuir para a diminuição da criminalidade e vai punir bandidos que se beneficiam indevidamente do fato de serem jovens.

3.1. – Encarcerar jovens de 16 anos só vai diminuir a criminalidade se ocorrerem duas coisas: primeiro, se a mudança levar os jovens de 16 anos a mudarem de atitude; segundo, se os jovens de 16 não forem substituídos por jovens de 15 anos. Pois bem, acreditar que a mudança vai levar os jovens de 16 a reavaliarem sua conduta é ignorar que a entrada na vida do crime não é uma decisão racional, tomada num momento de cálculo da relação custo-benefício. Não. Entrar para o crime é uma prática gradual, que se constrói ao longo de anos na vida de crianças a quem faltou família, escola, saúde e trabalho (para os pais). Alguém socializado assim vai encarar a maioridade penal como um transtorno a mais a ser enfrentado. Ponto.

De toda maneira, se a nova maioridade levar a alguma diminuição na oferta de mão-de-obra para o crime, haverá uma valorização dos que tem 15 anos. Considerando que nesse meio juvenil de insegurança e baixa auto-estima a dimensão do “reconhecimento” joga papel fundamental, não será de surpreender se a nova maioridade levar a um aumento da criminalidade, pois aos de 16 que continuarão no crime se juntarão os de 15, de 14… que se verão “promovidos” de uma hora para outra (v. o romance de Paulo Lins, Cidade de Deus – outra coisa: observe o recrutamento do EI junto a adolescentes…).

3.2. – O encarceramento do criminoso não é uma punição. Encarar assim a sentença de prisão é reconhecer que o condenado, uma vez cumprida a pena, tem todo direito de delinquir novamente, pois já pagou pelo que fez. Não. Encarcerar se destina a proteger a sociedade do criminoso e, ao mesmo tempo, conquistá-lo pela oferta de meios para que ele não volte a delinquir. A rigor, a prisão deveria suprir com itens afins toda a lista de itens faltantes que levaram o individuo ao crime, descrita mais acima: família, escola, saúde e trabalho.

RESUMO 3: Se for aprovada, essa mudança na maioridade penal vai levar a um aumento da criminalidade que está ao alcance e/ou depende dos jovens.

BESTEIRA FRESQUINHA: ontem publiquei este Post. Em artigo de hoje na página dois da Folha de S.Paulo há uma barafunda fantástica sobre o tema da maioridade penal, que ilustra o besteirol como nada antes. Depois de mostrar-se adepto do “punir severamente” os criminosos, o autor, sem assumir que o que o levou a escrever o artigo é o fato de ser a favor dessa besteira de redução da maioridade para 16 anos, desdiz seu próprio “argumento” “científico”: depois de dizer arbitrária a definição de 18 anos (como se isso não fosse inevitável, uma vez que em algum parâmetro temos de parar a contagem), ele sugere um escalafobético exame clínico para… maiores de 16 anos!! –  dei uma gargalhada quando li isso, especialmente porque depois de grafar “16 anos” ele pôs um ponto de interrogação… Em suma, segundo ele, no melhor estilo Kiko (o do Chaves) “18 anos é arbitrário; que tal 16?”.

 

BESTEIRA 4: Com a chegada ao poder federal o PT se deixou desvirtuar, se afastando da sociedade, se perdendo em práticas erradas e entrando nessa crise em que se encontra, da qual só sairá se voltar às origens.

4.1. – a burocratização oligárquica do PT é muito anterior à chegada de Lula à presidência e foi consolidada no primeiro Congresso do partido, em 1991, como apontei há mais de 20 anos, aqui. O caso Lubeca, de 1989, foi apenas o primeiro que chegou à luz, embora logo abafado. Depois vieram, só para citar os mais notórios, o caso denunciado corajosamente por Paulo de Tarso Vencesllau (1993), o rompimento de César Benjamin com conhecimento de causa (1995) e a morte do Celso Daniel (2002). O partido que chegou ao poder federal em 2003 já estava organizado e preparado para aderir ao pacto do Real, para o mensalão, para proteger Delúbio, para esquecer a bandeira do fim do imposto sindical, para amparar Palocci, para defender Sarney como um brasileiro acima dos outros, para se vangloriar de que os bancos nunca ganharam tanto dinheiro como sob seu poder, para lotear a Petrobrás, para sustentar Vaccari. Basta?

4.2.  – O PT desenvolveu tal expertise em matéria de manipulação de valores morais que inventou essa história de que sua imersão no dinheiro da corrupção foi resultado de ter de entrar no jogo para poder sobreviver. É daí que vem a tese do financiamento público de campanhas. Querem nos fazer acreditar em duas patranhas numa jogada só: que o dinheiro da corrupção foi só para campanhas (o que de todo modo seria inaceitável) , e que o financiamento público se destina a moralizar a política, e não a aumentar o domínio dos hierarcas sobre a máquina, deixando ainda menos espaço aos inocentes úteis que ainda continuam a lutar por um outro PT.

