Carlos Novaes, 02 de julho de 2022
Ao que indicam os números das pesquisas, a maioria de nós está determinada a votar em Lula. Não se pode comemorar o que há de feliz nessa precária solução para o presente sem entender que ela encomenda uma infelicidade futura, conjunto nutrido por um passado malsão: a força de Lula serve de medida para a nossa falta de imaginação, falta essa que muito recentemente levou a maioria da sociedade brasileira a votar em alguém tão inadequado quanto Bolsonaro.
Imaginar requer coragem. Coragem requer aceitar o risco de deixar de contar com o que nos deixa sentir seguros. O perfil e a contundência das manifestações de junho de 2013 deixaram inseguros todos aqueles que ocupavam posições nas instituições públicas brasileiras – quem via como necessário estar no cargo que ocupava foi levado a achar, não sem razão, que a bronca era contra si. A covardia se generalizou e houve um brutal recuo de imaginação criadora: todas as nossas vanguardas políticas passaram a defender o Estado, no qual de um modo ou outro estavam instaladas, e, por isso mesmo, iniciou-se uma luta intramuros entre facções estatais, umas buscando empurrar para as outras a culpa pela ira da maioria da sociedade.
Essa conflagração das facções explicitou de maneira particularmente contundente as dificuldades de coordenação de um sistema político disfuncional quando se pensa nas complexidades envolvidas nos sofrimentos vividos pela maioria da sociedade brasileira. O sistema não tem respostas a dar e, pior, acentua problemas para os quais não tem solução. Por isso mesmo, entrou em crise de legitimação, o que se traduziu no sentimento antissistema da maioria da sociedade brasileira, que repudia esse Estado de Direito Autoritário-EDA em que as facções estão muito bem instaladas, revezando-se no mando conforme logram fazer maioria a cada eleição presidencial, que define não um vencedor, mas aquele a quem caberá o privilégio de comandar o exercício faccioso dos poderes institucionais, que não deixa de contemplar ninguém que tenha conseguido contornar as dificuldades para chegar a alguma das instituições do EDA — é por isso que a urna eletrônica é, mesmo, confiável: ela serve de padrão de medida, de solo firme, para o jogo faccioso deles, e solda esse facciosismo à boa fé de uma sociedade incauta, que recebe contra seus próprios interesses o resultado do voto que deveras deu; é infernal!
Como já vimos, ao se insurgir contra o que consegue enxergar de malsão nesse estado de coisas, a maioria da sociedade acabou por escolher a única alternativa antissistema disponível, e Bolsonaro foi eleito. Passados quase quatro anos, tendo ficado claro o monumental erro cometido, essa mesma sociedade não conseguiu forjar uma alternativa e se vê tangida pela própria inércia a votar contra Bolsonaro premiando facções cujas práticas políticas conduziram o país na direção dessa besta. O PT e o que restou de eleitoralmente atraente do PSDB se juntaram para macaquear uma geringonça cuja oportunidade eles mesmos jogaram fora faz quase trinta anos, tudo em nome de uma restauração indesejável, uma vez que o que eles propõem é menos do mesmo — basta ler as indicações do que será o programa de governo proposto pela chapa: depois de vários mandatos de presidente e governador, Lula e Alckmin, a 100 dias da eleição, convidam a sociedade pra “conversar” em cima das mesmas propostas vagas de sempre… Tudo se passa como se eles não tivessem tido tempo de detalhar uma proposta de combate à desigualdade, uma reforma tributária ou o que quer que seja. E ainda usam uma suposta ameaça à democracia para desviar as consciências daquilo que realmente importa.
Tanto o eleitor desavisado, como aquele que se faz de desavisado por falta de brio para tirar consequências da própria falta de entusiasmo, um como outro votará em Lula como quem compra uma passagem de trem, mas, no fundo, sabe que está a embarcar num carrossel: haverá alguma ordem, menos sobressaltos e alguma alegria (afinal, um parque de diversões é melhor do que o circo de horrores de Bolsonaro), mas não iremos a lugar algum e, por isso mesmo, a cada volta nos depararemos com os sempre mesmos velhos problemas.
O Estado de Direito Autoritário (leia-se o Sistema) é tão patentemente consolidado que a “PEC do fim do mundo” terminou por ser votada e unanimemente aprovada no Senado, isto é, mesmo a “”””Oposição”””””, berrando a sua afronta aos cofres públicos e o cunho eleitoreiro, votou a favor dela. O jogo das facções, para a plateia, é mostrar o embate, a divergência, princípios defendidos apenas da boca para fora, mas nos bastidores são acordões que visam ao status quo e sobrevivência política dos personagens que querem permanecer em cena. Não por se acreditarem capazes de ajudar a gerar a mudança necessária de que precisa o país, mas por que encaram a política como uma profissão da qual são limados todos que não jogam conforme as regras.
É isso, Ricardo. Só faço um pequeno senão: não é bem que ocorram “acordões” de bastidor. Embora ocorram acordos, o “acordão”, mesmo, é o próprio funcionamento do exercício faccioso dos poderes institucionais, por sobre as cabeças individuais dos profissionais, que, muitas vezes, sequer se dão conta da farsa que estão a encenar como se fosse um drama. Não há uma grande conspiração; há uma forma, na qual há espaço para múltiplas conspirações miúdas, que ajudam os atores a se iludirem de que estão no controle, até que ocorre um junho de 2013…
Aproveito para informa-lo de que em breve vou dar início a uma série de participações no YouTube, de modo a acompanhar o processo eleitoral. Abraço.