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Carlos Novaes, 02 de junho de 2023
Com + acréscimos na seção Fica o Registro, às 15:00h e às 16:46h de 02/06
A desorientação de Lula, desenhada em suas linhas gerais no artigo anterior desta série, aparece com clareza nos detalhes práticos de sua atuação em quatro áreas fundamentais: (i) combate à desigualdade; (ii) transformação do Estado num Estado de Direito Democrático; (iii) enfrentamento da questão ambiental e da mudança climática; (iv) relações internacionais afinadas com os objetivos anteriores.
I.
Combater a desigualdade requer recuperar a capacidade do Estado de investir. Veja bem, leitor: investir, não meramente gastar em políticas compensatórias — quer dizer: ao invés de tratar apenas dos 50% mais pobres contra os 5% mais ricos, o governo tem de realizar obras anti-desigualdade que contemplem também interesses dos 45% que formam as classes médias. Liderada por Haddad, a área econômico-fazendária do governo, na busca de melhorar a capacidade de investimento, construiu o chamado “arcabouço fiscal” (destinado a enfrentar o desequilíbrio das contas públicas) e uma proposta de reforma tributária (destinada a melhorar a arrecadação do Estado). Ambas as propostas são tímidas diante da desigualdade, mas são coerentes com a posição desvantajosa em que o governo se acha na luta de facções em que escolheu se afundar.
A timidez dessas propostas contrasta com a valentia eleitoral recente, período no qual nossa autointitulada esquerda sempre tira do armário sua batina radicalóide e brada contra os muito ricos (os 5%) e em favor dos mais pobres (os 50%), prometendo uma guerra que jamais irá travar. Uma vez no governo, passa aos acenos de moderação para apaziguar os muito ricos (os 5% tão atacados na campanha) e suas facções de apoio dentro do Congresso (especialmente o tão “repudiado” Centrão). Não obstante sua timidez, aquelas propostas foram e têm sido torpedeadas com sucesso pelo facciosismo da oposição congressual, que explora a fragilidade do governo ali. Como Lula faz da política uma reserva de mercado para profissionais, nada pôde fazer senão ceder mais e mais às exigências do chamado Centrão.
Como se não bastasse o fogo das facções adversárias, a questionável (mas inegável) racionalidade da proposta de Haddad tem sido torpedeada pelo próprio Lula: mesmo com as crescentes dificuldades para angariar os 150 bilhões de reais que lhe faltam para alcançar o mínimo daquela racionalidade almejada, o presidente não apenas impediu o fim da isenção fiscal para compras no exterior até 50 dólares (renderiam 8 bilhões), mas ainda anunciou uma nova isenção de impostos industriais para presentear a baixa classe média com um poluente “Meu Carro Minha Vida” (perda de uns 2 bilhões), o que vai na contramão do que seria uma política real contra a desigualdade em favor da baixa classe média: aumentar e qualificar o transporte coletivo com equipamentos elétricos, rodoviários e sobre trilhos (como, aliás, parece ser a proposta de Mercadante no BNEDS…).
Os recuos irracionais de Lula mostram sua incompreensão do problema da desigualdade: ele só entende o combate à desigualdade como distribuição de benefícios diretos de fruição imediata, não com investimentos cujos resultados só irão aparecer no médio prazo (infraestrutura) e, especialmente, no longo prazo (educação). Por isso Lula não tirou da baixa classe média a isenção para compras via internet até 50 dólares e ainda pretende dar a ela o tão sonhado carro popular: tudo se passa como se a luta contra a desigualdade não exigisse uma transformação no modo de ver a participação de cada um no desenvolvimento do país. Não parece difícil de entender que a luta contra a desigualdade ganharia tração política se o governo mobilizasse a maioria da sociedade para uma proposta em que todos ajudariam a pagar a conta — sem simplismos, mas apenas para dar um exemplo: viriam juntos o fim das isenções sobre lucros e dividendos (75 bilhões anuais) e sobre as tais compras até 50 dólares (8 bilhões anuais).
II.
Lutar para alcançar um Estado de Direito Democrático requer, de cara, reconhecer que — nesses mais de trinta anos que nos separam da queda do Estado Ditatorial instituído em 1964 — a democracia não completou sua transição desde a sociedade (onde ela permanece viva) para o Estado (que se defende dela com autoritarismo). Esse impasse alojado na transição democrática truncada ganhou forma no Estado de Direito Autoritário que nos infelicita. Ou seja, ao invés da democracia transitar da sociedade para o Estado; foi o Estado Ditatorial que transitou para o Estado de Direito Autoritário: adotou o “de Direito” para ceder algo à maioria da sociedade que queria democracia; mas manteve o “Autoritário” para preservar os poderes e interesses das facções estatais.