4.3. – Crise comporta alternativa. O caso do PT não é de crise, é de esgotamento. O PT acabou; e acabou porque se mostrou igual aos outros, que tampouco alternativa são. Mesmo que o PT tivesse energia para voltar às origens, o que não tem, a sociedade já não disporia de trouxas em número suficiente para sustentar uma farsa dessas. O que não quer dizer que essa burocracia formidável não possa vegetar por mais algumas eleições.

 

BESTEIRA 5: O Brasil é uma nação maravilhosa e precisa de um projeto de país que dê ao seu povo uma vida menos infeliz e nos conduza ao lugar que merecemos no concerto das nações.

5.1. Uma nação que comporta essa desigualdade não pode ser maravilhosa. Não carecemos de projeto, já os temos, e tivemos, até demais. Temos até profissionais de projeto, que os fazem a quem pagar, um melhor do que o outro. Mas de que adiantam projetos se não há força política relevante que queira implementá-los?

5.2. O conserto das nações é uma desafinação só, pois cada uma é horrível à sua própria maneira. Não há exemplo a seguir, modelo a imitar, parâmetro a alcançar. Tampouco há saída para um só país num mundo em que está a faltar água.

RESUMO 5: Antes de buscar o conteúdo (projeto), temos de alterar profundamente a forma (instituições). O caminho da mudança está bloqueado pela couraça da rotina. Para sair dessa, é básico acabar com a política como profissão, tirar todo mundo da inércia e só então nos lançarmos a uma verdadeira controvérsia sobre o caminho a seguir, como defendi aquiaqui e aqui.

FALHAS, NÃO – CRIMES

Carlos Novaes, novembro de 2013

 A nota que acaba de ser publicada pelo comandante da Policia Militar de São Paulo é mais uma evidência do absoluto divórcio existente entre, de um lado, as instituições de poder e, de outro, a sociedade.

Não é de hoje que é voz corrente em São Paulo a expressão “coxinha” para designar pejorativamente policiais militares. A origem da expressão nasceu do reconhecido hábito de policiais comerem, sem pagar, em padarias de São Paulo, a famosa “coxinha”, uma massa frita à base de carne de frango. Embora hoje essa suposta iguaria seja relativamente barata, décadas atrás, no período da hiperinflação, quando o poder aquisitivo da massa popular (inclusive dos policiais) era bem menor, comer o salgado era para poucos, circunstância que deu sabor especial à precisão do apelido: de uma única laçada, “coxinha” denunciava que policiais extorquiriam para si, de graça, o que não poderiam pagar, obliterando, através de um crime, sua própria condição de pobres (alienação); apontava o consumo básico de que os pobres honestos estavam impossibilitados (desigualdade) e fazia deboche do que o povo vê de seletivo na truculência da PM, tão conhecida sua em facetas bem mais cruas do que a que vê exercida contra os padeiros (autoritarismo militar) – em suma, uma versão tão concisa quanto inteligente do ressentimento popular que se faz crítica social do poder.

Diante de quadro tão antigo e sedimentado, é quase incrível que o comandante da PM venha a público não só se mostrando ofendido e a reagir com ameaças de retaliação à menção de jornalistas ao “pão com manteiga”, versão televisiva soft da consagrada picardia popular, como pretender, a essa altura, que se receba como demonstração de capacidade autocrítica ele reconhecer que a instituição que comanda tem “falhas”, quando até as pedras sabem da conduta frequentemente cri-mi-no-sa de policiais militares, só investigadas em um ou outro inquérito depois de muita pressão da sociedade.

Tomada em seu conjunto, a bizarrice da situação está a indicar que o comando da policia militar resolveu reagir de maneira errada à crescente força da tese de extinção da PM na opinião pública – como não poderia deixar de ser.

PODER MILITAR, PODER DE POLÍCIA E LEGITIMIDADE PARA O USO DA FORÇA

 Carlos Novaes, julho de 2013

Num estado democrático de direito, as legitimidades da ação militar e da ação de polícia são diferentes porque se assentam em terrenos muito diferentes. Enquanto a ação militar legítima de um estado qualquer diz respeito ao uso da força contra o não-cidadão, que, por definição, é o estrangeiro; a ação policial legítima desse mesmo estado se dá sobre o cidadão, que, por definição, é o suspeito. A diferença básica que se quer salientar aqui é a de que no primeiro caso o agente da força militar a exerce na certeza de que está diante de um inimigo; ao passo que no segundo caso o agente da força policial a exerce tendo de mobilizar princípios, cautelas e reservas próprias do exercício da dúvida – ficando claro que certeza e dúvida aqui não são atributos pessoais do agente, mas status próprios das funções que exercem sob o estado democrático de direito que os regula.

