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RESUMO DA ÓPERA

AVISO: no dia 21 de julho publiquei aqui no blog um artigo com o título RESUMO DA ÓPERA. Horas depois, houve um incidente no DataCenter que hospeda o provedor deste blog e ele saiu do ar. A situação ainda não foi inteiramente normalizada, mas já é possível algum acesso. Não consegui, porém, recuperar aquele post publicado no dia da pane. Abaixo, publico uma outra versão do texto, feita com base num rascunho que fora salvo. 24/07/2018.

Carlos Novaes, 21 de julho de 2018

Estamos em vésperas de eleição, o país não produziu uma alternativa crível para a transformação política de que precisa, mas as candidaturas manjadas que estão aí dão a impressão de que tudo pode acontecer. Como é possível que o marasmo possa carregar tanta incerteza?

É simples: dado o abismo entre a maioria da sociedade e o Estado ocupado e disputado pelas facções estatais, abismo esse que é a própria crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário, o jogo político está a ser feito apenas dentro do Estado conflagrado, enquanto a sociedade assiste para ver no que vai dar.

Tudo pode acontecer precisamente porque as facções não têm compromisso, sequer laços minimamente consistentes, com a maioria da sociedade. Se houvessem compromissos ou laços, o jogo seria mais previsível porque a organicidade da política, seu caráter programático ou ideológico, vem das relações que a política constrói na sociedade para orientar a disputa pelo poder de Estado.

Como não há essas relações, como os políticos profissionais sequestraram a política, como os partidos são meras fachadas para as facções conflagradas entre si em busca de reunir poder para fazer dinheiro, não há diferenças programáticas ou ideológicas para valer, que servissem de baliza para as disputas entre eles – a disputa por poder pelo dinheiro iguala a todos.

O resultado mais visível é esse aparente paradoxo: numa eleição presidencial e congressual que deveria ser decisiva, pois a crise é imensa, a sociedade está à margem do processo político e o jogo dos políticos profissionais se fez totalmente imprevisível, pois dos arranjos entre eles pode sair qualquer tipo de variação – e isso não porque eles sejam diferentes, mas porque eles são parecidíssimos: qualquer combinação é possível. A eleição só é previsível num aspecto: ela não vai produzir uma saída para o país.

Uma evidência de que a eleição não produzirá uma saída para o país, uma evidência de que, pelo contrário, ela produzirá no máximo uma saída para as facções conflagradas, está no papel central que o chamado Centrão vem tendo no processo. O Centrão é um amontoado incerto de partidos que faz um movimento pendular faccioso entre os dois dispositivos que a Nova República herdou da ditadura paisano-militar, o DEM (ex-ARENA/PDS/PFL) e o p-MDB. Por isso, ele tanto pôde ser “liderado” por Cunha, como agora pode ser “liderado” por Maia.

Na época da ditadura, só eram permitidos dois partidos, a ARENA e o MDB, que para acomodar suas disputas internas tinham sublegendas, isto é, facções internas, que podiam disputar as eleições umas contra as outras. Com a chamada redemocratização, essas sublegendas foram se reconfigurando e dando origem a vários partidos, que trouxeram os mesmos comportamentos que já tinham sob a ditadura. Na mesma redemocratização, a maioria da sociedade produziu duas alternativas que a levassem para longe da ditadura, o PSDB e o PT, a foi a esses partidos que ela favoreceu, pois confiava neles.

Como a transição foi lenta, gradual e segura, os antigos dispositivos paisanos da ditadura (PDS/PFL/DEM e p-MDB) continuaram funcionando, senhores supremos da política miúda para negócios graúdos. É por isso que o Centrão oscila entre ser liderado pelo DEM e pelo p-MDB, a depender das vantagens oferecidas, todos se revezando como o marisco da vez no casco do Estado de Direito Autoritário em cujo topo vieram se revezando, por sua vez, os dois partidos aos quais a maioria da sociedade imprudente e comodamente delegara o seu destino: o PSDB e o PT.

Ou seja, esses trinta anos da chamada redemocratização foi o tempo necessário para que as velhas forças cooptassem, corroessem e, por fim, descartassem os dois partidos que a sociedade havia favorecido na busca pela consolidação democrática num Estado de Direito Democrático.

Ficamos atolados num Estado de Direito Autoritário porque os partidos saídos dos dispositivos paisanos da ditadura jamais deixaram de manejar o processo político, negociando a chamada governabilidade na base de vantagens arrancadas do Executivo federal e do manejo de postos de mando nos entes federados. Essas vantagens dependem da ocupação dos cargos de confiança e dos benefícios que conseguem do orçamento federal.

É esse arranjo que está na base do nosso presidencialismo de coalizão, uma coalizão que oscila conforme os cálculos que esses partidos fazem acerca do que podem receber – essa é a base do nosso sistema, celebrado pela nossa ciência política acadêmica como um modelo de bom funcionamento do nosso multipartidarismo.

Para essa gente, o fato de dos quatro últimos presidentes eleitos, dois terem sofrido impeachment pela ação desses fisiológicos insurgidos (Collor e Dilma) e os outros dois (FHC e Lula) terem traído completamente seus programas de mudança e/ou transformação para se acomodarem a esse mesmo fisiologismo regado a corrupção, que condena o país ao atraso e o povo ao sofrimento, são prova inquestionável de que o sistema político brasileiro é sólido!

Eles celebram como um caso de sucesso democrático o fato de a eleição não fazer diferença, pois o resultado é sempre o mesmo: um acerto entre os políticos que lhes permite desfrutar do poder para fazer dinheiro. Acredite, leitor: tem muita gente que fez e faz carreira acadêmica no Brasil sustentando essa tese esdrúxula.

Sabe como eles provam isso? Eles pegam os números saídos das votações congressuais (fora as dos impeachments, claro) e mostram como os parlamentares são obedientes ao que o presidente da República enviou ao Congresso. Como os números se mostram semelhantes aos de outros países, eles imaginam ter provado que nosso sistema funciona.

Ou seja, para esses cientistas políticos, não importa como a linguiça é feita, seus custos ou se ela provoca ou não indigestão em quem a consome, o que importa é que o jeitão dela se parece muito com a linguiça estrangeira – é mais ou menos como o LamborgUNO, o Lamborghini feito por um brasileiro através da transformação habilidosa de um Fiat Uno…ficou igualzinho…

Para essa ciência política, pouco importa se o voto do congressista favorável ao presidente tem as seguintes origens:

– o presidente consultou antes, e envia o que sabe que agrada ao parlamentar (como a maioria dos parlamentares é eleita através de esquemas eleitorais e de interesse que vêm desde a ditadura, imagine o que agrada a eles…);

– o presidente ofereceu ao parlamentar cargos, obras ou verbas, e recebe o voto em troca — isso se não estiver pedindo demais (e pedir demais é pedir qualquer coisa que, por exemplo, enfrente a desigualdade ou provoque alterações políticas que dificultem a reeleição do parlamentar…);

– o presidente deu ao parlamentar, direta ou indiretamente, dinheiro saído da corrupção e recebe de volta a governabilidade (uma governabilidade que dura enquanto não surja uma crise maior do que o arranjo pode digerir, o que sinaliza que é hora da manobra do impeachment…).

Num sistema assim, só não obtém governabilidade quem for inepto, certo? Por isso, Collor e Dilma caíram. A diferença é que na queda de Collor ainda haviam esperanças em PSDB e PT; já a queda de Dilma arrastou para a vala comum PSDB e PT. No pós-Collor a maioria da sociedade se acomodou à expectativa de consolidar a democracia num Estado de Direito Democrático pelo protagonismo de PSDB e PT; no pós-Dilma a maioria da sociedade vive a crise de legitimação do Estado de Direito Autoritário a que PSDB e PT se acomodaram para poderem brincar de protagonismo.

Com isso, chegamos em frangalhos a uma eleição presidencial em que o protagonista é o Centrão – o cachorro alcançou o próprio rabo.

Veja bem, leitor: o Centrão era uma arregimentação confinada ao jogo intra-muros, longe do eleitorado. O Centrão nunca foi uma força propriamente eleitoral, foi sempre uma fenômeno do jogo pós-eleitoral, do jogo que se faz no Congresso depois das eleições, um jogo destinado a submeter aos interesses congressuais atrasados o que quer que tenha saído da escolha da maioria da sociedade na eleição presidencial.

A crise é de tal ordem, a desorientação da maioria da sociedade é tamanha, que o Centrão está a acreditar que pode fazer a encomenda desde já! Ou seja, para que esperar a trabalheira congressual se podem obter desde já o presidente que lhes vai atender? Com a ruína de PSDB e PT o facciosismo deixou o Estado e busca colonizar a própria dinâmica pela mudança que, mal ou bem, as eleições presidenciais vieram significando no curso desses trinta últimos anos.

Já não contentes em roer a carga, os ratos subiram do porão para o convés e querem assumir diretamente o comando do navio, numa consagração do “parlamentarismo de ocasião” enjambrado por Temer, cuja “exitosa” governabilidade exibe números de fazer inveja a Obamas e Trumps.

Pelo andar da carruagem, nossos cientistas políticos de carreira vão obter números consagradores para suas teorias novidadeiras — pelo menos até que a crise recrudesça.

Fica o Registro:

  • Ciro e Alckmin se mostraram faces da mesma moeda, ambos saídos do que outrora foi o PSDB e, por isso mesmo, ambos disputando o apoio do Centrão “liderado” pelo DEM, inteiramente imersos na luta de facções, que pouco caso faz da maioria da sociedade.
  • Lula, que também queria o apoio do Centrão, alardeia compromisso com bandeiras há muito esquecidas para obter coesão de incautos à esquerda. Ao mesmo tempo, fica enviando recados aos de cima, como se ainda fosse necessário sublinhar que não é bem assim…

FACES DA RUÍNA

Carlos Novaes, 13 de julho de 2017

É mais do que simbólico que tenham se dado juntas a condenação de Lula e a aprovação da derrubada da legislação trabalhista cujo cerne saíra da era Vargas. Vai além da simbologia porque o que abriu caminho à desfaçatez dos conservadores e à ida de Lula aos tribunais foi a leviandade do lulopetismo. Vista assim, a concatenação dos dois eventos não marca exatamente uma derrota do PT e de Lula (como poderia sugerir a revolta da bancada petista no Senado), mas antes mostra um desdobramento das escolhas que eles fizeram para alcançar êxitos efêmeros: infelizmente, estão a colher o que plantaram.

Em outras palavras, o revés sofrido pelos trabalhadores com a aprovação dessa nova legislação trabalhista danosa aos seus interesses só foi possível porque Lula e o PT – que fizeram da sua acomodação à ordem trabalhista conservadora que deveriam ter transformado um dispositivo a mais no seu extenso rol de acomodações oportunistas – levaram tão longe a teatralização de compromissos de “esquerda” há muito abandonados que quando o cenário ruiu a plateia foi junto. Em suma, eles foram tão danosamente falsos que fizeram da própria ruína a ruína dos trabalhadores,  a quem haviam confinado na condição de platéia para os seus “feitos”.

O mesmo mecanismo vai operar no caso de outras reformas, pois de reformas é que não pode escapar um Estado de Direito Autoritário em crise de legitimação. Tendo aderido a esse Estado, sendo parte no que dá causa à crise de legitimação, o lulopetismo ficou desautorizado para protagonizar reformas e, agora, tem de se re-fantasiar de radical para assumir a posição conservadora de quem defende o status quo atrasado que deveria ter transformado. Assim como Tolstoi disse na abertura do seu Ana Karenina que todas as famílias felizes se parecem, as infelizes o são cada uma à sua maneira, também devemos entender que se há uma onda conservadora a varrer o mundo, em nenhum país importante essa infelicidade colhe os mais fracos tão desprovidos de meios políticos de resistência como no Brasil.

O caráter singular da nossa infelicidade se deve ao PT liderado por Lula (embora não apenas a eles). Ao simular com tanta hipocrisia o compromisso com a mudança, eles atravancaram com falsas esperanças e interesses burocráticos o caminho por onde poderiam ter surgido forças transformadoras autênticas e, uma vez apanhados, abriram caminho a essa desfaçatez cínica dos mais fortes no manejo da força do Estado contra os mais fracos. É um nó de marinheiro, leitor!

Embora haja muito conteúdo repelente no ódio contra Lula e o PT — um ódio que, como não poderia deixar de ser, pelo que foi visto acima, se estendeu a toda a “esquerda” — o fato é que lá bem longe da boçalidade há uma decepção profunda que alimenta o desencanto e vai se tornando raiva naqueles que, sem jamais se terem identificado com o lulopetismo, haviam começado a rever preconceitos precisamente porque se permitiram ver qualidades no que antes repudiavam – a reversão dessa disposição de ir na direção de quem pensa diferente, e pela fraude, é um dos efeitos mais danosos que nos lega a ruína lulopetista, pois nenhuma transformação é possível sem a conquista de consciências recalcitrantes do outro lado. Essa reversão está nas classes médias e é mais funda entre os muito pobres — é aí, nas águas turvas desse desencanto, que irão pescar os gestores e os bolsonaros (“radical” por “radical”…).

Precisamos, mesmo, de um outro projeto — e me parece um desperdício de energia, um esforço vão e contraproducente, adicionar à luta por transformação a tarefa de salvar a “esquerda” — coisa muito fácil de entender quando observamos que boa parte dessa “esquerda”, infensa mesmo às autocríticas protocolares, está empenhada em passar por cima de sua própria contribuição aos problemas que nos trouxeram à situação atual, como faz Fernando Haddad em artigo que critiquei aqui.

MUITO BARULHO POR NADA — FALÁCIAS

Carlos Novaes, 27 de outubro de 2014

 

É raro que a explicação para o resultado de uma eleição caiba tão bem na frase “fulano ganhou porque teve mais votos”, pois a diferença entre Dilma e Aécio foi de meros 3,459963 milhão de votos, em cerca de 113 milhões de votantes. Não obstante, não faltam nos jornais de hoje, bem como nos maiores portais de Internet, explicações de entendidos para a vitória de Dilma e/ou a derrota de Aécio, quando qualquer pessoa ajuizada enxerga a impertinência de se abordar o resultado segundo vitorioso  e/ou derrotado. Afinal, se irrisórios 1,729983 eleitores tivessem deixado Dilma para sufragar Aécio, teria sido ele o vencedor, margem que desautoriza qualquer “análise” segundo os parâmetros mais conhecidos e cobre de ridículo autores de elucubrações empoadas, notadamente as que tem por base a noção de “classe”.

