Carlos Novaes, 06 de outubro de 2014
Neste segundo turno teremos de vencer mais um trecho da mesma trilha que vimos abrindo e, por isso, não se trata de uma nova eleição. Tanto à maioria de nós, para quem tratar-se-á de repetir a opção já registrada na urna, como aos que não se sentiram contemplados no resultado do primeiro turno, e se virem impelidos a uma outra escolha, num como noutro caso, a memória do primeiro trecho trará não apenas candidatos já conhecidos, mas a mesma mobília temática de que nos ocupamos por todo o caminho. Se a memória eleitoral se impõe de uma eleição para outra mesmo nos pleitos para os legislativos, como já argumentei aqui, mais imediatamente nítida ela se põe para o voto de quem escolhe uma alternativa para a presidência da República entre dois turnos. Infelizmente, porém, neste segundo turno, em que não chega a haver uma disputa de projetos, nossa memória não será desafiada a novos arranjos e, assim, já não há qualquer possibilidade de um fluxo novo, na forma de uma transformação.
Atendendo a pedidos, este texto é uma tentativa de explicar melhor o entendimento acima. Embora vá aqui a despretensiosa contribuição de um blogueiro, não posso deixar de registrar meu reconhecimento ao que pude ler do prof. Fábio Wanderley Reis, autor da interpretação mais fecunda que conheço sobre a relação entre percepção popular e preferência eleitoral no Brasil. Prudente e oportuno acrescentar, porém, que nem vejo as linhas que se seguem como uma aplicação da visada teórica de Reis – não são; nem me acho entre aqueles que estão de acordo com as mais recentes opiniões do professor, como, por exemplo, as expressadas em artigo publicado na véspera desse primeiro turno na página três da Folha de S. Paulo, onde Reis, em derivação só aparentemente necessária da sua teoria, ao passo de negar a necessidade de os candidatos apresentarem programas de governo, parece se render à existência implausível de um suposto lulismo como fenômeno duradouro com força explicativa para alguma coisa relevante no comportamento eleitoral do brasileiro. Mesmo que programas de governo sejam, em geral, peças de vitrine com pouca ou mesmo nenhuma correspondência com o estoque, eles são sinalizadores úteis, ainda que não se deva deixar de reconhecer a importância do ajuizamento não letrado: por exemplo, a mim pouco importou se Marina, uma vez eleita, iria ou não levar adiante sua estapafúrdia reforma política de coincidência eleitoral com mandatos de cinco anos; o que importou foi descobrir que ela não sabia do que estava falando, e num tema que era central para uma candidatura que alardeava uma “nova política”. Naturalmente, essa foi uma verificação que só foi possível para quem sabe ler, mas, afinal, programas não são escritos para quem não o sabe, não sendo de desprezar, porém, nem os avanços havidos na escolarização do brasileiro médio nos últimos 40 anos, nem a interação entre os que sabem e os que não sabem ler. Quanto ao lulismo, espero que as linhas que se seguem deixem mais claro o que eu já disse aqui. Entremos na matéria.
A memória é uma teia da qual o EU é a aranha, e cuja plasticidade nem ao passado deixa em paz. É dela mesma, de seus próprios rearranjos, que saem não só os grandes intervalos de continuidade, mas também os momentos de alteração profunda no comportamento eleitoral, sempre possíveis, mas raros, como a experiência está sempre a nos mostrar. A oportunidade para grandes mudanças nasce do sofrimento. Se ele é vivido como insuportável, temos a revolução, pois diante do insuportável não há escolhas entre caminhos, pois a via unilateral da ação direta contra o mal se impõe em fluxo puro. Se intolerável, o sofrimento dá lugar a alguma escolha, no âmbito da qual poderá haver ou não uma transformação, que dependerá fundamentalmente da existência de vetores organizados propondo a ação transformadora. A grande diferença entre o insuportável e o intolerável, portanto, é que enquanto no primeiro a ação revolucionária se impõe sem precisar de proponentes, já que dispensa memória; no segundo, a transformação requer a ação da memória na forma de uma ou mais propostas que convidem a um caminho em fluxo novo, mas partindo do trecho já vencido na estrada que se quer deixar para trás. Até onde posso enxergar, nós estamos vivendo um período propício a um raro momento desse tipo, em que a efervescência eleitoral pode levar a um sólido realinhamento em favor da mudança, mas ainda não se organizou proponente à altura e a possibilidade de transformação vai sendo desperdiçada, ora porque se está aquém dela, reagindo à mudança; ora porque se está além dela, pregando uma revolução.