De outra perspectiva, e deixando momentaneamente de lado a escolha sobre quem tem razão, escolha que só pode ser feita em cada situação dada, o fato é que quando um estrangeiro enfrenta ou contesta a ocupação de seu território nacional pela força militar alheia, ele o faz na condição de inimigo do ocupante. Do invasor não se requer a mais remota esperança de ser aceito ou reconhecido pelo invadido e sobre aquele nada podem as leis locais que regem a conduta deste. Essa situação de enfrentamento se configura no âmbito do uso puro e simples da força (por mais que haja legislação internacional para prevenir e punir excessos) e não há como um pretender que o outro reconheça a legitimidade da ação contrária a si, salvo em figuras desviantes como a capitulação ou a deserção. Em contrapartida, quando o cidadão de um país se vê objeto da ação do agente da força policial, seja aquele mais ou menos resistente, a conduta de ambos está recoberta pela mesma abóboda jurídica nacional e aquele que usa a força o faz no bojo de uma legitimidade que inclui o reconhecimento do suspeito como cidadão, que por sua vez reconhece o policial como agente da lei.

Em suma, a força militar propriamente dita só se realiza enquanto tal na medida em que se exerce sobre o outro de modo discricionário, contra a sua vontade civil e sem se interrogar sobre a condição do outro ante a lei. Em tudo ao contrário, a força policial só se efetiva enquanto tal ali onde se exerce levando em conta o ordenamento jurídico que, por definição, é reconhecido por ambos e, a um só tempo, regula a suas condutas e confere direitos também e, de certo modo, sobretudo, àquele cuja condição é incerta. Dizendo de uma só vez: se é militar, não pode ser polícia; se é polícia, não pode ser militar. É nessa ordem de razões que em situações normais de vida democrática a condição dos militares é a de uma inutilidade que é só aparente: a sociedade aceita o gasto de alimentá-los, vesti-los, calçá-los, abrigá-los, transportá-los, educá-los e diverti-los precisamente para que eles fiquem no ócio da prontidão para a eventualidade de serem chamados contra o inimigo — mas lá nos quartéis. Ao poder político civil da democracia corresponde uma polícia civil da mesma democracia.

Durante a ditadura paisano-militar que nos infelicitou entre 1964 e 1989 (Castelo-Sarney), período em que a sociedade brasileira ficou desprovida de um verdadeiro estado de direito — só restaurado com a nova Constituição e a volta e o exercício da eleição direta para a presidência da República –, as forças armadas ilegitimamente desaquartelaram contra a cidadania a força militar reservada ao combate contra o inimigo e, com isso, deram origem à ideia e à prática esdrúxulas de um exercício de cunho militar da força policial.

Esse arranjo malsão só foi possível porque os militares contaram com o apoio dos seus paisanos de estimação, dentre os quais a figura de José Sarney se destaca como emblemática porque essa caricatura de homem civil travestido de profissional tarimbado(link), último “presidente” do período autoritário, logrou moldar o Maranhão como um bonsai retorcido pelo enxerto ditatorial, estendendo para além do imaginável a marcha pela família (dele!) e pela propriedade (deles!) a serviço do nanismo social, econômico e institucional que os aninha, enquanto amarra no nível da sobrevivência a sufocada sociedade civil local. A Polícia Militar-PM como instituição, uma contradição em termos, é a versão, agora no âmbito do exercício do poder de polícia, dessa outra malformação que a antecedeu e lhe deu origem narcisa: o mando político paisano-militar-PM. A PM é a polícia ilegítima do domínio PM. Por isso mesmo, ela é o mais vistoso monturo deixado pela varrição democrática na forma de entulho autoritário não recolhido aos quartéis.

Essa incongruência ficou escancaradamente evidente no combate militar aberto à recente ocupação das ruas do país por jovens manifestantes de classe média com motivação política contestatória. E digo escancaradamente evidente porque a opinião pública pode se dar conta, a um só tempo e como nunca antes nesse país, de que: (a) os governadores, ainda hoje, exercem seu poder de polícia na forma de força militar em combate; (b) contra a ruas ocupadas em ação coletiva cidadã; (c) essa ação era protagonizada por jovens; (d) esses jovens eram majoritariamente de classe média e (e) a motivação desses jovens é a contestação política(link).

Nessa enumeração de cinco razões para o aprendizado da opinião pública ante um estado de coisas inaceitável, talvez a única não evidente seja eu ter frisado, em separado, que os jovens eram majoritariamente de classe média. E o fiz para salientar o que boa parte dessa mesma opinião pública não quer encarar: a ação da PM em que se prestou atenção indignada nesses dias só diferiu em truculência de outros exemplos da sua prática cotidiana porque na rotina do combate peculiar que ela dá à pobreza juvenil não é raro que se mostre muitíssimo mais assertiva na determinação de não deixar pedra sobre pedra: ela tortura e empilha corpos.

Está mais do que na hora de fazermos melhor uso do suado dinheiro público e de darmos melhor destinação à energia dos policiais de bem, que são muitos: extinguamos a PM, pois ela é não apenas incompatível com a vigência do estado democrático de direito, ela é uma ameaça a ele. Por falar nisso, onde está o Amarildo?