Não há que falar em vitória ou derrota segundo “classe” se os dois contendores receberam votações significativas de todo o espectro da pirâmide, mormente nos estados em que o eleitor vive em grandes cidades, é mais escolarizado e tem emprego formal, ou seja, vive como assalariado numa inserção de classe urbana atravessada pela controvérsia da informação. Alguém só pode dizer o disparate de que Dilma ganhou graças à classe tal, ou que Aécio perdeu porque não seduziu aquela outra, se passar por cima do fato de que a outra metade da mesma classe teve comportamento que o mesmo observador tem de ver como oposto ao da primeira metade… Explicações de corte regional tampouco fazem sentido, pois mesmo ali onde houve diferença grande em favor de Dilma, a variável que explica não é propriamente a localização geográfica do eleitor, mas a presença da assistência social direta do governo, que gera vínculos propriamente governistas — ou seja, se Aécio tivesse ganho e continuasse essa assistência social, dentro de quatro anos ele disputaria a reeleição com vantagem sobre o adversário nessas mesmas regiões.

Sequer a polarização boboca de “continuidade” versus “mudança” explica o resultado, pois há muita gente que votou em Aécio porque acreditou que ele continuaria os programas sociais e as obras de infra-estrutura em andamento; assim como Dilma recebeu votos de quem acreditou que ela vai fazer mudanças na direção em que os mudancistas fariam, como por exemplo a diminuição da carga tributária ou a relação mais estreita com os outros entes federativos para melhorar isso ou aquilo. Denúncias de corrupção tampouco podem sustentar explicações, pois a vitória coube justamente à candidatura atingida mais diretamente pelos escândalos mais recentes, ainda que, ao fim e ao cabo, nem mesmo a hipótese de que o resultado seria outro se a eleição se desse não no dia 26 passado, mas no próximo dia 30, pode ser afastada com convicção. Em suma, o resultado tem ares de um jogo de dados contra o relógio.

Mas se o resultado numérico apertado não oferece material para sua própria explicação, essa falta de explicação precisa ser decifrada; e o que a decifra explica também os altos e baixos de uma campanha aparentemente vertiginosa: a semelhança entre as duas candidaturas. Elas criaram falsas divisões, abismos de superfície, para, ao final, empatarem o jogo, apartando meio-a-meio o eleitorado, precisamente porque são vetores paralelos equivalentes de um mesmo projeto, o projeto de ser governo para ocupar os postos de mando e, de posse deles, defender os próprios interesses e, aos trancos e barrancos, tocar o que resta do pacto gradualista conservador instituído pelo Real.

Os eleitores foram apartados, não polarizados — e é por isso que em duas semanas ninguém mais vai se importar com o resultado, sendo outra grande bobagem toda essa conversa na mídia em torno da ideia de “unir um país cindido” — o que nem seria desejável, aliás. Não houve cisão real nessa rixa em que o que não foi fumaça revelar-se-á espuma, ainda que não se deva desconsiderar os ressentimentos permanentes, lastro antigo das raivas e antipatias que usando a eleição como pretexto trouxeram à luz aquilo que ficava intramuros e agora aflora nas redes sociais. A internet construiu uma nuvem de neo-intimidade que tem permitido ver as pessoas por dentro…exposição que, felizmente, vai encorajando-as a exibir-se nas ruas quase como são. Aliás, esse estado de coisas permite esclarecer outra falácia, a das “amizades rompidas”, pois elas se romperam não pela opção por Dilma ou Aécio, mas pelos motivos e pelas formas em que se deram essas escolhas: houve gente que descobriu que a pessoa amiga era outra… o que é outra maneira de iluminar a falta de diferença entre as duas candidaturas.

Tudo somado, Dilma continua presidente para governar um Brasil igualzinho ao Brasil de antes. Ela terá com o Congresso dos representantes profissionais as mesmas dificuldades que Aécio teria, sendo que até os articuladores dessas dificuldades serão os mesmos que azucrinaram, azucrinam e azucrinarão a vida de quem lhes pareça vantajoso azucrinar: essa é a razão de ser da vida política deles — e assim será enquanto nós não pusermos fim à representação como profissão. É para esconder as marcas nas cartas desse baralho sovado que a esperteza de alguns e a ignorância de muitos inundam a mídia com a falácia da Reforma Política.

Neste BLOG há vários posts em que eu explico que uma reforma política não será boa se: a maioria dos parlamentares de moto próprio concordar com ela (espontaneamente eles só instituirão regras novas que não os prejudiquem); se as virtudes que ela almeja dependerem do comportamento virtuoso dos políticos profissionais; se o que ela pretender corrigir for a conduta do eleitor (como é o caso de todas as propostas de mudança no modelo eleitoral para escolha de representantes — o nosso modelo de lista aberta, com voto individual e de legenda, é ótimo, o que não presta é a rotinização pela reeleição do representante); se eles arrancarem mais dinheiro público para si (com o chamado financiamento público de campanhas); se eles instituírem mandatos de representação ainda mais longos para si mesmos (o que os deixará mais distantes da sociedade); se eles embolarem todas as eleições na mesma data (aumentando a dificuldade de ajuizamento partilhado/conversado do que está em jogo e facilitando a vida dos marketeiros).

Enfim, quase nada aconteceu e abre-se um novo período de falácias e empulhações que só dará vez a uma real e necessária divisão na sociedade brasileira quando as ruas voltarem a se agitar — desde que os manifestantes tenham aprendido com os erros das agitações anteriores. Pois é.

 

NOTAS

Eduardo Cunha, um político profissional objetivo, diz que o PMDB não trocará convicções por cargos. Tá certo, as convicções deles SÃO os cargos! Seria como trocar seis por meia dúzia…

Há quem tenha votado para livrar a Fazenda do Armínio Fraga, mas se a Dilma nomear para o cargo um presidente do Bradesco ou assemelhado…

A primeira prova de que nada aconteceu – o Lobão já declarou que aquela história de ir embora do Brasil não é bem assim…

 

 

QUANDO A MEMÓRIA MAIS ENTRAVA DO QUE INFORMA O FLUXO

Carlos Novaes, 06 de outubro de 2014

 

Neste segundo turno teremos de vencer mais um trecho da mesma trilha que vimos abrindo e, por isso, não se trata de uma nova eleição. Tanto à maioria de nós, para quem tratar-se-á de repetir a opção já registrada na urna, como aos que não se sentiram contemplados no resultado do primeiro turno, e se virem impelidos a uma outra escolha, num como noutro caso, a memória do primeiro trecho trará não apenas candidatos já conhecidos, mas a mesma mobília temática de que nos ocupamos por todo o caminho. Se a memória eleitoral se impõe de uma eleição para outra mesmo nos pleitos para os legislativos, como já argumentei aqui, mais imediatamente nítida ela se põe para o voto de quem escolhe uma alternativa para a presidência da República entre dois turnos. Infelizmente, porém, neste segundo turno, em que não chega a haver uma disputa de projetos, nossa memória não será desafiada a novos arranjos e, assim, já não há qualquer possibilidade de um fluxo novo, na forma de uma transformação.

Atendendo a pedidos, este texto é uma tentativa de explicar melhor o entendimento acima. Embora vá aqui a despretensiosa contribuição de um blogueiro, não posso deixar de registrar meu reconhecimento ao que pude ler do prof. Fábio Wanderley Reis, autor da interpretação mais fecunda que conheço sobre a relação entre percepção popular e preferência eleitoral no Brasil. Prudente e oportuno acrescentar, porém, que nem vejo as linhas que se seguem como uma aplicação da visada teórica de Reis – não são; nem me acho entre aqueles que estão de acordo com as mais recentes opiniões do professor, como, por exemplo, as expressadas em artigo publicado na véspera desse primeiro turno na página três da Folha de S. Paulo, onde Reis, em derivação só aparentemente necessária da sua teoria, ao passo de negar a necessidade de os candidatos apresentarem programas de governo, parece se render à existência implausível de um suposto lulismo como fenômeno duradouro com força explicativa para alguma coisa relevante no comportamento eleitoral do brasileiro. Mesmo que programas de governo sejam, em geral, peças de vitrine com pouca ou mesmo nenhuma correspondência com o estoque, eles são sinalizadores úteis, ainda que não se deva deixar de reconhecer a importância do ajuizamento não letrado: por exemplo, a mim pouco importou se Marina, uma vez eleita, iria ou não levar adiante sua estapafúrdia reforma política de coincidência eleitoral com mandatos de cinco anos; o que importou foi descobrir que ela não sabia do que estava falando, e num tema que era central para uma candidatura que alardeava uma “nova política”. Naturalmente, essa foi uma verificação que só foi possível para quem sabe ler, mas, afinal, programas não são escritos para quem não o sabe, não sendo de desprezar, porém, nem os avanços havidos na escolarização do brasileiro médio nos últimos 40 anos, nem a interação entre os que sabem e os que não sabem ler. Quanto ao lulismo, espero que as linhas que se seguem deixem mais claro o que eu já disse aqui. Entremos na matéria.

A memória é uma teia da qual o EU é a aranha, e cuja plasticidade nem ao passado deixa em paz. É dela mesma, de seus próprios rearranjos, que saem não só os grandes intervalos de continuidade, mas também os momentos de alteração profunda no comportamento eleitoral, sempre possíveis, mas raros, como a experiência está sempre a nos mostrar. A oportunidade para grandes mudanças nasce do sofrimento. Se ele é vivido como insuportável, temos a revolução, pois diante do insuportável não há escolhas entre caminhos, pois a via unilateral da ação direta contra o mal se impõe em fluxo puro. Se intolerável, o sofrimento dá lugar a alguma escolha, no âmbito da qual poderá haver ou não uma transformação, que dependerá fundamentalmente da existência de vetores organizados propondo a ação transformadora. A grande diferença entre o insuportável e o intolerável, portanto, é que enquanto no primeiro a ação revolucionária se impõe sem precisar de proponentes, já que dispensa memória; no segundo, a transformação requer a ação da memória na forma de uma ou mais propostas que convidem a um caminho em fluxo novo, mas partindo do trecho já vencido na estrada que se quer deixar para trás. Até onde posso enxergar, nós estamos vivendo um período propício a um raro momento desse tipo, em que a efervescência eleitoral pode levar a um sólido realinhamento em favor da mudança, mas ainda não se organizou proponente à altura e a possibilidade de transformação vai sendo desperdiçada, ora porque se está aquém dela, reagindo à mudança; ora porque se está além dela, pregando uma revolução.

Nos últimos 40 anos tivemos apenas dois outros momentos como este, em que houve um realinhamento eleitoral com potencial transformador: em 1974 e em 1989-1994. No primeiro, sofrendo o intolerável ajuste do primeiro choque do petróleo, ocorrido em 1973, nosso povo deu tudo que pôde dentro dos limites estreitos do que lhe foi oferecido pelos políticos e o que lhe vedava a ditadura, e surpreendeu ao conferir uma vitória eleitoral esmagadora à oposição da época, dando ao MDB nada menos do que 16 das 22 cadeiras em disputa para o Senado, explicitando que o regime paisano-militar estava ferido de morte. Embora não pudesse alcançar uma transformação, esse realinhamento eleitoral espontâneo levou, entre outros desdobramentos, às vívidas eleições de 1978, onde FHC concorreu pela primeira vez ao Senado, e com o apoio de Lula, então um jovem e promissor sindicalista do ABC; e à conquista da Anistia, em agosto de 1979. Ainda no evoluir desse fecundo veio do movimento eleitoral de 1974, desencadearam-se forças novas, que vieram à tona medindo-se entre si e com as forças do atraso, embalo no qual se deu a criação de sindicatos, centrais sindicais e toda sorte de organizações da sociedade civil, com destaque para os novos partidos, dentre eles o PSDB e, principalmente, o PT, amalgama de carisma com estrutura burocrática nacional que já explorei aqui há mais de vinte anos, cabendo ao leitor avaliar a acuidade com que então apontei o esclerosamento precoce dessa formidável invenção política.

Na mesma ordem de desdobramentos, houve a campanha pelas diretas-já, em 1984, cuja derrota comprimiu a energia que vinha ganhando voltagem desde 1974, empurrando todo o conjunto para o estuário dessa ebulição, que foi o processo constituinte, saído da eleição de 1986, na qual o PMDB, sucessor do MDB, beneficiado pelo plano cruzado, que reavivou a memória de reconhecimento do partido como a ferramenta dos “interesses do povo”, obteve uma segunda vitória esmagadora, ainda no bojo do realinhamento eleitoral havido em 1974. Promulgada a Constituição de 1988, filha temporã desse legado de 74, no ano seguinte houve a campanha presidencial de 1989. Em razão da ruinosa ambição tacanha de Sarney, que obtivera um quinto ano de mandato, a eleição presidencial de 1989 correu solteira, sem conexão alguma com eleições para qualquer outro cargo. Essa circunstância levou o pleito a um certo desengate do legado de 74, uma vez que os candidatos a presidente não foram amarrados às, ou não puderam contar com, estruturas de campanha que a disputa pelos cargos intermediários põe em campo, o que contribuiu muito para que os dois finalistas fossem Collor e Lula: o primeiro porque, tendo recebido apoio prévio de poderosos grupos de comunicação, já era bastante conhecido do eleitorado e largou em vantagem, podendo se dar ao luxo de chegar por cima; o segundo porque era o único a dispor de uma estrutura nacional, naquela altura ainda não dependente do interesseiro jogo eleitoral miúdo para ser mobilizada a trabalhar, e de graça — um quadro que tive oportunidade de explorar aqui. Para o que nos interessa neste texto, um dos resultados mais importantes dessas circunstâncias foi que Lula, tendo passado ao segundo turno com apenas pouco mais de 16% dos votos, teve franqueado a si um eleitorado de setenta milhões de eleitores, responsabilidade que ele acabou por não suportar mas que, além de ter deixado uma memória valiosa, indicou, e isso talvez seja o mais importante, que o legado de 1974 havia se esgotado e um novo realinhamento estava a se impor, havendo que disputar se de direção conservadora ou transformadora, ou seja, se preso à memória contra o fluxo ou se voltado à reconfiguração da memória em favor do fluxo.