Nos últimos 40 anos tivemos apenas dois outros momentos como este, em que houve um realinhamento eleitoral com potencial transformador: em 1974 e em 1989-1994. No primeiro, sofrendo o intolerável ajuste do primeiro choque do petróleo, ocorrido em 1973, nosso povo deu tudo que pôde dentro dos limites estreitos do que lhe foi oferecido pelos políticos e o que lhe vedava a ditadura, e surpreendeu ao conferir uma vitória eleitoral esmagadora à oposição da época, dando ao MDB nada menos do que 16 das 22 cadeiras em disputa para o Senado, explicitando que o regime paisano-militar estava ferido de morte. Embora não pudesse alcançar uma transformação, esse realinhamento eleitoral espontâneo levou, entre outros desdobramentos, às vívidas eleições de 1978, onde FHC concorreu pela primeira vez ao Senado, e com o apoio de Lula, então um jovem e promissor sindicalista do ABC; e à conquista da Anistia, em agosto de 1979. Ainda no evoluir desse fecundo veio do movimento eleitoral de 1974, desencadearam-se forças novas, que vieram à tona medindo-se entre si e com as forças do atraso, embalo no qual se deu a criação de sindicatos, centrais sindicais e toda sorte de organizações da sociedade civil, com destaque para os novos partidos, dentre eles o PSDB e, principalmente, o PT, amalgama de carisma com estrutura burocrática nacional que já explorei aqui há mais de vinte anos, cabendo ao leitor avaliar a acuidade com que então apontei o esclerosamento precoce dessa formidável invenção política.
Na mesma ordem de desdobramentos, houve a campanha pelas diretas-já, em 1984, cuja derrota comprimiu a energia que vinha ganhando voltagem desde 1974, empurrando todo o conjunto para o estuário dessa ebulição, que foi o processo constituinte, saído da eleição de 1986, na qual o PMDB, sucessor do MDB, beneficiado pelo plano cruzado, que reavivou a memória de reconhecimento do partido como a ferramenta dos “interesses do povo”, obteve uma segunda vitória esmagadora, ainda no bojo do realinhamento eleitoral havido em 1974. Promulgada a Constituição de 1988, filha temporã desse legado de 74, no ano seguinte houve a campanha presidencial de 1989. Em razão da ruinosa ambição tacanha de Sarney, que obtivera um quinto ano de mandato, a eleição presidencial de 1989 correu solteira, sem conexão alguma com eleições para qualquer outro cargo. Essa circunstância levou o pleito a um certo desengate do legado de 74, uma vez que os candidatos a presidente não foram amarrados às, ou não puderam contar com, estruturas de campanha que a disputa pelos cargos intermediários põe em campo, o que contribuiu muito para que os dois finalistas fossem Collor e Lula: o primeiro porque, tendo recebido apoio prévio de poderosos grupos de comunicação, já era bastante conhecido do eleitorado e largou em vantagem, podendo se dar ao luxo de chegar por cima; o segundo porque era o único a dispor de uma estrutura nacional, naquela altura ainda não dependente do interesseiro jogo eleitoral miúdo para ser mobilizada a trabalhar, e de graça — um quadro que tive oportunidade de explorar aqui. Para o que nos interessa neste texto, um dos resultados mais importantes dessas circunstâncias foi que Lula, tendo passado ao segundo turno com apenas pouco mais de 16% dos votos, teve franqueado a si um eleitorado de setenta milhões de eleitores, responsabilidade que ele acabou por não suportar mas que, além de ter deixado uma memória valiosa, indicou, e isso talvez seja o mais importante, que o legado de 1974 havia se esgotado e um novo realinhamento estava a se impor, havendo que disputar se de direção conservadora ou transformadora, ou seja, se preso à memória contra o fluxo ou se voltado à reconfiguração da memória em favor do fluxo.
