GOVERNO LULA IMERSO EM DESORIENTAÇÃO — 1 DE 2

Aos 10 anos das manifestações de junho de 2013VEJA SÉRIE DE VÍDEOS NA PLAYLIST DO CANAL LAVOURA POLÍTICA, NO YOUTUBE

Carlos Novaes, 01 de junho de 2023

A desorientação do governo decorre do fato de Lula ter se colocado na situação de quem não pode fazer o que tem de ser feito. Lula escolheu dizer à sociedade que fique em casa, que ela deixe a gestão da coisa pública para os políticos profissionais. Agarrado ao Estado, Lula quer produzir nele uma solução, desdenhando a participação da maioria da sociedade. Com isso, se condenou a acertos precários com Liras e Pachecos. Essa escolha seria um erro em qualquer circunstância, mas ela se revela um erro trágico (ou seja, o tipo de erro que encomenda um inevitável resultado catastrófico) quando o Estado é um Estado de Direito AutoritárioEDA e, ainda por cima, está em crise de legitimação, uma crise que emergiu e está presente no sentimento antissistema partilhado pela maioria da sociedade brasileira.

Mesmo quando colocado diante dos maiores reveses, que não param de se acumular, Lula insiste em defender o “sistema”, repetindo a bobagem de que a política é uma exclusividade dos políticos profissionais — como fez em discurso recente na FIESP. Lula enxerga na atuação das facções estatais o único caminho para conduzir o Brasil a dias melhores. Daí que, mesmo imerso numa guerra de facções, Lula persevere em se exibir no figurino impróprio de “pacificador”: de costas para a sociedade, ele quer pacificar as entranhas do Estado, quer dizer, restabelecer um solo comum para a luta entre facções estatais voltadas a reunir poder para fazer dinheiro.

O “solo comum” que Lula tenta restabelecer ficou visível em sua natureza de pântano na crise desencadeada pela concatenação entre as manifestações de junho de 2013 e a LavaJato. Já vimos aqui, a quente, como aquela crise desdobrou-se numa luta generalizada entre facções, cujas arbitrariedades, naquela altura, fizeram de Lula a maior vítima. Moro-Dellagnol&Cia são figuras execráveis, por certo, mas é inegável que na busca por seus objetivos escusos eles deixaram claro que o Estado de Direito Autoritário atuava, como continua a atuar, com base em autoritarismo e corrupção.

Para esconder o que houve (e há) de crescentemente incômodo para si mesma na decorrência daquelas circunstâncias, a nossa autointitulada esquerda pretende nos enfiar goela abaixo o juízo quase onipresente de que aquelas manifestações populares foram desde sempre fascistas, e que tudo que a LavaJato descobriu era mentira, invenção e conspiração. Ora, a verdade é que a autointitulada esquerda não podia (como continua não podendo) disputar o sentido da ira popular contra o Estado de Direito Autoritário porque ela se agarrou a este Estado como qualquer outra facção.

É que o Estado no Brasil é um refúgio protetor contra as agruras da desigualdade. Chegar a ele significa, sempre, reunir algum poder para fazer algum dinheiro. Pelo lado do poder, ele pode se traduzir na mera estabilidade no emprego; ou na direção de uma estatal; no manejo das prerrogativas de uma carreira obtida por concurso; no usufruir das oportunidades de mando de um cargo eletivo. Pelo lado do dinheiro, as vantagens são correspondentes ao poder reunido, que vão desde o salário garantido (que cresce conforme a hierarquia), passam por penduricalhos e privilégios legalmente arranjados (como auxílios-moradia) ou ilegalmente tolerados (como o uso de um carro oficial fora de serviço), e podem chegar a ganhos ilícitos obtidos por meio de corrupção direta (como a propina do guarda rodoviário ou a do contratante de uma grande obra).

Todo esse conjunto propriamente estatal contrasta fortemente com a situação em que vive a maioria da sociedade, que não tem meios de fugir das, nem mesmo compensar as, agruras e dificuldades impostas pela desigualdade, que atinge a imensa maioria de nós, ainda que, claro, com pesos diferentes. Não é por outra razão que boa parte da nossa classe média apresente a estranha combinação de defesa alienada do “livre mercado” e do “Estado mínimo” (aqui ela extravasa sua insatisfação confusa com o Estado de Direito Autoritário) e, ao mesmo tempo, não pare de incentivar os filhos a fazerem concurso público (aqui ela se rende ao pragmatismo do contorno à desigualdade, que se mantém pelo autoritarismo daquele Estado que ela odeia, mas que no qual, agora, ela quer que o filhote se abrigue…).

Qualquer esquerda que se preze teria que se colocar como tarefa explicar essa relação entre o Estado que temos e a desigualdade que nos inviabiliza como país — contradição que não pode ser resolvida com “pacificação”. Essa é a tarefa central para nos permitir dialogar com as classes médias que, desorientadas em seu auspicioso sentimento antissistema, acabaram por se voltar para figuras medonhas como Collor ou Bolsonaro. Mas não. Nossa autointitulada esquerda insiste em defender esse Estado, diz que essa aberração é um Estado democrático de direito, e, por isso mesmo, faz da luta contra a desigualdade uma bandeira vazia, que se traduz em meras políticas compensatórias, muito boas para angariar votos, mas inócuas para a solução dos problemas estruturais que afligem, sobretudo, aos mais vulneráveis.

Lula está no topo dessa alienação interessada e, por isso, emerge como a figura mais notoriamente desorientada no Brasil de nossos dias. Detalhemos isso.

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