Como se sabe, naquele segundo turno, os donos do poder, manejando o controle dos grotões e apoiados no medo de camadas médias conservadoras, se saíram vencedores com Collor, um improviso tão ruim que nem a eles serviu de modo duradouro, mas que, no vácuo que a todos desafiava, se prestou a impingir uma derrota aos transformadores, naquela eleição representados por Lula, Brizola e, de um modo bem diferente, mas não menos ruptural, Covas. Voluntarioso no trato e voluntarista na ação política, Collor logo perdeu apoio popular com o malogro de mais um desastrado pacote anti-inflação, seguido da perda de sustentação parlamentar, pois ao desgaste com setores do capital descontentes com suas políticas vieram se somar evidências de corrupção que já não encontravam muita gente disposta a esconder. Sobreveio o impeachment e inaugurou-se outro período de incertezas em que a inflação sem freio há quase duas décadas, que havia devorado meia dúzia de pacotes econômicos de estabilização, articulava em alto grau o sofrimento intolerável da vez, já nessa altura ameaçando a própria ordem em que se davam os negócios dos de cima. Ou seja, a inflação havia adquirido um caráter simbólico e já representava muito mais do que uma corrida de preços — é com esse tamanho que ela deve ser lida quando mencionada neste texto.

Como camarão que dorme a água leva, e nossa classe dominante nunca foi de dormir no ponto, foi em torno do combate à inflação que se iniciou, em 1993, a preparação de uma resposta conservadora ao vetor transformador que tomava impulso na cada dia mais competitiva candidatura presidencial de Lula, que como desdobramento da votação obtida no segundo turno de 1989, chegou a ter mais de 40% nas pesquisas eleitorais no início de 1994. Essa dianteira era vivida como um desenlace quase inercial do período, pois o sofrimento popular era intolerável e o PT canalizava toda a negação da ordem malsã instalada, uma vez que, além de simbolizar a oportunidade perdida em 89, havia se recusado a participar das variantes de acomodação oferecidas antes e depois daquele pleito — a inflação empurrava a um realinhamento e Lula aparecia como o protagonista natural desse processo, que convidava à transformação precisamente porque permitia articular em alto grau a tensão entre memória e fluxo.

Alarmados com cenário tão desfavorável, os senhores do dinheiro foram buscar nas fronteiras do outro lado pistas para o caminho da salvação — chegara a hora de Fernando Henrique Cardoso, investidura cuja análise fiz a quente, em 1994, num artigo enviado à Folha de São Paulo, que não o publicou, mas que agora pode ser lido aqui.

Naquela altura, vinte anos depois que o povo instilara na dinâmica política a seiva para a qual a ditadura paisano-militar não tinha antídoto, o êxito econômico e político do Real viria a arrastar o eleitorado a mais uma mudança radical de preferências que, ao desfavorecer Lula, tomou a direção oposta à transformação e ainda orientado pela mudança deu a FHC uma vitória em primeiro turno contra os transformadores, que não tínhamos sabido avaliar a extensão e a profundidade do impacto benéfico do controvertido plano de estabilização, especialmente sobre os estratos mais sofridos da população. Ao contrário de nós, que julgávamos ter a fórmula da saída, nossos adversários tiveram a humildade de aprender com seus próprios erros, e ao invés de recorrer a mais um pacote para contornar a ira popular, elaboraram um plano que embrulhou nosso povo num engajamento limitado, é certo, mas muito superior à adesão ao papel de “fiscal do Sarney” (iniciativa ridícula, mas que permitiu enxergar o quanto havia na população de disposição represada ao engajamento no trato da coisa pública em momentos de crise); e muito superior, eu dizia, pelo engajamento cognitivo que requereu de cada um para que fizesse a correspondência entre os preços dos produtos e as tabelas de referência-URV, que emanavam diariamente do governo, numa rica significação da interação simbólica entre o estado e o povo, interação essa que se dava, sem que fosse preciso hostilizar ninguém, de maneira direta e sem o automatismo da vida cotidiana fundada no hábito, pois vinha articulada à contagem detida de nada menos que o dinheiro, a sempre escassa mercadoria universal. Àquela altura, estava acima das nossas forças desmanchar o arranjo.

Ao conseguir inverter a direção do realinhamento em curso, os tucanos derrotaram Lula já no primeiro turno, êxito que se repetiu também em 1998, mesmo sob condições bem mais adversas, pois havia um cenário eleitoral menos amigável, para dizer o mínimo. Enfim, o eleitorado fizera um novo realinhamento de largo curso e dirigido sua preferência para a força política que o aliviara de uma carga intolerável. Ciente do que estava em jogo, ainda que não com toda a clareza que o tempo sempre proporciona, o sociólogo na presidência instaurou um período de pactuação em que, sem deixar de favorecer aos de cima, instou o Estado sob seu comando a olhar pelos mais pobres, colocando uma ou outra estaca adicional ao plano Real, na forma de programas sociais compensatórios, ainda que sem enfrentar a desigualdade. Enfim, passados 20 anos havíamos mais uma vez dado início a um realinhamento eleitoral, cujos protagonistas não por acaso eram a ala menos conservadora do partido que se beneficiara do realinhamento anterior: o PSDB, como se sabe, saiu do (P)MDB, partido que só mais adiante iria se ajustar ao curso do novo realinhamento ocorrido pela ação dos seus dissidentes. A essa altura da narrativa é indispensável registrar que se o plano cruzado tivesse dado certo e logrado debelar a inflação, a acachapante vitória do PMDB nas eleições de 1986 teria re-alavancado o realinhamento eleitoral de 1974 e muito provavelmente Sarney teria tentado já então incluir na Constituição o dispositivo da reeleição para presidente. O fato de o candidato do PMDB à presidência em 1989, o notável e emblemático Ulisses Guimarães, ter obtido menos de 5% dos votos foi mais uma indicação de que o malogro do cruzado selara o fim do realinhamento de 1974.

Depois de marchas e contramarchas, a força transformadora burocratizada e oligarquizada digeriu as derrotas sofridas na forma de um aprendizado que, infelizmente, incluiu elementos de capitulação, sobrevindo recuos diante de compromissos centrais à transformação. O lulopetismo entendeu corretamente que estava além das suas forças mover a seu favor a chave dos trilhos do realinhamento eleitoral operado pelo Real. Porém, ao invés de buscar entender o fenômeno para melhor se dirigir aos de baixo e com eles articular um vetor de ação política, o que implicaria adiar sine die um desfecho eleitoral favorável, mas, em troca, manteria em perspectiva a opção da transformação, ao invés de perseverar, eu dizia, o lulopetismo decidiu por realinhar a si mesmo na direção de concessões aos de cima, ajustando-se de maneira quase clássica ao adverso realinhamento eleitoral havido. O resultado publicitário foi a Carta aos brasileiros e a escolha de José Alencar para vice de Lula, num arranjo conservador que abriu alas à vitória de Lula em 2002.

Recapitulando, sem poder escapar da agenda governista que havia sido imposta pelo Real oito anos antes, nas eleições de 2002 o lulopetismo se rendeu ao pacto conservador incrementalista em curso desde 1994, apenas se apresentando como quem poderia fazê-lo melhor. Romper o continuísmo governista foi possível porque uma crise internacional, combinada a dificuldades fiscais engendradas pela própria dinâmica do Real, havia complicado o equilíbrio frágil do arranjo de FHC, o pai do Real, programa que promovera um realinhamento eleitoral nas camadas médias de tal ordem que o Lula que em 1989 já havia conquistado pouco menos de 50% dos votos para presidente contra Collor, e no início do ano eleitoral de 1994 chegara a ter 43% das preferências, depois de se contrapor ao Real viu seu eleitorado, realinhado na direção contrária, abandoná-lo. Em suma, em 2002 o realinhamento eleitoral de 1994 trocou de governo, mas sem mudar de sentido e tampouco de direção, impondo uma lógica que balizou todo o período Lula, seja nas medidas ortodoxas de contenção de gastos do primeiro mandato, na manutenção de políticas sociais compensatórias sem desafiar a desigualdade, na manutenção do regime de metas de inflação; ou ainda no continuísmo de que são exemplo a troca de dívida externa por dívida interna, a flexibilização do monopólio da Petrobrás sobre o petróleo, a capitalização do BNDES em favor de grandes grupos econômicos, o lugar central que o PMDB adquire aos poucos na sustentação do governo, a manutenção de uma partição federativa das receitas tributárias que nada tem de federativa, etc; enumeração de escolhas que não quer dizer que o autor considere todas erradas.

Uma vez na presidência, o lulopetismo se mostrou um confiável e competente gestor do pacto conservador, cujo protagonismo arrebatara aos tucanos e, beneficiado por uma situação econômica internacional favorável, pôde obedecer ao realinhamento do Real aprofundando o pacto nas duas direções de seu vetor principal: prá cima, os ricos nunca ganharam tanto dinheiro; prá baixo, aos pobres nunca haviam sido destinados tantos benefícios, não sendo necessário dizer qual dos dois pólos se dava melhor. Espremida entre os dois, a classe média assistiu à degradação da vida urbana em que penosamente sobrevive na forma de mais violência, transporte caótico, falta de saneamento, etc, pois, afinal, alguém tinha de pagar a conta de um combate à pobreza que não só não mexe no dinheiro já acumulado pelos de cima, como, pior, tampouco altera a ordem econômica no sentido de liberar as energias retidas nos mecanismos que engendram e protegem um modelo de acumulação perversa. Assim, em razão do ajuste do lulopetismo aos trilhos do realinhamento proposto e obtido pelo Real, na reeleição de 2006 Lula trocou de eleitorado ou, por outra, o eleitorado trocou de candidato, mas não de preferência, isto é, o ex-metalúrgico ganhou os mais pobres e perdeu parte das camadas médias, inversão que alguns analistas tomaram por um novo realinhamento eleitoral, quando quem se ajustou foi o lulopetismo, não o eleitor.

Nos parágrafos numerados a seguir julgo esclarecer que os dois governos de Lula se deram sob obediência ao realinhamento eleitoral havido em 1994 e que, portanto, não houve nenhum realinhamento eleitoral sob Lula, o que torna implausível, ademais, o surgimento do presumido lulismo que corresponderia a esse novo realinhamento que não existiu:

1. – o eleitorado mais pobre continua onde sempre esteve, ou seja, apóia o governo que lhe favorece. Antes preferira FHC e Serra (pois em 2002, apesar de perder a eleição, Serra venceu Lula entre os mais pobres, que estavam alinhados com o Real e o governo FHC). Depois, em 2006, os mais pobres continuaram governistas e, por isso, migraram para Lula e o reconduziram, pois ele vinha sendo o presidente que os beneficiava nos exatos termos do pacto estabelecido em 1994. Ademais,

2. – os setores médios tampouco apresentaram qualquer realinhamento significativo na era Lula: a parcela deles à esquerda, minoritária, que antes da capitulação pragmática apoiava o lulopetismo, não concordou com a adesão ao pacto conservador e ficou onde sempre estivera, afastando-se de Lula ou emprestando-lhe apoio contrariado (daí a força inicial de Marina, que ela própria não entendeu); outra parcela, mais pragmática, que Lula havia arrebatado aos tucanos em 2002 com o ajuste conservador dele próprio, foi perdida em 2006 porque Lula, assim como FHC, não havia contemplado as suas expectativas materiais, ou seja, mais uma vez, esse pessoal ficou com a agenda que sempre tivera: havia deixado os tucanos porque eles não corresponderam, e adotado o Lula em 2002 — em 2006, mais uma vez decepcionados, deixaram Lula, mas conservaram sua própria agenda; uma terceira parcela dos setores médios, que já se alinhava com os tucanos, mas não apoiava as políticas de FHC em favor dos pobres (apenas as engolia), não viu razão para apoiar Lula, cuja agenda contra a pobreza era mais visível, e também ficou onde sempre estivera, até por achar que o que vai para os pobres deixa de vir para melhorar a situação urbana, que egoisticamente lhe interessa. Como não poderia deixar de ser, estes setores estão cegos para a necessidade de ir buscar os recursos mais encima, na bolsa dos rentistas, ação redistributiva que o tal pacto conservador veda e, por isso, dá à classe média em geral, progressista ou não, a impressão, de certo modo real, de que o socorro aos pobres se faz às suas custas, sem prejuízo de que há aspectos ideológicos repelentes orientando o que há aqui de raiva aos pobres.

Em suma, tanto quanto os pobres, os setores médios não apresentaram realinhamento eleitoral algum depois de 1994, ainda que quase todos tenham, em algum momento, trocado de candidato. Foi o lulopetismo que se realinhou e, em torno disso, todo o sistema girou. Logo, a longevidade do sucesso eleitoral dessa obediência neo-conservadora do lulopetismo aos termos da lógica incrementalista imposta em 1994 estará ameaçada se:

1. mais uma vez um cenário econômico internacional desfavorável trouxer problemas ao pacto conservador. Os sinais de deterioração são claros e decorrem também dai as dificuldades de Dilma de reter apoios — Marina cresceu por essa via, mas seu inconsistente projeto reacionário logo afastou os mais informados;

2. os setores populares pretenderem ir adiante do que o pacto conservador permite. Daí a acomodação burocrática do PT, que não mobiliza os pobres a quem ajuda — as pesquisas mostraram que até mesmo no Nordeste houve um ensaio de redirecionamento de apoio eleitoral nesta eleição de 2014, como se viu no desempenho inicial de Marina lá. Ou seja, mesmo ali não há lulismo, há governismo não inteiramente satisfeito;

3. parte dos setores médios não reacionários passe a reivindicar com mais força o fim da corrupção e a imposição de alguma perda aos muito ricos, em benefício da melhoria da vida urbana degradada. Evidentemente, por variadas que tenham sido suas motivações, foi justamente isso que se deu nas manifestações de junho de 2013: um claro sinal do esgotamento do pacto incrementalista e do realinhamento eleitoral que o acompanha, exatamente ali onde está seu tendão de Aquiles, as contradições do Brasil urbanizado refletidas desde a desigualdade. Foi aqui que Marina encontrou o combustível de arranque de sua subida vertiginosa inicial, que deu chabu pelo reacionarismo de suas propostas principais, em tudo contrárias a qualquer que tenha sido o espírito das ruas em 2013;

4. surgir uma alternativa transformadora viável, entendendo por viável uma proposta que, orientada pela sustentabilidade, privilegie os pobres, se centre em demandas urbanas, se contraponha à bandalheira política de forma crível e, muito importante, não busque enfrentar a todos os setores do capital (essa a limitação básica do PSOL e de toda a autointitulada esquerda) – um bom adversário seriam os rentistas, e/ou os ruralistas (Marina poderia ter sido essa alternativa, mas tomou o bonde errado e foi cair justamente no colo dos banqueiros e ruralistas, os Bornhausens da vida. Já Eduardo Jorge preferiu o lugar da consciência crítica que a todo tempo anuncia sua própria inviabilidade).