Como se sabe, naquele segundo turno, os donos do poder, manejando o controle dos grotões e apoiados no medo de camadas médias conservadoras, se saíram vencedores com Collor, um improviso tão ruim que nem a eles serviu de modo duradouro, mas que, no vácuo que a todos desafiava, se prestou a impingir uma derrota aos transformadores, naquela eleição representados por Lula, Brizola e, de um modo bem diferente, mas não menos ruptural, Covas. Voluntarioso no trato e voluntarista na ação política, Collor logo perdeu apoio popular com o malogro de mais um desastrado pacote anti-inflação, seguido da perda de sustentação parlamentar, pois ao desgaste com setores do capital descontentes com suas políticas vieram se somar evidências de corrupção que já não encontravam muita gente disposta a esconder. Sobreveio o impeachment e inaugurou-se outro período de incertezas em que a inflação sem freio há quase duas décadas, que havia devorado meia dúzia de pacotes econômicos de estabilização, articulava em alto grau o sofrimento intolerável da vez, já nessa altura ameaçando a própria ordem em que se davam os negócios dos de cima. Ou seja, a inflação havia adquirido um caráter simbólico e já representava muito mais do que uma corrida de preços — é com esse tamanho que ela deve ser lida quando mencionada neste texto.
Como camarão que dorme a água leva, e nossa classe dominante nunca foi de dormir no ponto, foi em torno do combate à inflação que se iniciou, em 1993, a preparação de uma resposta conservadora ao vetor transformador que tomava impulso na cada dia mais competitiva candidatura presidencial de Lula, que como desdobramento da votação obtida no segundo turno de 1989, chegou a ter mais de 40% nas pesquisas eleitorais no início de 1994. Essa dianteira era vivida como um desenlace quase inercial do período, pois o sofrimento popular era intolerável e o PT canalizava toda a negação da ordem malsã instalada, uma vez que, além de simbolizar a oportunidade perdida em 89, havia se recusado a participar das variantes de acomodação oferecidas antes e depois daquele pleito — a inflação empurrava a um realinhamento e Lula aparecia como o protagonista natural desse processo, que convidava à transformação precisamente porque permitia articular em alto grau a tensão entre memória e fluxo.
Alarmados com cenário tão desfavorável, os senhores do dinheiro foram buscar nas fronteiras do outro lado pistas para o caminho da salvação — chegara a hora de Fernando Henrique Cardoso, investidura cuja análise fiz a quente, em 1994, num artigo enviado à Folha de São Paulo, que não o publicou, mas que agora pode ser lido aqui.
Naquela altura, vinte anos depois que o povo instilara na dinâmica política a seiva para a qual a ditadura paisano-militar não tinha antídoto, o êxito econômico e político do Real viria a arrastar o eleitorado a mais uma mudança radical de preferências que, ao desfavorecer Lula, tomou a direção oposta à transformação e ainda orientado pela mudança deu a FHC uma vitória em primeiro turno contra os transformadores, que não tínhamos sabido avaliar a extensão e a profundidade do impacto benéfico do controvertido plano de estabilização, especialmente sobre os estratos mais sofridos da população. Ao contrário de nós, que julgávamos ter a fórmula da saída, nossos adversários tiveram a humildade de aprender com seus próprios erros, e ao invés de recorrer a mais um pacote para contornar a ira popular, elaboraram um plano que embrulhou nosso povo num engajamento limitado, é certo, mas muito superior à adesão ao papel de “fiscal do Sarney” (iniciativa ridícula, mas que permitiu enxergar o quanto havia na população de disposição represada ao engajamento no trato da coisa pública em momentos de crise); e muito superior, eu dizia, pelo engajamento cognitivo que requereu de cada um para que fizesse a correspondência entre os preços dos produtos e as tabelas de referência-URV, que emanavam diariamente do governo, numa rica significação da interação simbólica entre o estado e o povo, interação essa que se dava, sem que fosse preciso hostilizar ninguém, de maneira direta e sem o automatismo da vida cotidiana fundada no hábito, pois vinha articulada à contagem detida de nada menos que o dinheiro, a sempre escassa mercadoria universal. Àquela altura, estava acima das nossas forças desmanchar o arranjo.
