FRENTISMO PODE FAVORECER BOLSONARO

Carlos Novaes, 11 de agosto de 2022

Hoje tivemos o lançamento público de manifesto pela democracia. Uma apoteose frentista que reúne de Boulos a Luciano Huck… É um frentismo tão aguado que sequer tem um programa para amarrar as forças que, na verdade, estão juntas porque aderiram, mais ou menos explicitamente, à candidatura de Lula, o coringa das facções.

O objetivo é reiterar a preferência pela democracia, que é da maioria da sociedade brasileira, contra as minoritárias fantasias ditatoriais de Bolsonaro. Evidentemente, a posição dos signatários é confortável. Por outro lado, ela é inócua, uma vez que, como já vimos ao longo dos últimos anos, em vários posts deste blog, e em vídeos mais recentes, Bolsonaro não tem a menor condição de dar um golpe para entronizar-se como ditador.

Diante da preferência nacional pela democracia, não há desafio algum em mobilizar para a defesa dela. O desafio estaria em mobilizar para dizer o que fazer com a democracia que temos. Incrustradas num Estado de Direito AutoritárioEDA em crise de legitimação (sentimento antissistema), nossas amplas franquias democráticas precisam ser mobilizadas em favor da construção de um Estado de Direito Democrático, que não será alcançado sem a luta concomitante contra a desigualdade. Ou seja, precisamos de um programa que detalhe o combate à desigualdade, apoiando-se no sentimento antissistema e almejando a consolidação da democracia.

O problema é que os protagonistas dos manifestos fundem, indevidamente, a defesa da democracia com a defesa deste EDA, chamando-o, enganosamente, de Estado democrático de direito. Os manifestos pela democracia defendem a democracia como se não houvesse problema algum entre, de um lado, a vigência das franquias democráticas e, de outro, as práticas autoritárias do EDA — defendem a democracia renegando o auspicioso sentimento antissistema que atravessa a sociedade brasileira. Preferem a posição cômoda de combater Bolsonaro pelo que ele diz contra a democracia; e não pelo que ele faz contra a sociedade apoiado nos poderes que lhe são conferidos pelo Estado de Direito Autoritário.

Tudo se passa como se o “de Direito” tivesse vigência republicana plena no Brasil, como se não houvesse, na prática, o exercício facciosos dos poderes institucionais, um universo de regras (não escritas) e de rotinas estatais em que se abrigam violência policial, corrupção, vista grossa e até incentivo à predação ambiental, privilégios salariais e previdenciários para burocratas estatais, arbítrio contra a população ameríndia, descaso da Justiça contra os mais pobres etc.

O Estado é “de Direito”, mas as regras e as rotinas pelas quais esse “de Direito” se traduz na prática são autoritárias. A inviolabilidade do domicílio é “de Direito”, mas o pé-na-porta da polícia na casa do pobre é a regra, a rotina autoritária. Roubar e furtar são crimes no “de Direito”, mas fazer vistas grossas à corrupção é regra.

Por isso, a maioria de nós prefere a democracia e desenvolveu um auspicioso sentimento antissistema.

Várias pesquisas já mostraram que a maioria da população não acredita no que Bolsonaro diz. Os incautos leem esses números registrando apenas o que essas pesquisas dizem de favorável à nossa luta contra o besta… O problema é que esses números também trazem embutida a certeza da maioria da população de que o que Bolsonaro diz contra a democracia também não merece crédito… Quer dizer, todo esse frentismo democrático não está falando com a maioria, e por três razões sobrepostas, ainda que assimetricamente distribuídas: (i) a maioria já prefere a democracia; (ii) a maioria sabe que Bolsonaro não reúne condições para dar um golpe; (iii) a maioria já sabe que Bolsonaro é um bravateiro que, no fundo, está, ele próprio, careca de saber que não tem força para se tornar um ditador.

Não obstante, Lula e seus seguidores (seguidores, não eleitores, pois até eu me incluo entre os eleitores de Lula – fazer o que?) insistem em convocar para a tarefa inócua de defender a democracia, e pior, o fazem afrontando o sentimento antissistema da maioria de nós com esse ajuntamento promíscuo (pelo menos aos olhos do eleitor médio) de facções e políticos profissionais aderidos ao EDA, justamente o que está em crise de legitimação. E tudo isso sem detalhar programa algum, proposta alguma — afinal, é uma “ampla frente”….

Bolsonaro foi afastado da condição de fazer maioria e amarga baixo potencial eleitoral nas pesquisas não porque ameace a democracia, mas pelo que fez com os poderes do Estado na condição de presidente. Logo, a campanha da oposição ao besta deveria estar centrada não na democracia, mas no governo que Bolsonaro fez, no uso que ele deu ao EDA — e, claro, em uma alternativa clara a esse estado de coisas. Indo na mão contrária, porém, Lula e os frentistas podem estar abrindo uma via de escape para Bolsonaro.

Trocando em miúdos: Lula e os frentistas tanto fazem, erram tanto ao não combater Bolsonaro pelo que ele fez, que acabarão por permitir que as bravatas grosseiras que ele diz passem por compromisso antissistema… — como a maioria sabe que Bolsonaro não tem condições de se tornar um ditador, pode haver uma outra composição de maioria para a qual migrem parte dos que têm a democracia como assegurada e, então, na falta de uma alternativa real, embarquem, mais uma vez, no embuste antissistema de Bolsonaro. O risco é real.

OUTRA COISA:

No link abaixo está a versão final do meu livro sobre relações que julgo ter descoberto entre obras de Aleksandr Púchkin e Ivan Turguêniev.

LITERATURA CONTRA IMOBILISMO NA RÚSSIA DO SÉCULO XIX

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