Como os muito pobres estão, e estarão, onde sempre estiveram (apoiam o governo que entendam que lhes favorece, e o abandonam se passam a entender que ele os prejudica, movimento este sempre mais difícil de fazerem porque o pouco que recebem sempre lhes parece uma dádiva), como os mais pobres são assim conservadores, o lulopetismo os mantém sob rédea curta e se apresenta como o máximo a que eles poderiam aspirar, explorando a coleira da gratidão. São esses pobres cheios de gratidão que podem ser ditos lulistas no sentido convencional, mas, para serem banalmente lulistas (ou seja, gostarem de Lula), eles não precisaram se realinhar eleitoralmente, Lula é que se realinhou para, como governante do pacto conservador gradualista, chegar até eles desde cima, na figura do benfeitor. Que tudo isso ganhou potência em razão da origem popular do ex-metalúrgico talentoso não resta dúvida, até porque os temores anteriores estavam, também, ligados a uma insuficiência de auto-estima dos mais pobres, quadro que já estava em mudança, do qual Lula se beneficiou, mas também ajudou a aprofundar com seu notável desempenho — reconfigurações que, aliás, mostram algo da limitação das análises baseadas na noção de “reconhecimento”, pois o que há é um crescente reforço da experiência do espelhamento entre iguais, não do reconhecimento vertical entre diferentes.

Mas nenhum desses aspectos de ordem simbólica justifica a confusão conceitual reinante. Afinal, se um realinhamento eleitoral digno desse nome, como os que tivemos em 1974 e em 1989-1994, se dá em torno de uma agenda, é de supor que os eleitores “realinhados” abandonem um governante que não corresponda a ela e se fixem numa oposição em que identifiquem a defesa dessa mesma agenda a que se apegaram. Se é assim, mesmo que tivesse havido um realinhamento eleitoral em 2006, não faria sentido chamá-lo de lulismo, pois mais adiante poderíamos ter a circunstância bizarra de ver o lulismo abandonando Lula (se ele viesse, por qualquer motivo, a “trair” a tal agenda fundante) e passando a apoiar um PSDB, um PSOL ou qualquer outro em que viesse a identificar um defensor da referida agenda. Aliás, seria nesses termos equivocados que, talvez, tivéssemos de descrever este segundo turno, pois parte do lulismo/governismo descontente pode passar a apoiar Aécio, troca de preferência por candidato que em nada contrariaria o realinhamento de 1994, como suponho já ter deixado claro. A confusão decorre, naturalmente, de que não se quer reconhecer as semelhanças siamesas entre o lulopetismo e os tucanos, e, por isso mesmo, da fixação de alguns na ideia de que Lula é um marco, em reverência ao qual teríamos uma tão anacrônica quanto implausível inclinação cesarista dos pobres (em paralelo com o Napoleão III do sacrossanto 18 Brumário, esquecendo-se, entre outros detalhes, de que estamos no Brasil urbano do século XXI, integrado pela TV e onde não houve revolução), inconsistência teórica que vem combinada com a certeza íntima de que o compromisso do ex-metalúrgico com os muito pobres seria alguma coisa como “inabalável”, já agora esquecendo-se o caráter propício da conjuntura internacional que todo mundo que tem juízo reconhece ter sido central para o “fenômeno”, e com o qual nem sempre se poderá contar.

Assim, faz 20 anos que os tucanos promoveram sem o saber um realinhamento eleitoral cujo protagonismo eles perderam por incompetência, mas não só, deixando que o recém-convertido lulopetismo passasse a hegemonizar o processo, agora em vias de esgotamento. O Real foi o marco do realinhamento eleitoral em vigor que orienta o pacto conservador gradualista ao qual um lulopetismo apressado de chegar ao poder escolheu se submeter, e cuja memória, inexplicavelmente abandonada pelos tucanos, Aécio vem buscando recuperar, ao que parece com não poucas chances de êxito (vamos ver como se comportam neste segundo turno os PMDBsss que saem das urnas do primeiro turno, os quais, vitoriosos ou não, já não dependem de ninguém).

Se Dilma ganhar em 2014, como vai ficando pouco provável, será menos por seus méritos e mais porque, ou Aécio não conseguiu enfeitar o programa comum com algum apelo democratista do tipo “vamos fazer juntos, tal como fizemos o Real”, ou terá sido pela razão que já conhecemos: o fato de que não apareceu nenhuma alternativa eleitoral com um projeto crível para superar os impasses do pacto conservador vigente, projeto novo que não poderá sugerir qualquer ameaça às conquistas alcançadas. Naturalmente, uma alternativa com essa ambição não pode se apresentar nem como confiável ao setor financeiro (esse personagem Lula já encarnou), nem segundo um modelo revolucionarista, sob pena de ficar relegada ao papel de propagandista de um programa que não pode deixar de ser encarado como inviável. Essa alternativa haverá de surgir do coração das lutas urbanas ecologicamente orientadas contra a desigualdade e para a liberdade. Por enquanto, vamos permanecer nessa inglória porfia de convés, numa caravela que só não ganha alto mar porque tem o oceano por lastro.

CARISMA, MUDANÇA E CONSERVAÇÃO

Carlos Novaes, ABRIL de 1994

 

APRESENTAÇÃO — 6 de outubro de 2014

O texto a seguir foi escrito pelo autor há mais de 20 anos e enviado à Folha de S. Paulo, que não o publicou. Sua circulação ficou restrita ao CEBRAP, onde o autor trabalhava na época, e a cópias impressas enviadas a alguns amigos. Publicado agora neste blog, ele me ajuda a deixar mais claro o apanhado histórico sumário que faço neste outro texto aqui, que é atual, de hoje.

Na altura em que o texto abaixo foi escrito, Lula era o líder disparado nas pesquisas, mas havia uma fragilidade óbvia na candidatura, fragilidade que era reforçada pela luta interna do PT, que levara uma ala da Articulação, corrente interna então majoritária no partido, a simular esquerdismo (até hoje é assim!) para assumir a direção partidária com apoio da ultra-esquerda petista, o que resultou num arranjo eleitoralmente contraproducente, pois o problema de Lula não era o de hoje, depois que ele se rendeu ao pacto conservador que FHC justamente logrou por de pé depois da vitória naquela eleição de 1994. Não. Naquela época Lula ainda aparecia como um reformista prá valer e, assim, tinha dificuldades para ultrapassar certas barreiras à mudança no Brasil, como, de fato, acabou por então não conseguir e, depois, por desistir. O texto abaixo reproduz exatamente o que escrevi, a quente, como resposta a um artigo de José Arthur Giannotti, que defendia a candidatura de FHC.

 CARISMA, MUDANÇA E CONSERVAÇÃO

No processo de impeachment, na CPI do Orçamento e no malogro da Revisão Constitucional se deram sinais eloquentes de que os padrões estruturais da política brasileira se alteram em benefício do avanço político dos progressistas e aguçando as dificuldades vividas pelos conservadores para traduzirem no plano da representação político-institucional a hegemonia que conservam na ordem social geral. A CPI mostrou, de um lado, que os progressistas tem capacidade de iniciativa valendo-se dos mecanismos legados pelo processo constituinte e, de outro, que embora os conservadores possam resistir protegendo indivíduos, já não podem preservar práticas institucionais anacrônicas. Na mesma linha, a Revisão mostrou conservadores sem capacidade de iniciativa coletiva e progressistas com capacidade de opor resistência institucionalmente eficaz. Em suma, desde a Constituinte se pode observar que a trama interna das nossas instituições funciona segundo uma estratégia sem estrategista, mas de sentido inequívoco: um patamar superior de gestão e coordenação da coisa pública. Condutas recentes do Ministério Público, do Judiciário e da Receita Federal oferecem evidências adicionais desse processo.

Esses episódios mostram o funcionamento da gramática política de que fala Giannotti em artigo publicado na Folha (caderno Mais!, 10/04/94). Embora de sentido nem sempre evidente, o jogo da representação vai progressivamente consolidando práticas institucionais que seriam impossíveis se a representação fosse o decalque dos interesses presentes na sociedade. A CPI do orçamento exibe isso à perfeição: embora os culpados mais notórios venham escapulindo de reproches mais duros — visto que a gramática não suportaria cortes muito fundos, pois ela é um jogo de políticos entre políticos –, tão cedo não se terá um orçamento emendado daquela maneira. No caso da revisão constitucional, só o delírio poderia presumir que ela gorou em função dos vetos da ortodoxia do PT, que pretendeu grandes mobilizações de massa e não realizou nenhuma. A revisão não foi adiante porque a complexidade de articulação dos interesses que a patrocinavam no Legislativo não encontrou denominador comum e esbarrou na ação intra muros dos que a ela se opunham.

O Brasil de 1994 assiste, estampado na disputa presidencial, ao esgotamento do modo de operar do sistema político que já  em 1989 claudicara. Ainda que se conserve uma opinião pública política eminentemente populista — isto é, que desdenha partidos e outras formas de mediação representativa e dê preferência à atuação de líderes fortes –, o sentido dessa percepção populista da política se inverteu. A diferença está em que pela primeira vez quem mobiliza as esperanças do fundo do tacho não é o candidato do capital, mas o candidato das forças progressistas das grandes cidades. Trata-se de uma solda inédita na política brasileira: o candidato que dialoga com as expectativas neo-messiânicas do grosso da população é produto (e agente) da modernização institucional engendrada no país nos últimos vinte anos.

A desorientação provocada por esse novo modo de apresentação da polarização política brasileira explica tanto a atarantada busca de um anti-Lula pelos conservadores, quanto o frasismo pseudo-radical da ortodoxia presente na direção do PT. No primeiro caso, o problema não estava exatamente na falta de um nome. Buscou-se em vão a peça de um jogo que já não pode ser jogado porque falta o tabuleiro. Habituado a uma receita infalível, o campo conservador se viu desprovido de um ingrediente fundamental, o carisma. Ao lado do poder do dinheiro, o carisma permitia o controle dos mecanismos fisiológicos de reposição diuturna do sistema político. Na ausência dele, perdido para o outro lado, buscou-se, depois de muitas cabeçadas, precisamente trazer desse outro lado a compensação: a respeitabilidade (e a modernidade) das mediações negociadas. Daí a intermediação entre Fernando Henrique Cardoso e as forças conservadoras, via PFL.

No caso do frasismo petista, a vantagem de Lula nas pesquisas vinha sendo festejada não como o resultado ainda frágil de um contínuo processo de transformações, mas como a possibilidade de uma ruptura completa com a ordem institucional que, afinal, garante a disputa. Essas expectativas desprezam três coisas fundamentais: 1. o carisma de Lula tem uma dimensão populista, embora não seja ele um populista; 2. a presença do petismo na esfera institucional faz do PT expressão importante dessa ordem que se quer transformar; 3. por essas e outras razões, um almejado governo Lula não é o limiar da superação do capitalismo.

O carisma de Lula é um fenômeno social cuja imensa complexidade só posso indicar. Há  nele um traço muito nítido: é um carisma que se expandiu através de mediações e de instituições. O magnetismo da liderança de Lula cresceu alimentando-se da dinâmica virtuosa da modernização política do país e jamais dependeu de formas diretas de marketing operadas em aparições de mídia, salvo aquelas que derivam do próprio fato de ele ter estado no centro dos acontecimentos mais importantes de nossa vida política recente. Os contingentes esfarrapados que acorrem às caravanas de Lula não estão sendo manipulados por alguém que simula o empenho pela mudança a serviço de uma ordem cuja conservação secretamente urde. Não estão tendo suas fantasias aumentadas com promessas absurdas. A ilusão não vem por ai. A ilusão aparece na ausência de medida para calibrar as expectativas da mudança almejada. A marca do carisma de Lula não é a conservação, mas a incerteza.

Como o conservadorismo não conta com o carisma populista, recorre a um tipo de negociação que ganha a descompromissada forma da conversa. Fernando Henrique tem dado a impressão de que negocia, quando na verdade abafa o horror a um projeto reformista que ameaça um modelo de gestão da riqueza tão confortável quanto injusto. Nossas elites só irão negociar quando o Estado estiver sob a coordenação inédita de forças hostis ao seu desfrute de mando político combinado com poderio econômico. Essa é a condição da negociação, pois negociar implica fazer um movimento na direção de quem tem poder para agir diferente. E é só por isso que Giannotti tem razão ao dizer que para governar Lula terá de ir para a direita. Mas se é assim, o apego de Fernando Henrique à coerência não oferece garantia correspondente do outro lado, como pretende Giannotti ao igualar indevidamente em força um movimento objetivo, próprio dos constrangimentos da representação, e um movimento subjetivo, que mesmo um Goethe não poderia garantir. Uma vez na presidência, a coerência não é dada pelas veleidades subjetivas do titular, por mais intelectualmente fundamentadas que sejam, mas pela tessitura social e política que consubstanciou a investidura no cargo, configurada em uma gramática política que se não é o decalque dos interesses, tampouco conforma uma arena isolada da dimensão substantiva da atividade dos interessados.

A disposição — ou a percepção da necessidade — de negociar que Lula exibe junto com setores hoje minoritários na direção do PT, simbolizados por Erundina, Genoíno e Mercadante, que são amplamente majoritários na sociedade civil petista, não é  acompanhada pela maioria ortodoxa da direção do partido. A incerteza embutida no sucesso de Lula atinge os frasistas do PT em justaposição à maneira como intranquiliza o capital: imagina-se que ela significa uma revolução, subestimando-se os elementos de continuidade que a constrangem, para bem e para mal. Como quer que seja, Lula e seus aliados internos sabem que o que está  em jogo não é a continuidade da ordem do capital no país, mas o seu padrão de gestão pública. Não estamos vivendo uma Revolução, evento que destrói as mediações institucionais conhecidas, altera vertiginosamente as identidades coletivas, desarranja o processo de produção e desestrutura a auto-imagem dos indivíduos. O Brasil vive uma agudíssima crise política, acompanhada de forte turbulência institucional, mas não há crise de hegemonia. Nenhuma força política relevante questiona, por exemplo, a existência ou a disposição atual dos três poderes da República; o princípio da propriedade privada não está em cheque; a busca do lucro não perdeu legitimidade etc.