Ao conseguir inverter a direção do realinhamento em curso, os tucanos derrotaram Lula já no primeiro turno, êxito que se repetiu também em 1998, mesmo sob condições bem mais adversas, pois havia um cenário eleitoral menos amigável, para dizer o mínimo. Enfim, o eleitorado fizera um novo realinhamento de largo curso e dirigido sua preferência para a força política que o aliviara de uma carga intolerável. Ciente do que estava em jogo, ainda que não com toda a clareza que o tempo sempre proporciona, o sociólogo na presidência instaurou um período de pactuação em que, sem deixar de favorecer aos de cima, instou o Estado sob seu comando a olhar pelos mais pobres, colocando uma ou outra estaca adicional ao plano Real, na forma de programas sociais compensatórios, ainda que sem enfrentar a desigualdade. Enfim, passados 20 anos havíamos mais uma vez dado início a um realinhamento eleitoral, cujos protagonistas não por acaso eram a ala menos conservadora do partido que se beneficiara do realinhamento anterior: o PSDB, como se sabe, saiu do (P)MDB, partido que só mais adiante iria se ajustar ao curso do novo realinhamento ocorrido pela ação dos seus dissidentes. A essa altura da narrativa é indispensável registrar que se o plano cruzado tivesse dado certo e logrado debelar a inflação, a acachapante vitória do PMDB nas eleições de 1986 teria re-alavancado o realinhamento eleitoral de 1974 e muito provavelmente Sarney teria tentado já então incluir na Constituição o dispositivo da reeleição para presidente. O fato de o candidato do PMDB à presidência em 1989, o notável e emblemático Ulisses Guimarães, ter obtido menos de 5% dos votos foi mais uma indicação de que o malogro do cruzado selara o fim do realinhamento de 1974.
Depois de marchas e contramarchas, a força transformadora burocratizada e oligarquizada digeriu as derrotas sofridas na forma de um aprendizado que, infelizmente, incluiu elementos de capitulação, sobrevindo recuos diante de compromissos centrais à transformação. O lulopetismo entendeu corretamente que estava além das suas forças mover a seu favor a chave dos trilhos do realinhamento eleitoral operado pelo Real. Porém, ao invés de buscar entender o fenômeno para melhor se dirigir aos de baixo e com eles articular um vetor de ação política, o que implicaria adiar sine die um desfecho eleitoral favorável, mas, em troca, manteria em perspectiva a opção da transformação, ao invés de perseverar, eu dizia, o lulopetismo decidiu por realinhar a si mesmo na direção de concessões aos de cima, ajustando-se de maneira quase clássica ao adverso realinhamento eleitoral havido. O resultado publicitário foi a Carta aos brasileiros e a escolha de José Alencar para vice de Lula, num arranjo conservador que abriu alas à vitória de Lula em 2002.
Recapitulando, sem poder escapar da agenda governista que havia sido imposta pelo Real oito anos antes, nas eleições de 2002 o lulopetismo se rendeu ao pacto conservador incrementalista em curso desde 1994, apenas se apresentando como quem poderia fazê-lo melhor. Romper o continuísmo governista foi possível porque uma crise internacional, combinada a dificuldades fiscais engendradas pela própria dinâmica do Real, havia complicado o equilíbrio frágil do arranjo de FHC, o pai do Real, programa que promovera um realinhamento eleitoral nas camadas médias de tal ordem que o Lula que em 1989 já havia conquistado pouco menos de 50% dos votos para presidente contra Collor, e no início do ano eleitoral de 1994 chegara a ter 43% das preferências, depois de se contrapor ao Real viu seu eleitorado, realinhado na direção contrária, abandoná-lo. Em suma, em 2002 o realinhamento eleitoral de 1994 trocou de governo, mas sem mudar de sentido e tampouco de direção, impondo uma lógica que balizou todo o período Lula, seja nas medidas ortodoxas de contenção de gastos do primeiro mandato, na manutenção de políticas sociais compensatórias sem desafiar a desigualdade, na manutenção do regime de metas de inflação; ou ainda no continuísmo de que são exemplo a troca de dívida externa por dívida interna, a flexibilização do monopólio da Petrobrás sobre o petróleo, a capitalização do BNDES em favor de grandes grupos econômicos, o lugar central que o PMDB adquire aos poucos na sustentação do governo, a manutenção de uma partição federativa das receitas tributárias que nada tem de federativa, etc; enumeração de escolhas que não quer dizer que o autor considere todas erradas.