Infelizmente, por razões aludidas no artigo anterior e já detalhadas aqui e em outros posts deste blog, nossa autointitulada esquerda se afeiçoou ao Estado de Direito Autoritário-EDA a ponto de defendê-lo como se fosse um Estado democrático de direito, enredando-se com isso em toda sorte de inconsistências e contradições: ora chega a festejar as arbitrariedades do Judiciário contra os adversários, e até os ironiza por estarem provando do próprio chicote autoritário, como se isso não desmentisse a vigência do suposto Estado democrático de direito que alega defender; ora se alinha às facções reacionárias para burlar a exigências eleitorais quanto a cotas de mulheres e negros e quanto ao uso devido do dinheiro público dos fundos eleitoral e partidário.
Não é de espantar que essa mesma autointitulada esquerda se mostre impotente diante da violência autoritária com a qual o EDA invade (polícia) e abandona (políticas públicas) as comunidades carentes; ou não se insurja contra o corpo mole do ministro da Defesa diante do necessário e urgente combate ao garimpo ilegal (ou seja, não é “de Direito”) na Amazônia; ou tenha emudecido diante do necessário combate à corrupção; ou, por isso mesmo, trate como normal a compra de votos congressuais com emendas que antes fingia combater, chegando a elogiar Lira e Pacheco em seu papel de interlocutores confiáveis e como “defensores da democracia” contra um golpe que sempre foi inviável.
À vontade com esse Estado, Lula diz à sociedade que fique em casa, mesmo quando as facções adversárias o colocam de joelhos até para aprovar o organograma da esplanada dos ministérios, que chegou a 37 ministros justamente no intuito de “pacificar” a conflagração estatal. Em discurso na FIESP, Lula disse que “isso é a política” e que se tentarmos sair disso só iremos piorar as coisas… Deve ser por isso que o combate ao bolsonarismo está restrito a dois circos facciosos: o circo da CPI e o circo do Dino — ou seja, tudo cuidadosamente planejado para deixar de fora a maioria da sociedade, a quem se oferece a catarse das performances burlescas.
O alheamento de Lula aos desafios para a construção de um Estado de Direito Democrático fica escancarado quando ele indica seu advogado pessoal para a vaga a ser preenchida no Supremo Tribunal Federal-STF, legitimando as piores práticas de seu antecessor, nessa matéria, e dando mais um passo em direção à normalização do caráter faccioso do exercício do poder. Bolsonaro nomeou um “peixe meu” e, depois, alguém “terrivelmente evangélico”; Lula quer ver nomeado alguém terrivelmente lulista. A coreografia é tão facciosa que Lula usou como material de barganha para essa nomeação antirrepublicana o fato de ter escolhido apadrinhados de facções adversárias para duas vagas recentemente preenchidas no Superior Tribunal de Justiça-STJ — nomeações essas que não contemplaram nenhuma das mulheres que estavam na disputa.
III.
Enfrentar o desafio ambiental da mudança climática requer, no mínimo, acabar com a destruição da floresta e proteger o que restou dela. Acabar com a destruição significa enfrentar o que há de ilegal no garimpo, na extração de madeira e na produção pastoril, agrícola e pesqueira; proteger o que restou começa por fazer das populações indígenas o principal aliado no uso sustentável dos recursos naturais disponíveis nessas florestas: demarcar suas terras, reconhecer seu poder sobre elas e aprender com elas a preservar e manejar aquelas terras que elas não ocupam.
Depois do espalhafato inicial, o governo Lula acomodou-se diante de garimpeiros aquadrilhados, que têm enfrentado a tiros a rotina impotente do pequeno contingente de fiscais do IBAMA e da Polícia Federal destacado para aquela imensa área. Como os militares são avessos à preservação da floresta e ao respeito aos direitos indígenas, e como Lula está empenhado em “pacificar” a relação com eles (mesmo ao custo de passar pano para as afrontas bolsonaristas que eles protagonizaram recentemente), o governo está sem meios para mobilizar as FFAA no combate à bandidagem em ação na Amazônia. Vale notar que quando se trata das suas preferenciais internacionais, Lula encontra meio para enquadrar os militares: recentemente, determinou que eles convidassem o exército da China para evento militar organizado no Brasil.
Pelo lado do desenvolvimento, Lula tem mostrado pouca sintonia com as complexidades ambientais envolvidas, como deu exemplo na ideia do “Meu Carro Minha Vida”. Recentemente, diante de mais uma negativa do IBAMA a projeto da Petrobrás visando explorar petróleo no mar do Amapá, Lula declarou achar difícil haver problema ambiental na iniciativa, uma vez que se trata de empreendimento exploratório a 170 Km da costa… O absurdo da declaração é duplo: primeiro porque 170 Km significam um pulo quando se trata de dispersão de dano ambiental na água; segundo, e sobretudo, porque Lula fala como se um dano poluente que se restringisse ao mar não fosse de levar em conta.