As forças que instrumentalizam no PT os resíduos confusos de uma ideologia inatual tornaram-se maioria beneficiando-se também do populismo presente no carisma de Lula, que jamais disputou abertamente esta ou aquela opinião nos debates internos. Vivendo a ilusão de ser a expressão depurada da luta interna do PT, Lula não fez caso de que a máquina do partido vinha sendo engessada por uma oligarquia avessa aos compromissos que sua inserção na política brasileira impõe. O risco mais dramático dessa omissão, cujos danos foram reforçados pelo elitismo de outras lideranças petistas, que subestimaram o poder intrigante dos mercadores ideológicos, é o descredenciamento do PT como instituição de mediação entre Lula e os interlocutores do centro.  A continuidade da trajetória virtuosa do PT na sociedade brasileira requer que o partido multiplique a capacidade de negociação do candidato. Mas para isso é necessário que os mandarins da máquina petista percebam que o sonho de escapar do segundo turno não pode velar a existência do terceiro: a formação de um governo viável, o que inclui o centro.

À medida que, apesar de tudo, Lula avança, a direção do PT vai ficando para trás. Se o candidato for bem-sucedido apesar da direção do partido, o risco é o reforço da dimensão populista do seu carisma. Ao não se apresentar como complemento à expansão do magnetismo do candidato, essa direção mostra não se dar conta de que quanto mais eleitores se voltam para Lula, mais aumenta a superfície de contato dele com a cultura política com que ele está em permanente tensão. Naturalmente não é o caso de rejeitar esses votos, mas é indispensável levar em conta as expectativas desmedidas que uma tal adesão gera. Mas como a aposta de fundo é numa ruptura, essa efervescência é vista como benfazeja, negligenciando-se a matriz populista que também a alimenta. Na “participação popular” idealizada no programa petista, em si mesma positiva, o exercício da cidadania é imaginado como se fosse uma grande aspiração latente nas massas, porém represada, bastando criar os canais para que o fluxo jorre. Não é assim. As pessoas terão que descobrir a cidadania, aprender a interessar-se pela coisa pública, e isso requer tempo, muito tempo. Além disso, e a partir disso, imagina-se uma polarização política cujo grau de enfrentamento é muito alto se considerarmos a disposição conservadora do eleitorado. Ainda que a maioria dele visse em Lula, já no primeiro turno (como sonhavam alguns), a materialização de suas expectativas de mudança, não é provável que o voto indicasse, na maioria dos casos, mais do que a escolha daquele que vai resolver para o povo os seus problemas.

Parte da militância dirigente do PT ainda está prisioneira da velha ideia de que o objetivo da luta popular é destruir o Estado burguês, como se o receituário válido para outros tempos, quando a presença organizada dos trabalhadores era irrisória na sociedade burguesa, não tivesse se mostrado inadequado diante dos novos arranjos verificados com o advento das franquias democráticas. É dessa dificuldade da direção do PT para valorizar as mediações institucionais que Giannotti parte para indigitar como anacrônica a “participação popular” prevista no Programa de Governo do PT. Documento que reúne contribuições de origens as mais diferentes (e opostas), esse programa abriga parágrafos que se desmentem. Por isso, discordo igualmente do professor Paul Singer que, em artigo publicado também na Folha (caderno Mais!: 17/04/94), contrapõe aos argumentos unilaterais de Giannotti frases do Programa em que se valoriza a representação institucional. O PT não é nem só o que Singer elogia, nem só o que Giannotti critica. Documentos partidários não legislam sobre a prática do partido; é a prática que confere sentido aos documentos. Por isso mesmo, ainda está  em disputa o sentido final das passagens que ambos citaram.

Sejamos materialistas. Do final dos anos 70 para cá  petistas de todos os matizes, ao lado de outras forças democráticas, realizaram uma grande obra institucional, exercendo sua vocação para construir novas instituições. Formaram associações populares e associações sindicais, multiplicaram o sindicalismo rural, construíram a mais importante central sindical do país, deram passos importantes para estruturar uma central de Movimentos Populares e ergueram um partido político digno de se chamar assim. Além disso, somaram esforços para a consolidação de outras formas de ação coletiva não clandestina, como o Movimento Negro, o Movimento das Mulheres e a União Nacional das Nações Indígenas, e participaram com sucesso de muitos movimentos institucionais com dimensão de massas, sendo as Diretas e o impeachment os maiores exemplos. Tudo somado, não há como fundamentar a idéia surrada de que Lula simboliza uma utopia. Pode haver proposta que melhor articule realismo e criatividade do que as Câmaras Setoriais?

As críticas que se tem feito ao PT omitem esse lado essencial da sua trajetória, tomam a nuvem por Juno. A fragilidade numérica e a estreiteza teórica da maioria dirigente atual não pode rivalizar com a riqueza dessa história. Além disso, essa maioria não conta sequer com unidade ideológica. Pelo contrário, ultimamente nomes proeminentes tem gasto boa parte do seu tempo buscando a fórmula que lhes permita compor com Lula sem caírem em descrédito diante daqueles que os conduziram à direção exatamente porque defendiam posições “duras”. Reveses recentes destes grupos — como na derrota de sua proposta de moratória da dívida externa e na tentativa malograda de excluir parágrafos que davam ao programa de governo do PT um caráter reformista — deixam claro que a realidade vai agindo sobre o partido de modo a devolvê-lo ao leito de avanços trilhado até bem recentemente por uma militância ciente de que a inspiração inicial do PT foi a inventividade política a serviço da ampliação da cidadania dos trabalhadores. Sua motivação prática tem sido a de construir, não a de destruir. Seu dia-a-dia tem sido lutar por novos direitos, por instituições renovadas e por novas instituições. O PT é bom nisso e sabe que é por aí que o partido tem dado certo. O perfil de um governo Lula resultará  dessa intuição construtiva ditada pela prática.

A aposta que se faz aqui, portanto, não depende da coerência subjetiva de um intelectual respeitável que recebe o apoio preliminar dos conservadores, mas das forças sociais que dão carne ao partido e ao sucesso do candidato que ponteia as pesquisas. Defina-se como se definir o lado conservador, Lula é o candidato da mudança, ainda mais nitidamente do que em 1989. Quem votou em Lula daquela vez teria que motivos para deixar de fazê-lo hoje?  Afinal, em que o Lula de 94 está  aquém do de 89? Já no ano passado ele fora mais longe em conversas com outros setores do que o fez nos 40 dias que mediaram os dois turnos de 89. O PT daquela época era muito mais impermeável às exigências do exercício compartilhado do poder do que hoje, quando conta com número maior de quadros com experiência na administração pública. A solução encontrada para o caso Bisol mostrou Lula com capacidade de comando, sustentando como novo vice um nome não simpático à ortodoxia petista, embora sem a rapidez que só o autoritarismo permitiria.

A despeito da maioria atual na direção do partido, a ação negociadora de Lula e a disposição dos parlamentares e prefeitos petistas de jogarem o jogo da representação — como quando derrotaram a direção no embate da Revisão constitucional, ou como fez a prefeita Luiza Erundina ao não aceitar o dirigismo destes mesmos setores — permitem antecipar para um almejado governo com Lula na presidência da República um período de reformas profundas, baseado na negociação e reforçando a democracia. Propostas que provoquem disputas mais acirradas poderão ser levadas à consulta popular, empregando-se mecanismos democráticos como o plebiscito e o referendo. Se, aos olhos do leitor, a incerteza que permanece não se legitima como condição da própria democracia, que ele não a tema mais do que as certezas que o outro lado oferece.

O FIM DO QUE NUNCA EXISTIU – o lulismo

Carlos Novaes, 7 de setembro de 2014

Não faz muito tempo que, com o brilho fátuo dos pseudo conceitos, um espectro emergiu da manjedoura da nossa estrebaria acadêmica: o lulismo. Protegido pela benevolência amiga dos mais velhos, poupado pela covardia corporativa de comensais contemporâneos e louvado pela adulação carreirista dos discípulos, esse gasparzinho da crítica camarada enfunou-se, e rapidamente se espraiou pelas redações do jornalismo político. Pairando desajeitado sobre as eleições municipais de 2012, ele imaginou ver confirmação da sua existência na vitória de Fernando Haddad para prefeito de São Paulo, ainda que para lograr essa encarnação tenha precisado comportar-se como um zumbi: aboliu a memória eleitoral da mais populosa cidade do país.

Qualquer um que tenha se debruçado sobre a história eleitoral da cidade desde que as eleições diretas foram reintroduzidas, em 1988, quando Luiza Erundina se saiu vitoriosa, sabe que a periferia tem preferido o PT (padrão que pode mudar nesta eleição de 2014) e as áreas centrais votam ora à direita, ora ao centro. Uma camada endinheirada e mais escolarizada das áreas centrais da cidade também pode votar PT em pleitos municipais, desde que diante da combinação de duas circunstâncias: o candidato anti-PT seja inaceitável e o candidato do PT ilumine essa inaceitabilidade com um perfil social em que aquela camada se reconheça. Foi assim que depois da adoção dos dois turnos o PT venceu a disputa para a prefeitura de SP duas vezes: a primeira com Marta Suplicy, em 2000, e a segunda com Haddad, em 2012.

Como a primeira dessas duas vitórias em tudo assemelhadas se deu dois anos antes de Lula chegar à presidência em 2002 (quando, embora tenha ganho a eleição, Lula perdeu para o candidato de FHC entre os pobres assistidos pelo governo federal), pretender creditar a um suposto lulismo a vitória de Haddad é tomar um lulismo por outro. O lulismo que operou em favor de Haddad foi a força de Lula dentro do PT, adquirida depois que ele escapou do mensalão enquanto viu queimar ali o único quadro que fazia o contraponto ao seu mando carismático sobre a burocracia partidária, o Zé Dirceu. Tendo imposto Haddad como candidato, o lulismo de partido concluiu sua tarefa – o resto foi feito pelo petismo e pelo eleitorado paulistano, que assim como entendeu o esgotamento de Maluf em 2000, constatou o de Serra em 2012, em ambos os casos favorecendo a candidatura petista de perfil conciliador, sem que haja dados que justifiquem dizer que nesse último pleito teria havido um “realinhamento” eleitoral na cidade.

Mas o espectro não se dá por achado e volta a ulular em 2014, agora buscando refúgio num suposto núcleo duro do lulismo, massa densa de pobres assistidos por programas sociais federais que, depois de exibir um tão inédito quanto fantasioso realinhamento de preferências, apresentaria, agora, uma inclinação especial por “candidatos lulistas”, sintagma já de si esquisito, pois não sabemos se estes tais candidatos são “lulistas” porque Lula os apóia, se porque eles se dizem “lulistas”, ou porque defendem o que seria identificado pelo eleitor como um ideário “lulista” , ou ainda porque se poderia defini-los como “lulistas” segundo um bem assentado conceito de lulismo –– provavelmente é um pouco de cada coisa… Seja como for, o tal realinhamento definido como lulismo seria a explicação para os mais pobres preferirem Dilma.

Permitam-me transigir com o implausível apenas no intuito de melhor demonstrar sua imperspicuidade: esqueçamos que o que explica o voto dos mais pobres em Dilma é não esse fenômeno recentíssimo, o lulismo, mas o velho de séculos governismo. Esqueçamos isso e aceitemos a tese novidadeira — que, diga-se de passagem, já vem sendo aliviada de suas pretensões explicativas, escolhendo acomodar-se numa fenomenologia eleitoral de baixa intensidade –, esqueçamos o velho para observar o que se passa com os dois candidatos mais vistosa e inapelavelmente lulistas desta eleição: Alexandre Padilha, em SP; e Lindenbergh Faria, no Rio.

Se houvesse um lulismo realinhando preferências do eleitor mais pobre, Padilha e Lindenbergh deveriam estar colhendo esse realinhamento, e não estão. O que as pesquisas de intenção de voto vem mostrando é, a um só tempo, novo e velho: velho porque mostram em pleno vigor a gratidão e o conservadorismo governista dos pobres, que votam preferencialmente em Dilma nesses estados; e novo porque esses mesmos pobres, vivendo nos dois mais dinâmicos estados da federação, muito mais informados do que no passado, embora não tenham deixado de ser gratos e conservadores, não deixam de perceber que não há razão para misturar as coisas e atinam que seria indevido transferir seus sentimentos governistas federais para os lulistas estaduais — superam, assim, a confusão desinformada que seria necessária para seguirem um não menos confuso lulismo, que nunca existiu, e preferem votar em candidatos a governador segundo critérios que não tem relação direta com os tais programas federais de assistência e renda e, muito menos, se guiam por hemisférios liberais e não-liberais no cenáculo eleitoral (aqui as coisas já tomam contornos de delírio).

Lula, que acreditou na lenda do lulismo, parece estar colhendo o resultado das escolhas reais que fez e sobre as quais tive oportunidade de escrever na virada de 2008 para 2009, quando ele se fixava em Dilma como sua candidata à sucessão de 2010:

Esse arranjo, a um só tempo autoritário e popular, tem levado alguns críticos a dizer que Lula repete Putin, o todo poderoso ex-presidente da Rússia. Embora a história política das duas sociedades se preste cada vez mais a comparações iluminadoras (escravidão até a segunda metade do século XIX, tentativa autocrática para sair do atraso, populismo presidencialista, oligarquização política corrupta, etc), Putin impôs Medvedev com duas diferenças fundamentais: primeiro, a condição explícita de que o próprio Putin continuaria em cena, e em primeiro plano, agora na figura de primeiro-ministro fortalecido com poderes subtraídos da presidência; segundo, uma maioria governista quase pétrea, sem contraste, no legislativo russo. Ou seja, como já não vai estar lá, Lula arma para o Brasil experimento ainda mais precário do ponto de vista da rotina institucional: se entregar a faixa presidencial a quem deseja, Lula abrirá a caixa de Pandora onde espremeu o PMDB e a burocracia petista – que vêm aceitando a compressão da mola e a tudo suportam no antegozo de que o dia de amanhã lhes pertence – mergulhando o país num vórtice que engolirá o próprio Lula.