Uma vez na presidência, o lulopetismo se mostrou um confiável e competente gestor do pacto conservador, cujo protagonismo arrebatara aos tucanos e, beneficiado por uma situação econômica internacional favorável, pôde obedecer ao realinhamento do Real aprofundando o pacto nas duas direções de seu vetor principal: prá cima, os ricos nunca ganharam tanto dinheiro; prá baixo, aos pobres nunca haviam sido destinados tantos benefícios, não sendo necessário dizer qual dos dois pólos se dava melhor. Espremida entre os dois, a classe média assistiu à degradação da vida urbana em que penosamente sobrevive na forma de mais violência, transporte caótico, falta de saneamento, etc, pois, afinal, alguém tinha de pagar a conta de um combate à pobreza que não só não mexe no dinheiro já acumulado pelos de cima, como, pior, tampouco altera a ordem econômica no sentido de liberar as energias retidas nos mecanismos que engendram e protegem um modelo de acumulação perversa. Assim, em razão do ajuste do lulopetismo aos trilhos do realinhamento proposto e obtido pelo Real, na reeleição de 2006 Lula trocou de eleitorado ou, por outra, o eleitorado trocou de candidato, mas não de preferência, isto é, o ex-metalúrgico ganhou os mais pobres e perdeu parte das camadas médias, inversão que alguns analistas tomaram por um novo realinhamento eleitoral, quando quem se ajustou foi o lulopetismo, não o eleitor.
Nos parágrafos numerados a seguir julgo esclarecer que os dois governos de Lula se deram sob obediência ao realinhamento eleitoral havido em 1994 e que, portanto, não houve nenhum realinhamento eleitoral sob Lula, o que torna implausível, ademais, o surgimento do presumido lulismo que corresponderia a esse novo realinhamento que não existiu:
1. – o eleitorado mais pobre continua onde sempre esteve, ou seja, apóia o governo que lhe favorece. Antes preferira FHC e Serra (pois em 2002, apesar de perder a eleição, Serra venceu Lula entre os mais pobres, que estavam alinhados com o Real e o governo FHC). Depois, em 2006, os mais pobres continuaram governistas e, por isso, migraram para Lula e o reconduziram, pois ele vinha sendo o presidente que os beneficiava nos exatos termos do pacto estabelecido em 1994. Ademais,
2. – os setores médios tampouco apresentaram qualquer realinhamento significativo na era Lula: a parcela deles à esquerda, minoritária, que antes da capitulação pragmática apoiava o lulopetismo, não concordou com a adesão ao pacto conservador e ficou onde sempre estivera, afastando-se de Lula ou emprestando-lhe apoio contrariado (daí a força inicial de Marina, que ela própria não entendeu); outra parcela, mais pragmática, que Lula havia arrebatado aos tucanos em 2002 com o ajuste conservador dele próprio, foi perdida em 2006 porque Lula, assim como FHC, não havia contemplado as suas expectativas materiais, ou seja, mais uma vez, esse pessoal ficou com a agenda que sempre tivera: havia deixado os tucanos porque eles não corresponderam, e adotado o Lula em 2002 — em 2006, mais uma vez decepcionados, deixaram Lula, mas conservaram sua própria agenda; uma terceira parcela dos setores médios, que já se alinhava com os tucanos, mas não apoiava as políticas de FHC em favor dos pobres (apenas as engolia), não viu razão para apoiar Lula, cuja agenda contra a pobreza era mais visível, e também ficou onde sempre estivera, até por achar que o que vai para os pobres deixa de vir para melhorar a situação urbana, que egoisticamente lhe interessa. Como não poderia deixar de ser, estes setores estão cegos para a necessidade de ir buscar os recursos mais encima, na bolsa dos rentistas, ação redistributiva que o tal pacto conservador veda e, por isso, dá à classe média em geral, progressista ou não, a impressão, de certo modo real, de que o socorro aos pobres se faz às suas custas, sem prejuízo de que há aspectos ideológicos repelentes orientando o que há aqui de raiva aos pobres.