IV.
Até aqui, Lula nada fez para alcançar relações internacionais compatíveis com os desafios que o Brasil enfrenta, pelo contrário. Toda a sua movimentação em busca de protagonismo na área tem sido lamentável, quando não delirante. Como já vimos detalhadamente aqui e aqui, seus arrancos de “pacificador” na guerra da Rússia contra a Ucrânia só serviram para deixar o Brasil em má situação com as consolidadas democracias europeias, as quais queremos como aliadas na luta ambiental, e com quem almejamos parcerias comerciais garantidas por tratados recíprocos. Tudo isso ficou abalado com a postura de Lula de se dizer “neutro” e, ao mesmo tempo, fazer reparos à solidariedade europeia diante de uma guerra de conquista contra país europeu!
Considerando os desafios estruturais enfrentados pela democracia brasileira, e tendo em mente o necessário combate conjuntural a ser feito contra o bolsonarismo, é realmente intrigante a deferência de Lula ao Bolsonaro da Rússia, preferência que nem o pragmatismo mais reles justificaria, afinal, a Rússia tem um PIB do tamanho do brasileiro — igualmente lastreado em exportações de matérias primas (a Rússia é o Brasil com arsenal atômico) — e nada de relevante pode fazer em nosso favor, especialmente agora que vai sair dessa guerra praticamente quebrada. Afinal, em nome do que Lula vetou a venda de ambulâncias militares brasileiras para a Ucrânia?!
Mas as trapalhadas de Lula não se restringem ao velho continente. Na recente cimeira entre líderes de países sul-americanos, Lula deu atenção desproporcional a Maduro, da Venezuela, com quem não apenas manteve espalhafatoso encontro bilateral, mas a quem defendeu contra as fundadas cobranças de respeito pelos Direito Humanos feitas por organizações sediadas em democracias europeias, classificando-as como “narrativas” — o que deu oportunidade ao jovem presidente do Chile de reagir para se distanciar resolutamente da anacrônica visão política de Lula.
Como se não bastasse, Lula usou Maduro para fazer dois gestos adicionais na mesma direção equivocada: primeiro, deu a declaração estapafúrdia de que as sanções contra a Venezuela são piores do que uma guerra, uma vez que, segundo ele, “em guerras só morrem soldados”… (e isso com tudo que se sabe do que Putin está fazendo contra o povo da Ucrânia, para não falar das duas guerras mundiais, ou da guerra do Iraque, do Vietnã, etc). Segundo, no contexto grave das atuais tensões internacionais, Lula, numa provocação tão desnecessária quanto tola aos EUA, sugeriu a Maduro fazer negócios em Yuan, a moeda chinesa, ao invés do dólar.
Para piorar as coisas, Lula ainda obteve um revés no campo que julga seu, o campo dos BRICS: em seu afã de aparecer como salvador da Argentina, fez proposta sem lastro sequer legal para que o Banco dos BRICS socorresse o quebrado país vizinho e acabou, mais uma vez, desmentido pelos fatos, não sem ter passado o vexame adicional de ter desconsiderada a sua sugestão de que o estatuto do banco fosse alterado (não consegue mandar no BC brasileiro e acha que por ter colocado Dilma na presidência do Banco dos BRICS…).
O frenesi de “pacificador”, estendido às relações internacionais, reflete, talvez, um açodamento de Lula na busca por realizar o sonho de obter um Prêmio Nobel da Paz — alguém precisa avisá-lo de que, se for este o caso, ele está a agir de modo contraproducente.
Fica o Registro:
– Celso Amorim, assessor de Lula para relações internacionais, acaba de declarar em entrevista ao Financial Times sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia que “Não podemos julgar a situação pelos últimos um ano e meio. Essa é uma situação de décadas. [A Rússia tem] preocupações que precisam ser levadas em conta. Isso não é culpa da Ucrânia. A Ucrânia é uma vítima, uma vítima dos resquícios da guerra fria”. Não poderia haver resumo melhor da preferência do governo Lula por Putin:
– Primeiro, Amorim compra pelo valor de face, e repete feito papagaio, o falso argumento da Rússia de que a guerra unilateralmente iniciada (ou seja, as atrocidades em solo ucraniano nos últimos ano e meio) teria alguma explicação além da vontade de expansão territorial da Rússia em seu insaciável sonho milenar de grande império. Putin temia a Ucrânia na OTAN não porque isso significasse uma ameaça à sua segurança, afinal, qualquer invasão do território da Rússia será imediatamente respondida com armas nucleares. O problema é que a Ucrânia na OTAN tornaria impossível a Putin anexá-la. Putin iniciou a guerra para se antecipar ao problema que teria. Supôs que a OTAN nada faria e que a Ucrânia se renderia. A Ucrânia reagiu e a OTAN passou a fornecer-lhe apoio crescente.