PT PAGA O PREÇO PELA SUA ACOMODAÇÃO CONSERVADORA

Carlos Novaes, 30 de agosto de 2014

Em texto de 2008, e em várias manifestações nos últimos anos, inclusive na TV, tive oportunidade de apontar que ao se acomodar aos ganhos eleitorais por ter realizado políticas sociais que aliviaram os sofrimentos da vida dos brasileiros mais pobres, o PT deixava escapar o potencial desse segmento para integrar como sujeito uma transformação política no Brasil. Naquela altura, quando a opção de Lula por Dilma ainda suscitava controvérsia, eu perguntava e dizia o seguinte:

“Mas, se estavam claras a falta de trânsito de Dilma na máquina partidária, sua condição de oferecer, no máximo, mais do mesmo e a fragilidade política de sua investidura, o que teria impedido o PT de apresentar um ou mais nomes alternativos à preferência pessoal do presidente?
O que tolheu a direção do PT é sua acomodação ao retorno político que proporciona a desigualdade brasileira, fundada na ausência de habilitação educacional formal da imensa maioria do povo. Nessas condições, toda ação coletiva institucionalizante via recrutamento dos de baixo acaba por se tornar ela própria instrumento de ascensão social. A máquina vira instrumento para contornar as agruras impostas pela desigualdade. Fazer parte dela possibilita ganhos e salários que a simples “luta brava na cidade” não ofereceria, pela razão também simples de que a “cidade” está organizada para manter embaixo os de baixo. Pela acomodação, as possibilidades de avanço social generalizado ficam tão remotas, as perspectivas de transformação assumem talhe tão quimérico, que as melhores e mais aguerridas intenções têm soçobrado no jogo miúdo dos mandatos, contratos e nomeações que se teme perder ao enfrentar o dono da caneta respectiva. Como é próprio dos que se dão prazos largos para ocupação do poder (os 20 anos de Sérgio Mota e de Zé Dirceu), o PT vai se restringindo ao papel de instrumento a serviço de uma, e apenas uma, geração.

Dessa perspectiva, quando se olha não para as nomeações, mas para as políticas públicas em si, vê-se que o PT não está retirando dos programas sociais do governo, com relevo para o Bolsa-família, as conclusões políticas mais profícuas para uma esquerda que não abandonou pensar o longo prazo para além da biografia de quem pensa: esses programas sociais deveriam ser valorizados politicamente não só, nem principalmente, pelo bem-estar que geram (e geram!), mas sobretudo por abrir a possibilidade de se passar a contar com uma nova e positiva figura de cidadão insatisfeito.”

Pois bem, esse cidadão insatisfeito num novo patamar pode ser encontrado hoje entre os mais pobres e, sobretudo, na chamada nova classe C. Eles foram beneficiados pelos governos petistas, mas nem por isso estão impedidos de sonhar e de pensar, como a acomodação do PT poderia fazer acreditar. Como irão se conduzir esses segmentos nesta eleição de 2014?

Para responder a essa pergunta, voltemos um pouquinho no tempo. Análises orientadas pelas preferências de seus defensores viram na adesão dos mais pobres a Lula o surgimento de um lulismo, o que teria caracterizado um inédito realinhamento desse eleitorado. Um exame minimamente mais cuidadoso dos dados disponíveis mostra, porém, que as vitórias de Lula em 2002 e em 2006, assim como a de Dilma em 2010, não registraram realinhamento nenhum, sendo risível a insistência no “acerto” dessa abordagem ainda hoje: em 2002, embora tenha vencido a eleição, Lula perdeu para Serra entre os mais pobres beneficiados pelas políticas sociais de FHC; em 2006, já presidente, Lula venceu Alckmin nesse mesmo segmento e em 2010 Dilma, candidata do presidente, superou Serra aí. Ou seja, não houve realinhamento nenhum, pois os mais pobres continuaram, como sempre haviam feito, a votar no candidato do governo, num misto de gratidão e segurança: uma conduta conservadora – especialmente no Nordeste, onde a presença de dispositivos autônomos de construção da opinião pública tem presença residual.

A pesquisa DataFolha publicada hoje ajuda a enxergar que o tal lulismo nunca se configurou, sendo impertinente falar de “parte cativa da base lulista”, pois se os eleitores de até 2 salários mínimos de renda são cativos de alguma força, o são da força tentacular do governo que os beneficia, no caso, o governo Dilma, como antes o foram de FHC. A parte dos pobres que agora se desloca desse comportamento, indicada pelo DataFolha como a de renda entre 2 a 5 salários mínimos, está se conduzindo como seria de esperar daqueles que se libertam dos sofrimentos mais básicos e começam a levantar a cabeça, como indiquei naquele trecho do artigo de 2008 citado acima. Como o PT se acomodou à certeza insensata de que tinha aí um curral, batizado de lulismo, amarga agora a constatação de que suas últimas esperanças residem nas áreas mais atrasadas e pobres do Brasil, tal como o fizeram os coronéis de antanho. Não é por outra razão que na mesma pesquisa DataFolha o Nordeste aparece como refúgio de Dilma, única região populosa onde ela ainda aparece à frente de Marina, que por sua vez já a alcança e supera nas regiões Sul e Sudeste, onde é forte a presença de população escolarizada.

Em suma, Marina já decolou faz dias precisamente porque foi identificada como a alternativa transformadora por parte desses segmentos que sacodem a canga da necessidade, e será um erro se os dois candidatos conservadores passarem a atacá-la, especialmente se no ataque insistirem na sua presumida experiência contra uma suposta inexperiência dela. Só um erro da própria Marina pode arrefecer seu ímpeto para superar a etapa do primeiro turno. Havendo, como ainda é de supor que haja, um segundo turno, é que um combate mais cerrado com ela poderá funcionar, o qual não poderá deixar de ser visto pelo eleitor informado como um esforço contra a mudança.

PT E PMDB PREFEREM LULA

Carlos Novaes, maio de 2014

Construído como uma burocracia nacional, o PT jamais se engatou na lógica política federativa, razão pela qual, para exercer o mando conquistado por cima, requer o apoio de um PMDB, cujo desengate de uma dinâmica propriamente nacional se reflete na habilidade com que faz o jogo miúdo (das coisas graúdas) no legislativo, nas instâncias locais e nos estados, uma herança do período em que as limitações da ditadura no plano eleitoral levaram à “seleção natural” de atores e métodos aptos a esse jogo em que se ganha avançando por polegadas. Com as sucessivas eleições livres, essa junção pelo que falta a cada um encontra um de seus limites na aspiração de lideranças locais eleitoralmente bem sucedidas do PT pela conquista dos postos eleitorais mais altos em seus estados (o que arrastaria também ao sucesso nos legislativos e nas prefeituras) e na pressão correlata da base e de setores intermediários da pirâmide do PMDB pela construção de um projeto nacional, pois já enxergaram que a falta dele vem comprometendo o êxito no plano infra-nacional, ainda que se prestando ao conforto de seus “líderes”.

O PT está em vantagem nesse jogo não apenas porque é quem, ao final, fica com a caneta na mão, mas sobretudo porque sua máquina burocrática estabeleceu uma tradição de obediência ao “projeto nacional” que logra submeter seus recalcitrantes – com força decrescente, é verdade. Os mandatários do PMDB derivam seu poder do quanto conseguem distribuir para os apetites regionais da fatia de poder que alcançam exercer no consórcio nacional, combinada com a contenção do avanço estadual do PT, braços de uma pinça crescentemente desfavorável.

Salta aos olhos a fragilidade de uma candidatura Dilma como resposta a esse estado de coisas, especialmente quando todos acreditam que uma candidatura Lula está ao alcance da mão. Do ponto de vista do PT, o entusiasmo com a volta de Lula seria a única maneira de tirar suas candidaturas estaduais combalidas do marasmo a que estarão condenadas num cenário em que se oferecerá mais do mesmo; da perspectiva do PMDB, Lula é visto como um pragmático mais aberto ao toma lá da cá – como Eduardo Cunha deixou claro ao se dizer saudoso dele -, pragmatismo cuja generosidade compensaria, para a cúpula, o avanço estadual do PT, ainda que a conta não vá fechar no futuro — mas quanto ao porvir vale para os oligarcas do PMDB o que disse no passado um partner seu na ditadura: “no futuro estaremos todos mortos”.

Pendurando de outro modo os mesmos dados, Dilma não pode dar impulso às candidaturas estaduais do PT porque não é uma liderança eleitoral (seus votos jamais foram seus) e tampouco pode receber delas um entusiasmo local que não suscita (inclusive, mas não apenas, porque agora é vista como aquela que está ocupando um lugar em que Lula deveria estar) – ou seja, esses dois lados do petismo funcionam como lastro desfavorável recíproco; pelo lado do PMDB, o descontentamento com a inabilidade dela na condução dos seus pleitos é evidente há anos, insuficiência que não é senão uma tradução de suas fragilidades propriamente políticas, resumidas no fato de não saber a grande diferença em política entre mandar (gerência das coisas) e conduzir (distribuição de papéis), jogo em que, mais uma vez, Lula é um mestre.

O que falta então para que, afinal, se dê a candidatura presidencial de Lula em 2014? Que ele cumpra o compromisso assumido marotamente com Dilma no recente Encontro Nacional do PT e a faça a primeira a saber que ele decidiu ser o candidato. Pode não acontecer? Pode, mas é muito improvável que o disparate prevaleça em situação em que o óbvio está tão claro para os agentes que contam e é vivido como demanda por 64% dos simpatizantes da marca PT. Se prevalecer, esse disparate terá saído de uma escolha pessoal que só poderá ser vista como irracional e, então, abrir-se-á uma janela para que o eleitor enxergue outra alternativa, redistribuindo os custos pelo esforço novo para dotar o processo de racionalidade, que não poderá ser apontada por aquele que só pode ser visto pelos interessados como o irracional de plantão.

MARINA JÁ PRECISA CORRIGIR O CURSO

Carlos Novaes, 09 de outubro de 2013

Até o TSE negar injustamente o registro partidário à sua Rede, a ex-senadora Marina Silva parecia se conduzir na cena política segundo três balizas: um presumido partido programático inovador, uma candidatura presidencial para 2014 e a possibilidade de desempenhar o papel de força contraposta à falsa polarização PSDBxPT.

Ante a decisão desfavorável do tribunal, Marina se filiou ao PSB e, com isso, deu a impressão inicial de que o fazia para perseverar no caminho que sugeria já trilhar: mantinha o projeto da Rede, sem manchá-lo com o oportunismo pragmático de uma candidatura presidencial improvisada em algum partido nanico de aluguel, e viabilizava, com sua participação, uma força eleitoral que pelo menos desde 2009 tem uma avenida aberta no cenário político brasileiro: uma alternativa ao projeto já esgotado em que o PT e o PSDB se engalfinham numa porfia vã pela autoria regressa.

Movimentações mais recentes, porém, deixam no ar que as escolhas podem ser outras – e nada boas. Ao desmobilizar os esforços que permitiriam concluir a legalização da Rede o mais rápido possível e ao cobrir com a tensão das evasivas a condição de cabeça de chapa de Eduardo Campos, Marina dá indicações de que não enxerga o contraste entre os grandes sonhos que motiva com os gestos largos que descortina e as resultantes apequenadas em que sempre acaba por se enredar.

Se a Rede era para ela mais do que mero instrumento para uma candidatura presidencial, se tinha na Rede um partido programático voltado para a inovação política, nada seria mais urgente do que concluir a sua legalização visando engajá-lo, desde o início e enquanto coletivo, nas discussões e deliberações acerca das escolhas a serem feitas para as eleições de 2014. Se a ida para o PSB se deu para fortalecer a construção de uma alternativa, e não foi mais uma jogada típica dos que pensam que política é como nuvem, então Marina deveria deixar claro que aceitou o revés advindo de suas próprias escolhas erradas e proclamar desde já a condição de Eduardo Campos como cabeça de chapa, deixando a posição de vice para ser apreciada coletivamente pela Rede, já como partido legal, no transcurso do primeiro semestre de 2014, período em que seus companheiros redistas teriam a oportunidade democrática de dar desenho programático final à sua escolha inicial, que fora individual porque (vá lá) premida pelas circunstâncias.

Mas não. Marina trata a energia da Rede como uma rapadura a ser levada debaixo do braço para ser roída no momento em que ela e quem ela ouve apreciarem oportuno. Começam a parecer quase propositais os becos sem saída em que a ex-senadora se mete, estreitos na medida de justificar decisões em petit comitê. Nada justifica que mais uma vez se desarrume um arranjo coletivo, que só voltará a ser mobilizado para os salamaleques pseudo-democráticos que já vão virando rotina em sua trajetória. Quanto à filiação ao PSB, Marina dá sinais de encará-la como ainda uma oportunidade de ser candidata a presidente no ano que vem, sem dar mostras de entender que ou Eduardo Campos será candidato a presidente pelo partido que controla, ou simplesmente trocará essa alternativa por outra, que, seja qual for, impedirá o PSB de ter candidatura própria à presidência em 2014. Numa situação assim, faria ainda mais sentido contar com a chamada Rede como um partido ativo, conjunto que daria robustez seja a uma candidatura de Eduardo, seja à fixação de uma imagem de autonomia e independência para ela e os seus, mormente no caso de ter de se distanciar programaticamente (vá lá) do pernambucano.

Em suma, Marina não deveria tratar a Rede como se fosse um Costa Concórdia a ser abandonado nas areias do TSE para ser desencalhado só um ano depois – correndo o risco de descobri-lo irrecuperável; nem sugerir que poderá submeter o timoneiro do PSB a uma derrota que ela não deu conta de aplicar sequer no caricato líder de araque do PV. Resta esperar que ela atenda aos apelos de “volte ao barco”, retenha o que resta de seus melhores marinheiros e, juntos, o conduzam ao mar alto a que ele parecia orientado, tendo a lealdade de em seu velejar para transpor a arrebentação não criar marolas inúteis contra quem lhe cedeu combustível e a quem, com acerto ou não, acenou para indicar navegação no mesmo rumo.

MARINA FEZ O MELHOR, NAS CIRCUNSTÂNCIAS

Carlos Novaes, 6 de outubro de 2013

Ao anunciar filiação ao PSB, robustecendo a candidatura de Eduardo Campos e abrindo a possibilidade de ser a candidata a vice-presidente na chapa do pernambucano, a ex-senadora Marina Silva deu seu único passo político realmente acertado desde a entrada no PV, em julho de 2009, ocasião em que filiou-se aos verdes com o compromisso de primeiro mudar o partido e, só depois, ser candidata a presidente. Naquela altura, em mais uma das suas demonstrações de pragmatismo confuso, ela logo abandonou o projeto de mudar o PV e entrou de cabeça numa campanha que só quem sempre subestimou o lugar da acreana na disputa pôde receber como “vitória” seu desfecho nos propalados “quase 20 milhões” de votos. Não fossem os muitíssimos erros cometidos, ela poderia ter realizado todo o seu potencial e disputado o segundo turno naquela eleição.