Em suma, tanto quanto os pobres, os setores médios não apresentaram realinhamento eleitoral algum depois de 1994, ainda que quase todos tenham, em algum momento, trocado de candidato. Foi o lulopetismo que se realinhou e, em torno disso, todo o sistema girou. Logo, a longevidade do sucesso eleitoral dessa obediência neo-conservadora do lulopetismo aos termos da lógica incrementalista imposta em 1994 estará ameaçada se:
1. mais uma vez um cenário econômico internacional desfavorável trouxer problemas ao pacto conservador. Os sinais de deterioração são claros e decorrem também dai as dificuldades de Dilma de reter apoios — Marina cresceu por essa via, mas seu inconsistente projeto reacionário logo afastou os mais informados;
2. os setores populares pretenderem ir adiante do que o pacto conservador permite. Daí a acomodação burocrática do PT, que não mobiliza os pobres a quem ajuda — as pesquisas mostraram que até mesmo no Nordeste houve um ensaio de redirecionamento de apoio eleitoral nesta eleição de 2014, como se viu no desempenho inicial de Marina lá. Ou seja, mesmo ali não há lulismo, há governismo não inteiramente satisfeito;
3. parte dos setores médios não reacionários passe a reivindicar com mais força o fim da corrupção e a imposição de alguma perda aos muito ricos, em benefício da melhoria da vida urbana degradada. Evidentemente, por variadas que tenham sido suas motivações, foi justamente isso que se deu nas manifestações de junho de 2013: um claro sinal do esgotamento do pacto incrementalista e do realinhamento eleitoral que o acompanha, exatamente ali onde está seu tendão de Aquiles, as contradições do Brasil urbanizado refletidas desde a desigualdade. Foi aqui que Marina encontrou o combustível de arranque de sua subida vertiginosa inicial, que deu chabu pelo reacionarismo de suas propostas principais, em tudo contrárias a qualquer que tenha sido o espírito das ruas em 2013;
4. surgir uma alternativa transformadora viável, entendendo por viável uma proposta que, orientada pela sustentabilidade, privilegie os pobres, se centre em demandas urbanas, se contraponha à bandalheira política de forma crível e, muito importante, não busque enfrentar a todos os setores do capital (essa a limitação básica do PSOL e de toda a autointitulada esquerda) – um bom adversário seriam os rentistas, e/ou os ruralistas (Marina poderia ter sido essa alternativa, mas tomou o bonde errado e foi cair justamente no colo dos banqueiros e ruralistas, os Bornhausens da vida. Já Eduardo Jorge preferiu o lugar da consciência crítica que a todo tempo anuncia sua própria inviabilidade).
Como os muito pobres estão, e estarão, onde sempre estiveram (apoiam o governo que entendam que lhes favorece, e o abandonam se passam a entender que ele os prejudica, movimento este sempre mais difícil de fazerem porque o pouco que recebem sempre lhes parece uma dádiva), como os mais pobres são assim conservadores, o lulopetismo os mantém sob rédea curta e se apresenta como o máximo a que eles poderiam aspirar, explorando a coleira da gratidão. São esses pobres cheios de gratidão que podem ser ditos lulistas no sentido convencional, mas, para serem banalmente lulistas (ou seja, gostarem de Lula), eles não precisaram se realinhar eleitoralmente, Lula é que se realinhou para, como governante do pacto conservador gradualista, chegar até eles desde cima, na figura do benfeitor. Que tudo isso ganhou potência em razão da origem popular do ex-metalúrgico talentoso não resta dúvida, até porque os temores anteriores estavam, também, ligados a uma insuficiência de auto-estima dos mais pobres, quadro que já estava em mudança, do qual Lula se beneficiou, mas também ajudou a aprofundar com seu notável desempenho — reconfigurações que, aliás, mostram algo da limitação das análises baseadas na noção de “reconhecimento”, pois o que há é um crescente reforço da experiência do espelhamento entre iguais, não do reconhecimento vertical entre diferentes.