– Segundo, Amorim fala em “situação de décadas”, “preocupações que precisam ser levadas em conta”. Ora, se fosse assim, se Putin estivesse a responder a uma questão real, de fundo, como explicar o fato de que ele nada tenha feito diante da afrontosa entrada da Finlândia e da Suécia na OTAN? O “cerco” não poderia ser maior, afinal a nova “ameaça” fronteiriça chega a novos 1.550 Km (1.340 Km por terra e 210 Km por mar); não obstante Putin não fez caso precisamente porque isso não significa, na real, ameaça alguma. No fundo, Putin deu oportunidade aos EUA e à Europa de mostrar quão impertinentes são os sonhos imperiais da elite russa autoritária.
– Terceiro, Amorim diz, numa compaixão fingida, que “a Ucrânia é uma vítima, uma vítima dos resquícios da guerra fria”. Veja bem, leitor, a falsidade: uma vítima não da Rússia nessa guerra quente cruel, mas da guerra fria, que ficou para trás faz décadas e no vácuo da qual Putin achou que poderia agir na marra para restaurar parte do império perdido. Essa declaração vergonhosamente sabuja de Amorim traduz com perfeição a posição de Lula que — depois de ter se feito de difícil em Hiroshima, demorando para aceitar uma reunião com Zelenski, e de ter recebido o troco num desprezo merecido — acaba de promover mais uma rodada de conversas com Lavrov, o desmoralizado chanceler russo mentiroso. Um vexame atrás do outro.
16:46h
– Em evento com simpatizantes em São Bernardo do Campo, Lula abordou suas dificuldades para aprovar na Câmara o organograma do seu ministério nos seguintes termos: “A esquerda toda tem no máximo 136 votos, isso se ninguém faltar. Para votar uma coisa simples precisamos de 257. Para aprovar uma emenda constitucional, é maior ainda. Então é importante que saibam o esforço para governar. Não é só ganhar uma eleição, você ganha a eleição e depois você tem que ficar o tempo inteiro conversando para aprovar uma coisa”.
– Mesmo tendo comprado os votos a peso de ouro (1,7 bilhão em emendas, pagos no dia e na véspera da votação; e a volta do cabide de empregos da FUNASA), Lula normaliza a barganha facciosa havida (que favorece a corrupção) chamando-a de conversa política, e pior: não faz qualquer aceno para a mobilização popular, a quem, para ele, cabe apenas votar — e ainda choraminga sobre “as dificuldades de governar”.
– Lula e o PT cederam sem queixas ao desmonte dos ministérios de Marina Silva e Sônia Guajajara, que, por sua vez, estão caladinhas, agarradas aos fiapos de poder que lhes foram deixados. Para Lula, e para boa parte da autointitulada esquerda, a formação original daqueles ministérios não era uma questão central. Por isso, tudo se passa como se Lula tivesse obtido uma vitória… É sempre assim, querem nos vender como vitórias as derrotas havidas: a anistia para torturadores; as Diretas-Já; a “solução” Tancredo no Colégio Eleitoral; os 5 anos pro Sarney; etc.
– Essa votação foi mais um evento da guerra de facções e, por isso mesmo, exibe a movimentação facciosa em toda a sua inconstância de fusão contínua: o placar supostamente favorável, alcançado na última hora, enfraqueceu Lira, pois não resultou de uma ordem unida comandada por ele, mas de intensas negociações paralelas, num verdadeiro azáfama faccioso. Ademais, Lira já está a receber pressões oriundas do facciosismo no Judiciário e na Polícia, numa resposta ao fato de ele estar querendo dar uma de Eduardo Cunha num cenário sem as facções da LavaJato e esquecido de que Lula não é Dilma… Passou a levar tiros de advertência.
Prof. Novaes, bom dia. A noção de “Estado de Direito Autoritário” é uma formulação sua? Outros autores usam esse conceito?
Agradeço antecipadamente (sou seu leitor há vários anos).
Atenciosamente
Denis
Até onde sei, ninguém mais trabalha ou trabalhou o conceito. A ideia me veio de uma pergunta simples: se o Estado de Direito Democrático é a forma estatal das democracias consolidadas, qual é a forma estatal das democracias não-consolidadas, quando as amplas franquias democráticas são respeitadas, mas coexistem com formas abertas de autoritarismo estatal contra a maioria da sociedade? Cheguei ao conceito de EDA, que me parece central para entender a política brasileira.