O acerto de Marina dessa vez está em ter aceito a consequência obvia da situação em que se meteu e para a qual arrastou os que se submetem ao estilo de mando político ventríloquo centralizado que ela parece protagonizar. Deixando de lado a inacreditável demora entre a já de si tardia saída do PV e o lançamento à água da proposta do novo partido, a qual foi a responsável pelo injusto malogro nas areias do TSE, Marina e quem ela ouve estavam atados a três estais: um presumido inovador projeto partidário programático, uma candidatura presidencial dela própria e o diagnóstico de que a nociva, e falsa, polarização PTxPSDB precisa ser desconstruída. A única maneira de manter os três cabos esticados seria ter a Rede legalizada para as eleições de 2014. Excluída essa possibilidade, era necessário decidir que perna(s) sacrificar, tendo em mente o menor dano político na opinião pública, vale dizer, escolher a alternativa mais coerente com a prática e o discurso exibidos publicamente até aqui.

O que parecia o caminho natural para muitos dos seus seguidores teria resultado no maior erro, ou seja, insistir na candidatura presidencial. Depois de ter protagonizado essa épica empreitada atabalhoada da chamada Rede, com tudo que se pregou de inovador, programático, ético, etc, filiar-se a outro partido apenas para ser candidata escancararia de saída um pragmatismo que em 2009 ficara velado pelos acenos iniciais de “ressignificar” o PV. Descartar essa alternativa era a única maneira de buscar preservar os outros dois compromissos, pois uma candidatura por partido nanico e gelatinoso (incluído aí o PPS, esse pacman que até anteontem, literalmente, estava à espera de José Serra!) comprometeria o projeto da Rede e não daria contribuição para o fim da polarização falsa, uma vez que ela própria, a candidatura, seria falsa. Optar pela dedicação exclusiva ao projeto de construir o novo partido seria uma escolha aceitável, mas pouco contribuiria para o fim do clinch PSDBxPT e, ademais, deixaria Marina sem lugar direto na eleição presidencial de 2014.

Nessa ordem de idéias, entrar na candidatura presidencial de Eduardo Campos com um embarque no partido dele e preservando o projeto de construção do seu próprio partido foi a melhor jogada, nas circunstâncias, mesmo que ao fazê-la Marina esteja, involuntariamente, encorpando o praticamente inevitável “volta Lula” – e de duas maneiras: ao tornar a candidatura de Campos viável, ela ajuda Lula a “entender” que só ele pode salvar a continuidade do projeto petista e abre caminho para que Campos venha a realizar seu verdadeiro sonho: ser o vice de Lula, pois só o ex-presidente tem cacife para garantir ao PMDB que nada será perdido se eles forem desalojados da vice para o bem dos negócios comuns: há muitos ministérios.

Se as coisas se passarem assim, Marina não ficará de todo mal, mas também não ficará bem, pois entrar em cartaz no papel de “Ciro Gomes” nunca é exatamente promessa de sucesso de bilheteria.

PARTIDOS E PROFISSIONAIS DA REPRESENTAÇÃO

Carlos Novaes, setembro de 2013

Não é tão difícil constatar que o prestígio dos partidos não está em expansão em parte alguma no mundo, havendo situações de manutenção e muitos exemplos de declínio propriamente dito. Menos trivial é uma explicação razoável para o fenômeno. Uns dizem que as pessoas já não querem partidos porque eles não têm nitidez ideológica ou programática, diagnóstico que põe o problema lógico de que se há tanta gente querendo partidos ideológicos ou programáticos, eles deveriam existir fortes às pencas…Outros entendem que os partidos são por demais hierarquizados, embora quase todo partido que surge, por mais que trombeteie novidades, já venha com sua pirâmide de poder pronta, provida de altar e sarcófago.

Numa outra linha explicativa, há quem arrisque um palpite aparentemente mais radical: a crise seria da forma partido, que já não responderia às exigências políticas de nosso tempo, devendo ser substituída por outra coisa(¿). Mas, para que essa abordagem tenha alguma chance de parar de pé, é necessário que se defina a forma partido como sendo necessariamente aquela dos partidos que conhecemos e, assim, se condene à condição de velharia sem remissão toda e qualquer associação para organizar a ação coletiva na esfera pública política eleitoral. Encarcerada no dogma de que não se pode imaginar partidos diferentes dos que temos, a ação política eleitoral organizada já não seria possível, sendo necessário imaginar um outro mundo. Como essa opção vai ser muito demorada, talvez seja melhor fazermos um esforço para reconhecer que a forma partido não pode ser descartada, pois algum partido é, necessariamente, pelo menos nesse mundo, a única forma de organizar a ação política eleitoral daqueles que pensam de maneira semelhante o diagnóstico e as soluções para os problemas que nos atribulam na esfera pública.

Como no Brasil a legislação permite total liberdade de organização partidária, estamos com sorte: ninguém precisa se desculpar por querer um partido, pois ele pode ter a forma que quisermos e, assim, pode ser bem diferente de tudo o que conhecemos. Aflições com o tema são desnecessárias, salvo a ginástica exigida de todo aquele ou aquela que, apegada ao mando, e sem querer deixar o fluxo da moda, não assume o risco de desconstrui-la, preferindo por um pé em cada canoa: afirma a crise irremediável da forma partido; mas trata de hierarquizar e mandar no seu, que ninguém é de ferro.

Como quer que se apresentem partidos velhos e novos, o fato é que nove de cada dez críticos dos partidos no Brasil dizem, impertinentemente, que eles são fracos. E entendem essa suposta fraqueza como sendo, vejam só, ou o resultado da, ou a própria, falta de nitidez ideológica ou programática; ou a consequência de os eleitores darem o voto a indivíduos, não a partidos (esses mesmos que não são programaticamente atraentes…) . Feito o “diagnóstico” equivocado, os engenheiros institucionais passam a matutar uma engenhoca legal que nos dê, a um só tempo, partidos fortes, ideológicos e programáticos, como se qualquer uma dessas características pudesse brotar da vigência de alguma lei urdida para tanger o eleitor e não fosse necessariamente o resultado contingente de uma complexa dinâmica social em que as pessoas se interessem pela esfera pública política e, uma vez nela, venham a se reconhecer, talvez, em partidos assim.

O embaraço principal em que se metem nossos engenheiros resulta de que não há exemplo mundial a apontar. O mundo, em sua infinita diversidade, conhece todo tipo de arranjo entre sistemas eleitorais e partidários e, não obstante, padece dos mesmos males: baixa representação e responsabilização (accountability), com desprestígio dos partidos. Assim, por mais difícil que seja abandonar a atmosfera da invencionice institucional, o melhor é descer da jabuticabeira e buscar a causa do problema fora dos sistemas eleitoral e partidário. E, uma vez escolhida outra abordagem, a solução está na cara: o que há de comum a todos os países ditos democráticos, com os mais diferentes sistemas combinados, é a existência malsã de uma representação profissional, cujo lastro central é a prerrogativa da reeleição, quase sempre infinita, para os legislativos.

Além do que já foi dito sobre o tema dos profissionais da representação política em outros posts deste Blog, parece oportuno chamar a atenção — nesse momento em que mais uma busca por partidos “fortes” é empreendida entre nós, com a tentativa, dessa vez equivocada, de lei de iniciativa popular para o sistema eleitoral do pessoal da “ficha limpa” — para o fato de que uma das consequências da representação ter se tornado uma rotina de profissionais é a paulatina descaracterização das diferenças entre partidos. Ninguém mais parecido com um político de carreira do que outro político de carreira. Eles criam laços corporativos contra nós, eleitores, que somos mais e mais vistos como o problema. Além dos cacoetes comuns do próprio exercício modorrento da representação como carreira (ora vereador, ora deputado estadual, mais adiante deputado federal, etc), que corrompem diferenças “ideológicas” que fossem de esperar (e que só aparecem como artifícios de campanha ou ferramentas fajutas da luta interna), obter a reeleição contínua requer uma nova ciência, com suas respectivas técnicas, tecnologias e profissionais especializados, estabelecendo-se uma padronização em tudo ao avesso do que seria uma relação de representação por si mesma dinâmica, atenta aos ajustes ou às mudanças requeridas pela sociedade. Em outras palavras, o sistema político, enquanto sistema, se diferencia e se opõe ao mundo da vida, enquanto vida.

Se queremos que os partidos mudem, ainda que venham a continuar tendo as preferências que tem, precisamos entender que não devemos dar força a quem neles já tem poder de mando, como iria acontecer se déssemos a eles o conforto do voto em lista ou o dinheiro certo do financiamento público. Acabemos com a reeleição para os legislativos, obrigando os partidos a se abrirem para a sociedade de modo permanente, ininterrupto. Com isso, quem se interessa por política, e até contingentes porventura existentes de uma demanda reprimida por participação, ou irão buscar suas afinidades nos partidos estabelecidos, complicando a vida dos caciques que serão obrigados a se submeterem a uma dinâmica permanente de renovação; ou irão propor a criação de partidos novos. Num caso ou no outro, como resultado da renovação compulsória,  os partidos acabarão por apresentar diferenças significativamente mais nítidas entre si e haverá poucas chances de que se aboletem no poder interno os mesmos de sempre.

PARTIDO EM REDE – uma introdução

Carlos Novaes, abril de 2011

(contribuição ao movimento +1pela reforma política, retomando ideias apresentadas em 2009)

Como já disse em outro lugar, são três as tarefas principais para uma nova política: a primeira tarefa é encontrar modos de fazer e de organizar a ação política que diminuam a autonomia que o mundo da política ganhou em relação ao “mundo da vida” do cidadão comum. Os políticos profissionais estão num mundo próprio, com muito pouco contato com a vida real. Mesmo o dia das eleições é vivido por eles de um modo muito diferente do que sente o cidadão.

A segunda tarefa de uma nova política no Brasil é aumentar a capacidade do sistema político de representar a diversidade na sociedade. Além de autônomo, fechado em si mesmo, o mundo dos políticos profissionais representa pouco e mal a diversidade vivaz presente na vida brasileira.

A terceira tarefa de uma nova política no Brasil é se aproximar o máximo possível de um equilíbrio proveitoso entre representação da diversidade e capacidade de coordenação do sistema como tal. Hoje, a balança pende demasiado para a coordenação, com perdas para a representação. Não se trata de ir para o pólo oposto, pois o máximo de representação acabaria por gerar incapacidade de coordenação.

Qual a melhor estrutura de partido para antecipar, já na organização partidária, o que se pretende como novo?

Um partido estruturado em rede parece o mais indicado, desde que tenhamos em mente que partido em REDE não é partido na Internet, nem via Internet, ainda que ela seja ferramenta fundamental na sua dinâmica democrática.

Uma rede não tem centro, nem esquerda, nem direita. O partido também não deve ter. Os nós da rede são suas intervenções no mundo a transformar, e cada um deles será mais ou menos vistoso segundo a relevância que se atribua, a cada momento, ao que esse ou aquele nó significa/desempenha. É de esperar que essa relevância seja atribuída segundo o Programa do partido e as tarefas para uma nova política.

Os aspectos estruturais mais relevantes de um partido em rede são:

  1. Estrutura de organização
  2. Programa
  3. Sustentabilidade

1. Notas sobre a Estrutura

A estrutura de um partido em Rede deve ser ancorada no âmbito local, mormente em um país continental como o nosso. Ou seja, não se trata de usar a Internet para insistir sobre formas concentradas de decisão e poder próprias do formato Teia, não da forma Rede. O formato Teia acaba privilegiando aqueles que reúnem duas facilidades: são mais capazes de realizar comunicação remota direta e os mais dotados de recursos para deslocamentos rumo às custosas reuniões presenciais decisivas. O formato Rede é realmente aberto e não fica refém da estrutura plebiscitária da Teia. Nos plebiscitos há sempre alguém para decidir o que e como perguntar. Assim são as comunicações e movimentos em Teia: decide-se com aparência de não-decisão o que os inscritos na Teia vão ou não conhecer, esmiuçar e, ao cabo, fazer.

Em suma, enquanto a Teia está a serviço da autonomia do mundo político, a Rede valoriza e se beneficia do “mundo da vida”, que diz respeito ao cidadão, às suas agruras, alegrias e preferências.

Valorizar o plano local/municipal quer dizer que para as decisões de ordem nacional não cabe como que passar pela instância estadual/regional. Ou seja, a federação (estados) não deve ser um filtro entre a vida real das pessoas e as decisões nacionais do Partido Rede. A ligação deve ser direta (evitar, sempre, a autonomia do mundo dos políticos): delegados eleitos localmente direto para a instância nacional. As estruturas estaduais são um fim em si mesmo, não transição para o Nacional. Elas decidem o que diz respeito ao estado federado, e ponto. As decisões nacionais saem das instâncias locais (municipais e inframunicipais). Deixando ainda mais claro: encontros estaduais não escolhem delegados para o nacional.

Mesmo um partido em Rede precisa de uma plataforma estrutural com espaços físicos, veículos, materiais de apoio, funcionários e dirigentes remunerados. Mas é necessário prevenir a burocratização e sua filha direta, a oligarquização (vide a trajetória do PT). Então, que fique claro desde o início: quem é remunerado não decide e não defende propostas políticas ou programáticas nas instâncias ou momentos de decisão coletiva. Ou seja, uma vez remunerado para fazer política o dirigente/quadro partidário não poderá ter direito a voto ou voz nos Congressos de delegados com representação local ou em Plenárias locais. Sua atuação como proponente deverá se dar na rede como tal.

No caso dos membros do partido com cargos de representação obtidos pelo voto do eleitor, terão pleno direito de voz e voto nas Plenárias locais respectivas e/ou sempre que forem eleitos como delegados às instâncias superiores. Vale dizer: um Partido em Rede não discrimina para menos aqueles que receberam o voto do eleitor. Pelo contrário.

Para ajudar a evitar a oligarquização do Partido Rede, as instâncias de direção terão de ser renovadas, sempre, em pelo menos 2/3 de seus membros. O 1/3 remanescente terá, sempre, de estar nos 2/3 da renovação seguinte, sendo vedada a eleição para qualquer instância de direção a todo aquele que não tiver cumprido fora de qualquer direção pelo menos o tempo equivalente ao de um mandato da instância mais recente de que foi dirigente.

Essas exigências visam, ainda, evitar o empobrecimento da capacidade de o partido representar o “mundo da vida”. Sempre que uma médica, ou um motoboy, ou uma atendente de telemarketing, etc, se torna um político-burocrata-profissional perdemos todos: ao romperem o contato com sua realidade profissional o partido perde o que eles têm de melhor: representam o “mundo da vida” por estarem inscritos nele e passam a lutar pela sua nova “condição”.