Mas nenhum desses aspectos de ordem simbólica justifica a confusão conceitual reinante. Afinal, se um realinhamento eleitoral digno desse nome, como os que tivemos em 1974 e em 1989-1994, se dá em torno de uma agenda, é de supor que os eleitores “realinhados” abandonem um governante que não corresponda a ela e se fixem numa oposição em que identifiquem a defesa dessa mesma agenda a que se apegaram. Se é assim, mesmo que tivesse havido um realinhamento eleitoral em 2006, não faria sentido chamá-lo de lulismo, pois mais adiante poderíamos ter a circunstância bizarra de ver o lulismo abandonando Lula (se ele viesse, por qualquer motivo, a “trair” a tal agenda fundante) e passando a apoiar um PSDB, um PSOL ou qualquer outro em que viesse a identificar um defensor da referida agenda. Aliás, seria nesses termos equivocados que, talvez, tivéssemos de descrever este segundo turno, pois parte do lulismo/governismo descontente pode passar a apoiar Aécio, troca de preferência por candidato que em nada contrariaria o realinhamento de 1994, como suponho já ter deixado claro. A confusão decorre, naturalmente, de que não se quer reconhecer as semelhanças siamesas entre o lulopetismo e os tucanos, e, por isso mesmo, da fixação de alguns na ideia de que Lula é um marco, em reverência ao qual teríamos uma tão anacrônica quanto implausível inclinação cesarista dos pobres (em paralelo com o Napoleão III do sacrossanto 18 Brumário, esquecendo-se, entre outros detalhes, de que estamos no Brasil urbano do século XXI, integrado pela TV e onde não houve revolução), inconsistência teórica que vem combinada com a certeza íntima de que o compromisso do ex-metalúrgico com os muito pobres seria alguma coisa como “inabalável”, já agora esquecendo-se o caráter propício da conjuntura internacional que todo mundo que tem juízo reconhece ter sido central para o “fenômeno”, e com o qual nem sempre se poderá contar.
Assim, faz 20 anos que os tucanos promoveram sem o saber um realinhamento eleitoral cujo protagonismo eles perderam por incompetência, mas não só, deixando que o recém-convertido lulopetismo passasse a hegemonizar o processo, agora em vias de esgotamento. O Real foi o marco do realinhamento eleitoral em vigor que orienta o pacto conservador gradualista ao qual um lulopetismo apressado de chegar ao poder escolheu se submeter, e cuja memória, inexplicavelmente abandonada pelos tucanos, Aécio vem buscando recuperar, ao que parece com não poucas chances de êxito (vamos ver como se comportam neste segundo turno os PMDBsss que saem das urnas do primeiro turno, os quais, vitoriosos ou não, já não dependem de ninguém).
Se Dilma ganhar em 2014, como vai ficando pouco provável, será menos por seus méritos e mais porque, ou Aécio não conseguiu enfeitar o programa comum com algum apelo democratista do tipo “vamos fazer juntos, tal como fizemos o Real”, ou terá sido pela razão que já conhecemos: o fato de que não apareceu nenhuma alternativa eleitoral com um projeto crível para superar os impasses do pacto conservador vigente, projeto novo que não poderá sugerir qualquer ameaça às conquistas alcançadas. Naturalmente, uma alternativa com essa ambição não pode se apresentar nem como confiável ao setor financeiro (esse personagem Lula já encarnou), nem segundo um modelo revolucionarista, sob pena de ficar relegada ao papel de propagandista de um programa que não pode deixar de ser encarado como inviável. Essa alternativa haverá de surgir do coração das lutas urbanas ecologicamente orientadas contra a desigualdade e para a liberdade. Por enquanto, vamos permanecer nessa inglória porfia de convés, numa caravela que só não ganha alto mar porque tem o oceano por lastro.