Essa dinâmica contribuiria para uma nova política: representação ampla com capacidade de coordenação, evitando as formas de autonomia do mundo político (dirigentes e oligarcas que se eternizam, etc).

As votações internas no partido poderão ser por chapas ou avulsas. Cada eleitor disporá, sempre, de dois votos. As vantagens desse sistema são evidentes. Registro apenas que ele é um meio de valorizar não apenas as minorias, mas a conduta desviante e hostil com que todo partido em Rede deve ser capaz de conviver. Tendo dois votos, o delegado pode sufragar a chapa da sua preferência e ainda pôr alguma pimenta sufragando a incerteza individual eventualmente existente, se achar oportuno.

2. Programa

Aqui ainda não vou antecipar conteúdos, uma vez que isso é tarefa para muitos. Tendo como guarda-chuva mais geral o Desenvolvimento Sustentável (que é uma reunião de Alerta e Projeto) digo, apenas, que o Programa de um partido em Rede (com base local) deve resultar de contribuições oriundas das opiniões as mais descentralizadas, processo que culminaria num Congresso Nacional, tendo em mente, sempre, melhorar a vida das pessoas sem comprometer as possibilidades de vida das gerações futuras.

3. Notas sobre Sustentabilidade

Um partido em Rede deve ser sustentado pela rede que conseguir tecer, aceitando apenas contribuições individuais (nunca de empresas – falo do partido, não de campanhas eleitorais). Aportes oficiais, apenas os existentes (horário eleitoral e fundo partidário). Mas não basta captar fragmentadamente e segundo o voluntariado. Sustentável significa responsabilidade para o filiado e contrapartida do partido Rede. Para isso, toda filiação deve ter a forma de um contrato: ambos os lados assumem compromissos recíprocos. Sem contrato, não há filiação.

No tocante ao dinheiro propriamente dito, cuja centralidade todos conhecemos, é fundamental transparência total. Aquela mesma que levou o Delúbio, ex-tesoureiro do PT, a declarar “transparência assim já é burrice”.

Pois bem, o que proponho é que em matéria de transparência com dinheiro formemos uma Rede de burros irrecuperáveis. Para isso, devemos desenvolver uma ferramenta na WEB em que esteja escancarada a contabilidade do partido. Nada a esconder, nada a omitir. Simples assim: registra-se cada real que entra e cada real que sai, dizendo quem deu e onde foi gasto, diariamente. Cada membro ou simpatizante do partido acompanhará cada uma de suas doações ( e a de cada um dos demais), dia após dia, mês após mês, assim como saberá de cada gasto do partido. Além disso, tal ferramenta apontaria, dia-a-dia, os inadimplentes, conforme contrato.

A inadimplência injustificada do compromisso contratual assumido com o partido Rede retira do filiado os direitos de voz e voto. Uma vez que tenha pago compromissos em atraso, o filiado só recuperará seus direitos para exerce-los daí a dois eventos partidários, nunca antes de transcorridos pelo menos 60 dias. Essas exigências inibirão a prática nociva de pagamento por terceiro interessado.

IMPROVISO AUTORITÁRIO

ATENÇÃO:  Carlos Novaes, junho de 2009

O texto abaixo deve ser lido junto com este aqui, da mesma época. As primeiras versões destes dois textos foram escritas entre o final de 2008 e o início de 2009. Em meados de 2009 eles foram modificados, enviados a vários interlocutores e publicados no site do então Movimento Marina Silva. O compromisso explicativo deste blog (cabe ao leitor avaliar se proveitoso ou não) me leva a indicar a leitura deles, pois minha maneira de avaliar a conjuntura atual segue parâmetros que vêm de longe, o que me dá um conforto duplo: me protege de ter surpresas infundadas e facilita o comentário dos fatos.

Ao longo dos 13 anos em que fez a disputa para levar Lula à presidência (1989-2002), o PT sempre se empenhou em oferecer à sociedade brasileira o que de melhor pôde produzir como projeto, seja no diagnóstico, seja nas propostas de mudança. Mas, já na reeleição de 2006, embora fosse natural que a lógica de governo tivesse peso importante na discussão sobre como prosseguir, afinal buscava-se reconduzir Lula, um partido fragilizado pelos acontecimentos de 2005 acabou por não desempenhar o papel que outrora desempenhara no desenho de um projeto inovador, que contribuísse para liberar o segundo mandato de certas amarras do primeiro. Deu-se o contrário, ganhou força, ao invés de perde-la, uma dimensão do passado que não quer passar e que se infiltra não apenas ali onde a podemos identificar como má, mas também na forma como se passou a conceber o que deve ser celebrado como bom.

Deixemos aos estudiosos buscar se há precedência e, em havendo, se o que veio primeiro foi o abandono do projeto ou a negação das práticas inovadoras. Seja como for, faz 20 anos o PT escolheu pela primeira vez um candidato para representá-lo na disputa pela presidência da República. Naquela, como em todas as eleições presidenciais seguintes, quem era do PT decidiu pelo nome de Lula com o entusiasmo de quem foi chamado a participar. Mesmo quando foi o caso de escolher entre a amplamente majoritária opção Lula e o senador Suplicy, cada um dos petistas, tivesse a preferência que tivesse, se sentiu respeitado e contemplado tanto no método empregado para a escolha quanto na decisão final pelo nome de Lula, pois ela se deu reafirmando a tradição de consulta às bases.

Em 2010, em razão das regras do jogo democrático brasileiro, o petista não poderá contar com uma candidatura Lula à presidência — é imperativo mudar. Mas a exigência era para que se mudasse de candidato, não de método. Para os petistas tratava-se, agora, da experiência inédita de escolher um nome entre vários possíveis. Em política, cada um de nós tem a sua preferência pessoal e ela não vale mais do que a de qualquer outro. Só se sabe o quanto nossa vontade coincide com a do companheiro do lado ou distante quando há um movimento aberto de debate, consulta, p a r t i c i p a ç ã o, reafirmando um padrão democrático que lança um facho de luz contra a prática dos coronéis dos partidos convencionais.

Mesmo diante da notória, ainda que calada, insatisfação de grande parte de seus militantes, filiados e simpatizantes, a direção do PT se rendeu a um outro método de escolha: a chancela pura e simples de uma vontade pessoal, com as mesuras cênicas, e até cínicas, que vão se tornando praxe no arremedar a participação que ontem fez grande aquele que hoje faz uso da força a si confiada para impor. A canga imobilizadora em que obsequiosamente a direção do PT acomodou sua vontade repele o entusiasmo daqueles que driblam as rotinas cotidianas abrindo espaços para lutar, precisamente porque jamais aceitaram delegar aos profissionais da política a decisão sobre os nossos destinos naquilo que têm de comum, de público. Se os petistas deixarem, essa direção os aquartelará no quintal da obediência, em tudo desfavorável à realização da democracia ampla pela qual se tem lutado, pautados por valorizar em cada um a vontade pessoal e intransferível de fazer as escolhas que resultam em mudanças, deitando fora métodos saídos do populismo, expressão de massas da dimensão autoritária da nossa cultura política.

Mas, afinal, por que o presidente Lula escolheu uma neo-petista neófita em urnas como sua preferida para a sucessão presidencial e recebeu a aceitação do PT e do petismo para a imposição da ministra Dilma Roussef como candidata?

A preferência de Lula decorre de duas limitações: da natureza instrumental do seu vínculo com o PT e, dela, de sua inclinação por substituir o petismo pelo lulismo; e da tendência, pode-se dizer natural, de ver a si mesmo como o limite a que a esquerda brasileira pode atingir.

A rendição do PT se dá pela natureza de seu vínculo com o Estado, que se baseia, antes de tudo, na busca pela primazia de nomear ou se fazer nomear.
Quanto ao petismo – desapetrechado de imaginário que revigore energias utópicas, distraído de propostas institucionais inovadoras, não obstante abrigue quem as faça –, vem se deixando reduzir à condição de dragão produtor de fumaça para encobrir o castelo em ruínas até que se resolva o clinch entre o carisma e a burocracia interessada.

Desde muito cedo Lula compreendeu que o PT era uma ferramenta necessária, mas não suficientemente manejável. Como já tive oportunidade de dizer em outro texto – na linha weberiana de que líderes carismáticos querem liberdade para agir e burocracias querem rotinas para controlar –, como resultado dos aprendizados da disputa de 1989, Lula montou o Governo Paralelo como uma burocracia a serviço do carisma, paralela não a Collor, mas ao PT, que crescia longe do seu controle. Tanto que jamais participou senão ritualmente (discursos de abertura e encerramento) dos Encontros e Congressos do partido, embora tenha dado detida atenção ao seu Instituto Cidadania, saído do Governo Paralelo.

Essa relação entre o carisma e a burocracia partidária encontrava expressão plástica cabal no tabuleiro armado ao longo dos anos em que Lula (o carisma) se candidatava a presidente em campanhas organizadas por Dirceu (a máquina). Esse arranjo continha um tenso dispositivo de amarração de interesses: a candidatura do próprio Dirceu à sucessão da almejada presidência Lula. O carisma abriria caminho para o nome da máquina desprovido de apelo eleitoral amplo, e só um acontecimento externo alteraria o curso arquitetado por Dirceu e vivido com desconforto por Lula – salvaguardada a estatura de cada personagem, foi mais ou menos o que Ruy Falcão tentou arrancar como vice de Marta na disputa para a prefeitura de SP em 2004: o desprezo insciente pela natureza não-petista do êxito de Marta em 2000, somado à precipitação de ambições em que a prefeita se deixou arrastar (Lula sempre soube que a vitória dele não foi petista e jamais teria aceitado Dirceu como seu vice) levaram à derrocada previsível, evidente para alguns só quando da tentativa atabalhoada de voltar atrás em 2008, quando Marta buscou, em vão, atrair o Quércia preterido na disputa de quatro anos antes por um Falcão agora em submersão tática. O alijamento do grupo de Marta do governo Lula provém dessas escolhas e dos erros conexos. Agora, no açodamento imprudente (e impudente) de mais uma vez cortar caminho, os parceiros de Marta a empurraram em sua ruidosa, e com ares de primeiros da fila, adesão à opção Dilma. Voltemos.

O episódio do mensalão deu a Lula ocasião para um passo largo na solução de um problema antigo: submeter o PT. A demissão com cassação que fez de José Dirceu uma assombração política abriu um horizonte novo para Lula, que passou a dispor de uma liberdade de movimentos inédita, pois, de um só golpe, removera-se Dirceu do governo, da direção do partido e do calendário eleitoral. Nessa ordem de idéias, o episódio de Belo Horizonte em 2008 (aliança entre Pimentel-PT e Aécio-PSDB), foi ilustrativo de como, desde a derrocada de Dirceu, o carisma se sobrepôs à dinâmica partidária institucional: Lula se posicionou ao lado da solução não-partidária, o partido esperneou dando sinais, pela primeira vez desde 2005, de que pretendia preservar uma zona de autonomia na relação com o carisma, mas acabou cedendo. Daí para impor Dilma foi um pulo nos gráficos das pesquisas de avaliação do governo. Para Lula, a ministra se encaixa à perfeição como silhueta exclusiva de seu facho de luz: o carisma abrindo caminho para uma candidatura lunar, sem apelo eleitoral próprio, desamarrada da máquina partidária e sem afinidades com o petismo (o carismático Vargas fez parecido quando escolheu eleger o anódino general Eurico Dutra em 1946, para acabar voltando em 1950…).

Mas, se estavam claras a falta de trânsito de Dilma na máquina partidária, sua condição de oferecer, no máximo, mais do mesmo e a fragilidade política de sua investidura, o que teria impedido o PT de apresentar um ou mais nomes alternativos à preferência pessoal do presidente?
O que tolheu a direção do PT é sua acomodação ao retorno político que proporciona a desigualdade brasileira, fundada na ausência de habilitação educacional formal da imensa maioria do povo. Nessas condições, toda ação coletiva institucionalizante via recrutamento dos de baixo acaba por se tornar ela própria instrumento de ascensão social. A máquina vira instrumento para contornar as agruras impostas pela desigualdade. Fazer parte dela possibilita ganhos e salários que a simples “luta brava na cidade” não ofereceria, pela razão também simples de que a “cidade” está organizada para manter embaixo os de baixo. Pela acomodação, as possibilidades de avanço social generalizado ficam tão remotas, as perspectivas de transformação assumem talhe tão quimérico, que as melhores e mais aguerridas intenções têm soçobrado no jogo miúdo dos mandatos, contratos e nomeações que se teme perder ao enfrentar o dono da caneta respectiva. Como é próprio dos que se dão prazos largos para ocupação do poder (os 20 anos de Sérgio Mota e de Zé Dirceu), o PT vai se restringindo ao papel de instrumento a serviço de uma, e apenas uma, geração.

Dessa perspectiva, quando se olha não para as nomeações, mas para as políticas públicas em si, vê-se que o PT não está retirando dos programas sociais do governo, com relevo para o Bolsa-família, as conclusões políticas mais profícuas para uma esquerda que não abandonou pensar o longo prazo para além da biografia de quem pensa: esses programas sociais deveriam ser valorizados politicamente não só, nem principalmente, pelo bem-estar que geram (e geram!), mas sobretudo por abrir a possibilidade de se passar a contar com uma nova e positiva figura de cidadão insatisfeito.

Também parece ter escapado que uma crise (dê-se a ela o nome de econômica, ou o nome Sarney) deveria ser uma oportunidade para o petismo voltar a influir no PT e restabelecer, num patamar política, ideológica e programaticamente mais qualificado, a tensão entre o carisma e o partido: no plano simbólico, a crise permitiria resgatar o debate sobre mais ou menos estado nas relações com o mercado; ou mais ou menos vínculo entre a ética e a política, temas emblemáticos dos embates entre esquerda e direita que, repostos, abririam perspectivas novas de persuasão e recrutamento, mormente se articulados a temário de mudança institucional motivadora; no plano político, uma crise em geral impõe a distinção partido-governo, uma vez que o partido, ao contrário do governo, tem o direito, e o dever, de ver na crise uma oportunidade para se desfazer de amarras que o própria crise tornou anacrônicas ou simplesmente desmoralizou; no plano eleitoral ou de um futuro governo, a crise, seja a econômica, seja a político-institucional, torna mais arriscada a aposta em um nome sem memória eleitoral e, assim, desprovido de liames próprios com eleitores e forças políticas.